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WEIL, S. "Œuvres Complètes". Tome V, Vol. 2. Édition publié sous la direction de Robert Chenavier. "Écrits de New York et de Londres - L’Enracinement. Prélude à une déclaration des devoirs envers l’être humain". Les textes de ce volume on tété établis, présentés et annotés par Robert Chenavier et Patrice Rolland avec la collaboration de Maire-Noëlle Chenavier-Jullien. Paris: Gallimard, 2013. 462p.

RESENHAS

WEIL, S. "Œuvres Complètes". Tome V, Vol. 2. Édition publié sous la direction de Robert Chenavier. "Écrits de New York et de Londres – L’Enracinement. Prélude à une déclaration des devoirs envers l’être humain". Les textes de ce volume on tété établis, présentés et annotés par Robert Chenavier et Patrice Rolland avec la collaboration de Maire-Noëlle Chenavier-Jullien. Paris: Gallimard, 2013. 462p.

Fernando Rey Puente

Doutor em Filosofia, Professor do Departamento de Filosofia da UFMG. ferey99@yahoo.com.br

Finalmente, o leitor sequioso de ler aquela que nas palavras de Simone Weil era a sua "segunda grande obra", "L’Enracinement" – a "primeira grande obra" ela considerava ser seu texto "Réflexions sur les causes de la liberté et de l’oppression sociale", escrito em 1934 – poderá fazê-lo na edição crítica de suas obras completas, que, como se sabe, abrangerão 16 alentados volumes. A publicação iniciou-se em 1988 e a sua conclusão deverá tardar mais alguns anos, pois ainda faltam vir a lume quatro volumes (o tomo III relativo aos poemas de Simone Weil e à sua tragédia, "Venises au vée", dois volumes do tomo VII que concernem à sua correspondência em geral e, por fim, o primeiro volume dos "Écrits de New York et de Londres", cujo segundo volume comentamos aqui).

O volume é composto de dois prefácios de autoria de seus dois editores,que ocupam quase noventa páginas do livro; de dois textos editados de Simone Weil, a saber, o "Étude pour une déclaration des obligations envers l’être humain" que os editores, seguindo uma sugestão de Jacques Cabaud, inserem como uma espécie de preâmbulo ao segundo texto intitulado por nossa autora "Prélude à une déclaration des devoirs envers l’être humain" e escrito em 1943, mas que, quando da primeira publicação do texto por Albert Camus na coleção "Espoirs" da Gallimard no ano de 1949, foi intitulado de "L’Enracinement", título que vigora até hoje e que os editores, seguindo a tradição dos estudos weilianos, igualmente preferiram manter; de dois anexos, contendo esboços, variantes e fragmentos a esses dois textos de Simone Weil e, por fim, de três utilíssimos apêndices – um índice nominal, um índice de conceitos e uma tabela analítica dos temas abordados em "O enraizamento".

Optamos, dado o limite de espaço, por fazer não uma resenha da obra de Simone Weil propriamente dita, mas sim dos aportes que a edição crítica dessa obra oferece agora aos leitores e aos pesquisadores do pensamento da filósofa francesa.

Analisemos então os dois prefácios. O primeiro, de Patrice Rolland, especialista em história das ideias políticas e com vários artigos escritos sobre Simone Weil e a política, pretende situar o pensamento de Simone Weil, em especial a sua obra "O Enraizamento", no contexto de sua recepção quando de sua publicação em 1949, bem como no contexto das hodiernas discussões políticas sobre as sociedades democráticas.

O desafio inicial de Rolland é o de mostrar que, apesar de o texto de SW não parecer ser um texto político (o autor chama a atenção para as resenhas contemporâneas à primeira publicação da obra da parte de E. Mounier e T. S. Eliot que, apesar dos elogios, afirmavam a estranheza que tal ensaio possuía em relação à política e aos políticos), a obra em questão deve ser entendida como uma obra política. Nas palavras de Rolland, "O Enraizamento": "ainda participa de uma interrogação contemporânea sobre a democracia e as sociedades democráticas" (p. 13).

Tendo sido escrito em Londres no ano de 1943 durante a ocupação da França pela Alemanha nazista, o texto de Simone Weil é antes de tudo um testemunho pessoal pleno de reflexões originais e profundas. A autora redigiu o texto não como um livro, mas sim como um relatório que lhe havia sido requisitado pelo comando da França Livre (nome dado ao Governo francês fundado pelo General Charles de Gaulle em 18 de junho de 1940 e que teve a sua sede em Londres depois da rendição da França de Vichy, com o intuito de lutar contra a Alemanha nazista e de apoiar a resistência no interior da França), visando descrever quais condições deveriam ser preenchidas para o ressurgimento de uma nova França. Ora, é nesse contexto histórico que devemos compreender a significação política de "O enraizamento", pois o texto se interroga sobre o que deveria ser a França Livre e o que ela deveria empreender, situando-se, portanto, em um registro eminentemente político.

Evidentemente, a noção mesma de política sofre uma alteração significativa em Simone Weil, alteração esta que o leitor deve reconhecer a fim de melhor avaliar a importância dessa obra. A autora afirma que é um grave equívoco, perpetuado ao longo dos séculos, que se pense a política como sendo apenas "a técnica de aquisição e de conservação do poder" (p. 286). A política é muito mais do que isso, devendo mesmo ser pensada a partir de um modelo artístico, como, por exemplo, o da tragédia grega, isto é, como sendo uma "composição simultânea sobre muitos planos" (p. 285), nas palavras da própria filósofa. Deste modo, pensar a política para ela requereria uma profunda atenção voltada a certas verdades eternas.

Segundo Rolland, o texto se desdobra em dois planos: "a ambição de uma nova civilização e uma visão muito particular do papel do movimento de Londres" (p. 20). No que diz respeito ao projeto de uma nova civilização, A. Camus já havia feito a sua – posteriormente célebre – declaração, ao publicar, pela primeira vez, o "Prélude à une déclaration des devoirs envers l’être humain" – por ele intitulado de "O enraizamento"–, que "parece impossível imaginar para a Europa um renascimento que não leve em conta as exigências que Simone Weil definiu" (p. 11). O cerne do projeto de SW, como seu próprio título já evidencia, é o de priorizar a noção de dever sobre a noção de direito. Como esclarece Rolland: "Ao opor uma civilização dos direitos do homem a uma civilização das necessidades da alma, ela recoloca então no centro da sociedade a necessidade de uma espiritualidade e de uma religião" (p. 20). Em contrapartida, em relação ao movimento de Londres, nossa autora supõe que a verdadeira missão da França Livre era a de ser, em seus próprios termos, "uma missão espiritual antes de ser uma missão política e militar" (p. 21).

Os dois derradeiros aspectos analisados por Rolland são: o entendimento de "O enraizamento" como projeto patriótico e sua relação com a sociedade democrática. Concernente ao primeiro tema, Rolland mostra que, apesar de o papel limitado que SW concedia à noção de pátria, ela reconhecia a sua importância como permitindo a mediação entre o passado e o futuro. O autor do prefácio mostra com precisão que esse patriotismo de SW não deve ser confundido com o patriotismo de Michelet, Barrès ou Jaurès, mas é algo novo. A novidade de Simone Weil é explorada no último tópico deste primeiro prefácio sob as perguntas: como integrar a "exigência de um bem absoluto", mais ainda uma obrigação incondicional, eterna e imutável, que a autora reivindica, com as sociedades democráticas laicas que parecem relativizar os valores? Mais: como reintroduzir a religião como questão pública nas sociedades atuais sem retomar as antigas querelas das guerras religiosas? Claro que aqui novamente é preciso perceber que SW resignifica a religião. A religião nessa nova civilização não mais poderia ser uma ortodoxia, mas sim uma fonte de inspiração, não mais poderia ser um dogma, mas sim uma luz. Em outras palavras, é preciso mostrar de que modo SW introduz o bem, a verdade e, enfim, a religião no discurso político de uma sociedade democrática, sem fazer com que esta se transforme seja em uma teocracia, seja em um governo de um filósofo-rei.

O segundo prefácio, de autoria de Robert Chenavier – editor das obras completas e diretor dos "Cahiers Simone Weil", revista especializada no pensamento de SW – entra a fundo na dimensão propriamente filosófica de "O enraizamento". Começando com um interessante e adequado paralelismo entre esse texto e o "Timeu" de Platão, que, de acordo com nossa autora, representava o mundo fora da Caverna e, portanto, um mundo belo e inspirado em um modelo divino. Por meio deste fio condutor, Chenavier nos guia com ampla e segura erudição por vários passos e trechos da produção da autora com o intuito de tentar explicitar as condições da descida do Bem em nosso mundo. Em outros termos, como estabelecer a conexão entre o Bem, isto é, Deus, que para SW é sempre transcendente, e o mundo no qual vivemos? Ele nos esclarece que se, de fato, o poder constitui o núcleo mesmo do político, o problema fundamental da política é a noção de legitimidade na medida em que é ela que nos abre à transcendência. Isso ocorre porque, nas palavras de SW, "ela deriva da justiça" e a justiça para ela evidentemente está intimamente ligada ao Bem.

Na verdade, o projeto de Simone Weil é, segundo a feliz expressão de Chenavier, a invenção de "uma política espiritual" (p. 52). Ora, obviamente, a grande dificuldade de compreender "O enraizamento" é precisamente a de "inventar as instituições que significariam o absoluto neste mundo" (p. 52). E esse constitui o escopo mesmo do longo ensaio de SW. Sugerindo um possível paralelo com as reflexões de M. Foucault, Chenavier, baseado em uma interessante passagem de nossa autora que ele destaca, entende que o problema filosófico de SW nessa obra era o de "descobrir sob que condições é possível inventar uma política da verdade" (p. 58).

A fim de levar a cabo o seu projeto, a pensadora francesa precisava conceber modos de agir politicamente no âmbito social. Assim, ao reconstruir uma história da soberania – da antiguidade grega à IIIª República –, ela cria, na verdade, uma contra-história, a saber, a história dos vencidos e daqueles que a "história oficial" denomina bárbaros. O modelo para fazer isso nossa pensadora vai buscar naquelas civilizações do passado que de acordo com ela teriam sido especiais, na medida em que teriam deixado o Bem penetrar em suas diversas manifestações culturais, civilizações tais como a Grécia, a Índia e a Occitânia. Ou seja: nessas civilizações, segundo nossa autora, vivenciou-se outro tipo de poder, um poder espiritual ou ainda, nas palavras de SW, nessas civilizações há uma força "de uma espécie completamente diversa daquela manejada pelos fortes", uma força "que não é deste mundo".1 1 WEIL, S. "Y a-t-il une doctrine marxiste?" In: S. Weil. Opression et liberté. Paris: Gallimard, 1955. p. 253. Assim, evitando tanto do lado político a dimensão espiritual e institucional, quanto do lado religioso a dimensão clerical e teológica, SW tenta conceber um poder espiritual. A política espiritual, por conseguinte, é, nas palavras de Chenavier, "o ponto de encontro de uma dimensão interior, subjetiva [...] e de uma forma específica de ação pública [...]" (p. 70). O que é preciso então é, nas palavras de SW, inventar um método para "insuflar uma inspiração a um povo" (p. 260), algo a que, segundo ela, Platão já havia feito alusão no "Político" e em outros diálogos. Esse é o objetivo central de "O enraizamento".

Por fim, Chenavier reflete sobre o trabalho físico, tema sobre o qual ele próprio já redigiu um livro fundamental no qual explorava esse tema ao longo de toda a obra de SW. Nesse prefácio, contudo, o que ele busca entender é apenas a importância do trabalho físico na parte final de "L’Enracinement" e que ele relaciona com um outro assunto essencial para ela: a decreação. Esse desejo de decreação nada tem de niilista, antes é, nas palavras de Chenavier, "uma preocupação de contato com aquilo que verdadeiramente existe" (p. 77). Ora, o ponto de contato entre o trabalho físico e a decreação consiste no fato de que se o desequilíbrio de nossa civilização é devido a uma hipertrofia puramente material da técnica, nas palavras de SW, "o desequilíbrio só pode ser reparado por um desenvolvimento espiritual no mesmo domínio, isto é, no domínio do trabalho" (p. 191).

Concluindo seu prefácio, Chenavier se interroga como alguém que não partilhe dos mesmos pressupostos espirituais de SW poderia tirar proveito dessa obra. E responde de imediato que mesmo alguém que não possa ou não queira aceitar a ideia do Bem poderia sim se enriquecer com essa obra, pois o esforço de leitura de cada um é valioso por si mesmo na elucidação dessa reflexão sobre a dimensão política, ainda que esse esforço não o conduza "às alturas visadas por Simone Weil" (p. 86).

Em relação aos dois textos de SW editados conjuntamente neste volume, caberia observar que uma modificação, em relação ao texto publicado em 1949 por Camus e muitas vezes reeditado posteriormente, é o fato de o texto "Étude pour une déclaration des obligations envers l’être humain", que havia sido originalmente colocado no volume "Écrits de Londres et dernières lettres" publicado em 1957, ter sido inserido aqui para servir como preâmbulo a "L’Enracinement". Com isso, o leitor tem reunidos em um único volume textos realmente muito semelhantes. Outra modificação dos editores é ter evitado inserir títulos e subdivisões em "O enraizamento", caso eles não tenham sido explicitamente feitos pela autora. É o que ocorre, por exemplo, com os subtítulos introduzindo as necessidades da alma, logo no início da obra, e que desaparecem da edição crítica. Outra observação relevante é o grande número de notas de esclarecimento que os editores e a equipe editorial nos oferecem ao longo dos dois textos de SW e que, diferentemente de vários dos volumes anteriores das obras completas, aparecem como notas de rodapé não sendo inseridos ao final do volume o que torna a leitura muito mais fácil e agradável para o leitor, poupando-o assim das infindáveis idas e vindas, inevitáveis quando as notas aparecem apenas no fim da obra.

Os dois anexos que se seguem aos dois textos de SW editados criticamente nos proporcionam, como de costume nos demais volumes das obras completas, uma visão de um pensamento em processo de elaboração. Assim, os esboços, fragmentos e variantes nos oferecem veredas alternativas ou hesitações que o pensamento fértil e fecundo de Simone Weil seguia na medida em que ia se configurando.

Por fim, os apêndices são de imensa utilidade para os estudiosos do pensamento de Simone Weil, pois, como bem sabem todos aqueles que já adentraram nesse universo fascinante, mas extremamente complexo, os índices, em especial o índice de conceitos, são uma ferramenta essencial de pesquisa ao menos enquanto ainda não dispusermos da inserção integral da obra de SW em um arquivo virtual. Cruzar conceitos que ela analisa em obras diversas exige paciência e dedicação, pois uma obra não sistematizada, como a de SW, não se presta facilmente a isso. Todavia, o que uma leitura atenta e profunda da sua obra nos evidencia cada vez mais é que se a sua obra não é sistematizada, ela é essencialmente coerente e nos oferece um sistema aberto e dúctil cheio de sutis conexões entre planos diversos de análise. Como bem e sucintamente define Chenavier, "a palavra-chave da filosofia de Simone Weil: a distinção dos níveis" (p. 55).

O que se espera do leitor dessa importantíssima obra, pela primeira vez editada criticamente, é sobretudo atenção e cuidado ao penetrar em reflexões que poderão lhe soar inicialmente estranhas e pouco usuais, algo para o qual a leitura atenta dos dois prefácios constitui uma verdadeira ajuda.

Na verdade, todos nós, leitores e pesquisadores, somente podemos ser gratos ao trabalho dos editores e da equipe editorial que ao longo de quase três décadas desse importantíssimo projeto procuram nos oferecer com rigor científico a totalidade da produção dessa grande filósofa que infelizmente segue sendo desconhecida ou marginalizada pela filosofia oficial.

Apesar de os últimos anos terem trazido contribuições importantes no campo exegético dos estudos weilianos, ainda temos de nos deparar, quase sempre, com preconceitos, oriundos de várias procedências, que impedem um aprofundamento paulatino e sério no pensamento filosófico que essa escrita clara, direta e, por vezes, medularmente poética de Simone Weil nos oferece.

Lamentavelmente, o mais frequente no campo da literatura secundária é termos de nos deparar com meras exposições biográficas de uma vida instigante e que de fato merece ser contada, mas que não se apercebem da profundidade de um pensamento filosófico que só pode ser equiparado ao de dois ou três dos maiores filósofos do século XX.

Esperemos, contudo, que as ideias sempre originais e ousadas de Simone Weil – como as contidas nessa obra recém-editada – possam vir a fecundar jovens leitores introduzindo-os assim em novas concepções filosóficas, tal como essa de uma política espiritual.

  • 1
    WEIL, S. "Y a-t-il une doctrine marxiste?" In: S. Weil.
    Opression et liberté. Paris: Gallimard, 1955. p. 253.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Out 2014
    • Data do Fascículo
      Dez 2014
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