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Discurso de agradecimento

LAUDATIO

Discurso de agradecimento

José Henrique Santos

UFMG

Magnífico Reitor da Universidade Federal de Minas Gerais, Prof. Dr. Ronaldo Tadeu Penna

Exmo. Sr. Diretor da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Prof. Dr. João Pinto Furtado

Exma. Sra. Chefe do Departamento de Filosofia, Profa. Dra. Telma Birchal

Demais Autoridades presentes

Prezadas colegas com as quais compartilho desta honrosa homenagem

Queridos colegas e amigos

Meu particular amigo, Prof. Dr. Ivan Domingues, que me saudou com a calorosa simpatia de uma recíproca admiração.

Ainda não cheguei à idade de Matusalém, que Husserl considerava necessária para adquirir maturidade nos assuntos filosóficos, mas já vivi o suficiente para saber que, a esta altura da vida, a honraria que me concedem os colegas devo atribuí-la mais à amizade do que aos méritos da carreira acadêmica. Aristóteles disse que o amigo é um outro eu, ho phílos állos autòs, mas o convívio de muitos anos fez a philía dos gregos sublimar-se no ágape dos que vivem no mesmo espírito. É na generosidade de dar e receber que o eu se torna um nós, e cada qual está com o próximo sem abdicar do que lhe é devido. O respeito ao outro une mais do que as eventuais concordâncias e as divergências doutrinárias, estas últimas tão necessárias para o progresso do saber.

Quando penso no tempo transcorrido desde 1961, data em que, recém-formado, me submeti a um concurso para professor assistente e comecei a lecionar na antiga Faculdade de Filosofia, devo confessar que até hoje sinto aquele sobressalto, que imagino acometer muitos professores iniciantes, obrigados a enfrentar a cada dia, sozinhos, a turma de alunos ávidos de aprender certezas, quando eu só possuía dúvidas que frequentemente mudavam de lado. As incertezas podem parecer cruéis, mas consolo-me com o fato de que são elas que movem o desejo de saber. Todos conhecemos o célebre axioma de Kant, de que é melhor aprender a pensar do que aprender pensamentos. Mas será que, passado tanto tempo a ler e refletir, aprendi o suficiente para ensinar alguém a pensar por si mesmo? Tenho sérias dúvidas a respeito. Não porque os alunos não queiram aprender por conta própria; eles o desejam. Mas é que, para mim, a dúvida se tornou uma questão de método, indispensável para quem pretenda dominar os misteres filosóficos. Porém aqui mora o perigo. Suscitar dúvidas é como semear espinhos, na esperança de que depois brote uma flor rara, em todo o caso sempre difícil de colher. Contudo, mesmo assim vale a pena cultivar o que é nosso, do contrário arriscamo-nos a acolher pensamentos prontos, que nem mesmo são verdadeiros, ávidos por ocupar todo o nosso espírito, principalmente quando vêm com a sedução de nomes consagrados, como sementes de erva daninha que caem em terreno inculto e não encontram resistência.

Explico-me melhor; e aproveito para poupar aos presentes a sensaboria de reminiscências pessoais, que só têm sentido para mim, em troca de umas poucas reflexões sobre as raízes do ato de filosofar que, em casos de rara felicidade, às vezes deixam brotar alguns filosofemas que os pósteros, com excessiva deferência para com a letra escrita, chamam de filosofia. Mas também não é o caso de fazer finca-pé nos pensamentos pessoais que não valem grande coisa. Levantar dúvida a respeito das próprias ideias é bem mais difícil do que desconfiar das alheias. A vaidade de ter "ideias bem assentadas" faz confundir filáucia com autoestima, e o diabo disso se aproveita para dar a impressão de que convencimento já é conhecimento.

Assim, o que tenho a dizer-vos é quase nada, é o que sobrou da dúvida; mas, pensando melhor, creio que esta é a pulsão que dá alento à vida do espírito. Os alemães a chamam de "fé filosófica" (philosophischer Glaube), para que não paire dúvida de que o ato de filosofar exige a crença no poder da razão, e que mesmo as maravilhas do universo, a princípio tão esquivas e enigmáticas, acabam sempre por render-se ao esforço de quem pretenda conhecê-las, desde que não se deixe abater pelos erros e desenganos, e, principalmente, pela teimosia dos fatos. Todavia, foi um evangelista, e não um filósofo, quem melhor expressou a fé no poder do espírito: "Porque nada há de encoberto que não haja de revelar-se, nem oculto que não haja de saber-se" (Mateus, 10, 26). Utilizo-me de um texto que escrevi não faz muito tempo e que foi de escassa circulação. Retomo apenas duas questões.

A dúvida como método

Toda filosofia começa com uma situação desconfortável da qual é preciso sair. Alguns filósofos, imbuídos do espírito científico, experimentam esse mal-estar como mero problema teórico, um não-saber que se pode corrigir por meio de métodos objetivos e confiáveis. Como a distância entre o que sabemos e o que desejamos saber é infinita, sempre haverá com que se ocupar. Pode-se mesmo dizer, sem abusar do paradoxo, que a ignorância cresce na proporção do conhecimento, pois não é possível avaliar o que desconhecemos sem um mínimo de ciência. A ignorância é deveras intolerável, e não temos outra alternativa senão sair dela e deixá-la para trás. Mas eis que, supondo-a vencida, ela ressurge teimosamente diante de nós como a requerer nova satisfação, cada vez mais exigente, porque, sendo uma ignorância douta, já sabe o que pedir. Ao contrário do que se imagina, a aplicação ao estudo não tem a única virtude de aumentar o saber e remediar os enganos com os quais vivemos, mas também o de aumentar o não saber daquilo que ainda desconhecemos, e dar-nos a consciência do crescente distanciamento que se estende entre um e outro, tanto maior quanto mais progride o estudo.

Contra os sofistas, que alardeavam tudo saber, Sócrates dizia só saber uma coisa, que era nada saber; mas, passados mais de dois milênios, não precisamos ser tão modestos, e, em vez de falar que "sei que não sei", podemos admitir que "sei o que não sei". Afinal, não é à toa que nos orgulhamos do progresso da ciência. Ela moldou tão inteiramente nossa vida, que podemos duvidar se conseguiríamos um dia viver sem ela, caso alguma catástrofe atingisse o globo terrestre.

A dúvida, não a certeza, faz o conhecimento progredir. Queremos saber mais, não porque saibamos pouco, mas porque o muito que sabemos não inspira confiança, e nos deixa sem resposta quando insistimos em perguntar um pouco mais. Perguntar não faz mal a ninguém, mas costuma ameaçar nossas crenças mais arraigadas, quando resolve pegar no pé de uma verdade que não se sustenta nas próprias pernas. Se quiser manter-se, cuide, pois, o que se tem por verdadeiro de encontrar boas razões, sem cobrir-se de outra autoridade senão a de ter passado incólume pela dúvida.

A aprendizagem não se compara a um crescimento orgânico, no qual as partes e o todo convirjam miraculosamente para uma harmonia preestabelecida; tampouco se há de considerá-la um progresso contínuo, em linha reta, ao qual a paciência do estudo acrescente todos os dias algo novo até então ignorado. Para tornar-se aquisição, aprender impõe duvidar e desfazer-se de preconceitos de toda ordem; antes de aprender é preciso desaprender, e sempre refazer o pouco que se adquire, como uma casa nunca terminada. Ficaríamos espantados se, ao lado das afirmações bem fundadas que nos julgamos capazes de emitir, anotássemos as negações que se ocultam atrás do que dizemos. Toda afirmação verdadeira supõe uma infinita negatividade e um exercício reiterado da dúvida, que nunca se extingue inteiramente, mesmo nos mais dogmáticos.

Descartes aconselhava duvidar ao menos uma vez na vida, para nos desfazermos dos preconceitos que inibem o saber. Por causa do aumento exponencial do conhecimento, nossa exigência é hoje infinitamente maior, e faz com que a dúvida acompanhe, como uma sombra, cada passo do progresso científico, por mínimo que seja.

Que caminho seguirei na vida?, perguntava-se ele. Conhecemos a resposta: o caminho da razão; pois se a razão levanta as dúvidas das quais deseja sair, só ela própria poderá ensinar o caminho da certeza; não existe nenhum juiz da razão fora dela mesma, porque apenas a razão produz razões que a possam convencer. Mas para que ela não se perca, é preciso pôr ordem nas razões e assim encontrar um caminho, isto é, um método que a conduza à verdade da certeza de si. O Discurso do Método propõe um caminho afirmativo para sair do desconforto que toda dúvida suscita. Descartes o compara à direção em linha reta que a razão aconselha ao viajante perdido na mata, dando por suposto que este método o conduza a alguma parte; - mas aonde se quer chegar? A um lugar que a dúvida não alcance ao término do percurso, isto é, ao conhecimento certo e demonstrável do sistema do mundo, e da posição que o homem nele ocupa, sem se esquecer dos meios de transformação que o saber pode proporcionar. É preciso estabelecer, portanto, desde já, as regras para a direção do espírito, pois é mais seguro saber aonde se quer chegar e escolher o meio adequado, antes mesmo de empreender a jornada.

Talvez uma carta geográfica ajudasse a orientar-se na perdição da floresta, todavia a vida humana é essencialmente tempo, história, e o que está por-vir ainda não encontrou seu lugar. Dante assegurou-nos que não é fácil sair da selva oscura chè la diritta via era smarrita (cujo caminho estava perdido) sem antes endireitar a própria vida e reencontrar-se consigo. Mas será mesmo possível sair do desconforto que não podemos suportar? Haverá um local que possa acalmar nossa inquietação? Notemos desde logo: o in-suportável é, precisamente, o que carregamos conosco por toda parte; é nossa própria condição humana. Por isso precisamos tomar cuidado.

O cuidado como princípio

Conto uma pequena história.

O cuidado, cura em latim, deu origem a uma prole que se consumia em desavença; contra ela se levantava a incúria, que acabava provocando a insecuritas, que vivia ameaçando sua irmã gêmea, a securitas; enquanto brigavam, a irmã mais nova cultivou a curiositas, curiosidade, e ensinou às demais o prazer de conhecer; a descoberta reconciliou a família, mas não foi suficiente para afastar de todo a insegurança, porque logo se verificou que ela detinha o aguilhão negativo que impelia a pulsão de seguir em frente, não dando azo a que a curiosidade se contentasse com pouco.

A dúvida é o método para edificar o edifício da ciência. Neste sentido, ela é sempre provisória, e tem a finalidade de trazer a verdade que se ocultava no mare ignotum para torná-la visível em sua plena universalidade. Mas hoje a dúvida parece estar na cabeça de todos os bem-pensantes; duvida-se de tudo, mesmo - e principalmente - do sagrado em que se acreditava. Duvida-se por princípio, como algo definitivo, e crê-se razoável proibir a Razão de manifestar-se de modo diferente do consentido. Neste caso, é preciso redobrar todo o cuidado, e considerar que a suspeita tampouco possui razões confiáveis, porque também ela depende do curso dos acontecimentos e de descobertas sempre novas.

Como fazer, portanto, para escapar ao ceticismo, essa doença infantil da especulação filosófica? Só existe um meio para tomar esse cuidado. Consiste em levar a dúvida ao ponto extremo do radicalismo, onde ela se dobra sobre si mesma e absorve a negatividade que a acompanha como sombra: por que não duvidar da dúvida? Quando se transforma em dogma, duvidar da dúvida torna-se imperativo crítico.

Na impossibilidade de recordar e honrar todos os professores aos quais os de minha geração tanto devem, quero delegar a um deles, dentre tantos vultos que se foram, a missão de receber o reconhecimento tardio de um discípulo não muito ortodoxo. Dizem que ninguém é profeta em sua terra, mas o Prof. Arthur Versiani Velloso, parece-me, acertou as contas com o futuro, quando escreveu, em 29 de abril de 1959, no extinto jornal O Diário, estas palavras que ele mesmo ajudou a tornar realidade:

Tudo esperamos deles. [...] Destes meninos, que aprenderão, nas Europas e nas Américas, a corrigir os nossos gravíssimos desacertos pedagógicos e educacionais, e que certamente realizarão a Faculdade, a Escola, a Universidade com que sonháramos um dia, e que mercê das mais ridículas e absurdas circunstâncias não pudemos sequer entrever.

Este escrito, que era para ser um desabafo, mostra o quanto o real resulta do poder da vontade. Como disse o poeta: Deus quere, o homem sonha, a obra nasce.

Valho-me das palavras de Velloso para homenagear meus atuais colegas: são eles, que hoje me honram com o título de professor emérito, os meninos que aprenderam nas Europas e nas Américas, e que realizaram a Faculdade e a Universidade sonhadas. São os mesmos que levaram à frente um dos melhores cursos de Filosofia do País, desdobrado no Mestrado e no Doutorado, e que tantos e tão bons trabalhos têm publicado em revistas de todo o Brasil e do estrangeiro, entre as quais se conta a nossa Kriterion, fundada por mestre Velloso.

Antes de terminar, devo abrir uma exceção à regra de não falar de mim mesmo. Dedico este título de professor emérito a minha querida Ângela, que, durante nosso trabalho acadêmico, vivido em comum, se impôs muitos sacrifícios para ajudar-me, de modo duplo: nos cuidados do lar e educação dos filhos, e nas tarefas escolares. Quase tudo o que pude fazer, ensinar ou escrever recebeu seu mais decidido apoio. Quantas conversas, debates e leituras para obtermos maior clareza de um texto ou de um assunto, às vezes até tarde da noite! Sua leitura inteligente, penetrante, dos textos filosóficos é um privilégio que me aproveita até hoje. Quem pensa o mais profundo, ama o mais vivo. Gratidão não se amarra em palavras. Os meus filhos Eduardo e Sérgio completam a felicidade da vida compartilhada. Devo-lhes bem mais do que eles possam imaginar.

A todos os colegas e amigos, muito obrigado!

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jul 2010
  • Data do Fascículo
    Jun 2010
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