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Sobre virtudes e vícios

TRADUÇÕES

Sobre virtudes e vícios

Aristóteles; tradução: M. Reus EnglerI

IUniversidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Encontra-se atualmente em período de doutorado sanduíche no Departamento de Filologia Clássica da Philipps Universität de Marburgo, Alemanha, com bolsa Capes. reusengler@gmail.com

Nota do tradutor

Ao texto intitulado "Sobre virtudes e vícios" apõe-se o duplo asterisco que, na edição das obras completas de Aristóteles, é sinal de autoria espúria. Segundo um de seus tradutores, H. Rackham – que se baseia nas lições de Susemihl e Zeller –, ele teria sido composto entre o primeiro século a.C e o primeiro d.C, por autor que, sem muita profundidade e argúcia (haud magni ingeni), segue as tendências do período eclético (a philosopho ecletico) e tenta resumir e conciliar (conciliare studebat) a ética aristotélica com elementos de filosofia platônica (tripartição da alma) e alguns rasgos de estoicismo, como se percebe pela antítese entre louvar/censurar. Assim, a primeira data tornaria possível atribuí-lo a alguém do círculo de Andrônico de Rodes – que editou e comentou algumas obras de Aristóteles –, e para tal hipótese contribui o fato de que uma cópia do manuscrito tenha sido conservada junto de outro tratado, "Sobre os afetos", que costuma ser atribuído a esse escoliarca. Contudo, outros eruditos discordam dessa solução e conferem ao texto data posterior, dado que tenha sido igualmente conservado nos "Florilégios" de Estobeu (V d.C) e numa versão dos manuscritos de Aristóteles, recebendo títulos diversos, como, por exemplo, "Sobre virtude" ou "De Aristóteles sobre virtudes". O tratamento descritivo das virtudes e vícios também demonstra que o trabalho se conecta aos "Caracteres" de Teofrasto. Segundo Ernst Schmidt, tradutor alemão, a mais antiga edição moderna do texto data de 1529, estando assim ausente na primeira edição Aldina. No entanto, com a publicação das obras de Estobeu (1535), bem como por seu cariz didático e sua curta extensão, o pequeno tratado recebeu várias edições acompanhadas da tradução latina, tornando-se popular entre os círculos letrados.

Para a presente tradução, utilizamos o texto grego da edição Loeb: ARISTOTLE. "Athenian Constitution; Eudemian Ethics; On virtues and Vices". Translated by H. Rackham. London: Loeb Classical Library, 1981. pp. 484-503. Além desta tradução, cotejamos também as seguintes:

ARISTOTELIS. "De virtutibus et vitiis". In: Opera Omnia. Graece et Latine. Cum indice nominum et rerum absolutissimo. Vol. Secundum. Paris: Didot, 1850.1 1 O nome do tradutor não consta na edição de Didot. O editor refere-se apenas à utilização de traduções latinas, sem mencionar, porém, a autoria delas.

ARISTOTLE. "On virtues and vices". Translated by J. Solomon. In: J. Barnes (ed.). The Complete Works of Aristotle. Vol. II, pp. 1982-1986. Princeton: Princeton University Press, 1985.

ARISTOTELES. "Übier die Tugend". Übersetzung Ernst A. Schmidt. Band 18. Opuscula. Teil I. Berlin: Akademie Verlag, 1965.

Conquanto o texto não apresente grandes dificuldades, acrescentamos algumas notas que podem esclarecer ao leitor as razões de nossas perífrases e escolhas vocabulares, as quais, como se sabe, nunca podem ser evitadas na versão de um texto grego.

O tradutor.

M. Reus Engler

Sobre virtudes e vícios

I. [1249a] Louváveis são as coisas belas, censuráveis, as vergonhosas. E consideram-se as virtudes entre as coisas belas, e entre as vergonhosas, os vícios. Deste modo, louváveis são também as causas das virtudes, as coisas que as acompanham, os produtos que vêm a ser a partir delas e as suas obras, ao passo que censuráveis são as coisas opostas. Tomando-se em conta que a alma, conforme Platão, [1249b] seja composta de três partes, é a prudência a virtude da parte racional, da animosa,i i "Parte animosa" está para thymoeidés. A tradução usual em português é "parte irascível". Contudo, há pelo menos três argumentos que atestam a inadequação lexical dessa escolha: em relação à língua grega, haverá sempre problemas quando se fizer necessário traduzir palavras relativas à ira, em especial orgilótēs, que é considerada um vício; em relação à língua portuguesa, ocorrerá o mesmo, pois a palavra não cobre o mesmo espectro semântico grego; por fim, há uma inadequação propriamente filosófica, pois de nenhum modo julga-se característico da irascibilidade fazer frente aos desejos, deliberar, escolher etc. "Irascibilidade" ou "irritabilidade" é uma qualidade pela qual nos abrimos à ação das mais diversas emoções; "irritável" ou "irascível" é a pessoa de ânimo nervoso que, de súbito e por quase nada, pode tornar-se irada, ou alegre, ou entediada etc. Parece que o vocábulo é escolhido por influência do latim, que traduz o conceito platônico neste texto, v. g., por pars incitabilis. Usa-se em inglês passionate soul ou spirit; conforme Julia Annas, no entanto, admite-se que até hoje não se encontrou equivalente preciso para o vocábulo grego (Cf. ANNAS, J. "An introduction to Plato’s Republic" (pp. 126-128). New York: Oxford University Press, 1981). Em alemão, conserva-se a noção de um ânimo que pode abrir-se a diversas emoções: muthafter Teil. Como se sabe, " Mut" dá origem a vários sentimentos, tanto benéficos (coragem – Mut), quanto desagradáveis (melancolia – Schwermut). Assim, parece-nos que a presente opção conserva as características com que Platão delineia essa parte ( móros) ou aspecto ( eîdos) da alma: ficar a meio-termo da parte desiderativa e da razão; envolver deliberação e escolha; poder ser educada para auxiliar a razão; estar presente em animais e crianças; estar sujeita a desejos; amar a honra e a vitória. Tais características podem ser extraídas da história sobre Leôncio e seu desejo de ver os cadáveres do lado de fora da muralha norte do Pireu (Cf. PLATÃO. "A República" (439a-442a). Tradução de Maria H. da R. Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001). Ao fim desta história, aliás, Platão cita o famoso verso de Homero, segundo o qual Ulisses, "batendo no peito, censurou seu coração". A citação remete então ao contexto da língua homérica, onde thymós é usado com certa abundância em situações que envolvem deliberação e, mais do que isso, o ato que se segue a uma deliberação em torno dos desejos e dos meios para atingir certo fim. A ideia de uma deliberação ao mesmo tempo racional e passional conserva-se também na palavra enthýmēma, de suma importância no âmbito dos raciocínios retóricos (Cf. REALE, G. "Corpo, Alma e Saúde. O conceito de homem de Homero a Platão" (p. 60ss). São Paulo: Paulus, 2002). Por tal motivo, "parte volitiva" também seria opção legítima, favorecida por dois motivos: pela doutrina algo platônica segundo a qual a alma se divide em razão ( ratio), vontade ( voluntas) e paixões ( passiones), doutrina esta que granjeou inúmeros seguidores na história do Ocidente; e pelo uso em português, pois dizemos que temos "vontade de fumar", mostrando que somos afetados por um desejo, ao mesmo tempo que acreditamos ser possível dirigir nossa vontade por meio da razão para que, por exemplo, evitemos o tabaco. No entanto, dado que o grego possua a palavra "vontade" ou "volição" ( boúlēsis), "ânimo" parece ser ainda melhor, não obstante também vá aparentemente de encontro ao uso vernáculo. Porém, algumas expressões do português há que abalizam tal tradução. Por exemplo, alguém pode dizer que está "sem ânimo para estudar". Por mais que saiba que este é seu dever – isto é, a ordem que a sua razão prática lhe dá –, o seu desejo pende para outra atividade, como, por exemplo, dormir ou ver televisão. Assim, está em seu poder entregar-se ao seu desejo ou salvaguardar os ditames de sua razão e esforçar-se para estudar. Este esforço concentrado é precisamente o ânimo que dantes faltava, ainda que ele possa ser usado para que, num movimento contrário e vicioso, a máxima da razão seja ignorada e o prazer, atendido. Isso porque, como a imagem plástica da alma ensina, o thymoidés é como um leão que pode tanto ajudar o monstro policéfalo dos desejos, quanto o homem interior que temos em nós ("Rep." 588d), isto é, esta parte está sujeita simultaneamente à influência de desejos e da educação racional. Ora, parece que intuitivamente pensamos o mesmo acerca do nosso ânimo. ii "Parte apetitiva" seria outra opção, e então traduzir-se-ia epithymía por "apetite". A tradução usual é "parte concupiscente", que segue provavelmente o latim pars cupiens. Contudo, ela não parece boa escolha por duas razões: primeiro, porque não encontra guarida na língua, já que não dizemos "estou com concupiscência por/de comer pizza", senão "estou com desejo/vontade/apetite de comer pizza"; segundo, porque tendo o substantivo epithymía de ser vertido por concupiscência, a fim de manter-se o paralelismo, o seu plural daria "concupiscências", o que agride ainda mais a índole vernácula. iii Mikropsychía: literalmente, "ter a alma pequena". É o contrário exato da grandeza d’alma ou magnanimidade ( megalopsychía). Conquanto haja em português o substantivo erudito micropsiquia, a palavra "mesquinhez" parece mais oportuna e coloquial, conservando tanto os elementos morais quanto os intelectuais que estão presentes no termo grego. Rackham: smallmindedness; Solomon: idem; Schmidt: der kleine Geist; Latim: abjectus animus. iv No original, daímōnes. São divindades menores ou intermediárias que, no universo épico, conduziam os herois para o seu Destino pós-morte; com o tempo passaram a ser cultuados apenas nos lares, como gênios protetores (Rackham, p. 495). É ainda a palavra que designa a voz interior ouvida por Sócrates. tanto a mansidão quanto a coragem, e da desiderativa,ii a temperança e o autocontrole, e da alma como um todo, a justiça, a liberalidade e a magnanimidade. Em contrapartida, é a imprudência o vício da parte racional, da parte animosa, tanto a irascibilidade quanto a covardia, e da desiderativa, a intemperança e a falta de autocontrole, [1250a] e da alma como um todo, a injustiça, a avareza e a mesquinhez.iii

II. Prudência é uma virtude da parte racional, organizadora dos esforços voltados para a obtenção da felicidade. Mansidão é uma virtude da parte animosa pela qual as pessoas tornam-se desinclinadas à ira. Coragem é uma virtude da parte animosa pela qual as pessoas tornam-se imperturbáveis por temores relativos à morte. Temperança é uma virtude da parte desiderativa pela qual as pessoas tornam-se indiferentes aos prazeres vis concernentes aos gozos dos sentidos. Autocontrole é uma virtude da parte desiderativa pela qual as pessoas reprimem, com auxílio da razão, o desejo que as impele aos prazeres vis. Justiça é uma virtude da alma que reparte algo conforme o devido. Liberalidade é uma virtude da alma que faz gastar devidamente em relação às coisas belas. Magnanimidade é uma virtude da alma pela qual as pessoas tornam-se capazes de suportar ventura e desventura, honra e desonra.

III. Imprudência é um vício da parte racional e causa de viver mal. Irascibilidade é um vício da parte animosa pelo qual as pessoas tornam-se facilmente inclinadas à ira. Covardia é um vício da parte animosa pela qual as pessoas são perturbadas por temores, sobretudo os que se referem à morte. Intemperança é um vício da parte desiderativa pelo qual as pessoas tornam-se desejosas de prazeres vis e concernentes aos gozos dos sentidos. Falta de autocontrole é um vício da parte desiderativa pelo qual se escolhem os prazeres vis que a razão tenta evitar. Avareza é um vício da alma pelo qual as pessoas desejam obter lucros de todos os modos possíveis. Mesquinhez é um vício da alma pelo qual as pessoas tornam-se incapazes de suportar ventura e desventura, honra e desonra.

IV. Da prudência é próprio aconselhar-se, julgar os bens e males e tudo o mais que deve ser escolhido na vida e evitado; utilizar-se convenientemente dos bens disponíveis; portar-se de maneira escorreita para com os outros; estar ciente dos momentos oportunos; utilizar-se de forma arguta do discurso e da ação e ter experiência de todas as coisas úteis. Na verdade, a memória, a experiência e a argúcia existem cada uma delas a partir da prudência, ou acompanham a prudência; ou, em contrapartida, algumas delas são como que causas conjuntas da prudência, tal como a experiência e a memória, e algumas como que partes dela, tal como o bom conselho e a argúcia.

Da mansidão é próprio ser capaz de suportar com modos reprimendas e humilhações, e não incitar-se imediatamente à vingança, nem ser facilmente inclinado à ira, sendo, ao contrário, dócil de caráter e inimigo de contendas, e tendo tranquilidade na alma e estabilidade.

Da coragem é próprio ser imperturbável por temores relativos à morte, [1250b] confiante diante de coisas temíveis e ousado ante os perigos; e sobretudo preferir morrer de forma bela a salvar-se de forma vergonhosa, além de ser causa de vitória. É próprio ainda da coragem esforçar-se, ser firme e paciente e comportar-se de modo varonil. Acompanham a coragem ousadia, bravura e confiança, e ainda laboriosidade e resistência.

Da temperança é próprio não admirar os gozos dos prazeres corpóreos, e ser indiferente a todo o prazer sensorial [vergonhoso]; temer a desordem e posicionar-se perante a vida da mesma maneira nas coisas insignificantes e nas importantes. Acompanham a temperança disciplina, ordem, pudor e precaução.

V. Do autocontrole é próprio ser capaz de reprimir, por meio da razão, o desejo que incita a gozos sensoriais vis e a prazeres, e também ser firme e paciente, assim como ser capaz de suportar tanto privações advindas da natureza quanto dores.

Da justiça é próprio estar disposto a repartir conforme o devido, salvaguardar os costumes pátrios, os usos e as leis escritas, dizer a verdade no que está em disputa e proteger os acordos. As primeiras entre as coisas justas são aquelas relativas aos deuses, depois aos gênios protetores,iv depois à pátria e aos parentes, depois aos mortos. Entre elas está a piedade, que é na verdade parte da justiça ou algo que se lhe segue. À justiça seguem-se a santidade, a veracidade, a lealdade e o ódio à maldade.

Da liberalidade é próprio ser pródigo com os bens despendidos na obtenção de coisas louváveis e generoso em gastar no que é devido, ser auxiliador nas disputas e não tomar donde não se deve. O liberal é asseado no que se refere a roupas e habitação, e preparador de coisas extraordinárias e belas que propiciam agradável divertimento sem visar o lucro, e cuidadoso para com animais que têm algo de singular ou admirável. À liberalidade seguem-se a flexibilidade de caráter, boa educação, amor à humanidade, bem como o ser compassivo, amigo dos amigos, hospitaleiro e amante da beleza.

Da magnanimidade é próprio suportar decentementev v Kalōs enenkeîn: a rigor, "suportar de modo belo". Optamos por "decentemente", porque na concepção grega de beleza incluem-se também ideias como a decência, a ordem, a conveniência etc. vi Philózōos: "aficionado pela própria sobrevivência". Designa quem tem um cuidado instintivo ou animal ( zō ḗ) para com a própria vida, preocupando-se demasiado com o perigo de morrer. Rackham: fond of life; Solomon: idem; Schmidt: lebensgerig; Latim: [ qui] nec vitam ipsam vehementer amet. vii "Enfadamento" está para barythymía, que denota certo peso ( barýs) de ânimo ( thymós). A pessoa enfadada, de fato, tem dificuldade para modificar seu estado de ânimo, estando como que atada ao peso de seu mau humor. Rackham: sullenness; Solomon: idem; Schmidt: finsterer Unmut; Latim: torpescentia. viii Aphilóneikon toû ḗ thous: subserviência de caráter. No parágrafo quarto, traduzimos o mesmo adjetivo por "ser inimigo de contendas". A variação compreende-se facilmente, porém: a pessoa mansa é inimiga de disputas e contendas, mas, quando evita todas as discussões e nunca disputa nada, acaba aceitando a tudo o que lhe impingem e tornando-se servil. ix Mikrología: literalmente, "discurso sobre coisas pequenas ou insignificantes". Embora tenhamos micrologia em português, por um processo de transliteração erudita, o seu uso raríssimo torna mais apropriada a expressão "falar de ninharias". ventura e desventura, honra e desonra, assim como não admirar o luxo, a lisonja, o poder e as vitórias em combate, mas possuir, em contrapartida, certa profundidade e grandeza de alma. Magnânimo é aquele que não faz muito caso da vida, e tampouco é aficionado pela própria sobrevivência.vi Simples de caráter e nobre, é capaz de suportar injustiça e não se tornar vingativo. Seguem-se à magnanimidade simplicidade de caráter e veracidade.

VI. Da imprudência é próprio julgar mal as coisas, aconselhar-se mal, portar-se mal para com os outros, utilizar-se mal dos bens disponíveis, sustentar [1251a] opiniões errôneas sobre as coisas belas e boas da vida. À imprudência seguem-se inexperiência, ignorância, falta de autocontrole, falta de jeito e de memória.

De irascibilidade existem três espécies: irritabilidade, amargueza e enfadamento.vii É próprio do irascível não ser capaz de suportar nem pequenas humilhações, nem menosprezos, mas ser, em contrapartida, retaliativo, vingativo e facilmente inclinado à ira por qualquer ato ou discurso que seja. Seguem-se à irascibilidade ser de caráter exasperado, ser propenso à mudança, azedume nas palavras, magoar-se com coisas insignificantes e sentir esses afetos de maneira rápida e em situação banal.

Da covardia é próprio ser facilmente movido por quaisquer temores que se apresentam, e sobretudo por aqueles relativos à morte e aos danos corpóreos, e considerar ser melhor salvar-se de qualquer maneira a morrer de forma bela. À covardia seguem-se frouxidão, falta de virilidade, desespero e mesquinhez; subjazem a ela, de resto, certa precaução e também subserviência de caráter.viii

Da intemperança é próprio escolher para si os gozos sensoriais dos prazeres daninhos e vergonhosos, e considerar felizes principalmente os que vivem em meio a tais prazeres; e ser dado ao riso, zombeteiro e chistoso, assim como ser leviano nas palavras e nos atos. À intemperança seguem-se indisciplina, descaramento, desordem, luxo, preguiça, despreocupação, negligência e frivolidade.

Da falta de autocontrole é próprio escolher para si os gozos sensoriais dos prazeres que a razão tenta evitar, e assumir que seria melhor não participar deles, mas participar deles mesmo assim, e acreditar que é preciso praticar atos belos e convenientes, porém abster-se deles por conta de prazeres. À falta de autocontrole seguem-se frouxidão, despreocupação e, em sua maioria, as mesmas coisas que se seguem à intemperança.

VII. De injustiça existem três espécies: impiedade, ganância e ultraje. Impiedade é uma negligência seja para com os deuses e os gênios protetores, seja para com os mortos, os parentes e a pátria. Ganância diz respeito aos acordos e consiste em tomar o que está em disputa contrariamente ao devido. Ultraje é aquilo em razão do quê os homens buscam prazeres para si, enquanto conduzem os outros à desgraça. Donde Eveno escrever sobre ele:

"Qualquer [que seja o ultraje], mesmo sem nada lucrar, comete injustiça".

É próprio da injustiça violar os costumes pátrios e os usos, desobedecer às leis e aos [1251b] governantes, mentir, perjurar, violar os acordos e as garantias. À injustiça seguem-se calúnia, impostura, falso amor à humanidade, maldade de caráter e perversidade.

De avareza existem três espécies: cobiça, mofineza e sovinice. Cobiça é o vício pelo qual as pessoas buscam lucrar de todos os modos possíveis e fazem muito mais caso do ganho do que da vergonha. Mofineza é o vício pelo qual as pessoas se tornam incapazes de gastar seus bens conforme o devido. Sovinice é o vício pelo qual as pessoas gastam mal e em poucas quantidades, e assim se prejudicam bastante por não fazer a despesa de modo oportuno. É próprio da avareza fazer o maior caso dos bens e não considerar nada que gere lucro uma ofensa, bem como uma vida mercenária, servil e sórdida, contrária ao amor pela honra e à liberalidade. À avareza seguem-se falar de ninharias,ix enfadamento [mesquinhez], baixeza, descomedimento, ignobilidade e ódio à humanidade.

Da mesquinhez é próprio não ser capaz de suportar nem honra nem desonra, tampouco ventura e desventura, porém, ao ser honrado, inflamar-se de orgulho com pequenas coisas, e ao ter boa fortuna, por outro lado, não levar isto em conta; ser incapaz de suportar a menor desonra, julgar qualquer fracasso a maior desventura, queixar-se de tudo e impacientar-se facilmente. De resto, de tal feitio é o mesquinho, que chama todas as humilhações de ultraje e desonra, mesmo aquelas que acontecem devido à ignorância ou ao esquecimento. À mesquinhez seguem-se falar de ninharias, reclamar do destino, desesperança e baixeza.

VIII. É próprio da virtude, de modo geral, ter uma disposição de alma séria, que se vale de movimentos tranquilos e regulares e é harmoniosa em todas as suas partes; por isso parece que a disposição de uma alma séria é o modelo de uma constituição política boa. É próprio da virtude, outrossim, fazer bem aos que o merecem, amar os bons e odiar os vis, e não ser retaliativo nem vingativo, porém gentil, afável e tolerante. À virtude seguem-se honestidade, razoabilidade, indulgência, otimismo e ainda coisas como ser amante do lar e dos amigos, ser camarada, hospitaleiro, amante da humanidade e da beleza. Tais características, pois, estão todas elas entre as coisas louváveis.

Do vício são próprias as coisas contrárias, e a ele também se seguem as coisas contrárias. Todas as características dos vícios e as coisas que se lhe seguem estão entre as coisas censuráveis.

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    O nome do tradutor não consta na edição de Didot. O editor refere-se apenas à utilização de traduções latinas, sem mencionar, porém, a autoria delas.
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    "Parte animosa" está para
    thymoeidés. A tradução usual em português é "parte irascível". Contudo, há pelo menos três argumentos que atestam a inadequação lexical dessa escolha: em relação à língua grega, haverá sempre problemas quando se fizer necessário traduzir palavras relativas à ira, em especial
    orgilótēs, que é considerada um vício; em relação à língua portuguesa, ocorrerá o mesmo, pois a palavra não cobre o mesmo espectro semântico grego; por fim, há uma inadequação propriamente filosófica, pois de nenhum modo julga-se característico da irascibilidade fazer frente aos desejos, deliberar, escolher etc. "Irascibilidade" ou "irritabilidade" é uma qualidade pela qual nos abrimos à ação das mais diversas emoções; "irritável" ou "irascível" é a pessoa de ânimo nervoso que, de súbito e por quase nada, pode tornar-se irada, ou alegre, ou entediada etc. Parece que o vocábulo é escolhido por influência do latim, que traduz o conceito platônico neste texto,
    v.
    g., por
    pars incitabilis. Usa-se em inglês
    passionate soul ou
    spirit; conforme Julia Annas, no entanto, admite-se que até hoje não se encontrou equivalente preciso para o vocábulo grego (Cf. ANNAS, J. "An introduction to Plato’s Republic" (pp. 126-128). New York: Oxford University Press, 1981). Em alemão, conserva-se a noção de um ânimo que pode abrir-se a diversas emoções:
    muthafter Teil. Como se sabe, "
    Mut" dá origem a vários sentimentos, tanto benéficos (coragem –
    Mut), quanto desagradáveis (melancolia –
    Schwermut). Assim, parece-nos que a presente opção conserva as características com que Platão delineia essa parte (
    móros) ou aspecto (
    eîdos) da alma: ficar a meio-termo da parte desiderativa e da razão; envolver deliberação e escolha; poder ser educada para auxiliar a razão; estar presente em animais e crianças; estar sujeita a desejos; amar a honra e a vitória. Tais características podem ser extraídas da história sobre Leôncio e seu desejo de ver os cadáveres do lado de fora da muralha norte do Pireu (Cf. PLATÃO. "A República" (439a-442a). Tradução de Maria H. da R. Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001). Ao fim desta história, aliás, Platão cita o famoso verso de Homero, segundo o qual Ulisses, "batendo no peito, censurou seu coração". A citação remete então ao contexto da língua homérica, onde
    thymós é usado com certa abundância em situações que envolvem deliberação e, mais do que isso, o ato que se segue a uma deliberação em torno dos desejos e dos meios para atingir certo fim. A ideia de uma deliberação ao mesmo tempo racional e passional conserva-se também na palavra
    enthýmēma, de suma importância no âmbito dos raciocínios retóricos (Cf. REALE, G. "Corpo, Alma e Saúde. O conceito de homem de Homero a Platão" (p. 60ss). São Paulo: Paulus, 2002). Por tal motivo, "parte volitiva" também seria opção legítima, favorecida por dois motivos: pela doutrina algo platônica segundo a qual a alma se divide em razão (
    ratio), vontade (
    voluntas) e paixões (
    passiones), doutrina esta que granjeou inúmeros seguidores na história do Ocidente; e pelo uso em português, pois dizemos que temos "vontade de fumar", mostrando que somos afetados por um desejo, ao mesmo tempo que acreditamos ser possível dirigir nossa vontade por meio da razão para que, por exemplo, evitemos o tabaco. No entanto, dado que o grego possua a palavra "vontade" ou "volição" (
    boúlēsis), "ânimo" parece ser ainda melhor, não obstante também vá aparentemente de encontro ao uso vernáculo. Porém, algumas expressões do português há que abalizam tal tradução. Por exemplo, alguém pode dizer que está "sem ânimo para estudar". Por mais que saiba que este é seu dever – isto é, a ordem que a sua razão prática lhe dá –, o seu desejo pende para outra atividade, como, por exemplo, dormir ou ver televisão. Assim, está em seu poder entregar-se ao seu desejo ou salvaguardar os ditames de sua razão e esforçar-se para estudar. Este esforço concentrado é precisamente o ânimo que dantes faltava, ainda que ele possa ser usado para que, num movimento contrário e vicioso, a máxima da razão seja ignorada e o prazer, atendido. Isso porque, como a imagem plástica da alma ensina, o
    thymoidés é como um leão que pode tanto ajudar o monstro policéfalo dos desejos, quanto o homem interior que temos em nós ("Rep." 588d), isto é, esta parte está sujeita simultaneamente à influência de desejos e da educação racional. Ora, parece que intuitivamente pensamos o mesmo acerca do nosso ânimo.
    ii "Parte apetitiva" seria outra opção, e então traduzir-se-ia
    epithymía por "apetite". A tradução usual é "parte concupiscente", que segue provavelmente o latim
    pars cupiens. Contudo, ela não parece boa escolha por duas razões: primeiro, porque não encontra guarida na língua, já que não dizemos "estou com concupiscência por/de comer pizza", senão "estou com desejo/vontade/apetite de comer pizza"; segundo, porque tendo o substantivo
    epithymía de ser vertido por concupiscência, a fim de manter-se o paralelismo, o seu plural daria "concupiscências", o que agride ainda mais a índole vernácula.
    iii
    Mikropsychía: literalmente, "ter a alma pequena". É o contrário exato da grandeza d’alma ou magnanimidade (
    megalopsychía). Conquanto haja em português o substantivo erudito
    micropsiquia, a palavra "mesquinhez" parece mais oportuna e coloquial, conservando tanto os elementos morais quanto os intelectuais que estão presentes no termo grego. Rackham:
    smallmindedness; Solomon:
    idem; Schmidt:
    der kleine Geist; Latim:
    abjectus animus.
    iv No original,
    daímōnes. São divindades menores ou intermediárias que, no universo épico, conduziam os herois para o seu Destino pós-morte; com o tempo passaram a ser cultuados apenas nos lares, como gênios protetores (Rackham, p. 495). É ainda a palavra que designa a voz interior ouvida por Sócrates.
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    Kalōs enenkeîn: a rigor, "suportar de modo belo". Optamos por "decentemente", porque na concepção grega de beleza incluem-se também ideias como a decência, a ordem, a conveniência etc.
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    Philózōos: "aficionado pela própria sobrevivência". Designa quem tem um cuidado instintivo ou animal (
    ) para com a própria vida, preocupando-se demasiado com o perigo de morrer. Rackham:
    fond of life; Solomon:
    idem; Schmidt:
    lebensgerig; Latim: [
    qui]
    nec vitam ipsam vehementer amet.
    vii "Enfadamento" está para
    barythymía, que denota certo peso (
    barýs) de ânimo (
    thymós). A pessoa enfadada, de fato, tem dificuldade para modificar seu estado de ânimo, estando como que atada ao peso de seu mau humor. Rackham:
    sullenness; Solomon:
    idem; Schmidt:
    finsterer Unmut; Latim:
    torpescentia.
    viii
    Aphilóneikon toû
    thous: subserviência de caráter. No parágrafo quarto, traduzimos o mesmo adjetivo por "ser inimigo de contendas". A variação compreende-se facilmente, porém: a pessoa mansa é inimiga de disputas e contendas, mas, quando evita todas as discussões e nunca disputa nada, acaba aceitando a tudo o que lhe impingem e tornando-se servil.
    ix
    Mikrología: literalmente, "discurso sobre coisas pequenas ou insignificantes". Embora tenhamos
    micrologia em português, por um processo de transliteração erudita, o seu uso raríssimo torna mais apropriada a expressão "falar de ninharias".
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Out 2014
    • Data do Fascículo
      Dez 2014
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