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Haverá uma antinomia na doutrina kantiana do direito público?

Resumos

O objetivo deste artigo é examinar a hipótese de que a teoria kantiana do direito público seja estruturalmente antinômica, a despeito de que Kant só lhe tenha admitido o aspecto paradoxal. Com efeito, a teoria kantiana do direito público simultaneamente sustenta: (i) que o ingresso dos homens em um estado juridicamente organizado depende da obediência ao comando da razão que nos ordena celebrar o pactum unionis civilis e aceitar a submissão a uma ordem constitucional civil; (ii) que devemos aceitar como nosso legítimo soberano a quem quer que tenha condições de efetivamente impor seu poder sobre nós. Bons intérpretes como Bouterwek e Hermann Cohen pensaram, contudo, que a verdadeira dificuldade dessa análise é uma desconcertante confusão dos conceitos de soberano e de soberania. A hipótese que procuramos explorar neste artigo é a de que se obterá um melhor entendimento da posição de Kant se admitirmos que os dois planos de análise e as teses conflitantes a que se acaba de aludir estão em uma posição reciprocamente equivalente à que se encontram tese e antítese nas antinomias dinâmicas analisadas na "Crítica da razão pura".

Kant; direito público; fundação constitucional; antinomia


The aim of this paper is to examine the hypothesis that Kantian theory of public rights is founded on an antinomic conceptual structure, even though Kant only admitted the paradoxical character of his doctrine. Kant's theory on public right states, at the same time, that: (i) the access to a rightful condition is dependent on our compliance to the command of reason to celebrate the pactum unionis civilis and the corresponding submission of the citizens under a civil constitution; (ii) we shall accept as our legitimate sovereign whoever is able to impose his power over us. Good interpreters, as Bouterwek and Hermann Cohen thought, however, that the true difficulty with his analysis is that it contains an astonishing confusion of the concepts of sovereign and sovereignty. The hypothesis I would like to explore in this paper is that perhaps a better understanding of Kant's position on this theme can be obtained by admitting that the two levels of analysis and the conflicting thesis we found in his doctrine of public rights are in a position reciprocally analogous to that occupied by thesis and antithesis in the dynamical antinomies assessed in the Critique of Pure Reason.

Kant; public rights; constitutional foundation; antinomy


ARTIGOS

Haverá uma antinomia na doutrina kantiana do direito público?

João Carlos Brum Torres

Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade de Caxias do Sul, rs013661@pro.via-rs.com.br

RESUMO

O objetivo deste artigo é examinar a hipótese de que a teoria kantiana do direito público seja estruturalmente antinômica, a despeito de que Kant só lhe tenha admitido o aspecto paradoxal. Com efeito, a teoria kantiana do direito público simultaneamente sustenta: (i) que o ingresso dos homens em um estado juridicamente organizado depende da obediência ao comando da razão que nos ordena celebrar o pactum unionis civilis e aceitar a submissão a uma ordem constitucional civil; (ii) que devemos aceitar como nosso legítimo soberano a quem quer que tenha condições de efetivamente impor seu poder sobre nós. Bons intérpretes como Bouterwek e Hermann Cohen pensaram, contudo, que a verdadeira dificuldade dessa análise é uma desconcertante confusão dos conceitos de soberano e de soberania. A hipótese que procuramos explorar neste artigo é a de que se obterá um melhor entendimento da posição de Kant se admitirmos que os dois planos de análise e as teses conflitantes a que se acaba de aludir estão em uma posição reciprocamente equivalente à que se encontram tese e antítese nas antinomias dinâmicas analisadas na "Crítica da razão pura".

Palavras-chave: Kant, direito público, fundação constitucional, antinomia.

ABSTRACT

The aim of this paper is to examine the hypothesis that Kantian theory of public rights is founded on an antinomic conceptual structure, even though Kant only admitted the paradoxical character of his doctrine. Kant's theory on public right states, at the same time, that: (i) the access to a rightful condition is dependent on our compliance to the command of reason to celebrate the pactum unionis civilis and the corresponding submission of the citizens under a civil constitution; (ii) we shall accept as our legitimate sovereign whoever is able to impose his power over us. Good interpreters, as Bouterwek and Hermann Cohen thought, however, that the true difficulty with his analysis is that it contains an astonishing confusion of the concepts of sovereign and sovereignty. The hypothesis I would like to explore in this paper is that perhaps a better understanding of Kant's position on this theme can be obtained by admitting that the two levels of analysis and the conflicting thesis we found in his doctrine of public rights are in a position reciprocally analogous to that occupied by thesis and antithesis in the dynamical antinomies assessed in the Critique of Pure Reason.

Keywords: Kant, public rights, constitutional foundation, antinomy.

Introdução

Que na doutrina kantiana do direito privado haja uma antinomia é algo sabido por qualquer leitor da "Metafísica dos costumes", pois esse é o objeto do §7 da "Doutrina do Direito". Que haja, porém, uma antinomia na "Doutrina do Direito" público parece inverossímil, pois não apenas inexiste reconhecimento expresso desse ponto na obra kantiana, como também parece ser muito escasso o registro de sua possibilidade nos comentários da "Doutrina do Direito".1 1 Hermann Cohen é uma exceção. V. Cassirer, 1910, p. 429. Na tradução italiana de Gianna Gigliotti, La Fondazione kantiana dell'Etica, Milalla, Lecce, 1983, p. 381.

Contudo, o modo como Kant analisa o ato pelo qual o povo se constitui em um Estado,2 2 Metafísica dos Costumes, I Doutrina do Direito, §47. Na tradução para o português de José Lamego, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2005, p. 182. Segundo a Akademie-Ausgabe, 6, 315. As citações subsequentes da "Metafísica dos Costumes" serão feitas levando em conta também a tradução, inédita, da "Doutrina do Direito" por Joãosinho Beckenkamp, bem como a de Edson Bini (EDIPRO, São Paulo, 2003) e incluirão, entre parênteses, a remissão à edição das obras de Kant pela Academia de Berlim. se adequadamente entendido, parece implicar a existência de uma tal antinomia, a qual, ainda que não reconhecida expressamente, é insinuada em várias passagens dos textos que o filósofo dedicou aos fundamentos da política e do direito. Para melhor introduzir esta hipótese, uma preliminar indispensável é ter presente que no que tange à origem do status civilis essa doutrina complexa compreende duas séries analíticas inteiramente distintas, as quais, a despeito de que desenvolvidas de modo desigual, têm importância teórica equivalente.

A primeira, de caráter puramente normativo, tem como ponto de partida o denominado postulado do direito público - expresso nos seguintes termos: como é inevitável o convívio lado a lado com os demais, deves abandonar o estado de natureza e ingressar em um estado jurídico3 3 Ibidem, §42; Ibidem, p. 170. (AA, 6, 307). O sentido do termo postulado neste contexto é o apresentado no §38 da Lógica: "Um postulado é uma proposição prática imediatamente certa ou um princípio que determina uma ação possível na qual se pressupõe que a maneira de executá-la é imediatamente certa." V. Kant, 1992, p. 131. (AA, 9, 112). Em "O anúncio do término próximo para um tratado de paz perpétua em filosofia" lê-se: "Postulado é um imperativo prático dado a priori, inapto a qualquer explicação de sua possibilidade (portanto, também insuscetível de qualquer prova). Logo, não se postulam coisas ou em geral a existência de qualquer objeto, mas apenas uma máxima (regra) da ação de um sujeito." Tradução de Valério Rohden et al. Disponível em: www.periodicos.ufsc.br/index.php/ethic/article/download/.../15943. (AA 8, 418, nota). -, cujo estatuto é o de uma Ideia da razão.4 4 MC, ibidem, p. 271. (AA, 6, 372). Neste plano, o direito público é visto como assentado em princípios racionais de caráter a priori que implicam, inter alia, as teses de que a "idéia de uma constituição civil é um comando absoluto da razão prática"5 5 Idem.

e de que muito embora se possa conceber "uma legislação exterior que contenha somente leis positivas", deve-se também admitir que "ela deveria

ser precedida por uma lei natural que fundamentasse a autoridade do legislador (quer dizer, a faculdade de obrigar outros apenas mediante seu arbítrio)".6 6 MC, I - Doutrina do Direito, Introdução à Metafísica dos Costumes, p. 35. (AA, VI, 224).

Já a segunda ordem de análise atenta ao que se pode denominar de condições reais de instituição de uma ordem jurídica.7 7 Ao tratar desse ponto em "Politics, freedom and order: Kant's political philosophy", Kersting (1992b, p. 343) observa que a filosofia política de Kant "reflete cuidadosamente sobre as condições empíricas de realização das normas da teoria racional do direito [...].". Já na abertura do ensaio "Kant's Concept of the State", a integração da reflexão sobre essas condições empíricas na filosofia política kantiana, Kersting parece ter reavaliado o ponto, pois ali nos é dito que "A filosofia política de Kant está profundamente enraizada em sua metafísica do direito e, por essa razão, formada por um racionalismo normativo que evita toda determinação histórica ou empírica" (Kersting, 1992a, p. 143). Byrd e Hruschka, no mais recente dos comentários à "Doutrina do Direito", dedicam um capítulo ao que denominam de "O Estado na Idéia" e outro ao que chamam de "Estado na realidade". Contudo, ao abrirem esse segundo capítulo imediatamente declaram: "A questão não é: Como é possível um domínio efetivo sobre os homens. A história mostra que isso é possível." V. Byrd e Hruschka, 2010, p. 168. O que é dizer que não examinarão o que Kant diz sobre esta última questão senão marginalmente. Kant a desdobra de maneira admitidamente concisa, às vezes como que a latere, em textos que, aliás, parecem ser cuidadosamente evitados por muitos intérpretes. A lição dessas passagens é que, muito embora, do ponto de vista prático, a origem do Estado deva, para os súditos - para os súditos, não para os teóricos e seus leitores! - permanecer como algo inescrutável,8 8 Ibidem, p. 187. (AA, 6, 318). não cabendo indagar se "houve de antemão em termos factuais um contrato efetivo de submissão ao Chefe de Estado (pactum subjectionis civilis), ou se a violência foi anterior e a lei veio só interveio depois",9 9 Idem. é, contudo, incontroverso que a:

submissão incondicional da vontade do povo (que está em si desunida, sem lei portanto) a uma vontade soberana (que une a todos mediante uma lei) é um fato (Tat) que só pode com a tomada do poder supremo pode ter início e que funda, assim, em primeira mão, um direito público.10 10 Ibidem. p. 272, tradução modificada. (AA, 6, 372).

O deslinde, não propriamente do desdobramento dessas duas séries analíticas, mas do modo como deve ser entendida sua relação requer, contudo, atenção e é em função dos resultados do exame que se fizer desse ponto que se poderá melhor entender, ou, pelo menos, discutir a hipótese levantada acima de que cabe pelo menos cogitar da existência de uma antinomia na doutrina kantiana do direito público.

I A teoria normativa da origem do Estado segundo Kant

A análise normativa da origem do direito público é desdobrada no longo argumento em que Kant trata de demonstrar a priori a necessidade e a legitimidade do Estado. Essa análise faz do direito privado a origem necessária do direito público e tem como base a teoria kantiana da posse. Seu ponto de partida é a concepção da liberdade, a qual, neste contexto, deve ser entendida como o direito único, originário, pertencente a cada homem por força de sua humanidade, de ser seu próprio senhor (princípio da igualdade), de ser irreprochável antes da celebração de qualquer ato jurídico, de fazer contra os outros tudo que não lhes diminua o direito, assim como o de expressar-se como bem quiser, inclusive falsamente.11 11 Ibidem, p. 56. (AA, 6, 237-8).

Esse único direito inato, além de fundar o direito privado - pois dele decorrerá o primeiro direito adquirido, o direito ao apossamento de bens externos12 12 Que o §41 nos diz serem a matéria do arbítrio. Ibidem, p. 167. (AA, 6, 306). - constitui-se também no ponto de partida da constituição do direito público, uma vez que o meu e o teu externos, como Kant costuma dizer, só podem ter estabilidade depois da passagem ao estado civil, isto é, ao estado em que uma vontade coletiva-universal (comum) e detentora do poder garantirá o seu de cada um.13 13 Ibidem. §8, p. 85. (AA, 6, 256).

Esta é a razão pela qual toda exposição consequente da doutrina kantiana do direito público precisa começar pela consideração do direito privado e

mais precisamente pela restituição da complexa análise kantiana do conceito de posse e é o que faremos aqui de modo tão conciso quanto possível.

A teoria kantiana da posse

Kant distingue dois regimes ou modos em que a posse pode ser exercida. O primeiro é o da chamada posse empírica, o segundo o da posse inteligível. Ambas devem ser entendidas como implicadas pela liberdade, eis que o uso de bens externos é uma forma básica e fundamental do agir livre.

A legitimidade de tal uso - isto é, a possibilidade de "ter como o meu qualquer objeto externo de meu arbítrio",14 14 Ibidem, §2, p.67. (AA, 6, 246). como diz o "Postulado jurídico da razão prática" - é defendida por Kant mediante um argumento a contrario no qual se argui que, se fosse vedada a apropriação dos bens externos, a liberdade "privaria a si mesma do uso de seu arbítrio em vista de um objeto do mesmo [...]" e, nesse sentido, se autocontradiria.15 15 Idem, p. 68. (AA, 6, 246).

Já o exercício desse direito originário se faz primeiramente por meio da posse empírica, cuja nota própria, a detenção, é a ligação física de uma pessoa com um determinado objeto. Segundo Kant, a demonstração de que sempre que alguém tiver um objeto em mãos16 16 Direito que se expressa na pretensão legítima de prevenir e impedir o contato não autorizado de terceiros com o bem tido em mãos. será seu legítimo detentor pode ser feita com base no simples princípio de não contradição.17 17 A apresentação deste argumento limita-se à observação de que quem vier a turbar a detenção estará agredindo a liberdade do detentor ao colocar sua máxima em contradição direta com o axioma do direito. MC, §6, p. 75. (AA 6, 249-250). A expressão axioma do direito não havia aparecido previamente no texto, mas Kant parece estar claramente fazendo remissão ao princípio universal do direito (item C da "Introdução à Doutrina do Direito"), cujo objeto é esclarecer que os indivíduos estão autorizados a agirem como quiserem desde que tal ação possa coexistir com a liberdade dos demais segundo uma lei universal. Em anotação a sua tradução da "Metafísica dos Costumes", Gregor remete a uma passagem do ensaio "Sobre um suposto direito de mentir por amor da humanidade", que abona essa interpretação. In: Kant, 1996, p. 636. Todavia, por que o desrespeito da posse alheia viola o princípio de não contradição não está suficientemente esclarecido no texto kantiano. Creio que se entenderá melhor o que o filósofo teve em mente se levarmos em conta a ideia de que a legitimação da posse com base na mera detenção resulta de que se tenha o apoderamento físico da coisa como título suficiente para justificação da pretensão do detentor de prevenir e impedir o contato alheio não autorizado com ela. É que não é difícil perceber que o turbador da detenção, ao querer apossar-se do já possuído, simplesmente nega o direito que quer afirmar mediante o gesto agressor. Ou, para dizê-lo em termos contemporâneos: que aquele que quiser tomar posse de algo mediante o esbulho da posse alheia incorrerá em uma contradição performativa, pois essa conduta implicará recusar que a detenção da coisa seja título e legitimação suficientes para sua posse, de modo que quem assim agir, sob pena de autocontradição, normativamente, não se poderá opor à agressão que eventualmente venha ele próprio a sofrer.

No entanto, essa primeira e primária forma do direito de posse é, segundo Kant, imperfeita,18 18 Kant diz no §6: "A posse meramente física (a detenção) do terreno é já um direito sobre uma coisa, se bem que não seja ainda suficiente para considerá-lo meu." Ibidem, p. 79, tradução modificada. (AA, 6, 251). pois só cabe falar de maneira plenamente apropriada da posse como um direito sob a condição de "admitir que me poderia causar dano o uso que outrem pudesse fazer de uma coisa, mesmo quando não a tenho em minha posse."19 19 Ibidem, §1, p. 68; tradução modificada de acordo com a lição de Joãozinho Beckencamp, em tradução, inédita, da "Metafísica dos Costumes". (AA, 6, 245). 20 20 Quer dizer: mesmo quando não a tenho em mãos. Neste caso, o da posse inteligível, a demonstração de que a posse se estende para além do que é objeto de detenção imediata já não poderá ser estabelecida analiticamente. Aqui o ato de um terceiro de apoderar-se do que não está sob controle imediato e físico de outrem não nega imediatamente o próprio conceito de posse, nem parece atingir a liberdade alheia, pois o objeto encontra-se fisicamente desligado e, portanto, pelo menos empírica e sensivelmente, jacente. Esta a razão pela qual a demonstração de que o sentido mais próprio da posse exige compreendê-la como independente do vínculo físico do possuidor à coisa terá que ser feita com base em um argumento sintético.21 21 É o que Kant explica na passagem seguinte: "a possibilidade da posse de uma coisa exterior a mim, abstraindo de todas as condições da posse empírica no espaço e no tempo (por conseguinte, a pressuposição da possibilidade de uma possessio noumenon), [...] é sintética, dado que estabelece uma posse mesmo sem detenção como necessária para o conceito do meu e teu exteriores [...]." Ibidem, §6, p. 75-76. (AA, 6, 250). Este terá como base a observação de que, além das relações físicas que temos com os objetos, podemos nos relacionar com estes também racionalmente. Ao fazê-lo consideramos as coisas como nossas com base no conceito racional puro de uma posse em geral, o que implica que

em lugar da detenção (detentio), como uma representação empírica da posse, seja pensado o conceito do ter (Begriff des Habens), que abstrai de todas as condições do espaço e do tempo, e o objeto seja pensado apenas como estando sob meu domínio (in potestate mea positum esse).22 22 Ibidem, §7, p. 253. (AA, 6, 253). Tradução modificada segundo Beckencamp. Lamego opta por haver em vez de ter, acepção do verbo que o Houaiss classifica como antiga. 23 23 No fino exame a que submete este ponto, Bernd Ludwig mostra como esse segundo e mais completo sentido do conceito de posse se articula com o anterior e argumenta que se deve observar que há uma "' prerrogativa de direito saída da posse empírica' [MS, §9, p. 87; cf. p. 98. AA, 6, 257 e AA, 6, §15, p. 264] que torna possível a posse não física mesmo antes que a vontade geral seja de fato estabelecida." V. Ludwig, 2002, p. 178.

A prova desse direito baseado no pensamento, na vontade, na decisão e na ação unilaterais de apossar-se de algo - ou, nas palavras de Kant: "Aquilo que submeto a meu poder segundo leis da liberdade exterior e quero que seja meu é meu."24 24 MC, §15, p. 97. (AA, 6, 264). - é justificada, como observado por Bernd Ludwig, "tão somente porque os outros não têm nenhum direito a opor a essa pretensão".25 25 Idem. E Ludwig acrescenta conclusivamente: "Em resumo, a propriedade (se tiver sido uma vez introduzida) é justificada porque não há nenhum direito de resistir à introdução da propriedade" ( idem). Essa justificativa à primeira vista desconcertante precisa, contudo, ser ela própria justificada. Sua defesa será apresentada mediante o argumento desenvolvido no "Postulado jurídico da razão prática", já referido acima, de acordo com o qual, a liberdade se autocontradiria, pois

[...] privaria a si mesma do usar o seu arbítrio em vista de um objeto do mesmo, por colocar fora de toda possibilidade de uso os objetos úteis, quer dizer, ao eliminá-los de um ponto de vista prático e torná-los sem dono (res nullius) [...].26 26 Ibidem, §2, p. 69. (AA, 6, 246).

Bem entendido, o exercício particularizado desse direito geral dos homens de possuírem e usarem as coisas do mundo, do qual a propriedade comum inata do solo é a expressão paradigmática,27 27 Ibidem, §6, p. 76. (AA, 6, 250). a que Kant dá o nome de lex permissiva,28 28 V. ibidem, §2, p. 70. (AA, 6, 247). deve regular-se pelo Princípio universal do direito, isto é, deve satisfazer a condição de que a máxima que regular cada ato concreto de tomada de posse possa coexistir com a liberdade de todos de acordo com uma lei universal.29 29 V. ibidem, Introdução à Doutrina do Direito, §C, p. 230. (AA, 6, 230).

A garantia e segurança da posse e da propriedade como bases da passagem ao direito público

É preciso ter bem claro, porém, que a admissão da existência da posse legítima previamente à instituição do status juridicus, longe de dispensar, exige a passagem a este último, pois antes disso toda posse efetiva é precária, instável, inelutavelmente sujeita a disputas e controvérsias. Este é o ponto feito no §15, quando ao voltar à consideração das posses no estado de natureza, Kant introduz, em contraste com o caráter provisório daquelas, o conceito de posse peremptória,30 30 Ibidem, §9, pp. 86-87. (AA, 6, 257). só existente no âmbito do status juridicus, sustentado pela ideia de uma vontade de todos unida a priori, capaz, assim, de servir de base racional para todo título de propriedade.31 31 Ibidem, §15, p. 97. (AA, 6, 264). A razão é que anteriormente à instituição do Estado jurídico os homens

nunca podem estar seguros contra a violência de uns contra os outros, e isto por causa do direito próprio de cada um de fazer o que lhe parece justo e bom.32 32 Ibidem, §44, p. 176. (AA, 6, 312).

Importa notar que nesta formulação se superpõem a justificativa prudencial para o imperativo de passagem ao estado jurídico - a imperiosa conveniência de prevenir e controlar a multiplicação de contenciosos - e a injunção, estritamente normativa, que Kant já apresentara, no §8 da "Doutrina do Direito", ao declarar que a vontade unilateral em vista de uma posse exterior não pode servir de lei coercitiva para todos, porque isso prejudicaria a liberdade segundo as leis universais.33 33 Ibidem, §8, p. 85. (AA, 6, 256). Ou como se lê no §15:

[...] por intermédio de uma vontade unilateral não pode impor-se aos demais uma obrigação que de outro modo sobre eles não impenderia.34 34 Ibidem, p. 97. (AA, 6, 264).

Ora, isso implica afirmar não apenas que a série das declarações individuais de direito não tem a força necessária para impor o respeito aos direitos alegados, mas também que somente uma vontade comum é legítima para impor a indivíduos autônomos e livres obrigações universais e incondicionadas. No §42 Kant enuncia formalmente o princípio dessa transição do direito privado ao direito público ao dizer:

Do direito privado no estado de natureza surge, então, o postulado do direito público: deves, em vista da relação de coexistência inevitável com todos os outros, sair do estado de natureza para entrar num estado jurídico, quer dizer, num estado de uma justiça distributiva.35 35 Ibidem, §42, p. 170. (AA, 6, 307).

Ao analisar a estrutura interna dessa justificativa para a necessidade da passagem ao estado jurídico, o Prof. Kersting judiciosamente enfatiza que a agregação do argumento normativo à motivação prudencial torna forçosa a conclusão de que somente "uma vontade omnilateral não contingente, mas a priori"36 36 V. ibidem, §14, p. 96. (AA, 6, 263). tem legitimidade para impor a todos a efetividade de seus respectivos direitos. O que é também dizer que o caráter obrigatório e a força vinculante dos atos de tomada de posse "só podem resultar do acordo daqueles que são afetados pelo ato de aquisição do direito".37 37 Idem. Ou, como diz ainda o Prof. Kersting: "isto significa que cada aquisição de terra original e unilateral no estado de natureza tem que ser sancionada pela comunidade, ou, como diz Kant, eles se encontram a priori sob a condição de 'conformidade com a idéia de estado civil' e só é legalmente possível e justificável 'na expectativa e preparação de um tal estado'. (6, 264/257)" (Kersting, 1992a, pp. 146-147).

Para os fins que perseguimos aqui, de tudo isto o fundamental a reter é, contudo, que, no desdobramento da série analítica que estamos a examinar, o imperativo exeundum e statu naturali e o conceito de vontade unificada do povo, bases da estabilização prática e jurídica das relações humanas na esfera privada, não remetem nem à celebração real do pactum unionis civilis, nem à formação voluntária e efetiva de uma vontade geral, à maneira teorizada por Rousseau.

Com efeito, no §47 da "Doutrina do Direito", ao falar dos atos de formação do Estado, Kant deixa claro que a remissão ao contrato originário tem em vista não a celebração real de pactos sociais, mas antes a ideia desse contrato.38 38 Diz o texto: "O ato mediante o qual o povo se constitui em um Estado, ou, dito com maior propriedade, a idéia desse ato apenas, que é a única pela qual pode-se aferir sua legitimidade, é o contrato originário [...]." Ibidem, §47, p. 182. (AA, 6, 315). No escrito "Sobre a expressão corrente: Isso pode ser correto na teoria, mas nada vale na prática" Kant apresenta o mesmo ponto ainda mais claramente quando diz:

Se, antes de mais, se tivesse inquirido o que incumbe ao direito [...] a idéia de Contrato Social teria conservado seu incontestável crédito; não, porém, enquanto fato (Faktum) [...], mas somente como o princípio racional que permite apreciar toda constituição jurídica pública em geral.39 39 Kant, 1988, p. 89, tradução modificada. (AA, 8, 302).

Importa também notar, seguindo ainda a lição de Kersting, que o ancoramento do mandado de abandono do estado de natureza na própria razão "transforma o contrato de fundação do Estado dos contratualistas em um Ideal do direito estatal [Ideal des Staatsrechts]".40 40 V. Kersting, 2001, p. 192. 41 41 Ibidem, p. 189. A consequência, precisa o mesmo autor, é que se Kant fosse perguntado pelo fundamento da obrigação de obediência às instituições públicas vigentes, ele não remeteria aos atos nos quais as vontades individuais pactuaram entre si e fundaram o Estado, mas antes, simplesmente, lembraria ao interlocutor o comando da razão prática de sair do Estado de natureza e de ingressar no Estado jurídico, em cujo âmbito o dever de obediência "pertence ao tipo dos 'oficia connata', dos deveres inatos, e não ao tipo dos 'oficia a se ipso contracta', dos deveres voluntários."42 42 Ibidem, p. 190. Em um contexto próximo do que estamos considerando aqui, Katrin Flikschuh observa: "Primeiramente, dado o endosso de Kant à tese da inadmissibilidade da imposição privada do direito, ele não pode pensar as pessoas individuais como pequenos soberanos, à maneira de Locke, em princípio capazes de por si mesmos defender e impor o reconhecimento de seus direitos contra pretensões alheias. Indivíduos não-soberanos na condição natural requerem o Estado como poder soberano encarregado de impor o respeito aos direitos de cada um. Em segundo lugar, na medida em que os direitos legítimos dos demais contra mim constituem uma pretensão legítima deles de restringirem meu poder de escolha independentemente de meu consentimento, o ingresso na condição civil não é voluntário. Os indivíduos podem ser compelidos a integrarem o estado civil contra a vontade deles." V. Flikschuh, 2010.

Em vista desses pontos, não estranha, portanto, que Kant, ao dar início ao exame do direito público, não tenha corrido a tratar do contrato social originário, mas tenha se ocupado, logo e antes, de examinar as relações entre o Estado e o Direito. Na verdade, creio que o ponto de fundo subjacente à análise kantiana é a percepção de que, do ponto de vista real, a ideia do contrato chega sempre tarde, sua função não podendo ser mais do que a de estabelecer um padrão de medida para avaliação da legitimidade dos governos existentes e para orientação dos soberanos.

Isso obviamente não quer dizer, porém, que Kant ignore que os Estados que conhecemos têm uma gênese real independente desses princípios normativos, nem que ele rejeite entender o modo como o Estado é efetivamente fundado. Antes o contrário e é, portanto, sobre essa segunda linha de análise que agora precisamos nos debruçar.

II A origem real do Estado segundo Kant ou sobre as condições reais de instituição de uma ordem jurídica

Conforme já antecipado no início desta comunicação, a primeira das referências textuais para interpretação do modo como Kant analisa as condições reais de instituição de uma ordem jurídica encontra-se na abertura do longo texto que Kant introduz entre os parágrafos 49 e 50 da "Doutrina do Direito", intitulado "Observação Geral - Dos efeitos que se seguem da natureza da associação civil". Refiro-me à passagem, na qual Kant - depois de dizer que a origem do poder supremo é, do ponto de vista prático, inescrutável para o povo que a ele se encontra submetido43 43 MC, p. 187. (AA, 6, 318). - abre um espectro de possibilidades quanto ao modo como o Estado foi instituído ao dizer:

Se originariamente precedeu, como um fato, um contrato efetivo de submissão ao mesmo (pactum subjectionis civilis), ou se precedeu a violência e a lei veio só depois, ou mesmo se devia seguir-se nesta ordem, isso são questões sofísticas inteiramente despropositadas para um povo que já está submetido à lei civil, mas que constituem uma ameaça ao Estado; pois, se o súdito que tivesse finalmente descoberto a origem última quisesse se opor àquela autoridade atualmente dominante, seria castigado, destruído ou expulso (como fora da lei, ex lex) de acordo com as leis da mesma, i. é, com todo o direito.44 44 Ibidem, p. 187. A citação dá o texto da versão de J. Beckencamp, referida acima. (AA, 6, 318-319).

Ao registro das duas possiblidades abertas aqui com relação ao modo como pode ter tido lugar a instituição do Estado - por um contrato efetivo de submissão ou por ação violenta do fundador do Estado, seguida do estabelecimento da lei - Kant acrescenta ainda, como que en passant, uma consideração hipotética e inconclusiva a respeito de se o sequenciamento inerente a este segundo modo de instituição do Estado seria o mais natural. No entanto, ao retomar essa discussão na conclusão das "Observações explicitativas sobre os Primeiros Princípios Metafísicos da Doutrina do Direito", Kant claramente endossa a hipótese a que acabamos de aludir pois então, tomando mais claramente posição sobre as condições reais de instituição do Estado, escreve:

A submissão incondicional da vontade do povo (que está em si desunida, sem lei, portanto) a uma vontade soberana (que une a todos mediante uma lei) é um fato que só com a tomada do poder supremo pode ter início e que funda assim, em primeira mão, um direito público.45 45 Ibidem, p. 272. (AA, 6, 372).

Importa notar, todavia, que essa tomada de posição - esta admissão de que os atos de força são a inevitável origem do estado jurídico - não pode ser tida meramente como um juízo factual a respeito do modo como contingentemente se passam as coisas na vida política real. Na verdade é preciso ver nesta declaração de Kant uma consequência necessária do modo como ele concebe o estatuto dos conceitos fundamentais do direito público.

Com efeito se o contrato social não é um fato mas uma simples ideia da razão,46 46 Que o contrato social tenha para Kant um caráter estritamente ideal é uma sua posição conhecida e incontroversa. Em "Sobre a expressão corrente: isto pode ser correto na teoria, mas nada vale na prática", por exemplo, Kant diz da maneira mais enfática: "Mas este contrato (chamado contractus originarius ou pactum sociale), [...] não se deve de modo algum pressupor necessariamente como um fato [...] como se [...] houvesse primeiro de provar-se a partir da história de um povo, em cujo direito entramos enquanto descendentes, tivesse um dia de haver realizado efetivamente um tal ato e nos houvesse legado oralmente ou por escrito uma notícia segura ou um documento a seu respeito, para assim se sentir ligado a uma constituição civil já existente. Mas é uma simples idéia da razão, a qual tem no entanto a sua realidade prática indubitável: [...] obriga o legislador a fornecer as suas leis como se elas pudessem emanar da vontade coletiva de um povo inteiro, e a considerar todo súdito [...] como se ele tivesse assentido pelo seu sufrágio a semelhante vontade." (AA 8, 297) [Citado de acordo com a tradução A. Morão, Edições 70, pp. 83-83]. Não é outra a lição do parágrafo 52 da "Doutrina do Direito": "É inútil investigar a origem histórica deste mecanismo, i. é, não se pode ir além do instante inicial da sociedade civil (pois os selvagens não criam um instrumento de sua submissão à lei, e pode-se deduzir já da natureza de homens rudes que eles terão começado com a violência)" (AA, 6, 339-340). se, como lemos em "O conflito das faculdades", a ideia de uma constituição em consonância com o direito natural deve ser tida como um Ideal platônico e como a norma eterna para toda constituição política em geral,47 47 Diz o texto: "A idéia de uma constituição em consonância com o direito natural dos homens, a saber, que os que obedecem à lei devem ao mesmo tempo, na sua união, ser legisladores está subjacente a todas as formas políticas e o Estado [gemeine Wesen] que, concebido em acordo com ela, graças a puros conceitos da razão, se chama um Ideal platônico ( respublica noumenon), não é uma quimera vazia, mas a norma eterna para toda constituição política em geral [...]." V. Kant, 1993, p. 108. (AA, VII, 90-91). se, enfim, o próprio poder soberano, enquanto expressão da vontade coletiva de um povo inteiro, tem, ele também, um estatuto puramente ideal,48 48 É a lição do parágrafo 51 da "Doutrina do Direito", p. 220-221. (AA 6, 338). segue-se necessariamente que a vida política real, as comunidades humanas realmente existentes, além de se estruturarem segundo forças e motivos independentes desses princípios ideais, são as destinatárias dessas prescrições normativas, constituindo-se, assim, no domínio, único e próprio, em que essa estrutura normativa pode adquirir realidade objetiva.

Sendo assim, face a essa tripla determinação do caráter necessária e constitutivamente ideal dos conceitos fundamentais do direito público, segue-se que as comunidades humanas organizadas politicamente no curso da história são as inevitáveis portadoras dessa estrutura ideal, a qual, ao ser assim tomada como referência normativa da ação concreta dos homens, ganha corpo e existência. É ao considerar o conceito de poder soberano, ou, como Kant costuma dizer, o conceito da suprema autoridade do Estado, que este ponto é expresso com maior clareza e contundência. Com efeito, no início do §51, em uma passagem já referida, mas que convém agora citar por inteiro, Kant diz:

Os três poderes no Estado, que derivam do conceito de uma república em geral (res publica latius dicta), são apenas outras tantas relações da vontade unificada do povo, procedente a priori da razão, e uma idéia pura de um chefe de Estado, que possui realidade objetiva prática. Este chefe (o soberano) é, contudo, apenas um ente de razão (que representa o povo todo), enquanto faltar ainda uma pessoa física que represente o poder supremo no Estado, conferindo àquela idéia eficácia sobre a vontade do povo.49 49 Idem.

À luz deste texto, torna-se forçoso admitir que a soberania efetiva envolve necessariamente, para empregar a expressão que utilizamos acima, a existência de um portador, isto é, de "uma pessoa física", que seja capaz de "representar a suprema autoridade do Estado" e de conferir-lhe "eficácia sobre a vontade popular" (idem).

Ora, este último ponto nos desloca do terreno das ideias da razão prática para o terreno das relações políticas reais e nos obriga a suplementar e misturar as considerações a priori com elementos factuais e empíricos. Ao fazê-lo, torna forçoso não apenas reconhecer que a relação do poder estatal à vontade do povo pode se determinar de maneira contingente − e até certo ponto indiferente − em termos autocráticos, aristocráticos ou democráticos (idem) -, mas também admitir que nenhum dos conceitos fundamentais do direito público terá efetividade enquanto não tiverem lugar os atos de práticos de imposição de um centro de poder incontrastado e a decisão existencial, para tomar de empréstimo uma expressão de Carl Schmitt, de declarar a própria soberania. Esta é a lição do último parágrafo da "Doutrina do Direito", do texto derradeiro e decisivo acima já citado.50 50 Ibidem, p. 272. (AA, 6, 372).

A estas teses se ajunta a de que esse gesto fundador, sob pena de autocontraditória desobediência ao prescrito pelo postulado do direito público, deve permanecer insondável. Ponto que, expresso positivamente, vem a ser o reconhecimento de que a frase da "Carta aos romanos" que nos diz que "não há autoridade que não venha de Deus"51 51 Romanos, 13, 1. deve ser entendido como um "princípio prático da razão: o de dever obedecer ao poder legislador atualmente vigente, seja qual for sua origem".52 52 Ênfase acrescentada.

Consequência imediata dessa análise será a conclusão de que:

Contra a suprema autoridade legisladora do Estado não há, portanto, resistência legítima do povo; pois que só mediante a submissão a uma vontade universalmente legisladora é possível um estado jurídico [...].53 53 O texto prossegue assim: "não existe, portanto, nenhum direito de sedição ( seditio), ainda menos de rebelião ( rebellio), e muito menos ainda o direito de atentar contra sua pessoa (como monarca), [...] sob o pretexto de abuso do seu poder ( tyrannis). A menor tentativa a esse propósito constitui alta traição ( proditio eminens), e este tipo de traidor tem que de ser punido como alguém que tenta assassinar a sua pátria (parricida), ou seja, nunca menos do que com a pena de morte." Ibidem, p. 190. (AA, 6, 320).

A demonstração analítica da verdade dessa tese Kant a apresenta na sequência imediata do texto dizendo:

A razão pela qual o povo deve suportar, apesar de tudo, um abuso do poder supremo, mesmo um abuso considerado como intolerável, é a de que a sua resistência contra a legislação suprema em-si há de conceber-se como ilegal, como destruidora mesmo da constituição legal. Pois que para estar para tal capacitado teria de existir uma lei pública que autorizasse esta resistência do povo, quer dizer, que a legislação suprema contivesse uma determinação de acordo com a qual não fosse suprema e convertesse o povo como súdito, num e no mesmo juízo, em soberano daquele a que está submetido; o que é em si contraditório [...].54 54 Idem.

III A dupla determinação da origem do Estado como expressão da antinomia do direito público

Em resumo, portanto, apreciadas conjuntamente, as referências até aqui consideradas nos apresentam duas análises e duas concepções do modo como tem lugar a constituição do Estado que se mostram antinômicas.

Com efeito, a primeira nos diz que o ingresso em um Estado jurídico se perfaz mediante (i) a obediência ao postulado do direito público que nos ordena sair do estado de natureza e (ii) a observância da prescrição, imediatamente consequente, de união de cada um "a todos os demais para se submeter a uma coerção externa legal e pública",55 55 Ibidem, §44, pp. 176-177. (AA, 6, 312). isto é, mediante a celebração do contrato originário no qual tem lugar a "coligação de todas as vontades particulares e privadas num povo numa vontade geral e pública".56 56 V. "Sobre a expressão corrente", ed. cit., p. 82. (AA, 8, 297). Conforme visto acima, essa é a solução para o problema da instabilidade do direito de posse e propriedade decorrente da inequívoca validade da proposição que nos diz que uma vontade unilateral não pode por os demais sob obrigações que de outro modo não teriam.57 57 V. acima, nota 34.

Mas, de outra parte, os textos nos apresentam uma segunda concepção do modo como devemos entender a origem do Estado. De acordo com esta, o contrato originário não deve ser entendido como um fato, como se "um povo [...] tivesse um dia de haver realizado um tal ato".58 58 V. "Sobre a expressão corrente", ed. cit., p. 83. (AA, 8, 297). Ademais disso, somos aqui advertidos de que, enquanto faltar uma pessoa física que represente o poder supremo no Estado, o soberano, a cuja vontade geral e pública devem os cidadãos submeter-se para concretizar essa saída, não será mais do que um ente de razão. Ora, em vista destes pontos, segue-se a conclusão forçosa de que a união de todos com o intuito de se submeter a uma coação externa legal pública só pode ocorrer mediante a submissão a quem tomar o poder e assim fundar primeiramente o direito público.

A Friedrich Bouterwek - o "fino recenseador", como diz Kant,59 59 « scharfprüfender Recensent», diz o texto. Cf. Ibidem, p. 246. (AA, 6, 356). que foi quem primeiro resenhou e comentou a "Os Princípios Metafísicos da Doutrina do Direito", mas cujo agudo questionamento, permitam-me observar en passant, é espantosamente ignorado pelos intérpretes da "Doutrina do Direito" - a grande e evidente dificuldade envolvida nesta dualidade de enfoques não escapou.60 60 À diferença, aliás, do ocorrido com muitos dos comentadores posteriores, inclusive os mais recentes, com as exceções, tanto quanto sei, pelo menos de Hermann Cohen (V. "Kants Begründung der Ethik", trad. cit., 4ª parte, cap. primeiro) e Philonenko, 1979. Conforme informado pelo próprio Kant, Bouterwek observou:

Nenhum filósofo, tanto quanto nos é dado saber, reconheceu ainda a mais paradoxal de todas as proposições paradoxais, a proposição: que a mera idéia de soberania deveria constranger-me a obedecer como meu senhor àquele que se arvora em meu senhor, sem questionar sobre quem é que lhe deu o direito de comandar-me. É uma e a mesma coisa ter de reconhecer a soberania e o soberano e considerar a priori como senhor este ou aquele, cuja existência não é dada sequer a priori?61 61 Ibidem, pp. 269-270. (AA, 6, 370-371).

Bouterwek distingue, portanto, (i) o imperativo de reconhecimento do poder soberano do (ii) imperativo de reconhecimento de um soberano e qualifica a proposição que confunde esses dois planos como a mais paradoxal das proposições paradoxais. Em outros termos, ele lê a Kant como sustentando que a obrigatoriedade da obediência ao poder soberano deve ser entendida como incondicional não apenas de dicto, mas de re, ou, como nos é dito na conclusão do Apêndice: devemos tomar por senhor aquele que tiver de fato poder suficiente para impor-se aos demais.62 62 Na tradução de Lamego, o texto que parafraseamos diz: "obedecei a autoridade que tem poder sobre vós". A esse terceiro aspecto paradoxal da posição kantiana, é ainda preciso agregar um quarto: aquele contido na tese de que o imperativo categórico jurídico é analítico, eis que, pelo menos em tese, nada poderia ser menos paradoxal do que uma verdade analítica (no Apêndice que estamos a comentar esta tese está implicada na passagem acima já citada, consoante a qual: "Permitir qualquer resistência a esse poder absoluto [...] seria contraditório, pois nesse caso esse poder supremo (que é resistível) não seria o poder supremo legal [...].". Ibidem, p. 272. (AA, 6, 373). Já no título do capítulo X da Introdução à "Doutrina da Virtude", a afirmação do caráter analítico do imperativo categórico jurídico é expressa explicitamente. Ibidem, p. 308. (AA, 6, 396). Hermann Cohen, na mesma linha, mas sem fazer referência a Bouterwek e tendo em vista não exatamente as passagens aludidas por este, aponta também uma clamorosa confusão do soberano com a soberania na análise kantiana.63 63 V. op. cit., p. 438.

Kant não contestou a interpretação dada por Bouterwek de sua posição e admitiu expressamente o pensamento culminativamente paradoxal que lhe é atribuído - o que, convenhamos, não é pouco admitir!64 64 Idem. -, embora tenha alegado que nem por isso se o haveria de acusar de heterodoxia.65 65 Ibidem, p. 270. (AA, 6, 371). Mais, Kant ocupou-se de precisar as razões de escândalo de seu crítico e comentou:

Mas não é apenas este princípio que parece chocar a razão do autor da recensão, princípio esse que toma por base um fato (a tomada do poder) como condição do direito, mas também que só a mera idéia de soberania sobre um povo me obrigue a mim, que a ele pertenço, a obedecer sem previamente investigar o direito que é reivindicado.66 66 Ibidem, p. 270, tradução modificada. (AA, 6, 371).

O que é dizer que o filósofo entendeu perfeitamente que a dificuldade de Bouterwek estava não apenas em admitir que a instituição do estado jurídico, definida, como sabido, pela formação de uma vontade geral e pública, possa ter começado, prosaica e tortamente, sem que um povo tivesse um dia de haver realizado efetivamente um tal ato,67 67 V. nota 46 acima. mas sobretudo na tese de que a mera ideia de soberania legitima por si , automaticamente, por assim dizer, o exercício do poder por quem o detiver incontrastadamente. Kant, no entanto, não recuou em vista desses dois pontos de escândalo para seu crítico, mas antes reiterou e radicalizou sua posição tratando de mostrar que é indispensável que se admita a ambos se se quiser efetivamente entender o fundamento do direito público. Com efeito, Kant diz na sequência do texto:

O comando "Obedecei a autoridade que detém poder sobre vós" não indaga como essa autoridade chegou a esse poder [...], pois a autoridade sob cuja alçada viveis, está agora já na posse do poder legislativo, e, embora possais arrazoar publicamente acerca de sua legislação, não podeis arvorar-vos em legisladores que a contrariem.68 68 Ibidem, p. 372, tradução modificada. (AA, 6, 372).

A impassibilidade de Kant frente à crítica explica-se, em última análise, pelo caráter analítico do argumento que sustenta sua posição, cuja formulação no presente contexto, como já repetidamente observado e abonado acima, é que permitir qualquer resistência ao poder instituído seria contraditório pois um poder supremo a que se pudesse legitimamente resistir não seria um poder supremo.

Neste passo, embora meu propósito aqui não seja o de abrir controvérsias exegéticas, é impossível deixar de notar que o mais recente dos comentários à "Doutrina do Direito", sem fazer referência à conclusão das "Observações explicitativas sobre os Primeiros Princípios Metafísicos da Doutrina do Direito", de maneira desconcertantemente arbitrária, qualifica este argumento como de caráter meramente formal69 69 V. Sharon Byrd e Joachim Hruschka, 2010, p. 182. e sustenta que ele se aplica unicamente ao estado jurídico e não a qualquer estado.70 70 Idem. Ora, a admitir-se essa leitura não só não há como entender a discussão de Kant com Bouterwek, nem a razão de ser da Conclusão das "Observações explicitativas".71 71 V. nota 47 acima. Na verdade, uma melhor interpretação para a dificuldade em pauta talvez possa ser formulada se prestarmos atenção à seguinte passagem da resposta que Kant deu ao resenhador do "Jornal de Göttingen":

Todo e qualquer fato [Ein jedes Factum (Thatsache)] é um objeto no fenômeno (para os sentidos); em contrapartida, aquilo que só pode ser representado pela razão pura tem que ser contado entre as idéias, não podendo para estas dar-se de modo adequado nenhum objeto na experiência, como é o caso de uma Constituição perfeita entre os homens, que a própria coisa em si.72 72 Ibidem, p. 271. (AA, 6, 371).

O que estou sugerindo é que se entenderá melhor Kant se considerarmos que os dois planos em que a "Doutrina do Direito" analisa o processo de instituição e ingresso em uma condição civil estão em uma posição análoga àquela em que se encontram tese e antítese nas antinomias dinâmicas, com relação às quais é possível que tese e antítese sejam ambas verdadeiras. Com efeito, se, seguindo essa sugestão hermenêutica, procurarmos reconstruir o paradoxo admitido por Kant na forma de uma antinomia teríamos como tese e antítese o seguinte:

TESE: Somente a coligação de todas as vontades particulares e privadas num povo numa vontade geral e pública pode constituir um poder soberano,73 73 V. Ibidem, §47, p. 182. (AA, 6, 315). legitimamente autorizado a por a todos sob obrigações que de outro modo não teriam74 74 Ibidem, §15, p. 97. (AA, 6, 264). e exigir a submissão incondicional da vontade do povo.75 75 Ibidem, pp. 271-272. (AA, 6, 372).

ANTÍTESE: Quem quer que se encontre de posse do poder supremo de comandar e de legiferar sobre um povo constitui um poder soberano, legitimamente autorizado a por a todos sob obrigações que de outro modo não teriam e exigir a submissão incondicional da vontade do povo.

Ora, se nos colocarmos na perspectiva do realismo transcendental, estas duas proposições parecem irremediavelmente contraditórias, porque ou bem o soberano foi e é constituído pela coligação de todas as vontades particulares cuja vontade geral ele expressa, sendo então provido de legitimidade plena, ou bem não, e, neste segundo caso, o comando que ele vier a exercer será expressão de sua vontade particularizada e parcial, normativamente passível de contestação por parte de cada um e de todos aqueles a quem ela estiver sendo coercitiva e ilegitimamente imposta. Se, no entanto, nos colocarmos na perspectiva do idealismo transcendental e entendermos que uma constituição perfeitamente jurídica é da ordem das coisas em si, de sorte que nenhum objeto dado na experiência lhe poderá ser plenamente adequado, então poderemos entender também que, no plano dos fenômenos, a tomada do poder possa constituir uma vontade soberana capaz de exigir e impor a submissão incondicional da vontade do povo, a qual lhe deve obediência.

É inegável, no entanto, que, apresentada desse modo, a solução da antinomia é meramente aparente, pois enquanto a tese é apresentada em termos normativos, a antítese ou é um enunciado descritivo, ou, na melhor das hipóteses, uma máxima de caráter prudencial, na qual a recomendação de obediência é uma advertência contra os riscos de opor-se a um poder dotado com a força necessária ao exercício efetivo do poder legislativo e executivo. Ou, por outra: colocada nos termos apresentados até aqui é possível considerar que, introduzida a perspectiva do idealismo transcendental, distinguidos fenômenos e coisas em si, tese e antítese podem ser - analogamente ao que ocorre no caso das antinomias dinâmicas da "Crítica da razão pura" - ambas verdadeiras. Do ponto de vista prático, contudo, esta solução não tem interesse pois a posição expressa na antítese é normativamente nula, as duas ordens de análise da formação e da legitimidade do poder político permanecendo divorciadas e irremediavelmente paralelas. Bem consideradas as coisas, é preciso reconhecer, assim, que, segundo a razão prática, a antinomia permaneceria absolutamente não solucionada pois a tese é normativamente válida e a antítese normativamente inválida.

Para avançar na análise do ponto é preciso, pois, prestar atenção à diferença do modo em que a razão pura e a razão prática determinam a relação do condicionado ao incondicionado. Do ponto de vista da razão pura, a síntese necessária à passagem cognitiva do condicionado ao incondicionado é impossível. Do ponto de vista da razão prática, contudo, como Kant diz, aliás, na própria "Crítica da razão pura", na medida em que a razão é causa capaz de produzir as ações, encontramos outra regra e outra ordem.76 76 V. A 550/B 578. Com efeito, no domínio prático, uma vez admitido que os homens como seres racionais podem ter "um fundamento puramente intelectual [como] determinante de sua causalidade no mundo sensível",77 77 Cf. "Crítica da razão prática", edição bilíngue, tradução de Valério Rohden, São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 407. (AA 5, 115). Tradução modificada, de acordo com a versão para o inglês de Gregor, 1996, p. 232. já não subsiste a inacessibilidade do condicionado, cuja realização, ao contrário, torna-se uma obrigação para os sujeitos práticos.78 78 Em sua análise da antinomia da razão prática, a propósito da questão geral envolvida aqui, Watkins faz o seguinte comentário: "Uma diferença maior é que a exigência teórica de que os objetos condicionados nos sejam dados na intuição é diferente da exigência prática de que nossa vontade dê efetividade ao incondicionado. Que os objetos nos sejam dados é uma limitação de nossas capacidades epistêmicas e que o incondicionado não nos possa ser dado, isso é, pensa Kant, uma limitação fundamental, pois assim não podemos saber se ele existe. A razão prática não tem uma limitação comparável a essa, uma vez que ela pode, na verdade está obrigada a lutar para realizar o sumo bem na extensão em que isso é possível para um agente individual." Eric Watkins, The Antinomy of Practical Reason: reason, the unconditioned and the highest good, in Andrews Reath and Jens Timmermann, Kant's Critique of Practical Reason - A Critical Guide, Cambridge University Press, 2010, p. 162-163. Ou, como Kant diz em "Sobre a expressão corrente: isto pode ser correto na teoria, mas nada vale na prática":

em uma teoria que se funda no conceito de dever, está deslocada a apreensão por causa da idealidade vazia desse conceito. Pois, não seria um dever intentar um certo efeito de nossa vontade, se ele não fosse possível também na experiência (quer ele se pense como realizado ou como aproximando-se constantemente de seu cumprimento) [...].79 79 Tradução citada, p. 59. (AA, 8, 276-277).

Por isso, uma vez existente "um povo unido por lei sob uma autoridade" - o que compreende o despotismo, conforme a tipologia das formas de sociedade civil enumeradas na Antropologia80 80 Lê-se na Antropologia: " Liberdade e lei (pela qual se limita aquela) são dois eixos em torno dos quais se move a legislação civil. Mas, a fim de que a segunda seja também de efeito e não recomendação vazia, tem-se de acrescentar um intermediário, a saber, o poder, que, unido àqueles, coroa de êxito aqueles princípios. Ora, pode-se pensar quatro combinações do último com os dois primeiros: A. lei e liberdade sem poder (anarquia). B. Lei e poder sem liberdade (despotismo). C. Poder sem liberdade nem lei (barbárie). D. Poder com liberdade e lei (república)." V. Kant, I. "Antropologia de um ponto de vista pragmático". Tradução de Clélia Aparecida Martins. São Paulo: Iluminuras, 2006. pp. 224-225. (AA, 7, 330-331). - "ainda que possa padecer de grandes falhas e erros graves"81 81 MC, ibidem, 271l. (AA, 6, 372). e "a organização do Estado seja em si mesmo deficiente"82 82 Idem. e conquanto ocorra que governante proceda contra a lei,83 83 Ibidem, p. 188. (AA, 6, 319). configurando o que pode ser "tido como um abuso considerado como intolerável da autoridade suprema",84 84 Ibidem, p. 190. (AA, 6, 320). o povo deve tomar tal autoridade como legítima e a legislação que dela emanar como sendo o passo concreto necessário à saída do estado de natureza e a precária forma de estabelecimento de uma vontade pública.

Este ponto Kant o demonstra argumentando que obedecer a tal autoridade soberana é obrigatório, pois a "[...] resistência à legislação maior nunca pode ser considerada como algo distinto daquilo que contraria a lei e, com efeito, como algo que suprime toda constituição."85 85 Idem.

O que não é senão dizer que resistir a autoridade que detém efetivamente o poder de Estado é contrariar diretamente o postulado do direito público e retornar ao estado de natureza. Por conseguinte, o estabelecimento fático de uma vontade soberana, mesmo que ainda introdutora tão somente da lei, mas não da liberdade, deve ser entendida como normativamente aceitável na medida em que é um, talvez o meio de saída do estado de natureza.

Em resumo, muito embora uma constituição perfeitamente jurídica seja uma coisa em si e, como tal seja, nem mais nem menos, a norma eterna para toda constituição política em geral,86 86 Diz o texto: "A idéia de uma constituição em consonância com o direito natural dos homens, aquela em que os que obedecem à lei devem ao mesmo tempo, na sua união, ser legisladores encontra-se na base de todas as formas de Estado e a sociedade concebida em acordo com ela, graças a puros conceitos da razão, se chama um Ideal platônico ( respublica noumenon), não é uma quimera vazia, mas a norma eterna para toda constituição política em geral [...]." Trad. cit., p. 108. (AA, VII, 90-91). à qual nenhuma das sociedades históricas pode ser inteiramente adequada e cuja aproximação com aquele ideal "só pode conseguir-se penosamente após múltiplas hostilidade e guerras",87 87 Idem. (AA 7, 91). as "enfermidades que lhe são imputadas tendo de ser paulatinamente suprimidas por reformas efetuadas pelo próprio Estado",88 88 Ibidem, pp. 271-272. (AA, 6, 372). não é menos verdade que "o poder legislativo atualmente existente deve ser obedecido seja qual for a sua origem"89 89 Ibidem, p. 188. (AA, 6, 319). sendo absolutamente interdito e punível90 90 Cf. Ibidem, p. 272. (AA, 6, 372). opor-se a ele.

Ora, voltando a olhar esta posição à luz da teoria das antinomias, torna-se claro que uma vez reconhecida a diferença entre os fenômenos e as coisas em si, segue-se a possibilidade de admitir que não apenas a ideia de uma constituição puramente republicana deve ser tida como normativamente válida, mas também a de que o podem ser as constituições civis reais, que, embora defectivas e distanciadas desse ideal, têm normativamente subjacentes a si a ideia de uma tal perfeita constituição.91 91 Veja-se o texto de "O conflito das faculdades" repetidamente citado nas nota 47 e 87 acima.

Nesta altura, convém, no entanto, tomar cuidado com o modo como estamos a nos expressar, pois sendo a distância entre as prescrições da razão prática e as ações humanas algo inevitável e, num certo sentido, trivial, posto que nossa vontade humana "não é em si plenamente conforme a razão",92 92 V. Kant, I. "Fundamentação da metafísica dos costumes". Tradução de G. A. de Almeida. São Paulo: Barcarolla/Discurso Editorial, 2009. p. 185. (AA, 4, 413). daí, contudo, não se segue, de modo algum, que, no âmbito da moralidade estrita, caiba cogitar da existência de uma antinomia entre o imperativo categórico e as ações humanas efetivas.93 93 Na "Fundamentação", ao examinar a dificuldade que temos aqui em vista, Kant esclarece o seguinte: "[...] se examinássemos tudo de um e o mesmo ponto de vista, a saber, da razão, encontraríamos uma contradição em nossa própria vontade, a saber, que certo princípio seja necessário objetivamente como lei universal, e, no entanto, subjetivamente não deva valer universalmente, mas dê vênia a exceções. Visto, porém, que consideramos nossa ação, primeiro, do ponto de vista de uma vontade inteiramente conforme à razão, mas, em seguida, também 'consideramos' exatamente a mesma ação do ponto de vista de uma vontade afetada por 'uma' inclinação, então não há aqui, na realidade, qualquer contradição, porém antes uma resistência da inclinação contra o preceito da razão ( antagonismus), com o que a universalidade do princípio ( universalitas) se transforma numa mera validade geral ( generalitas), através da qual o princípio prático da razão deve encontrar-se com a máxima a meio caminho." Ibidem, p. 227. (AA, 4, 424). No caso da fundação do Estado, no entanto, o que ocorre é algo completamente diverso desse desajuste inevitável e corrente entre o normativo e o fático, pois ali a afirmação e imposição de uma vontade unilateral é a incontornável condição inicial de estabelecimento de um querer público e de um direito estrito.94 94 V. MC, "Introdução à Doutrina do Direito", E, p. 45. (AA, 6, 232). O que é dizer que não pode haver uma vontade omnilateral e não contingente, uma vontade verdadeiramente republicana, se não houver, ou, pelo menos, se não tiver havido, uma vontade particular e contingente que tenha imposto incontrastadamente seu domínio. É, portanto, a afirmação simultânea de que a fundação do Estado e o estabelecimento do direito público só são possíveis, segundo a tese, com base em uma vontade universal, não contingente e a priori e, segundo, a antítese com base em uma vontade particular e contingente, que nos autoriza a cogitar e a falar de uma verdadeira antinomia do direito público.

Convém ainda notar que essa dualidade na reconstrução dos fundamentos do direito político não nos deve surpreender. Com efeito, dada a ligação imediata entre coerção e direito95 95 V. Ibidem, p. 44. (AA, 6, 231). e a tese de que as obrigações jurídicas "requerem", como sublinhou recentemente J.-F. Kervegan "um 'impulso exterior', por exemplo o temor da sanção",96 96 V. Kervégan, 2010, p. 102. torna-se evidente que o conceito de direito só pode ser concebido sob a pressuposição de que existe uma autoridade real, efetivamente existente, capaz de impor externamente, nos fatos, as sanções jurídicas. Aqui, porém, convém refinar a visão das modalidades, cabendo observar, para dar satisfação à objeção de Bouterwek, que mesmo se a existência de um soberano, portador do nome próprio tal ou qual, não é, e não pode ser dada a priori, conforme alegado por ele em sua crítica a Kant, não é menos verdade que a existência de algum sujeito real que porte e represente a soberania é, ela, necessária e certamente dada a priori, aliás conjuntamente com o conceito de direito público.

Na verdade, é exatamente isso que permite a Kant sustentar, ao mesmo tempo, (i) que a representação de uma constituição perfeitamente jurídica é uma Ideia e que seu objeto é da ordem das coisas em si e (ii) que:

Quando existe um povo unido por leis sob a alçada de uma autoridade, então está dado como objeto da experiência em conformidade com a Idéia de sua unidade em geral sob a alçada de uma vontade suprema detentora do poder; mas, obviamente, só na aparência; quer dizer, existe aí uma Constituição jurídica no sentido geral do termo existe, [...] ainda que portadora de grandes defeitos [...].97 97 Ibidem, p. 271. (AA, 6, 371-372).

O segredo e o sentido mais profundo da afirmação simultânea dessas duas teses - isto é, da resolução da antinomia do direito público -, só se deixa revelar, no entanto, se admitirmos que aqui, no domínio prático-jurídico, contrariamente ao que se diz na refutação do argumento ontológico (CRP, A 600/B 628), a adição da existência a um conceito inteiramente defectivo do ponto de vista do direito público - o de um poder despótico - ter-lhe-á agregado a primeira das notas constituintes da perfeição jurídica: a de unificação de uma multidão de homens sob uma autoridade suprema, inequívoco, embora incoativo, modo de satisfação do postulado fundamental do direito público.

Referências

Obras de Kant

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_______. "Lógica". Tradução de G. A. de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1992.

_______. "O conflito das faculdades". Tradução de A. Morão. Lisboa: Edições 70, 1993.

_______. "Practical Philosophy". The Cambridge Edition of the Works of Immanuel Kant. Cambridge: Cambridge University Press, 1996.

_______. "Crítica da razão prática". Edição bilíngue; tradução de Valério Rohden. São Paulo: Martins Fontes, 2003a.

KANT, I. "A metafísica dos costumes". Tradução de Edson Bini. São Paulo: EDIPRO, 2003b.

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_______. "Antropologia de um ponto de vista pragmático". Tradução de Clélia Aparecida Martins. São Paulo: Iluminuras, 2006.

_______. "Fundamentação da metafísica dos costumes". Edição bilíngue; tradução de G. A. de Almeida. São Paulo: Barcarolla/Discurso Editorial, 2009.

_______. "Princípios Metafísicos da Ciência do Direito". Tradução de Joãosinho Beckenkamp. (Inédito).

Outras obras

BYRD, S., HRUSCHKA, J. "Kant's Doctrine of Right - A Commentary". Cambridge: Cambridge University Press, 2010.

CASSIRER, B. "Kants Begründung der Ethik nebst ihren Answendungen auf Rech, Religion und Geschichte". Berlin, 1910.

FLIKSCHUH, K. "Kant's Sovereignty Dilemma: A Contemporary Analysis". Journal of

Political Philosophy, Vol. 18, Issue 4, section IV, December 2010 [Online]. Disponível em: http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/j.1467-9760.2010.00361.x/full.

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KERVÉGAN, J.-F. "La théorie kantienne de La normativité". In: J.-F. Kervégan (ed.). Raison pratique et normativité chez Kant. Lyon: ENS Éditions, 2010.

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WILLIAMS, H. L. (ed.). "Essays on Kant's Political Philosophy". Chicago: The University of Chicago Press, 1992.

Artigo recebido em 28/09/2012 e aprovado em 29/03/2013.

  • KANT, I. "Kants Gesammelte Schriften, herausgegeben von der Deutschen Akademie der Wissenchaften". 29 Vol. Berlin: Walter de Gruyter, 1902 (edição de referência).
  • _______. "Sobre a expressão corrente: isto pode ser correto na teoria, mas nada vale na prática". Tradução de Artur Morão. In: Immanuel Kant, a paz perpétua e outros opúsculos Lisboa: Edições 70, 1988.
  • _______. "Lógica". Tradução de G. A. de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1992.
  • _______. "O conflito das faculdades". Tradução de A. Morão. Lisboa: Edições 70, 1993.
  • _______. "Practical Philosophy". The Cambridge Edition of the Works of Immanuel Kant. Cambridge: Cambridge University Press, 1996.
  • _______. "Crítica da razão prática". Edição bilíngue; tradução de Valério Rohden. São Paulo: Martins Fontes, 2003a.
  • KANT, I. "A metafísica dos costumes". Tradução de Edson Bini. São Paulo: EDIPRO, 2003b.
  • _______. "A metafísica dos costumes". Tradução de José Lamego. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005.
  • _______. "Antropologia de um ponto de vista pragmático". Tradução de Clélia Aparecida Martins. São Paulo: Iluminuras, 2006.
  • _______. "Fundamentação da metafísica dos costumes". Edição bilíngue; tradução de G. A. de Almeida. São Paulo: Barcarolla/Discurso Editorial, 2009.
  • _______. "Princípios Metafísicos da Ciência do Direito". Tradução de Joãosinho Beckenkamp. (Inédito).
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  • CASSIRER, B. "Kants Begründung der Ethik nebst ihren Answendungen auf Rech, Religion und Geschichte". Berlin, 1910.
  • Political Philosophy, Vol. 18, Issue 4, section IV, December 2010 [Online]. Disponível em: http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/j.1467-9760.2010.00361.x/full.
  • GREGOR, M. J. "Editorial Notes". In: I. Kant. Practical Philosophy The Cambridge Edition of the Works of Immanuel Kant. Cambridge: Cambridge University Press, 1996.
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  • WILLIAMS, H. L. (ed.). "Essays on Kant's Political Philosophy". Chicago: The University of Chicago Press, 1992.
  • 1
    Hermann Cohen é uma exceção. V. Cassirer, 1910, p. 429. Na tradução italiana de Gianna Gigliotti,
    La
    Fondazione
    kantiana
    dell'Etica, Milalla, Lecce, 1983, p. 381.
  • 2
    Metafísica
    dos
    Costumes,
    I
    Doutrina
    do
    Direito, §47. Na tradução para o português de José Lamego, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2005, p. 182. Segundo a Akademie-Ausgabe, 6, 315. As citações subsequentes da "Metafísica dos Costumes" serão feitas levando em conta também a tradução, inédita, da "Doutrina do Direito" por Joãosinho Beckenkamp, bem como a de Edson Bini (EDIPRO, São Paulo, 2003) e incluirão, entre parênteses, a remissão à edição das obras de Kant pela Academia de Berlim.
  • 3
    Ibidem, §42;
    Ibidem, p. 170. (AA, 6, 307). O sentido do termo postulado neste contexto é o apresentado no §38 da Lógica: "Um postulado é uma proposição prática imediatamente certa ou um princípio que determina uma ação possível na qual se pressupõe que a maneira de executá-la é imediatamente certa." V. Kant, 1992, p. 131. (AA, 9, 112). Em "O anúncio do término próximo para um tratado de paz perpétua em filosofia" lê-se: "Postulado é um imperativo prático dado a priori, inapto a qualquer explicação de sua possibilidade (portanto, também insuscetível de qualquer prova). Logo, não se postulam coisas ou em geral a existência de qualquer objeto, mas apenas uma máxima (regra) da ação de um sujeito." Tradução de Valério Rohden
    et al. Disponível em:
  • 4
    MC,
    ibidem, p. 271. (AA, 6, 372).
  • 5
    Idem.
  • 6
    MC, I - Doutrina do Direito, Introdução à Metafísica dos Costumes, p. 35. (AA, VI, 224).
  • 7
    Ao tratar desse ponto em "Politics, freedom and order: Kant's political philosophy", Kersting (1992b, p. 343) observa que a filosofia política de Kant "reflete cuidadosamente sobre as condições empíricas de realização das normas da teoria racional do direito [...].". Já na abertura do ensaio "Kant's Concept of the State", a integração da reflexão sobre essas condições empíricas na filosofia política kantiana, Kersting parece ter reavaliado o ponto, pois ali nos é dito que "A filosofia política de Kant está profundamente enraizada em sua metafísica do direito e, por essa razão, formada por um racionalismo normativo que evita toda determinação histórica ou empírica" (Kersting, 1992a, p. 143). Byrd e Hruschka, no mais recente dos comentários à "Doutrina do Direito", dedicam um capítulo ao que denominam de "O Estado na Idéia" e outro ao que chamam de "Estado na realidade". Contudo, ao abrirem esse segundo capítulo imediatamente declaram: "A questão
    não é: Como é possível um domínio efetivo sobre os homens. A história mostra que isso é possível." V. Byrd e Hruschka, 2010, p. 168. O que é dizer que não examinarão o que Kant diz sobre esta última questão senão marginalmente.
  • 8
    Ibidem, p. 187. (AA, 6, 318).
  • 9
    Idem.
  • 10
    Ibidem. p. 272, tradução modificada. (AA, 6, 372).
  • 11
    Ibidem, p. 56. (AA, 6, 237-8).
  • 12
    Que o §41 nos diz serem a
    matéria
    do
    arbítrio.
    Ibidem, p. 167. (AA, 6, 306).
  • 13
    Ibidem. §8, p. 85. (AA, 6, 256).
  • 14
    Ibidem, §2, p.67. (AA, 6, 246).
  • 15
    Idem, p. 68. (AA, 6, 246).
  • 16
    Direito que se expressa na pretensão
    legítima de prevenir e impedir o contato não autorizado de terceiros com o bem tido em mãos.
  • 17
    A apresentação deste argumento limita-se à observação de que quem vier a turbar a detenção estará agredindo a liberdade do detentor ao colocar sua máxima em contradição direta com o axioma do direito.
    MC, §6, p. 75. (AA 6, 249-250). A expressão
    axioma
    do
    direito não havia aparecido previamente no texto, mas Kant parece estar claramente fazendo remissão ao
    princípio
    universal
    do
    direito (item C da "Introdução à Doutrina do Direito"), cujo objeto é esclarecer que os indivíduos estão autorizados a agirem como quiserem desde que tal ação possa coexistir com a liberdade dos demais segundo uma lei universal. Em anotação a sua tradução da "Metafísica dos Costumes", Gregor remete a uma passagem do ensaio "Sobre um suposto direito de mentir por amor da humanidade", que abona essa interpretação. In: Kant, 1996, p. 636.
  • 18
    Kant diz no §6: "A posse meramente física (a detenção) do terreno é já um direito sobre uma coisa, se bem que não seja ainda suficiente para considerá-lo meu." Ibidem, p. 79, tradução modificada. (AA, 6, 251).
  • 19
    Ibidem, §1, p. 68; tradução modificada de acordo com a lição de Joãozinho Beckencamp, em tradução, inédita, da "Metafísica dos Costumes". (AA, 6, 245).
  • 20
    Quer dizer: mesmo quando não a tenho em mãos.
  • 21
    É o que Kant explica na passagem seguinte: "a possibilidade da posse de uma coisa exterior a mim, abstraindo de todas as condições da posse empírica no espaço e no tempo (por conseguinte, a pressuposição da possibilidade de uma possessio noumenon), [...] é sintética, dado que estabelece uma posse mesmo sem detenção como necessária para o conceito do meu e teu exteriores [...]."
    Ibidem, §6, p. 75-76. (AA, 6, 250).
  • 22
    Ibidem, §7, p. 253. (AA, 6, 253). Tradução modificada segundo Beckencamp. Lamego opta por
    haver em vez de
    ter, acepção do verbo que o Houaiss classifica como
    antiga.
  • 23
    No fino exame a que submete este ponto, Bernd Ludwig mostra como esse segundo e mais completo sentido do conceito de posse se articula com o anterior e argumenta que se deve observar que há uma "'
    prerrogativa
    de
    direito
    saída
    da
    posse
    empírica' [MS, §9, p. 87; cf. p. 98. AA, 6, 257 e AA, 6, §15, p. 264] que torna possível a posse não física mesmo antes que a vontade geral seja de fato estabelecida." V. Ludwig, 2002, p. 178.
  • 24
    MC, §15, p. 97. (AA, 6, 264).
  • 25
    Idem. E Ludwig acrescenta conclusivamente: "Em resumo, a propriedade (se tiver sido uma vez introduzida) é justificada porque não há nenhum direito de resistir à introdução da propriedade" (
    idem).
  • 26
    Ibidem, §2, p. 69. (AA, 6, 246).
  • 27
    Ibidem, §6, p. 76. (AA, 6, 250).
  • 28
    V.
    ibidem, §2, p. 70. (AA, 6, 247).
  • 29
    V.
    ibidem, Introdução à Doutrina do Direito, §C, p. 230. (AA, 6, 230).
  • 30
    Ibidem, §9, pp. 86-87. (AA, 6, 257).
  • 31
    Ibidem, §15, p. 97. (AA, 6, 264).
  • 32
    Ibidem, §44, p. 176. (AA, 6, 312).
  • 33
    Ibidem, §8, p. 85. (AA, 6, 256).
  • 34
    Ibidem, p. 97. (AA, 6, 264).
  • 35
    Ibidem, §42, p. 170. (AA, 6, 307).
  • 36
    V.
    ibidem, §14, p. 96. (AA, 6, 263).
  • 37
    Idem. Ou, como diz ainda o Prof. Kersting: "isto significa que cada aquisição de terra original e unilateral no estado de natureza tem que ser sancionada pela comunidade, ou, como diz Kant, eles se encontram a priori sob a condição de 'conformidade com a idéia de estado civil' e só é legalmente possível e justificável 'na expectativa e preparação de um tal estado'. (6, 264/257)" (Kersting, 1992a, pp. 146-147).
  • 38
    Diz o texto: "O ato mediante o qual o povo se constitui em um Estado, ou, dito com maior propriedade, a idéia desse ato apenas, que é a única pela qual pode-se aferir sua legitimidade, é o contrato originário [...]."
    Ibidem, §47, p. 182. (AA, 6, 315).
  • 39
    Kant, 1988, p. 89, tradução modificada. (AA, 8, 302).
  • 40
    V. Kersting, 2001, p. 192.
  • 41
    Ibidem, p. 189.
  • 42
    Ibidem, p. 190. Em um contexto próximo do que estamos considerando aqui, Katrin Flikschuh observa: "Primeiramente, dado o endosso de Kant à tese da inadmissibilidade da imposição privada do direito, ele não pode pensar as pessoas individuais como pequenos soberanos, à maneira de Locke, em princípio capazes de por si mesmos defender e impor o reconhecimento de seus direitos contra pretensões alheias. Indivíduos não-soberanos na condição natural requerem o Estado como poder soberano encarregado de impor o respeito aos direitos de cada um. Em segundo lugar, na medida em que os direitos legítimos dos demais contra mim constituem uma pretensão legítima deles de restringirem meu poder de escolha independentemente de meu consentimento, o ingresso na condição civil não é voluntário. Os indivíduos podem ser
    compelidos a integrarem o estado civil contra a vontade deles." V. Flikschuh, 2010.
  • 43
    MC, p. 187. (AA, 6, 318).
  • 44
    Ibidem, p. 187. A citação dá o texto da versão de J. Beckencamp, referida acima. (AA, 6, 318-319).
  • 45
    Ibidem, p. 272. (AA, 6, 372).
  • 46
    Que o contrato social tenha para Kant um caráter estritamente ideal é uma sua posição conhecida e incontroversa. Em "Sobre a expressão corrente: isto pode ser correto na teoria, mas nada vale na prática", por exemplo, Kant diz da maneira mais enfática: "Mas este contrato (chamado
    contractus originarius ou pactum sociale), [...] não se deve de modo algum pressupor necessariamente como um
    fato [...] como se [...] houvesse primeiro de provar-se a partir da história de um povo, em cujo direito entramos enquanto descendentes, tivesse um dia de haver realizado efetivamente um tal ato e nos houvesse legado oralmente ou por escrito uma notícia segura ou um documento a seu respeito, para assim se sentir ligado a uma constituição civil já existente. Mas é uma
    simples idéia da razão, a qual tem no entanto a sua realidade prática indubitável: [...] obriga o legislador a fornecer as suas leis como se elas pudessem emanar da vontade coletiva de um povo inteiro, e a considerar todo súdito [...] como se ele tivesse assentido pelo seu sufrágio a semelhante vontade." (AA 8, 297) [Citado de acordo com a tradução A. Morão, Edições 70, pp. 83-83]. Não é outra a lição do parágrafo 52 da "Doutrina do Direito": "É inútil investigar a origem histórica deste mecanismo, i. é, não se pode ir além do instante inicial da sociedade civil (pois os selvagens não criam um instrumento de sua submissão à lei, e pode-se deduzir já da natureza de homens rudes que eles terão começado com a violência)" (AA, 6, 339-340).
  • 47
    Diz o texto: "A idéia de uma constituição em consonância com o direito natural dos homens, a saber, que os que obedecem à lei devem ao mesmo tempo, na sua união, ser legisladores está subjacente a todas as formas políticas e o Estado [gemeine Wesen] que, concebido em acordo com ela, graças a puros conceitos da razão, se chama um
    Ideal platônico (
    respublica noumenon), não é uma quimera vazia, mas a norma eterna para toda constituição política em geral [...]." V. Kant, 1993, p. 108. (AA, VII, 90-91).
  • 48
    É a lição do parágrafo 51 da "Doutrina do Direito", p. 220-221. (AA 6, 338).
  • 49
    Idem.
  • 50
    Ibidem, p. 272. (AA, 6, 372).
  • 51
    Romanos, 13, 1.
  • 52
    Ênfase acrescentada.
  • 53
    O texto prossegue assim: "não existe, portanto, nenhum direito de sedição (
    seditio), ainda menos de rebelião (
    rebellio), e muito menos ainda o direito de atentar contra sua pessoa (como monarca), [...] sob o pretexto de abuso do seu poder (
    tyrannis). A menor tentativa a esse propósito constitui alta traição (
    proditio eminens), e este tipo de traidor tem que de ser punido como alguém que tenta assassinar a sua pátria (parricida), ou seja, nunca menos do que com a pena de morte."
    Ibidem, p. 190. (AA, 6, 320).
  • 54
    Idem.
  • 55
    Ibidem, §44, pp. 176-177. (AA, 6, 312).
  • 56
    V. "Sobre a expressão corrente", ed. cit., p. 82. (AA, 8, 297).
  • 57
    V. acima, nota 34.
  • 58
    V. "Sobre a expressão corrente", ed. cit., p. 83. (AA, 8, 297).
  • 59
    «
    scharfprüfender
    Recensent», diz o texto. Cf.
    Ibidem, p. 246. (AA, 6, 356).
  • 60
    À diferença, aliás, do ocorrido com muitos dos comentadores posteriores, inclusive os mais recentes, com as exceções, tanto quanto sei, pelo menos de Hermann Cohen (V. "Kants Begründung der Ethik", trad. cit., 4ª parte, cap. primeiro) e Philonenko, 1979.
  • 61
    Ibidem, pp. 269-270. (AA, 6, 370-371).
  • 62
    Na tradução de Lamego, o texto que parafraseamos diz: "obedecei a autoridade que tem poder sobre vós". A esse terceiro aspecto paradoxal da posição kantiana, é ainda preciso agregar um quarto: aquele contido na tese de que o imperativo categórico jurídico é analítico, eis que, pelo menos em tese, nada poderia ser menos paradoxal do que uma verdade analítica (no Apêndice que estamos a comentar esta tese está implicada na passagem acima já citada, consoante a qual: "Permitir qualquer resistência a esse poder absoluto [...] seria contraditório, pois nesse caso esse poder supremo (que é resistível) não seria o poder supremo legal [...].".
    Ibidem, p. 272. (AA, 6, 373). Já no título do capítulo X da Introdução à "Doutrina da Virtude", a afirmação do caráter analítico do imperativo categórico jurídico é expressa explicitamente.
    Ibidem, p. 308. (AA, 6, 396).
  • 63
    V.
    op.
    cit., p. 438.
  • 64
    Idem.
  • 65
    Ibidem, p. 270. (AA, 6, 371).
  • 66
    Ibidem, p. 270, tradução modificada. (AA, 6, 371).
  • 67
    V. nota 46 acima.
  • 68
    Ibidem, p. 372, tradução modificada. (AA, 6, 372).
  • 69
    V. Sharon Byrd e Joachim Hruschka, 2010, p. 182.
  • 70
    Idem.
  • 71
    V. nota 47 acima.
  • 72
    Ibidem, p. 271. (AA, 6, 371).
  • 73
    V. Ibidem, §47, p. 182. (AA, 6, 315).
  • 74
    Ibidem, §15, p. 97. (AA, 6, 264).
  • 75
    Ibidem, pp. 271-272. (AA, 6, 372).
  • 76
    V. A 550/B 578.
  • 77
    Cf. "Crítica da razão prática", edição bilíngue, tradução de Valério Rohden, São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 407. (AA 5, 115). Tradução modificada, de acordo com a versão para o inglês de Gregor, 1996, p. 232.
  • 78
    Em sua análise da antinomia da razão prática, a propósito da questão geral envolvida aqui, Watkins faz o seguinte comentário: "Uma diferença maior é que a exigência teórica de que os objetos condicionados nos sejam dados na intuição é diferente da exigência prática de que nossa vontade
    dê efetividade ao incondicionado. Que os objetos nos sejam dados é uma limitação de nossas capacidades epistêmicas e que o incondicionado não nos possa ser dado, isso é, pensa Kant, uma limitação fundamental, pois assim não podemos saber se ele existe. A razão prática não tem uma limitação comparável a essa, uma vez que ela pode, na verdade está obrigada a lutar para realizar o sumo bem na extensão em que isso é possível para um agente individual." Eric Watkins,
    The
    Antinomy
    of
    Practical
    Reason:
    reason,
    the
    unconditioned
    and
    the
    highest
    good, in Andrews Reath and Jens Timmermann,
    Kant's
    Critique
    of
    Practical
    Reason
    -
    A
    Critical
    Guide, Cambridge University Press, 2010, p. 162-163.
  • 79
    Tradução citada, p. 59. (AA, 8, 276-277).
  • 80
    Lê-se na Antropologia: "
    Liberdade e
    lei (pela qual se limita aquela) são dois eixos em torno dos quais se move a legislação civil. Mas, a fim de que a segunda seja também de efeito e não recomendação vazia, tem-se de acrescentar um intermediário, a saber, o
    poder, que, unido àqueles, coroa de êxito aqueles princípios. Ora, pode-se pensar quatro combinações do último com os dois primeiros: A. lei e liberdade sem poder (anarquia). B. Lei e poder sem liberdade (despotismo). C. Poder sem liberdade nem lei (barbárie). D. Poder com liberdade e lei (república)." V. Kant, I. "Antropologia de um ponto de vista pragmático". Tradução de Clélia Aparecida Martins. São Paulo: Iluminuras, 2006. pp. 224-225. (AA, 7, 330-331).
  • 81
    MC,
    ibidem, 271l. (AA, 6, 372).
  • 82
    Idem.
  • 83
    Ibidem, p. 188. (AA, 6, 319).
  • 84
    Ibidem, p. 190. (AA, 6, 320).
  • 85
    Idem.
  • 86
    Diz o texto: "A idéia de uma constituição em consonância com o direito natural dos homens, aquela em que os que obedecem à lei devem ao mesmo tempo, na sua união, ser legisladores encontra-se na base de todas as formas de Estado e a sociedade concebida em acordo com ela, graças a puros conceitos da razão, se chama um
    Ideal platônico (
    respublica noumenon), não é uma quimera vazia, mas a norma eterna para toda constituição política em geral [...]." Trad. cit., p. 108. (AA, VII, 90-91).
  • 87
    Idem. (AA 7, 91).
  • 88
    Ibidem, pp. 271-272. (AA, 6, 372).
  • 89
    Ibidem, p. 188. (AA, 6, 319).
  • 90
    Cf.
    Ibidem, p. 272. (AA, 6, 372).
  • 91
    Veja-se o texto de "O conflito das faculdades" repetidamente citado nas nota 47 e 87 acima.
  • 92
    V. Kant, I. "Fundamentação da metafísica dos costumes". Tradução de G. A. de Almeida. São Paulo: Barcarolla/Discurso Editorial, 2009. p. 185. (AA, 4, 413).
  • 93
    Na "Fundamentação", ao examinar a dificuldade que temos aqui em vista, Kant esclarece o seguinte: "[...] se examinássemos tudo de um e o mesmo ponto de vista, a saber, da razão, encontraríamos uma contradição em nossa própria vontade, a saber, que certo princípio seja necessário objetivamente como lei universal, e, no entanto, subjetivamente não deva valer universalmente, mas dê vênia a exceções. Visto, porém, que consideramos nossa ação, primeiro, do ponto de vista de uma vontade inteiramente conforme à razão, mas, em seguida, também 'consideramos' exatamente a mesma ação do ponto de vista de uma vontade afetada por 'uma' inclinação, então não há aqui, na realidade, qualquer contradição, porém antes uma resistência da inclinação contra o preceito da razão (
    antagonismus), com o que a universalidade do princípio (
    universalitas) se transforma numa mera validade geral (
    generalitas), através da qual o princípio prático da razão deve encontrar-se com a máxima a meio caminho."
    Ibidem, p. 227. (AA, 4, 424).
  • 94
    V. MC, "Introdução à Doutrina do Direito", E, p. 45. (AA, 6, 232).
  • 95
    V.
    Ibidem, p. 44. (AA, 6, 231).
  • 96
    V. Kervégan, 2010, p. 102.
  • 97
    Ibidem, p. 271. (AA, 6, 371-372).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Jul 2014
    • Data do Fascículo
      Jun 2014

    Histórico

    • Recebido
      28 Set 2012
    • Aceito
      29 Mar 2013
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