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AS DUAS VERDADES DE NĀGĀRJUNA NOS COMENTÁRIOS DE BHĀVIVEKA E CANDRAKĪRTI

RESUMO

Entre os vários pontos da obra de Nāgārjuna que deram origem a análises e discussões, o tema das 'duas verdades' é um dos mais controversos. Com efeito, dentro da ampla bibliografia dedicada a essa temática, são muitas, e amiúde divergentes, as tentativas de explicar o que Nāgārjuna entendesse - no verso 24.8 das suas Mūla-madhyamaka-kārikā (MMK) - com as expressões 'verdade convencional' e 'verdade suprema'. Esses pontos de vista interpretativos, entretanto, frequentemente, parecem prescindir daquele que talvez seja o critério mais confiável para dirimir as controvérsias relativas às MMK: i. e., a leitura dos comentários indianos às mesmas MMK. Em contraste com essa tendência, este escrito objetiva investigar as passagens do Prajñāpradīpa e das Prasannapadā onde encontramos explicações, respectivamente de Bhāviveka e de Candrakīrti, que dizem respeito às duas verdades. O resultado dessa pesquisa se apresentará como nitidamente favorável à interpretação da doutrina das duas verdades que, em outros escritos, chamei de 'pedagógica'.

Palavras-chave
Duas verdades; Nāgārjuna; Bhāviveka; Candrakīrti

ABSTRACT

Among the many passages of Nāgārjuna's work that have generated analysis investigation and discussion, the issue of the 'two truths' is one of the most controversial ones. In fact, within the vast bibliography dedicated to this topic, attempts to explain what Nāgārjuna meant - in verse 24.8 of his Mūla-madhyamaka-kārikā (MMK) - by 'conventional' and 'supreme truth' are many and frequently divergent. However, it often seems that these interpretative views neglect what probably is the most reliable criterion for solving controversies in the MMK: i. e., the reading of Indian commentaries to the MMK. Going against this trend, this paper aims to investigate passages of Bhāviveka's Prajñāpradīpa and of Candrakīrti's Prasannapadā where we find explanations that concern the two truths. The result of this research will look quite favorably on the interpretation of the two truths doctrine that I called, in other works of mine, "pedagogical".

Keywords
Two truths; Nāgārjuna; Bhāviveka; Candrakīrti

Introdução

No âmbito dos estudos de filosofia antiga, geralmente, considera-se 'consistente' a operação exegética que ofereça, de uma determinada passagem textual, uma leitura coerente com as demais partes da obra do seu autor e compatível com o contexto histórico-filosófico no qual a mesma obra se coloca. No caso das numerosas doutrinas, noções e argumentos com os quais a filosofia de Nāgārjuna se articula, a busca de interpretações consistentes é especialmente árdua e desafiadora:1 1 Não por acaso, há estudiosos contemporâneos que, de fato, renunciaram a buscar leituras 'consistentes' do pensamento de Nāgārjuna. Alguns - por exemplo, Robinson (1972) ou Hayes (1994) - acreditam que raciocínios cruciais do autor das MMK sejam viciados por equívocos e outras falácias lógicas; outros (cf. Deguchi, Garfield, Priest, 2008) preferem oferecer uma leitura 'paraconsistente' ou 'dialeteista' do nosso autor, conforme a qual a presença de paradoxos e contradições em Nāgārjuna não exclui que seu pensamento seja, de alguma forma, cogente e admissível. com efeito, nesse caso, os aspectos textuais e contextuais a serem 'conciliados' são muitos e, às vezes, aparentemente, em recíproca contradição. Assim, por exemplo, qualquer leitura da doutrina nagarjuniana das duas verdades (daqui por diante, 2V) - objeto específico deste artigo - que aspire ser consistente terá que mostrar sua coerência não apenas com o 'contexto dramático' no qual as duas verdades são exemplarmente apresentadas (isto é, com o enredo do capítulo 24 das MMK), mas também com aquelas passagens nas quais Nāgārjuna declara não ter nenhuma posição; com suas noções de vacuidade, cooriginação dependente e caminho do meio; com a tese de que o acesso à verdade suprema passa, de alguma forma, através da verdade convencional. Além disso, essa leitura deverá ser compatível com a circunstância de que Nāgārjuna é um pensador (proto-)mahāyāna: e, portanto, em sintonia com as concepções do movimento prajñāparāmitā, mas também absolutamente devoto do Buda histórico e dos seus ensinamentos mais elevados, dos quais o Mahāyāna busca - em polêmica com as escolas budistas da fase ābhidharmika - uma interpretação mais fiel ao 'espírito originário'. Finalmente, para ser plausível, uma leitura das 2V deverá ser confirmada ou, ao menos, não contradita pelos comentadores indianos de Nāgārjuna.2 2 O ponto de vista exegético dos autores tibetanos (que não é verbatim, logo, não pode ser considerado um trabalho interpretativo tecnicamente 'comentarial'), como certeza importante, pode, entretanto, ser considerado menos 'vinculante' para uma interpretação 'filológica' da filosofia mādhyamika. Com efeito, reconhecidamente (cf. Eckel, 1987, p. 9; Huntington, 2003, p. 68; Kragh, 2009), a abordagem tibetana do pensamento budista indiano - por exemplo, a inteira reconstrução (em termos de grub mtha' ou 'sistemas doutrinários') que a escola dGe lugs pa propõe da história do pensamento budista, bem como sua divisão do Madhyamaka indiano nas duas subescolas Svātantrika e Prāsaṅgika - responde a exigências muito mais 'escolásticas' e soteriológicas do que histórico-filológicas.

É com essa série de desafios filosóficos, textuais e contextuais, que qualquer tentativa de interpretar a doutrina nagarjuniana das 2V deve necessariamente confrontar-se.

Em uma série de escritos precedentes,3 3 Cf. Ferraro (2013b); Ferraro (2014); Ferraro (prelo: parte 2). argumentei a favor de uma leitura - que chamei de 'pedagógica' ou, quando inserida no contexto mais geral do pensamento de Nāgārjuna, de 'antimetafísica' - a qual me parece, quando comparada a outras leituras da doutrina das 2V que tive a oportunidade de avaliar,4 4 Cf. Ferraro (2013a); Ferraro (prelo: parte 1). mais consistente. Em extrema síntese, os pontos salientes dessa proposta interpretativa são os seguintes: (1) as duas verdades não designam duas (ou mais) teses ou doutrinas diferentes, mas sim dois 'planos epistêmicos' ou duas diferentes maneiras de ver e conceber a realidade: o plano ordinário ou convencional (saṃvṛti-satya) é a abordagem cognitiva do homem comum, não iluminado, que concebe as coisas como uma pluralidade de entes substanciais (objetos e pessoas) dotados de uma essência ou de uma 'natureza própria' (svabhāva) que os identifica; em contrapartida, a expressão 'verdade suprema' (paramārtha-satya), equivalente de noções como - entre outras presentes na literatura budista - nirvāṇa, tattva ou dharmatā, designa a visão da realidade alcançada pelos buddhas; (2) esses dois planos epistêmicos, ordinário e supremo, são a base de ensinamentos budistas de duas diferentes tipologias: algumas doutrinas (em primeiro lugar, aquela das Quatro Nobres Verdades que, em sua formulação canônica, fala de sofrimento subjetivo, causas específicas da dor, resultados pessoais da prática etc.), com efeito, respeitam as categorias (substância individual, identidade, diferença etc.) de saṃvṛti-satya; outras (por exemplo, a doutrina do 'não si' e a da vacuidade), ao contrário, desrespeitam as mesmas categorias e, portanto, devem ser consideradas como baseadas na verdade suprema; (3) os ensinamentos do primeiro tipo, mesmo que fundados em uma visão ultimamente falsa, têm, de qualquer forma, decisiva importância pedagógica, pois eles proporcionam a possibilidade do amadurecimento ético e espiritual imprescindível para a compreensão dos ensinamentos mais elevados. As duas tipologias de doutrinas, portanto, direcionam-se a discípulos que se colocam em diferentes graus de desenvolvimento ético e espiritual; (4) os ensinamentos baseados na visão suprema (paramārtha-satya) não devem ser considerados como definições da mesma visão. Com efeito, qualquer tentativa de representar a verdade última (tanto na direção do ser e do substancialismo, como na direção do não ser e do niilismo) é fadada a produzir uma dṛṣṭi, a saber, uma 'doutrina metafísica', necessariamente errada e, possivelmente, patogênica. A noção de vacuidade (śūnyatā), nesse sentido, longe de ser a dṛṣṭi defendida por Nāgārjuna (o qual declara não ter nenhuma tese que lhe pertença), é apenas um meio (upāya) ou uma 'ferramenta conceitual' (válida apenas em contextos onde existam dṛṣṭi) para eliminar qualquer tentativa metafísica; (5) o ensinamento da vacuidade deve ser considerado conceitualmente equivalente à noção de 'cooriginação dependente' (pratītyasamutpāda): dizer que algo é vazio - isto é, desprovido de natureza própria - equivale a dizer que ele surge e subsiste a partir da oposição recíproca com suas contrapartes conceituais.

Nos escritos citados anteriormente, o critério que utilizei para justificar minha leitura foi, principalmente, o de mostrar a coerência desses cinco aspectos com as passagens mais relevantes da obra de Nāgārjuna, e sua sintonia com ensinamentos crucias do Buda histórico. Nas três seções deste artigo, pretendo submeter os primeiros três pontos ao confronto direto com as leituras que Bhāviveka e Candrakīrti5 5 O comentário AkB - cujo sânscrito acessamos na reconstrução de Pandeya (1989) - dedica poucas linhas (cf. nota de rodapé 34) aos versos que mais nos interessam (a saber, MMK 24.8-10). Lembremos que o comentário (vṛtti) de Buddhapālita às MMK, a partir do capítulo 23, é praticamente idêntico - na versão tibetana a nossa disposição (consequentemente, na versão sanscrítica reconstruída por Pandeya) - ao AkB. fazem das primeiras onze estrofes (estrofes ou kārikās) de MMK 246 6 As estrofes de MMK 24 (e seus respectivos comentários) sucessivas à 11 dedicam-se à aplicação da doutrina da vacuidade às QNV e a seus corolários. O objetivo de Nāgārjuna é o de mostrar como a ausência de svabhāva nas nobres verdades, mesmo excluindo a possibilidade da sua existência última, é a condição imprescindível que permite sua existência convencional. Esse tipo de raciocínio (que diz respeito especialmente ao quarto e ao quinto pontos do elenco com o qual resumi minha interpretação), que ultrapassa os limites previstos para este estudo, foi por mim aprofundado nos escritos citados acima (especialmente, Ferraro, 2013b, e prelo: parte 2). (e de outros versos mais diretamente relacionados à discussão sobre as 2V). O resultado desse confronto será que os autores do PrPr e das PP confirmam inequivocamente que a verdade convencional deve ser entendida como a abordagem cognitiva do homem comum, ao passo que a verdade última é a visão suprema dos buddhas. Ademais, nesses dois autores, encontraremos confirmação da tese de que as 2V são utilizadas, pelo Buda e outros mestres, como base de duas tipologias de ensinamentos epistemologicamente diferentes, embora pedagogicamente compatíveis.

Ao longo das páginas que se seguirão, aproveitarei para replicar algumas das críticas que Machado - neste mesmo número da Kriterion - move à interpretação das 2V acima resumida, e para apresentar minhas ressalvas à leitura proposta pelo mesmo autor.7 7 Agradeço a Lucas Machado por ter possibilitado, ao enviar-me o preview do seu escrito, o diálogo entre nossas duas interpretações nas páginas deste mesmo número da Kriterion. Essa leitura, de fato, a meu ver, compartilha emblematicamente um defeito - que nada tira seu mérito de oferecer ao leitor deixas e estímulos para refletir sobre o tema tratado - comum a outras propostas interpretativas das 2V (ou de outros aspectos do pensamento de Nāgārjuna): ela busca justificar-se por meio de uma leitura coerente e logicamente plausível apenas de poucos elementos textuais (no caso de Machado, quase todos internos ao mero capítulo 24), prescindindo do tratamento geral da questão das 2V na história da filosofia budista, das passagens nagarjunianas que parecem em contraste com a mesma leitura e, sobretudo, da imprescindível explicação das palavras de Nāgārjuna oferecida por seus comentadores indianos.8 8 Naturalmente, a palavra dos comentadores - assim como praticamente qualquer outro fator (con)textual avulso dos outros - não deve ser tomada como o ponto de vista interpretativo definitivo para a leitura de nenhuma passagem das MMK. Bhāviveka e Candrakīrti distam quatro ou cinco séculos de Nāgārjuna e seu 'escrúpulo filológico' pode não ter sido afinado como o nosso. Portanto, com relação a uma ou outra explicação que eles fornecem de determinadas passagens nagarjunianas, quando elas se chocam com outros dados a nossa disposição ou quando se contradigam entre elas, é legítimo ser mais cautelosos para com eles. Contudo, quando - como é o caso da sua exegese de MMK 24 - as leituras dos mesmos comentadores sejam coerentes entre si e em sintonia com outros elementos da nossa investigação, sua confiabilidade aumenta drasticamente, reduzindo a consistência e a plausibilidade de qualquer ponto de vista exegético que as contradiga.

O que resulta é, dessa forma, uma interpretação que, embora 'em absoluto' (isto é, avulsa da sua dimensão contextual) seja possível, torna-se, no entanto, fortemente discutível - para não dizer inadmissível - quando posta a confronto com a totalidade das peças nas quais o quebra-cabeça das 2V se articula.

Boa acuidade visual e 'descolamento do vítreo posterior'

As primeiras seis estrofes de MMK 24 apresentam o ponto de vista de um representante do budismo pré-mahāyāna, que acusa Nāgārjuna de negar, por meio da sua doutrina da vacuidade, as Quatro Nobres Verdades (QNV)9 9 MMK 24.1: "Se tudo isto fosse vazio, não haveria [então] nem surgimento nem cessação. Isso implicaria, para ti, a não-existência das Quatro Nobres Verdades". e, com isso, a série de corolários doutrinais, éticos e soteriológicos que elas implicam.10 10 Os 'corolários' das QNV são as atividades meritórias mais diretamente conexas às nobres verdades (MMK 24.2); os frutos das mesmas atividades, as personalidades espirituais que "almejam" os frutos e aquelas que "residem" neles (MMK 24.3); a comunidade budista (saṃgha) e o Dharma do Buda (MMK 24.4); a própria possibilidade de tornar-se um buddha (MMK 24.5) e, finalmente, a lei do karman, a distinção entre ações boas e más e o próprio conjunto das atividades (vyavahāra) mundanas (MMK 24.6).

Com efeito, não faltam, dentro da obra de Nāgārjuna, afirmações que justificam a objeção do oponente. Pensemos, por exemplo, em versos como MMK 7.24: "Como uma ilusão, um sonho, uma cidade de gênios celestes (gandharva) - dessa maneira são explicados o surgimento, a duração, a cessação".11 11 yathā māyā yathā svapno gandharvanagaraṃ yathā | tathôtpādas tathā sthānaṃ tathā bhaṅga udāhṛtam || Os Gandharva são Gênios celestes. 'Cidade de Gandharva' é a imagem que indica a miragem chamada de 'fata Morgana'. No mesmo patamar: MMK 17.31-32: "Como um mestre dotado de poder mágico cria um ser mágico (nirmitakaṃ), e esse, criado magicamente, cria por sua vez um outro ser mágico, assim o agente é parecido a um ser mágico e a ação por ele cumprida é como um segundo produto mágico (anyo nirmito) criado magicamente através de uma mágica" (yathā nirmitakaṃ śāstā nirmimītarddhisaṃpadā |nirmimītânyaṃ sa ca nirmitakaḥ punaḥ || tathā nirmitakākāraḥ kartā yat karma tatkṛtam | tadyathā nirmitenânyo nirmito nirmitas tathā ||) ou ŚS 66: "Karma-formations are like the city of gandharvas, illusions, mirages, nets of hair, foam, bubbles, phantoms, dreams, and wheels made with a firebrand", trad. Lindtner (1997, p. 117). Embora um verso assim não negue diretamente as QNV, ele, evidentemente, recusa categorias lógicas fundamentais (como as do surgimento e da cessação) presentes nas mesmas verdades. Ademais, Nāgārjuna - como monge da incipiente tradição mahāyāna - tinha uma estrita ligação com as concepções do movimento prajñāparāmitā, no qual as negações das QNV são explícitas. Por exemplo: "Portanto, o Śāriputra, na vacuidade [...] não há sofrimento, nem sua causa, nem sua extinção, nem o caminho [para sua extinção]".12 12 tasmāc Chāriputra śūnyatāyāṃ [...] na duḥkha-samudaya-nirodha-mārga, Hṛdaya-sūtra ("Sūtra do Coração", p. 151).

Diante de afirmações desse teor, não surpreende que alguém acuse Nāgārjuna e seus confrades de sensibilidade mahāyāna de ter caído na heresia niilista. Com efeito, o oponente do incipit de MMK 24 - na reconstrução do seu raciocínio proposta por Candrakīrti - compreende a vacuidade nagarjuniana, justamente, como um niilismo: "o que é vazio não é (nāsti); e o que não é, pelo fato de não existir, nem nasce, nem desaparece, igualmente ao filho de uma mulher estéril; consequentemente, não há surgimento nem cessação de coisa nenhuma".13 13 tadā yacchūnyaṃ tan-nāsti yacca nāsti tad-avidyamānatvād-vandhyāputravan-naiva-utpadyate na cāpi nirudhyate iti na kasya cit-padārthasya udayo vyayaśca, PP 475.8-9. Ora se "tudo isto" (sarvam-idaṃ) é vazio e inexistente, também as Quatro Nobres Verdades - conclui o adversário de Nāgārjuna - serão tais: semelhantes a "flores no céu", acrescenta Bhāviveka.14 14 Cf. Uryuzu (1971, p. 29).

O perigo que as posições mādhyamikas sejam lidas como niilismo, isto é, como uma doutrina que o Buda conhece e condena inequivocamente,15 15 Cf., por exemplo, o Brahma-jāla-sutta ("Discurso da rede de Brahma", DN I.1). é bastante concreto. Não por acaso, ainda hoje, depois de quase dois mil anos de tentativas mādhyamikas de distanciar-se dessa 'heresia', temos estudos que entendem a filosofia de Nāgārjuna como "the most thorough going Nihilism the world has never known" (Narain, 1997NARAIN, H. "The Mādhyamika Mind". Delhi: Motilal Banarsidass, 1997., p. 146). Conclusão essa que não pode absolutamente ser considerada esporádica: com efeito, é ampla a lista dos autores antigos, modernos e contemporâneos que, igualmente e ao oponente das primeiras seis estrofes de MMK 24, interpretam a doutrina nagarjuniana da vacuidade como a negação cabal de qualquer forma de ser.16 16 Para uma reconstrução da história da interpretação niilística do pensamento de Nāgārjuna, cf. Ferraro (prelo: parte 1, Cap. 1).

Nāgārjuna, de qualquer maneira, não se sente e não quer ser considerado niilista. Sua defesa contra a acusação do adversário começa na estrofe 7:

MMK 24.7: Diante disso, nós afirmamos que tu não compreendes (na vetsi) o propósito (prayojanam) inerente à vacuidade, a [própria] vacuidade e o sentido da vacuidade. Por isso, tu te atormentas dessa forma.17 17 atra brūmaḥ śūnyatāyāṃ na tvaṃ vetsi prayojanam | śūnyatāṃ śūnyatārthaṃ ca tata evaṃ vihanyase ||

O que não entende o oponente - que "por causa do seu próprio fantasiar (sva-vikalpanayā) sobreimpõe (adhyāropya) erroneamente (viparītam) ao sentido da vacuidade a [noção] de inexistência"18 18 svavikalpanayaiva nāstitvaṃ śūnyatārtha ityevaṃ viparītam-adhyāropya, PP 490.8. - é a diferença entre a doutrina da vacuidade e o niilismo.

Sobre o verdadeiro sentido dessa diferença, a literatura comentarial oferece imagens e reflexões bastante significativas que nos ajudam a entender o sentido da réplica de Nāgārjuna a seu adversário. Por exemplo, ao comentar MMK 18.7, Buddhapālita afirma que entre um niilista e um filósofo mādhyamika há diferença "abismal" (atimahat). Com efeito, "a blind man could for instance also state that a certain place is pleasant but since he cannot see [its beauty] as his sight is lacking the eye of knowledge he will err and falls down".19 19 BPV, trad. Ames (1986, p. 330). Essa imagem é seguida por outra, que será retomada (no comentário ao mesmo verso MMK 18.7) por Candrakīrti: dois indivíduos estão acusando um terceiro de ter roubado algo; o primeiro não o viu roubar, mas, igualmente ("talvez convencido por um inimigo do terceiro"), escolhe lançar sua acusação; ao invés disso, o segundo acusa porque viu o ladrão roubar. Os dois dão a mesma declaração, mas é apenas o segundo que fala algo verdadeiro, enquanto "o primeiro merece ser chamado de mentiroso".20 20 Cf. PP 368.16.

Em outras palavras, os mādhyamikas reivindicam para si algum tipo de vivência que deveria diferenciar suas afirmações daquelas de quem considera a vacuidade como pura inexistência. Temos outras imagens esclarecedoras deste 'fundamento experiencial' das afirmações dos mādhyamikas. Por exemplo, em mais de uma ocasião, Candrakīrti compara os homens ordinários - "cujo olho (nayana) mental (mati) é ofuscado (upahata) pela doença da nesciência, [e] consideram o surgimento dos entes, que é, de fato, sem natureza própria, como devido à natureza própria"21 21 evam-avidyā-timira-upahata-mati-nayana-tayā bālā niḥsvabhāvaṃ bhāvajātaṃ sasvabhāvatvena-abhiniviṣṭā, PP 261.3-4. - aos afetados pelo distúrbio visual da PVD:22 22 O PVD (Posteriour Vitreous Detachment) é a disfunção oftálmica cujos sintomas (muito mais do que aqueles da catarata, da oftalmia ou de outras possíveis patologias citadas pelos estudiosos da escola Madhyamaka) mais precisamente correspondem ao que é chamado timira por Candrakīrti. Agradeço à doutora Juliana Reis Guimarães pelo 'diagnóstico'. uma disfunção pela qual se percebem "cabelos" e "mosquitos" que não correspondem a objetos reais. Os buddhas - ou, de qualquer forma, os sujeitos que tenham superado a visão convencional da realidade - são, por sua vez, comparados à pessoa saudável, sobre a qual Candrakīrti observa:

Se alguém sem PVD - não percebendo os cabelos vistos por alguém afetado por PVD - afirmar (bruvan) que «não há [cabelos]», ele não estaria dizendo (brūyāt) que algo não existe, pois não há nada (abhāvāt) que possa ser negado (pratiṣedhya). Nós - sendo como [pessoas] sem PVD (ataimirika) - afirmamos «todos os entes inexistem (na santi)», visando (artham) a eliminação da adesão (abhiniveśa) aos erros (mithya) das [pessoas] equivocadas.23 23 yas-tu taimirika-upalabdha-keśeṣu-iva vitaimiriko na kiṃ cid-upalabhate sa nāstīti bruvan kiṃ cin-nāstīti brūyāt pratiṣedhya-abhāvāt | viparyastānāṃ tu mithya-abhiniveśa-nivṛtty-artham-ataimirikā iva vayaṃ brūmo na santi sarva-bhāvāḥ iti, PP 273.14-274.3.

Essa imagem de Candrakīrti pode ser aproximada a mais uma similitude, que encontramos no comentário de Bhāviveka ad MMK 13.7:

The cognition of emptiness does not make the emptiness of entities; rather, in this case, it makes clear that entities do not have that as self-nature. For example, it is like the light of a butter lamp making clear the absence of a pot in a room, but it does not make non-existence. It is not that if that [pot] does not exist, [its absence] would exist.24 24 PrPr, trad. Nietupski (1996, pp. 123-124).

Por sua vez, essa imagem de Bhāviveka parece construída com base em um raciocínio que Nāgārjuna nos propõe em seu autocomentário (svavṛtti) ad VV 64: "A expressão «todos os entes são desprovidos de natureza própria» não torna (na karoti) os entes sem natureza própria; ao invés disso, já que os entes são sem natureza própria, ela faz conhecer (jñāpayati) a ausência de natureza própria dos entes".25 25 niḥsvabhāvaḥ sarvabhāvā ityetatkhalu vacanaṃ na niḥsvabhāvāneva sarvabhāvān karoti | kiṃtvasati svabhāve bhāvā niḥsvabhāvā iti jñāpayati, VVV 80. E para ilustrar essa afirmação, Nāgārjuna acrescenta uma ulterior similitude relevante:

Se alguém afirmasse, enquanto Devadatta não está em casa, que ele está em casa, e alguém replicasse que não, ele não está lá, essa [segunda] afirmação não produziria a ausência de Devadatta, mas apenas deixaria conhecer a ausência de Devadatta em casa.26 26 Kaścid-brūyād-avidyamāna-gṛhe devadatte 'sti gṛhe devadatta iti | tatrainaṃ kaścit-pratibrūyān nāstīti | na tad-vacanaṃ devadattasya-asadbhāvaṃ karoti kiṃtu jñāpayati kevalam-asaṃbhavaṃ gṛhedevadattasya, VVV 80-81.

Mesmo que seja possível individuar outras diferenças - formais e não apenas 'empíricas' - entre a posição de Nāgārjuna e um puro niilismo,27 27 Cf. Ferraro (prelo: parte 1, Cap. 1). é com argumentos desse tipo que os mādhyamikas mais frequentemente se defendem das acusações de niilismo: a vacuidade é uma doutrina que se funda em um tipo de experiência cognitiva diferente daquela própria da dimensão epistêmica ordinária.

Essas considerações nos colocam em uma boa posição para enfrentar a 'famigerada' estrofe 8:

MMK 24.8: O ensinamento (deśanā) dos buddhas sobre a Doutrina Verdadeira (dharma) está baseado (samupāśritya) em duas verdades (dve satye): a verdade ordinária mundana (loka-saṃvṛti-satya) e a verdade (satyam) [conforme] o sentido supremo (paramārthataḥ).28 28 dve satye samupāśritya buddhānāṃ dharmadeśanā | lokasaṃvṛtisatyaṃ ca satyaṃ ca paramārthataḥ.

Para entendermos essa afirmação, não podemos prescindir da circunstância de que essa é uma réplica a um oponente que acusa Nāgārjuna de contradizer, com seu niilismo, ensinamentos cruciais do Buda. Ora, levando em conta nossas considerações precedentes, a maneira mais natural para ler esses versos é que eles signifiquem: as negações mādhyamikas estão baseadas em uma experiência cognitiva (suprema) da realidade diferente daquela (ordinária) que funda ensinamentos como o das QNV (concebido em sentido substancialista). As duas verdades, portanto, configuram-se como duas diferentes dimensões epistêmicas, correspondentes, respectivamente, às experiências cognitivas de alguém afetado pelo PVD (que, portanto, vê 'cabelos' e 'mosquitos' inexistentes) e de um sujeito saudável, cuja visão não seja ofuscada.

Saindo da similitude, os 'cabelos' e os 'mosquitos' que aparecem na dimensão epistêmica ordinária (saṃvṛti-satya) equivalem à concepção dos entes como substanciais; isto é, à convicção de que coisas e pessoas sejam algo dotado de uma 'natureza própria' (svabhāva), uma identidade que as torna o que são pela duração de sua existência.29 29 Um exemplo 'padrão' do significado de svabhāva em Nāgārjuna, segundo Candrakīrti (PP ad MMK 15.2, p. 260.5-8), é o 'calor' com relação ao fogo. O calor, com efeito, pode pertencer - de uma forma contingente (isto é, como 'natureza extrínseca', parabhāva) - também a outros elementos, por exemplo, à agua; no entanto, como 'natureza própria', 'intrínseca' ou 'essencial', ele caracteriza apenas o fogo, fazendo com que o fogo seja o que é. Com efeito, é exatamente por meio dessa noção que o oponente entendia o conteúdo das QNV. Por exemplo, no que diz respeito à primeira nobre verdade, explica Candrakīrti (sempre dando voz ao oponente), "os cinco agregados são chamados de «sofrimento» por terem a dor como essência (pīḍā-ātmakatvena)".30 30 pañcopādāna skandhāḥ [...] pīḍā-ātmakatvena duḥkham-ityucyate, PP 475.11-13. O termo ātman ou, em outros casos, svarūpa são utilizados por Candrakīrti como sinônimos de svabhāva. A visão ultimamente verdadeira (paramārtha-satya), ao contrário, não apreende a realidade como um conjunto de substâncias separadas, mas sim de uma forma sobre a qual Nāgārjuna evita qualquer definição.

Ora, essa interpretação das duas verdades como, respectivamente, a visão do homem comum (logo, a não ser que haja algum buddha entre os leitores deste artigo, da nossa abordagem cognitiva ordinária do mundo) e a visão dos iluminados não é apenas consistente com os principais argumentos utilizados pelos mādhyamikas para diferenciar-se do niilismo, mas é também confirmada pelos comentários ad MMK 24.8.

No que diz respeito à verdade ordinária do mundo (loka-saṃvṛti-satya), por exemplo, Bhāviveka explica que ela equivale à dimensão mundana (loka-vyavahāra), isto é: "«Entities such as form, etc., arise, stay and pass away», «Devadatta goes», «Vasumitra eats», «Somadatta meditates», «Brahmadatta achieves liberation»".31 31 PrPr, trad. Uryuzu (1971, p. 33). Portanto, segundo o autor do PrPr, a verdade convencional não é nada mais do que a visão da realidade como uma pluralidade de pessoas, coisas ou até elementos transfenômicos (como os 'agregados', aos quais Bhāviveka alude) dotados de consistência substancial, individualidade e identidade.

A leitura proposta por Candrakīrti é mais complexa e articulada, mas também em completa sintonia com a leitura das duas verdades aqui defendida:

Saṃvṛti é, literalmente, o fato de cobrir todas as coisas. É, portanto, a nesciência, que se chama obscurecimento, pois esconde completamente a verdadeira natureza das coisas (padārtha-tattva). Ou [também] saṃvṛti significa «apoio mútuo» (paraspara-saṃbhavanam), pois essa é uma conexão (samāśrayeṇa) em dependência recíproca (anyonya). Ou ainda saṃvṛti significa convenção (saṃketo), prática mundana; essa última, ademais, se define como significante e significado (abhidhāna-abhideya), conhecimento e objeto de conhecimento (jñāna-jñeya) etc. A verdade mundana de superfície é a verdade segundo a convenção mundana.32 32 samantādvaraṇaṃ saṃvṛtiḥ | ajñānaṃ hi samantāt-sarva-padārthatattva-avacchādanāt-saṃvṛtyucyate | parasparasaṃbhavanaṃ vā saṃvṛtir-anyonya-samāśrayeṇa-ityarthaḥ | atha vā saṃvṛtiḥ saṃketo lokavyavahāra ityarthaḥ | as cābhidhānābhideya-jñānajñeyādi-lakṣaṇaḥ || loke saṃvṛtir-lokasaṃvṛtiḥ, PP 492.10-493.1.

A noção de saṃvṛti-satya, portanto, apresenta três aspectos: (1) cobertura e obscurecimento da verdade suprema; (2) dependência recíproca; (3) visão mundana convencional.33 33 Em PP 493.5-6, Candrakīrti, ao concluir sua explicação da verdade ordinária, mantém apenas essa terceira acepção, sugerindo que é esse o sentido mais importante de saṃvṛti-satya: a concepção das coisas nos termos de "significante e significado, conhecimento e objeto de conhecimento". Deste modo, a visão ordinária - que, conforme explica o segundo aspecto, surge a partir da oposição recíproca de contrapartes conceituais - é dicotômica (nos termos de "significante e significado, conhecimento e objeto de conhecimento, etc.") e impede (conforme o primeiro aspecto) a visão da realidade em si.34 34 Também o comentário AkB, em seu estilo conciso, confirma a interpretação de saṃvṛti-satya como visão epistêmica mundana: "a verdade convencional é a verdade do ofuscamento (saṃvṛteḥ), que consiste na crença - devida à incapacidade de entender (anadhigamāt) o erro (viparyasa) mundano - de que a visão (darśanaṃ) do surgimento de todos os dharma seja real (tattva)" (laukika-viparyasa-anadhigamāt sarva-dharma-utpāda-darśanaṃ yat-tat[t]vaṃ saṃvṛteḥ saṃvṛtti [sic]-satyam) (Pandeya, 1989, p. 195).

Uma possível objeção, à qual os dois comentadores de Nāgārjuna sentem a necessidade de responder, torna ainda mais inequívoca sua interpretação da verdade convencional como plano cognitivo ordinário. A questão é se é oportuno chamar de 'verdade' (satya) uma dimensão epistêmica que, de fato, oculta a verdade suprema.35 35 A possibilidade de uma objeção desse tipo não é apenas teórica. Por exemplo, alguns séculos depois de Nāgārjuna, o mīmāṃsaka Kumārila Bhaṭṭa, ao criticar o sistema mādhyamika, pergunta-se: "there can be no reality in «saṃvṛti» (Falsity); and as such how can it be a form of reality? If it is reality, how can it be «saṃvṛti»? If it is false, how can it be real?" Ślokavārttika, V.3.6, trad. Jha (1983, pp. 119-120). Bhāviveka, portanto, após ter elencados seus exemplos de 'verdade ordinária', observa sinteticamente: "All these are not false[,] because they are worldly conventional. That being the case, that is the worldly conventional truth".36 36 PrPr, trad. Uryuzu (1971, p. 33). Acrescentei (entre colchetes) a primeira vírgula para tornar a frase mais inteligível. Candrakīrti, por seu lado, explica que o conceito de verdade ordinária deve ser concebido como tal, não em absoluto, mas apenas com relação ao que ordinariamente consideramos falso: por exemplo, a visão alterada de um doente.37 37 Cf. PP 493.1-5. Ambos os autores, em outras obras, aprofundarão essa diferença entre verdade ordinária verdadeira e falsa.38 38 Cf. Ferraro (prelo: parte 2, Cap. 2, seção: Características e especificidades da verdade ordinária).

A explicação da noção de saṃvṛti proporcionada pelos comentadores de Nāgārjuna não é de forma alguma anômala ou divergente do uso dessa expressão que encontramos na literatura budista (canônica39 39 Por exemplo, em SN V.10.6, a monja Vajirā afirma que "Como quando, juntando as partes, usa-se a palavra «carruagem», assim quando há os agregados (khandha) é convenção (sammuti) dizer «ente»". e paracanônica) que precede as MMK. Por exemplo, nas MP - cuja parte inicial, parecida com o incipit de MMK 24, sugere que Nāgārjuna possa ter sido inspirado por essa obra40 40 Cf. Ferraro (2011). - encontramos uma afirmação como: "[frases como] «isto sou eu», «isto é meu» são apenas convenções (sammuti), não realidade última (na paramatto)".41 41 Sammuti [...] esā aha'nti 'mamā' ti, MP. Os autores que, como Machado, querem oferecer uma interpretação do uso de saṃvṛti-satya em Nāgārjuna diferente daquela de "visão ordinária" ou "abordagem epistêmica centrada nas categorias da substância e da identidade", deverão confrontar-se, portanto, muito mais que com a leitura dessa noção proposta por mim, com sua definição canônica, com sua explicação por parte dos comentadores indianos de Nāgārjuna e, por fim, com a própria crítica desse conceito avançada pelos adversários não budistas do Madhyamaka (cf. nota de rodapé 35).

Passando à explicação que Bhāviveka e Candrakīrti oferecem de paramārtha-satya, o primeiro afirma que: "Paramārtha means (1) the real (artha) as well as the ultimate (parama). Thus it is the absolute. And (2) it is the object of the highest knowledge without false discrimination [...]. The truth (tattva) has characteristics such as «not dependent on others, etc.»".42 42 PrPr, trad. Uryuzu (1971, p. 33-34). Independentemente das escolhas terminológicas de Uryuzu para sua tradução,43 43 São discutíveis, a meu ver, as versões de paramārtha como 'absolute', de artha como 'real' e de tattva como 'truth'. observamos que Bhāviveka considera a 'verdade suprema' como equivalente a tattva (na citação «not dependent on others, etc.» podemos reconhecer o incipit de MMK 18.9, que descreve apofaticamente os aspectos do tattva ou 'realidade em si') e, portanto, como um plano de conhecimento supremo que é possível alcançar. Candrakīrti confirma fielmente essa leitura: paramārtha-satya equivale aos termos dharmatā, nirvāṇa e tattva que Nāgārjuna apresentou nas estrofes 7 e 9 de MMK 18 (ambas citadas por Candrakīrti44 44 Cf. PP 493.8-9 e 13-14. ).45 45 Para mais detalhes sobre paramārtha-satya e sua relação com a terminologia budista que se refere aos níveis mais altos de realização cognitiva e espiritual, reenvio a Ferraro (prelo: parte 2, Cap. 6, seção: Paramārtha-satya como suprema realização cognitiva).

Inteligências múltiplas e didática diferenciada

Tendo alcançado uma definição suficientemente clara e textualmente fundamentada das 2V, é necessário agora entender a razão pela qual Nāgārjuna recorre a essa doutrina, justamente, em resposta às críticas de MMK 24.1-6.

Nesses versos, o oponente contrasta a doutrina das QNV (e seus corolários) com o ensinamento mādhyamika-prajñāparāmita da vacuidade. Isto é, (1) um discurso que fala de um sujeito individual que sofre por uma série de causas específicas, e que, seguindo um determinado caminho, pode obter sua própria libertação; e (2) uma concepção que assevera a inexistência de sujeitos e objetos que possam ser identificados. É justamente diante dessa aparente discrepância lógica que Nāgārjuna declara que 'o ensinamento (deśanā) do Dharma, por parte dos despertos, baseia-se (samupāśritya) em dois diferentes planos epistêmicos'. O sentido mais imediato e - conforme uma lógica 'occamiana' - mais 'econômico' da réplica de Nāgārjuna é que a doutrina das QNV se baseia na verdade convencional (Bhāviveka, em seus exemplos de verdade convencional, propunha explicitamente: "Fulano obtém a libertação"), enquanto a vacuidade se funda em uma experiência epistêmica depurada das 'disfunções cognitivas' que - igualmente aos mosquitos do afetado pelo PVD - disturbam a visão do homem ordinário.

O aspecto crucial a ser reconhecido na discussão inicial de MMK 24 é, portanto, que não se trata da contraposição entre doutrinas,46 46 Machado interpreta as 2V como, de fato, duas teses sobre a realidade: saṃvṛti-satya é uma verdade que "diz respeito à existência convencional das coisas", enquanto a verdade suprema "diz respeito à ausência de essência das mesmas" (Machado, 2015). Essas duas teses se oporiam à concepção (do oponente) das coisas como 'não-vazias': "enquanto [o oponente] afirma que, se tudo for vazio, as QNV não poderiam existir, Nāgārjuna afirma, pelo contrário, que é compreender as QNV como dotadas de substância que tornaria insustentável, contraditória e inconcebível a sua existência" (Machado, 2015). Além da já relevada incompatibilidade com a explicação das estâncias 8 e 9 proposta pelos comentadores das MMK, essa leitura - que atribui a Nāgārjuna uma específica posição ('as coisas existem apenas convencionalmente e inexistem essencialmente') - deveria justificar-se com relação às passagens nas quais o autor das MMK declara não ter nenhuma posição e pretende banir todas as dṛṣṭi, isto é, as definições da verdade suprema. mas sim entre tipologias de doutrinas budistas estruturadas em forma discrepante. A questão, de fato, é mais ampla do que a divergência entre um pensador mahāyāna que defende a vacuidade e um oponente não mahāyāna que defende a versão tradicional das QNV. Com efeito, encontramos o mesmo tipo de divergência já dentro da palavra do Buda: é suficiente focarmos nos dois primeiros sermões que a tradição lhe atribui - o Dhammacakkapavattana-sutta (SN.Mahāvagga 12.2.1) e o Anattālakkhana-sutta (SN.Kandhavagga 1.6.7) - para deparar com a mesma 'contradição' que o oponente de Nāgārjuna releva entre as QNV e a doutrina da vacuidade: o primeiro sermão expõe, justamente, as QNV em termos 'pessoais' e substanciais, ao passo que o segundo nega a possibilidade de qualquer experiência do si pessoal (ātman). Perante incongruências desse tipo, Nāgārjuna explica que os buddhas diversificam seus ensinamentos com base no registro epistemológico por eles respeitado: o registro do homem comum, base dos ensinamentos que falam de sujeitos individuais e conquistas pessoais; e o registro dos despertos, que fundamenta a doutrina da vacuidade.

Bhāviveka e Candrakīrti, especialmente em seus comentários à estrofe 9 (que ressalta a importância de distinguir entre as duas verdades),47 47 MMK 24.9: "Aqueles que não entendem a distinção (vibhāgaṃ) entre essas duas verdades, não entendem a verdade (tattva) [presente] no ensinamento (śāsane) profundo (gambhīre) do Buda" (ye 'nayor na vijānanti vibhāgaṃ satyayor dvayoḥ | te tattvaṃ na vijānanti gambhīre buddhaśāsane ||). Mais um ponto que Machado deveria explicar é por que seria tão importante compreender a diferença entre duas verdades que significassem, respectivamente, (1) "as coisas existem apenas convencionalmente" e (2) "as coisas inexistem essencialmente": com efeito, do ponto de vista lógico, essas duas proposições são indistinguíveis (dizer que 'as coisas existem desprovidas de svabhāva' é a mesma coisa do que dizer que 'as coisas não existem dotadas de svabhāva'). A diferença "de perspectiva" apontada por Machado (2015), portanto, deve ser apenas 'terminológica': as duas verdades significam a mesma coisa, mas a expressam em termos diferentes. É difícil aceitar que a compreensão do "profundo ensinamento do Buda" possa depender da compreensão de uma distinção que parece tão pouco relevante. confirmam inequivocamente que a discussão é aqui entre diferentes tipologias de ensinamentos (e não, especificamente, sobre conteúdos). O autor do PrPr, por exemplo, observa que há pessoas que, "when taught that there are, in the conventional, morality-to-be-observed and meditation-to-be-cultivated and accordingly entities arise, stay and perish, think that it is so also in the absolute".48 48 PrPr, trad. Uryuzu (1971, p. 35). Em outras palavras, é necessário entender que ensinamentos (sobre a ética ou as práticas meditativas) válidos em determinadas circunstâncias podem não valer em absoluto; logo, em outras situações pedagógicas, podem ser contraditos (por doutrinas fundamentadas em outro plano epistêmico).

O comento de Candrakīrti é ainda mais esclarecedor. Ele apresenta49 49 PP 494.6-7. uma lista de ensinamentos canônicos 'clássicos'50 50 As primeiras três doutrinas citadas são confutadas por Nāgārjuna, respectivamente, nos capítulos 4, 5 e 3 das MMK. - "a doutrina dos agregados (skandha), dos elementos (dhatu), dos campos da consciência (āyatana), das nobres verdades e a da cooriginação dependente"51 51 O pratītyasamutpāda ao qual Candrakīrti aqui se refere deve ser o 'canônico', concebido como uma série de elos ligados entre eles causalmente; não, portanto, a versão nagarjuniana (equivalente - como defende MMK 24.18 - à própria vacuidade) dessa doutrina. - que "não se referem à verdade suprema":52 52 aparamārthayā, PP 494.7. com efeito, eles compartilham uma concepção substancialista das coisas. Portanto, por basear-se na verdade convencional, eles oferecem uma descrição das coisas ultimamente falsa. Cabe, portanto, a pergunta sobre a razão pela qual o Buda as ensinou: "Qual é seu propósito"53 53 tatkim [...] prayojanam (ibidem). (prayojana)? "O que não é real (atattvaṃ), com efeito, deve ser rejeitado. E o que deve ser rejeitado, para que ensiná-lo?".54 54 atattvaṃ hi parityājyam yac-ca parityājyaṃ kiṃ tena-upadiṣṭena, PP 494.7-8.

A resposta a essas perguntas é contida, explica Candrakīrti, na estrofe 10.

Formação das asas e saída do ninho

MMK 24.10: Sem recurso (anāśritya) ao [sentido] convencional (vyavahāram), o sentido supremo (paramārtha) não é ensinado (na deśyate). E sem ter realizado (anāgamya) o sentido supremo, o nirvāṇa não é alcançado.55 55 vyavahāram anāśritya paramārtho na deśyate | paramārtham anāgamya nirvāṇaṃ nâdhigamyate ||

A resposta à pergunta precedente - sobre o sentido dos ensinamentos que não se referem à verdade suprema - é, simplesmente, que eles, mesmo não sendo ultimamente verdadeiros, são, porém, propedêuticos aos ensinamentos mais elevados, logo, ao alcance dos objetivos soteriológicos mais altos. Em outras palavras, o sentido dos ensinamentos que respeitam a verdade ordinária é um sentido formativo. Isso nos conduz na dimensão mais especificamente 'pedagógica' do magistério dos buddhas: os discípulos diferenciam-se entre eles devido a seu nível intelectivo e espiritual, dos anos e da qualidade de prática, das suas atitudes éticas etc. É, portanto, razoável que a gama dos ensinamentos apresentados pelos mestres seja diferenciada. Abordar um novato com ensinamentos tão 'contundentes' como o da vacuidade ou o do 'não si' criaria resistência, repulsão ou mal-entendidos.

Várias passagens da literatura mādhyamika (e mahāyāna) pós-nagarjuniana podem ser citadas para ilustrar a preocupação pedagógica dos mestres budistas. Por exemplo, Candrakīrti ressalta que o ensinamento da vacuidade dado a quem ainda não esteja pronto para recebê-lo pode ser prejudicial:56 56 A vacuidade, declarará a estância 24.11, é um ensinamento não apenas 'difícil', como também 'perigoso': quando "mal-entendida (durdṛṣtā)" ela "perverte o homem pouco inteligente, tal como uma cobra "mal agarrada (durgṛhīto) ou uma fórmula mágica mal pronunciada (duṣprasādhitā)". com efeito, sendo ainda forte a tendência a hipostasiar a palavra do mestre e a apegar-se a ela, o novato tornaria a vacuidade uma dṛṣṭi e se apegaria a ela: "the intellectually inept might cling to the idea, «this world is void»";57 57 YṢv, trad. Loizzo (2007, p. 182). dessa forma, essa pessoa "may be destroyed, like a bird with undeveloped wing feathers thrown from its nest".58 58 Ibidem. Āryadeva, por seu lado, observa que o bom mestre, "must at first do and say only that which will be agreeable to the [disciple]. For there is no way to turn into a true vessel of the Good Dharma a person that has been antagonized [by the teaching]".59 59 Catuḥśatakaśāstrakārikā 110, trad. Gómez (2000), p. 127 (Gómez considera essa estância a número 60).

Machado julga que a interpretação pedagógica aqui defendida encontra na estrofe 10 um sério obstáculo: com efeito, ele se pergunta de que maneira "ter uma compreensão substancialista das coisas" possa ser propedêutico a "atingir uma compreensão não-substancialista das mesmas".60 60 Machado (2015). A pergunta correta, entretanto, se quer ser uma crítica da minha leitura, deveria ser: "em que maneira ensinamentos baseados na verdade ordinária podem ser propedêuticos a doutrinas não substancialistas?".

Posto que uma pergunta desse tipo deveria ser encaminhada, primeiramente, ao próprio Buda - o qual, como dito, em seu primeiro sermão respeita a categoria do si individual, ao passo que no segundo a renega -, as possíveis respostas procedentes são, de qualquer forma, numerosas. Uma, por exemplo, pode ser deduzida pelos comentários precedentes: os ensinamentos mais profundos poderão ser recebidos somente depois da correção dos comportamentos errados; de fato, observava Candrakīrti, o discípulo que não tenha suficientemente trabalhado sobre o mecanismo do 'apego' pode reificar o ensinamento da vacuidade, e apegar-se a ele. Mas os ensinamentos 'práticos' (indispensáveis para modificar o próprio comportamento), conforme Bhāviveka sugeria, são baseados na verdade convencional.

Outra resposta, mais imediata, é que o 'apelo' de um discurso que começa pela reflexão sobre o sofrimento pessoal (e sobre a possibilidade de superá-lo) - pensando na 'psicologia média' do indivíduo que busca algum tipo de caminho espiritual (isto é, no 'público-alvo' para o qual o discurso budista se direciona em primeiro lugar) - é sem dúvida superior ao que defende a inexistência do eu e a vacuidade de qualquer fenômeno.

Mais uma resposta convincente pode ser que, entre os discursos baseados em saṃvṛti-satya, alguns, de fato, visam a uma direção de "desubstancialização progressiva":61 61 Machado (2015). com efeito, todos aqueles ensinamentos do Buda que - embora ainda embasados na categoria da substância - 'dissecam' o fenomênico, reduzindo-o a suas partes componentes,62 62 Por exemplo, as doutrinas citadas nas PP ad MMK 24.9; mas também as listas (mātṛkā) de dharma elaboradas pelo Buda e sucessivamente ampliadas e sistematizadas (bem como, segundo os mādhyamikas, reificadas e absolutizadas) pelas escolas ābhidharmikas. podem ser considerados preparatórios à recepção das doutrinas que, mais diretamente, buscam a completa superação da categoria da substância.

A circunstância de que nem Nāgārjuna, nem os comentários definem claramente o sentido da propedeuticidade entre os dois tipos de ensinamento dos buddhas63 63 A concisão de Bhāviveka e Candrakīrti sugere que eles acreditam que o leitor, baseando-se apenas nas explicações dos versos 24.8 e 24.9 por eles fornecidas, não necessite de muitas outras palavras para entender a estância 24.10 (que, portanto, deve ser lida em plena continuidade com as glosas anteriores). deixou mais de um intérprete (que, evidentemente, desconsidera a leitura que Bhāviveka e Candrakīrti ofereceram sobre as estrofes 8 e 9) pensar que a relação entre plano convencional e supremo consista na capacidade de o primeiro expressar o segundo. Com efeito, a forma verbal - deśyate64 64 Presente passivo de √diś: "to point out, show, exhibit [...]; to promote, effect, accomplish [...]; to teach, communicate, tell, inform", Monier-Williams (1986). - utilizada por Nāgārjuna no pāda b da estrofe, não exclui a priori essa possibilidade. Em outro escrito, examinei mais detalhadamente essa concepção (que leva a pensar que exista uma dimensão da verdade suprema que pode ser verbalizada, enquanto outra dimensão ficaria transconceitual e transdiscursiva),65 65 Para uma análise mais detalhada da hipótese de uma verdade suprema bidimensional, reenvio a Ferraro (prelo: parte I, Cap. 2, seção "Paramārtha como existência relativa" e Cap. 3). a qual contrasta radicalmente com a interpretação das duas verdades aqui defendida e, portanto, com os raciocínios e as explicações que Bhāviveka e Candrakīrti forneceram em seus comentários às estrofes precedentes.

Nossos dois comentadores dedicam poucas linhas a MMK 24.10: o primeiro afirma que "that which is quite beyond the discrimination in the absolute cannot be understood without relying upon something";66 66 PrPr, trad. Uryuzu (1971, p. 35). o segundo explica que, "inicialmente (ādau), o convencional (saṃvṛtir) deve ser necessariamente (avaśyam) admitido (abhyupeya) assim como ele é (yathāvasthitā), pois ele é um meio (upāyatvād) de obtenção do nirvāṇa, como (iva) um recipiente (bhājanam) para quem deseja água".67 67 tasmān-nirvāṇa-adhigama-upāyatvād-avaśyam-eva yathāvasthitā saṃvṛtirādāvevābhyupeyā bhājanam-iva salila-arthineti, PP 494.14-15. Essa última imagem (que lembra a de Āryadeva citada acima, que falava da necessidade de o discípulo tornar-se um bom vessel para o Dharma), mesmo podendo significar que saṃvṛti 'dê voz' a paramārtha, condiz igualmente bem com a ideia de que, para que a 'água' da doutrina da vacuidade seja corretamente recebida, é necessário que a estrutura psicointelectiva do discípulo budista seja razoavelmente desenvolvida; e isso torna imprescindível o papel formativo (nos planos psicológico, ético e filosófico) dos ensinamentos baseados na verdade convencional.68 68 Apesar de todas as razões contrárias à compreensão de saṃvṛti-satya como uma verbalização de paramārtha-satya, o comentário ChL ad MMK 24.10 é sem dúvida um ponto a favor: "The ultimate meaning is entirily dependent on words and expressions, and words and expressions are mundane and conventional. Therefore, without reliance on the conventional and the mundane, the ultimate meaning cannot be expounded", trad. Bocking (1993, p. 343). Que o plano supremo dependa inteiramente das palavras, e que por meio da verdade convencional possa ser expresso, é um ponto de vista que não tem confirmações nos textos mādhyamikas indianos. O próprio AkB, cuja versão tibetana, segundo Huntington (1995, p. 705), deriva da mesma fonte sânscrita traduzida pelo ChL (entretanto, diferenças tão evidentes como essa relativa à MMK 24.10 parecem provas contrárias a essa hipótese), apenas repete a estância (ao menos, assim consta na reconstrução de Pandeya, 1989, p. 196).

Conclusão

A leitura que os comentadores indianos de MMK 24 - com a exceção do autor do ChL (cf. nota 68) - nos oferecem da réplica de Nāgārjuna a seu adversário é bastante clara: não há contradição entre a doutrina das QNV e a da vacuidade, pois elas são incomensuráveis; com efeito, as bases epistêmicas sobre as quais as duas doutrinas se fundam são diferentes: respectivamente, a visão do homem ordinário e a dos iluminados. O Buda que fala das QNV em termos personalistas e substancialistas é, enfim, como um adulto que, em certos casos, narra histórias que respeitam a visão fantástica da criança; em outros momentos, entretanto, ele pode mudar de registro e contar coisas que, renegando aquelas fantasias, oferecem à criança um vislumbre (não uma descrição) da maneira como os adultos concebem o mundo. Quem ressaltar que o primeiro conto é contradito pelo segundo, receberia uma resposta parecida com aquela que Nāgārjuna dá no verso 8 de MMK 24.

Qualquer interpretação que não considere as 2V como as visões respectivamente do homem ordinário e dos buddhas, a não ser que pretenda descreditar o ponto de vista exegético de Bhāviveka e Candrakīrti, terá a difícil tarefa de conciliar sua leitura - além que com outras passagens cruciais da obra de Nāgārjuna - com as palavras e as imagens oferecidas por esses dois autores em seus comentários.

  • 1
    Não por acaso, há estudiosos contemporâneos que, de fato, renunciaram a buscar leituras 'consistentes' do pensamento de Nāgārjuna. Alguns - por exemplo, Robinson (1972)ROBINSON, R. H. "Did Nāgārjuna really refute all philosophical views?". Philosophy East and West, 22, pp. 325-331, 1972. ou Hayes (1994)HAYES, R. P. "Nāgārjuna's appeal". Journal of Indian Philosophy, 22.4, pp. 299-378, 1994. - acreditam que raciocínios cruciais do autor das MMK sejam viciados por equívocos e outras falácias lógicas; outros (cf. Deguchi, Garfield, Priest, 2008DEGUCHI, Y., GARFIELD, J. L., PRIEST, G. "The way of the dialetheist: Contradictions in Buddhism". Philosophy East and West, 58.3, pp. 395-402, 2008.) preferem oferecer uma leitura 'paraconsistente' ou 'dialeteista' do nosso autor, conforme a qual a presença de paradoxos e contradições em Nāgārjuna não exclui que seu pensamento seja, de alguma forma, cogente e admissível.
  • 2
    O ponto de vista exegético dos autores tibetanos (que não é verbatim, logo, não pode ser considerado um trabalho interpretativo tecnicamente 'comentarial'), como certeza importante, pode, entretanto, ser considerado menos 'vinculante' para uma interpretação 'filológica' da filosofia mādhyamika. Com efeito, reconhecidamente (cf. Eckel, 1987ECKEL, M. D. "Jñānagarbha's commentary on the distinction between the two truths". Albany: State University of New York Press, 1987., p. 9; Huntington, 2003, p. 68; Kragh, 2009), a abordagem tibetana do pensamento budista indiano - por exemplo, a inteira reconstrução (em termos de grub mtha' ou 'sistemas doutrinários') que a escola dGe lugs pa propõe da história do pensamento budista, bem como sua divisão do Madhyamaka indiano nas duas subescolas Svātantrika e Prāsaṅgika - responde a exigências muito mais 'escolásticas' e soteriológicas do que histórico-filológicas.
  • 3
    Cf. Ferraro (2013b)______. "Outlines of a Pedagogical Interpretation of Nāgārjuna's Two Truths Doctrine". Journal of Indian Philosophy, 41.5, pp. 563-590, 2013b.; Ferraro (2014)______. "Grasping snakes and touching elephants: a rejoinder to Garfield and Siderits". Journal of Indian Philosophy, 42.4, pp. 451-462, 2014.; Ferraro (prelo: parte 2).
  • 4
    Cf. Ferraro (2013a)______. "A criticism of M. Siderits and J. L. Garfield's 'semantic interpretation' of Nāgārjuna's theory of two truths". Journal of Indian Philosophy, 41.2, pp. 195-219, 2013a.; Ferraro (prelo: parte 1).
  • 5
    O comentário AkB - cujo sânscrito acessamos na reconstrução de Pandeya (1989)Akutobhayā. In: R. Pandeya. "The Madhyamakaśāstram of Nāgārjuna with the Commentaries [...] critically reconstructed". Delhi: Motilal Banarsidass, 1989. - dedica poucas linhas (cf. nota de rodapé 34) aos versos que mais nos interessam (a saber, MMK 24.8-10). Lembremos que o comentário (vṛtti) de Buddhapālita às MMK, a partir do capítulo 23, é praticamente idêntico - na versão tibetana a nossa disposição (consequentemente, na versão sanscrítica reconstruída por Pandeya) - ao AkB.
  • 6
    As estrofes de MMK 24 (e seus respectivos comentários) sucessivas à 11 dedicam-se à aplicação da doutrina da vacuidade às QNV e a seus corolários. O objetivo de Nāgārjuna é o de mostrar como a ausência de svabhāva nas nobres verdades, mesmo excluindo a possibilidade da sua existência última, é a condição imprescindível que permite sua existência convencional. Esse tipo de raciocínio (que diz respeito especialmente ao quarto e ao quinto pontos do elenco com o qual resumi minha interpretação), que ultrapassa os limites previstos para este estudo, foi por mim aprofundado nos escritos citados acima (especialmente, Ferraro, 2013b______. "Outlines of a Pedagogical Interpretation of Nāgārjuna's Two Truths Doctrine". Journal of Indian Philosophy, 41.5, pp. 563-590, 2013b., e prelo: parte 2).
  • 7
    Agradeço a Lucas Machado por ter possibilitado, ao enviar-me o preview do seu escrito, o diálogo entre nossas duas interpretações nas páginas deste mesmo número da Kriterion.
  • 8
    Naturalmente, a palavra dos comentadores - assim como praticamente qualquer outro fator (con)textual avulso dos outros - não deve ser tomada como o ponto de vista interpretativo definitivo para a leitura de nenhuma passagem das MMK. Bhāviveka e Candrakīrti distam quatro ou cinco séculos de Nāgārjuna e seu 'escrúpulo filológico' pode não ter sido afinado como o nosso. Portanto, com relação a uma ou outra explicação que eles fornecem de determinadas passagens nagarjunianas, quando elas se chocam com outros dados a nossa disposição ou quando se contradigam entre elas, é legítimo ser mais cautelosos para com eles. Contudo, quando - como é o caso da sua exegese de MMK 24 - as leituras dos mesmos comentadores sejam coerentes entre si e em sintonia com outros elementos da nossa investigação, sua confiabilidade aumenta drasticamente, reduzindo a consistência e a plausibilidade de qualquer ponto de vista exegético que as contradiga.
  • 9
    MMK 24.1: "Se tudo isto fosse vazio, não haveria [então] nem surgimento nem cessação. Isso implicaria, para ti, a não-existência das Quatro Nobres Verdades".
  • 10
    Os 'corolários' das QNV são as atividades meritórias mais diretamente conexas às nobres verdades (MMK 24.2); os frutos das mesmas atividades, as personalidades espirituais que "almejam" os frutos e aquelas que "residem" neles (MMK 24.3); a comunidade budista (saṃgha) e o Dharma do Buda (MMK 24.4); a própria possibilidade de tornar-se um buddha (MMK 24.5) e, finalmente, a lei do karman, a distinção entre ações boas e más e o próprio conjunto das atividades (vyavahāra) mundanas (MMK 24.6).
  • 11
    yathā māyā yathā svapno gandharvanagaraṃ yathā | tathôtpādas tathā sthānaṃ tathā bhaṅga udāhṛtam || Os Gandharva são Gênios celestes. 'Cidade de Gandharva' é a imagem que indica a miragem chamada de 'fata Morgana'. No mesmo patamar: MMK 17.31-32: "Como um mestre dotado de poder mágico cria um ser mágico (nirmitakaṃ), e esse, criado magicamente, cria por sua vez um outro ser mágico, assim o agente é parecido a um ser mágico e a ação por ele cumprida é como um segundo produto mágico (anyo nirmito) criado magicamente através de uma mágica" (yathā nirmitakaṃ śāstā nirmimītarddhisaṃpadā |nirmimītânyaṃ sa ca nirmitakaḥ punaḥ || tathā nirmitakākāraḥ kartā yat karma tatkṛtam | tadyathā nirmitenânyo nirmito nirmitas tathā ||) ou ŚS 66: "Karma-formations are like the city of gandharvas, illusions, mirages, nets of hair, foam, bubbles, phantoms, dreams, and wheels made with a firebrand", trad. Lindtner (1997, p. 117)______. Śūnyatāsaptati. Tradução de Ch. Lindtner. In: Ch. Lindtner. "Master of Wisdom. Writings of theBuddhist Master Nāgārjuna. Translations and Studies". Cazadero, California: Dharma Publishing, 1997. pp. 95-119..
  • 12
    tasmāc Chāriputra śūnyatāyāṃ [...] na duḥkha-samudaya-nirodha-mārga, Hṛdaya-sūtra ("Sūtra do Coração", p. 151).
  • 13
    tadā yacchūnyaṃ tan-nāsti yacca nāsti tad-avidyamānatvād-vandhyāputravan-naiva-utpadyate na cāpi nirudhyate iti na kasya cit-padārthasya udayo vyayaśca, PP 475.8-9.
  • 14
    Cf. Uryuzu (1971, p. 29)BHĀVIVEKA. Prajñāpradīpa, cap. 24. Tradução de R. Uryuzu. In: The research Bulletin of the Faculty of General Education, The Faculty of General Education, Kinki Unversity, Osaka, 2.2, pp. 15-56, 1971..
  • 15
    Cf., por exemplo, o Brahma-jāla-sutta ("Discurso da rede de Brahma", DN I.1).
  • 16
    Para uma reconstrução da história da interpretação niilística do pensamento de Nāgārjuna, cf. Ferraro (prelo: parte 1, Cap. 1).
  • 17
    atra brūmaḥ śūnyatāyāṃ na tvaṃ vetsi prayojanam | śūnyatāṃ śūnyatārthaṃ ca tata evaṃ vihanyase ||
  • 18
    svavikalpanayaiva nāstitvaṃ śūnyatārtha ityevaṃ viparītam-adhyāropya, PP 490.8.
  • 19
    BPV, trad. Ames (1986, p. 330)BUDDHAPĀLITA. Buddhapālita-vṛtti (Antologia). Tradução de W.Ames. In: W. Ames. "Buddhapālita exposition of the Madhyamaka". Journal of Indian Philosophy, 14, pp. 313-348, 1986..
  • 20
    Cf. PP 368.16.
  • 21
    evam-avidyā-timira-upahata-mati-nayana-tayā bālā niḥsvabhāvaṃ bhāvajātaṃ sasvabhāvatvena-abhiniviṣṭā, PP 261.3-4.
  • 22
    O PVD (Posteriour Vitreous Detachment) é a disfunção oftálmica cujos sintomas (muito mais do que aqueles da catarata, da oftalmia ou de outras possíveis patologias citadas pelos estudiosos da escola Madhyamaka) mais precisamente correspondem ao que é chamado timira por Candrakīrti. Agradeço à doutora Juliana Reis Guimarães pelo 'diagnóstico'.
  • 23
    yas-tu taimirika-upalabdha-keśeṣu-iva vitaimiriko na kiṃ cid-upalabhate sa nāstīti bruvan kiṃ cin-nāstīti brūyāt pratiṣedhya-abhāvāt | viparyastānāṃ tu mithya-abhiniveśa-nivṛtty-artham-ataimirikā iva vayaṃ brūmo na santi sarva-bhāvāḥ iti, PP 273.14-274.3.
  • 24
    PrPr, trad. Nietupski (1996, pp. 123-124)______. Prajñāpradīpa, cap. 13. Tradução de P. Nietupski. "The examination of conditioned entities and the examination of reality". Journal of Indian Philosophy, 24, pp. 103-143, 1996..
  • 25
    niḥsvabhāvaḥ sarvabhāvā ityetatkhalu vacanaṃ na niḥsvabhāvāneva sarvabhāvān karoti | kiṃtvasati svabhāve bhāvā niḥsvabhāvā iti jñāpayati, VVV 80.
  • 26
    Kaścid-brūyād-avidyamāna-gṛhe devadatte 'sti gṛhe devadatta iti | tatrainaṃ kaścit-pratibrūyān nāstīti | na tad-vacanaṃ devadattasya-asadbhāvaṃ karoti kiṃtu jñāpayati kevalam-asaṃbhavaṃ gṛhedevadattasya, VVV 80-81.
  • 27
    Cf. Ferraro (prelo: parte 1, Cap. 1).
  • 28
    dve satye samupāśritya buddhānāṃ dharmadeśanā | lokasaṃvṛtisatyaṃ ca satyaṃ ca paramārthataḥ.
  • 29
    Um exemplo 'padrão' do significado de svabhāva em Nāgārjuna, segundo Candrakīrti (PP ad MMK 15.2, p. 260.5-8), é o 'calor' com relação ao fogo. O calor, com efeito, pode pertencer - de uma forma contingente (isto é, como 'natureza extrínseca', parabhāva) - também a outros elementos, por exemplo, à agua; no entanto, como 'natureza própria', 'intrínseca' ou 'essencial', ele caracteriza apenas o fogo, fazendo com que o fogo seja o que é.
  • 30
    pañcopādāna skandhāḥ [...] pīḍā-ātmakatvena duḥkham-ityucyate, PP 475.11-13. O termo ātman ou, em outros casos, svarūpa são utilizados por Candrakīrti como sinônimos de svabhāva.
  • 31
    PrPr, trad. Uryuzu (1971, p. 33)BHĀVIVEKA. Prajñāpradīpa, cap. 24. Tradução de R. Uryuzu. In: The research Bulletin of the Faculty of General Education, The Faculty of General Education, Kinki Unversity, Osaka, 2.2, pp. 15-56, 1971..
  • 32
    samantādvaraṇaṃ saṃvṛtiḥ | ajñānaṃ hi samantāt-sarva-padārthatattva-avacchādanāt-saṃvṛtyucyate | parasparasaṃbhavanaṃ vā saṃvṛtir-anyonya-samāśrayeṇa-ityarthaḥ | atha vā saṃvṛtiḥ saṃketo lokavyavahāra ityarthaḥ | as cābhidhānābhideya-jñānajñeyādi-lakṣaṇaḥ || loke saṃvṛtir-lokasaṃvṛtiḥ, PP 492.10-493.1.
  • 33
    Em PP 493.5-6, Candrakīrti, ao concluir sua explicação da verdade ordinária, mantém apenas essa terceira acepção, sugerindo que é esse o sentido mais importante de saṃvṛti-satya: a concepção das coisas nos termos de "significante e significado, conhecimento e objeto de conhecimento".
  • 34
    Também o comentário AkB, em seu estilo conciso, confirma a interpretação de saṃvṛti-satya como visão epistêmica mundana: "a verdade convencional é a verdade do ofuscamento (saṃvṛteḥ), que consiste na crença - devida à incapacidade de entender (anadhigamāt) o erro (viparyasa) mundano - de que a visão (darśanaṃ) do surgimento de todos os dharma seja real (tattva)" (laukika-viparyasa-anadhigamāt sarva-dharma-utpāda-darśanaṃ yat-tat[t]vaṃ saṃvṛteḥ saṃvṛtti [sic]-satyam) (Pandeya, 1989Akutobhayā. In: R. Pandeya. "The Madhyamakaśāstram of Nāgārjuna with the Commentaries [...] critically reconstructed". Delhi: Motilal Banarsidass, 1989., p. 195).
  • 35
    A possibilidade de uma objeção desse tipo não é apenas teórica. Por exemplo, alguns séculos depois de Nāgārjuna, o mīmāṃsaka Kumārila Bhaṭṭa, ao criticar o sistema mādhyamika, pergunta-se: "there can be no reality in «saṃvṛti» (Falsity); and as such how can it be a form of reality? If it is reality, how can it be «saṃvṛti»? If it is false, how can it be real?" Ślokavārttika, V.3.6, trad. Jha (1983, pp. 119-120).
  • 36
    PrPr, trad. Uryuzu (1971, p. 33)BHĀVIVEKA. Prajñāpradīpa, cap. 24. Tradução de R. Uryuzu. In: The research Bulletin of the Faculty of General Education, The Faculty of General Education, Kinki Unversity, Osaka, 2.2, pp. 15-56, 1971.. Acrescentei (entre colchetes) a primeira vírgula para tornar a frase mais inteligível.
  • 37
    Cf. PP 493.1-5.
  • 38
    Cf. Ferraro (prelo: parte 2, Cap. 2, seção: Características e especificidades da verdade ordinária).
  • 39
    Por exemplo, em SN V.10.6, a monja Vajirā afirma que "Como quando, juntando as partes, usa-se a palavra «carruagem», assim quando há os agregados (khandha) é convenção (sammuti) dizer «ente»".
  • 40
    Cf. Ferraro (2011)FERRARO, G. "Alguns momentos do debate sobre as teorias do 'não-si' e das 'duas verdades' na história da filosofia budista". Kriterion, Nr. 123, pp. 7-29, 2011..
  • 41
    Sammuti [...] esā aha'nti 'mamā' ti, MP.
  • 42
    PrPr, trad. Uryuzu (1971, p. 33-34)BHĀVIVEKA. Prajñāpradīpa, cap. 24. Tradução de R. Uryuzu. In: The research Bulletin of the Faculty of General Education, The Faculty of General Education, Kinki Unversity, Osaka, 2.2, pp. 15-56, 1971..
  • 43
    São discutíveis, a meu ver, as versões de paramārtha como 'absolute', de artha como 'real' e de tattva como 'truth'.
  • 44
    Cf. PP 493.8-9 e 13-14.
  • 45
    Para mais detalhes sobre paramārtha-satya e sua relação com a terminologia budista que se refere aos níveis mais altos de realização cognitiva e espiritual, reenvio a Ferraro (prelo: parte 2, Cap. 6, seção: Paramārtha-satya como suprema realização cognitiva).
  • 46
    Machado interpreta as 2V como, de fato, duas teses sobre a realidade: saṃvṛti-satya é uma verdade que "diz respeito à existência convencional das coisas", enquanto a verdade suprema "diz respeito à ausência de essência das mesmas" (Machado, 2015). Essas duas teses se oporiam à concepção (do oponente) das coisas como 'não-vazias': "enquanto [o oponente] afirma que, se tudo for vazio, as QNV não poderiam existir, Nāgārjuna afirma, pelo contrário, que é compreender as QNV como dotadas de substância que tornaria insustentável, contraditória e inconcebível a sua existência" (Machado, 2015). Além da já relevada incompatibilidade com a explicação das estâncias 8 e 9 proposta pelos comentadores das MMK, essa leitura - que atribui a Nāgārjuna uma específica posição ('as coisas existem apenas convencionalmente e inexistem essencialmente') - deveria justificar-se com relação às passagens nas quais o autor das MMK declara não ter nenhuma posição e pretende banir todas as dṛṣṭi, isto é, as definições da verdade suprema.
  • 47
    MMK 24.9: "Aqueles que não entendem a distinção (vibhāgaṃ) entre essas duas verdades, não entendem a verdade (tattva) [presente] no ensinamento (śāsane) profundo (gambhīre) do Buda" (ye 'nayor na vijānanti vibhāgaṃ satyayor dvayoḥ | te tattvaṃ na vijānanti gambhīre buddhaśāsane ||). Mais um ponto que Machado deveria explicar é por que seria tão importante compreender a diferença entre duas verdades que significassem, respectivamente, (1) "as coisas existem apenas convencionalmente" e (2) "as coisas inexistem essencialmente": com efeito, do ponto de vista lógico, essas duas proposições são indistinguíveis (dizer que 'as coisas existem desprovidas de svabhāva' é a mesma coisa do que dizer que 'as coisas não existem dotadas de svabhāva'). A diferença "de perspectiva" apontada por Machado (2015), portanto, deve ser apenas 'terminológica': as duas verdades significam a mesma coisa, mas a expressam em termos diferentes. É difícil aceitar que a compreensão do "profundo ensinamento do Buda" possa depender da compreensão de uma distinção que parece tão pouco relevante.
  • 48
    PrPr, trad. Uryuzu (1971, p. 35)BHĀVIVEKA. Prajñāpradīpa, cap. 24. Tradução de R. Uryuzu. In: The research Bulletin of the Faculty of General Education, The Faculty of General Education, Kinki Unversity, Osaka, 2.2, pp. 15-56, 1971..
  • 49
    PP 494.6-7.
  • 50
    As primeiras três doutrinas citadas são confutadas por Nāgārjuna, respectivamente, nos capítulos 4, 5 e 3 das MMK.
  • 51
    O pratītyasamutpāda ao qual Candrakīrti aqui se refere deve ser o 'canônico', concebido como uma série de elos ligados entre eles causalmente; não, portanto, a versão nagarjuniana (equivalente - como defende MMK 24.18 - à própria vacuidade) dessa doutrina.
  • 52
    aparamārthayā, PP 494.7.
  • 53
    tatkim [...] prayojanam (ibidem).
  • 54
    atattvaṃ hi parityājyam yac-ca parityājyaṃ kiṃ tena-upadiṣṭena, PP 494.7-8.
  • 55
    vyavahāram anāśritya paramārtho na deśyate | paramārtham anāgamya nirvāṇaṃ nâdhigamyate ||
  • 56
    A vacuidade, declarará a estância 24.11, é um ensinamento não apenas 'difícil', como também 'perigoso': quando "mal-entendida (durdṛṣtā)" ela "perverte o homem pouco inteligente, tal como uma cobra "mal agarrada (durgṛhīto) ou uma fórmula mágica mal pronunciada (duṣprasādhitā)".
  • 57
    YṢv, trad. Loizzo (2007, p. 182)______. Yuktiṣaṣṭikā. Tradução de J. Loizzo. In: J. Loizzo. "Nāgārjuna's Reason Sixty Yuktiṣaṣṭikā with Candrakīrti's Commentary Yuktiṣaṣṭikāvṛtti". New York: Columbia University Press, 2007..
  • 58
    Ibidem.
  • 59
    Catuḥśatakaśāstrakārikā 110, trad. Gómez (2000), p. 127 (Gómez considera essa estância a número 60).
  • 60
    Machado (2015).
  • 61
    Machado (2015).
  • 62
    Por exemplo, as doutrinas citadas nas PP ad MMK 24.9; mas também as listas (mātṛkā) de dharma elaboradas pelo Buda e sucessivamente ampliadas e sistematizadas (bem como, segundo os mādhyamikas, reificadas e absolutizadas) pelas escolas ābhidharmikas.
  • 63
    A concisão de Bhāviveka e Candrakīrti sugere que eles acreditam que o leitor, baseando-se apenas nas explicações dos versos 24.8 e 24.9 por eles fornecidas, não necessite de muitas outras palavras para entender a estância 24.10 (que, portanto, deve ser lida em plena continuidade com as glosas anteriores).
  • 64
    Presente passivo de √diś: "to point out, show, exhibit [...]; to promote, effect, accomplish [...]; to teach, communicate, tell, inform", Monier-Williams (1986).
  • 65
    Para uma análise mais detalhada da hipótese de uma verdade suprema bidimensional, reenvio a Ferraro (prelo: parte I, Cap. 2, seção "Paramārtha como existência relativa" e Cap. 3).
  • 66
    PrPr, trad. Uryuzu (1971, p. 35)BHĀVIVEKA. Prajñāpradīpa, cap. 24. Tradução de R. Uryuzu. In: The research Bulletin of the Faculty of General Education, The Faculty of General Education, Kinki Unversity, Osaka, 2.2, pp. 15-56, 1971..
  • 67
    tasmān-nirvāṇa-adhigama-upāyatvād-avaśyam-eva yathāvasthitā saṃvṛtirādāvevābhyupeyā bhājanam-iva salila-arthineti, PP 494.14-15.
  • 68
    Apesar de todas as razões contrárias à compreensão de saṃvṛti-satya como uma verbalização de paramārtha-satya, o comentário ChL ad MMK 24.10 é sem dúvida um ponto a favor: "The ultimate meaning is entirily dependent on words and expressions, and words and expressions are mundane and conventional. Therefore, without reliance on the conventional and the mundane, the ultimate meaning cannot be expounded", trad. Bocking (1993, p. 343)Chung-lun. Tradução de B. Bocking. In: B. Bocking. "Nāgārjuna in China. A Translation of the Middle Treatise". Lewiston/Queenston/Lampeter: The Edwin Mellen Press, 1993.. Que o plano supremo dependa inteiramente das palavras, e que por meio da verdade convencional possa ser expresso, é um ponto de vista que não tem confirmações nos textos mādhyamikas indianos. O próprio AkB, cuja versão tibetana, segundo Huntington (1995, p. 705), deriva da mesma fonte sânscrita traduzida pelo ChL (entretanto, diferenças tão evidentes como essa relativa à MMK 24.10 parecem provas contrárias a essa hipótese), apenas repete a estância (ao menos, assim consta na reconstrução de Pandeya, 1989Akutobhayā. In: R. Pandeya. "The Madhyamakaśāstram of Nāgārjuna with the Commentaries [...] critically reconstructed". Delhi: Motilal Banarsidass, 1989., p. 196).

ReferênciasFontes primárias

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    Abreviações:
  • 2V   duas verdades
  • AkB   Akuto-bhayā
  • BPV   Buddhapālita-vṛtti
  • ChL   Chung-lun
  • DN   Dīga Nikāya
  • MMK   Mūla-madhyamaka-kārikā
  • MP   Milinda Pañha
  • PP   Prasannapadā
  • PrPr   Prajñāpradīpa
  • QNV   Quatro Nobres Verdades
  • SN   Saṃyutta Nikāya
  • ŚS   Śūnyatāsaptati
  • VVV   Vigrahavyāvartanī-vṛtti
  • YṢv   Yuktiṣaṣṭikā-vṛtti

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2016

Histórico

  • Recebido
    30 Set 2014
  • Aceito
    15 Fev 2015
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