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DONNELLAN, NOMES MILLIANOS E O CONTINGENTE A PRIORI

DONNELLAN, MILLIAN NAMES AND THE CONTINGENT A PRIORI

RESUMO

Neste artigo, primeiramente, apresento tese de Kripke sobre a possibilidade de se adquirir conhecimento de verdades contingentes a priori e a crítica de Keith Donnellan a essa tese. Depois, exploro a distinção que Donnellan faz entre (a) saber que uma sentença é verdadeira e (b) conhecer a verdade que essa sentença expressa. Argumento que essa distinção não é relevante apenas no contexto de sua crítica ao contingente a priori, mas sim para nossa prática com nomes próprios de modo geral. Tento mostrar que conhecer o significado de nomes próprios não se resume à nossa competência linguística com eles, mas depende de termos acquaintance com seus portadores. Se isso é verdadeiro, então a tese do contingente a priori, tal como formulada por Kripke, não pode estar correta.

Palavras-Chave
Contingente a priori; referência; nomes próprios; crenças de re

ABSTRACT

In this paper I first present Kripke's thesis regarding the possibility of acquiring a priori knowledge of contingent truths and Keith Donnellan's criticism of this thesis. Second, I explore a distinction that Donnellan makes between (a) knowing that a sentence expresses a truth and (b) knowing what truth this sentence expresses. I argue that this distinction is not relevant only in the context of his criticism of the contingent a priori, but also to our practices with proper names in general. I try to show that knowing the meaning of proper names cannot be reduced to our linguistic competence with them, but that it depends on an acquaintance relation to their bearers. If this is true, then the thesis of the contingent a priori, as formulated by Kripke, cannot be correct.

Keywords:
Contingent a priori; Reference; Proper names; Belief de re

Kripke, em Naming and Necessity, defende a controversa tese de que, por meio de certo tipo de estipulação linguística, é possível conhecermos verdades contingentes a priori. Naturalmente, tal tese gerou uma vigorosa reação entre os filósofos, uma vez que contraria a forte e bem estabelecida intuição de que só podemos conhecer verdades contingentes a posteriori, i.e., por meio de alguma espécie de investigação empírica. Um desses filósofos é Keith Donnellan. Meu objetivo, neste artigo, é fazer algumas considerações sobre a distinção que ele faz, no contexto de sua crítica a Kripke, entre (a) saber que uma sentença é verdadeira e (b) conhecer a verdade que ela expressa. Pretendo mostrar como essa distinção é muito mais geral e importante do que Donnellan acredita. Defendo que, em muitos casos, embora usemos sentenças contendo nomes próprios com competência e saibamos que elas expressam proposições verdadeiras, não compreendemos a proposição que elas expressam, e que isso é perfeitamente normal. Meu argumento depende de duas teses: a primeira é a tese de que nomes próprios são millianos, isto é, que seu conteúdo semântico é esgotado pelo referente; a segunda é uma versão mais restritiva do princípio de acquaintance, originalmente proposto por Russell(1CRIMMINS, M.; PERRY, J. "The prince and the phone booth". Journal of Philosophy, v. 86, pp. 685-711, 1989.). Se ambas forem verdadeiras, como pretendo mostrar, então a tese do contingente a priori, tal como formulada por Kripke, não pode estar correta.

A Teoria de Kripke

Em Naming and Necessity, Kripke avança poderosos argumentos contra a tese descritivista de nomes próprios. Comumente atribuída a Frege e Russell, essa tese defende que a diferença gramatical entre nomes e descrições definidas não reflete nenhuma diferença semântica objetiva: nomes e descrições são semanticamente equivalentes. Um nome como "Aristóteles", por exemplo, seria equivalente a uma descrição como "o pai da lógica". Dessa forma, as condições de verdade de uma sentença contendo um nome próprio são exatamente as mesmas de uma sentença contendo uma descrição definida.

Para mostrar que isso é falso, Kripke oferece um argumento conhecido na literatura como argumento modal. Resumidamente, o argumento modal é o seguinte: se o nome "Aristóteles" fosse semanticamente equivalente a uma descrição como "o pai da lógica", uma sentença como (i) "Necessariamente, Aristóteles é o pai da lógica" seria verdadeira, pois seria equivalente a (ii) "Necessariamente, o pai da lógica é o pai da lógica". Contudo, (i) é intuitivamente falsa. É necessário que o pai da lógica seja o pai da lógica(2DONNELLAN, K. S. "The contingent a priori and rigid designators". Midwest Studies in Philosophy, II, pp. 12-27, 1977.), mas certamente não parece necessário que Aristóteles tenha a propriedade de ser o pai da lógica. Aristóteles poderia ter sido um pirata ou sapateiro e nunca sequer ter ouvido falar de filosofia. Isso vale para qualquer descrição que possamos tomar como equivalente ao nome "Aristóteles", pois Aristóteles poderia não satisfazer nenhuma delas(3HAWTHORNE, J.; MANLEY, D. "The Reference Book". USA: Oxford University Press, 2012.). Nomes próprios, portanto, não são equivalentes a descrições. Suas contribuições para as condições de verdade das sentenças que os contêm são distintas. Contextos modais apenas tornam esse fato mais evidente.

Desse modo, Kripke conclui que, ao contrário do que os descritivistas defendem, nomes próprios não referem com a mediação de um conteúdo descritivo. Eles se referem diretamente a seus portadores. Dizendo de outra maneira, o conteúdo semântico de um nome, i.e., sua contribuição para as condições de verdade de uma sentença, é o próprio objeto nomeado, e não um conjunto de propriedades que é satisfeito por esse objeto. John Stuart Mill, como nota Kripke, defendeu uma tese similar. Por essa razão, é comum dizer que nomes próprios diretamente referenciais são nomes millianos (4JESHION, R. "Donnellan on Neptune". Philosophy and Phenomenological Research, v. LXIII, n. 1, pp. 111-135, 2001).

Como mostra o argumento acima, mesmo quando consideramos situações contrafactuais em que Aristóteles não tenha feito nenhuma das coisas pelas quais ele é famoso, ainda assim estamos falando do Aristóteles do mundo atual, e não do indivíduo que fez essas coisas na situação sendo considerada. Nomes próprios, portanto, se referem a seu portador em qualquer mundo possível. Kripke chama os termos que se referem ao mesmo objeto em todos os mundos possíveis de designadores rígidos.

Kripke acredita que uma consequência de nomes próprios serem diretamente referenciais (e, portanto, designadores rígidos) é a possibilidade de conhecermos verdades contingentes a priori a partir de um certo tipo de estipulação linguística. Um dos exemplos que ele propõe para defender essa tese é o que envolve a descoberta do planeta Netuno por Le Verrier. O exemplo é o seguinte: ao estudar a órbita de Urano, Le Verrier conclui que as perturbações em seu movimento só podem ser explicadas pela existência de um corpo celeste ainda não observado. Ele decide batizar esse corpo, qualquer que ele seja, de "Netuno". Kripke defende que, ao utilizar a descrição "o corpo celeste responsável pelas perturbações na órbita de Urano" para fixar a referência do nome "Netuno", Le Verrier passa a saber, a priori, que Netuno é o corpo celeste responsável pelas perturbações na órbita de Urano. Em outras palavras, após o batismo, Le Verrier conhece a priori a verdade expressada pela seguinte sentença:

(N): Netuno é o corpo celeste responsável pelas perturbações na órbita de Urano(5KAPLAN, D. "Demonstratives". In: ALMOG; PERRY; WETTSTEIN. (Eds.). Themes from Kaplan. Oxford: Oxford University Press, 1989. (pp. 481-564))

Ora, mas como isso é possível? (Para facilitar a exposição, colocarei o problema em termos de proposições singulares6). Le Verrier usa a descrição "o corpo celeste responsável pelas perturbações na órbita de Urano" para designar o objeto relevante. Em seguida, ele introduz "Netuno" como nome desse objeto, qualquer que ele seja. Esse processo é o que Kripke chama de "fixação da referência" de um nome. Obviamente, o objeto nomeado pode estar perceptualmente presente no momento da fixação da referência, como nos batismos tradicionais. No entanto, isso não é necessário. Como o caso de Le Verrier mostra, parece perfeitamente possível realizar um batismo in absentia.

Como vimos, nomes próprios são diretamente referenciais. O recém-introduzido nome "Netuno" não é exceção, ainda que seja introduzido dessa maneira peculiar. Uma vez que ele é diretamente referencial, e dado que Netuno existe, ele tem como conteúdo semântico o próprio planeta Netuno. O nome "Netuno", portanto, não é sinônimo de nenhuma descrição, nem mesmo da descrição utilizada para introduzi-lo. Assim, por conter um termo diretamente referencial, a sentença (N) expressa uma proposição singular envolvendo o próprio planeta Netuno.

Como "Netuno" é um designador rígido, ele se refere a Netuno em qualquer mundo possível, mesmo naqueles em que Netuno não tem a propriedade de ser o corpo celeste responsável pelas perturbações na órbita de Urano. Se esse é o caso, então (N) seria falsa num mundo em que o perturbador é Plutão, por exemplo. Se (N) poderia ser falsa, então a proposição que ela expressa é contingente. Em situações normais, isso seria suficiente para dizer que só seria possível conhecer essa proposição a posteriori. Mas o caso de Le Verrier, em virtude de sua estipulação linguística, é especial. Uma vez que ele próprio é o responsável por introduzir o nome "Netuno" - cujo conteúdo, como vimos, é o próprio planeta Netuno - Le Verrier não precisa conduzir nenhuma espécie de investigação empírica para conhecer a proposição contingente expressada por (N). Basta compreender (N) para que ele tenha acesso a priori a essa proposição. Em suma, para Kripke, três coisas tornam o contingente a priori possível: (1) a propriedade semântica de nomes próprios não serem sinônimos de descrições; (2) o comportamento modal de nomes próprios; e (3) a estipulação linguística.

2 A crítica de Donnellan

Donnellan (1977DONNELLAN, K. S. "The contingent a priori and rigid designators". Midwest Studies in Philosophy, II, pp. 12-27, 1977.) argumenta que isso não passa de uma ilusão. Verdades contingentes são tipicamente aquelas que dependem de como o mundo é atualmente e que exigem alguma investigação empírica para serem conhecidas. Uma mera estipulação linguística não é capaz de dar acesso cognitivo a uma proposição que, para todos os efeitos, só pode ser conhecida por meio de alguma observação.

O argumento de Donnellan contra Kripke é, em suma, o seguinte: para que Le Verrier tivesse realmente conhecimento de uma proposição contingente a priori, esse conhecimento teria de ser de re. A estipulação do nome "Netuno" para o objeto que satisfaz a descrição "o corpo celeste responsável pelas perturbações na órbita de Urano", portanto, deveria colocar Le Verrier em uma relação epistêmica mais íntima com esse objeto que não é dada apenas pela apreensão dessa descrição. Mas por quê?

As razões de Donnellan, embora ele não seja muito claro a esse respeito, parecem ser estas: nós somos capazes de formular qualquer descrição definida sem grandes dificuldades. Basta apenas que combinemos alguns conceitos com o conceito de singularidade, expresso pelo artigo definido "o" ou "a". Podemos construir, por exemplo, a descrição "o maior elefante sul-africano" apenas manipulando nossos conceitos e conhecimentos espaço-temporais.

Agora, examine essa descrição de todas as maneiras possíveis. O que é possível aprender sobre o maior elefante sul-africano apenas encarando a descrição "o maior elefante sul-africano"? Não muito. A mera reflexão sobre essa descrição não nos dá nenhum outro tipo de contato epistêmico com o objeto que a satisfaz além do que já é proporcionado pela própria descrição. Para aprender alguma coisa significativa sobre o objeto denotado por ela, devemos adquirir algum conhecimento empírico. Recorrendo apenas ao conteúdo descritivo, portanto, não podemos saber a priori se as descrições que construímos de fato se aplicam e muito menos a qual objeto elas se aplicam. Quaisquer crenças que formarmos a priori a partir apenas dessas descrições serão de dicto, pois elas não terão como componente um objeto ele próprio, mas apenas uma descrição desse objeto.

O que Donnellan parece ter em mente é que, a menos que tenhamos um meio de acesso cognitivo ao objeto independente do que já é proporcionado pela descrição, teremos apenas conhecimento de proposições verdadeiras sobre o objeto que se seguem trivialmente do conteúdo descritivo. Sem esse acesso independente somos capazes de conhecer a priori apenas proposições como "o maior elefante sul-africano é um elefante" ou "o maior elefante sul-africano habita a África do Sul". Como podemos perceber, essas proposições são necessárias, uma vez que se seguem trivialmente dos próprios conceitos que formam o conteúdo descritivo.

Dessa maneira, se o conhecimento que Le Verrier adquire a priori é de uma proposição contingente, então a estipulação linguística do nome "Netuno" deve proporcionar um acesso cognitivo a Netuno que seja independente do que já é proporcionado pela descrição relevante. Dizendo de outra forma, se o contato epistêmico que Le Verrier tem com o objeto é dado apenas descritivamente, então as proposições que ele pode conhecer a priori a respeito de tal objeto serão triviais e necessárias, a menos que a introdução do nome dê a ele uma nova maneira de acessar esse objeto. Esse acesso ao próprio objeto é o que entendemos por de re. A estipulação linguística de um termo para designar o x que satisfaz o conteúdo descritivo, portanto, deve ser capaz de gerar conhecimento de re, e não simplesmente de dicto. Caso contrário, a verdade que Le Verrier conhece a priori será necessária, uma vez que será derivada trivialmente do próprio conteúdo da descrição sob a qual apreende Netuno. No caso proposto por Kripke, isso estaria garantido pelo fato de "Netuno" ser diretamente referencial, i.e., ter como conteúdo semântico o próprio objeto nomeado, e não a descrição que foi utilizada para fixar sua referência. Em suma, o nome "Netuno", em virtude de suas propriedades semânticas, seria uma espécie de atalho epistêmico a Netuno.

No entanto, para Donnellan, esse não é o caso. A estipulação linguística de Le Verrier não é suficiente para proporcionar uma atitude de re e, portanto, não gera conhecimento de uma verdade contingente a priori. Para mostrar isso, Donnellan propõe dois testes intuitivos (que envolvem relatos de atitudes proposicionais) para detectar quando há atitudes de re, e constata que o caso proposto por Kripke falha em ambos. Contudo, esses testes não são muito rigorosos (o próprio Donnellan admite isso) e vários contraexemplos já foram propostos na literatura (e.g. Jeshion, 2001JESHION, R. "Donnellan on Neptune". Philosophy and Phenomenological Research, v. LXIII, n. 1, pp. 111-135, 2001). Por essa razão, não os examinarei aqui. Não podemos, portanto, depender desses testes para estabelecer que não há atitudes de re. Precisamos de outros argumentos para tanto. Antes de fornecê-los, porém, assumirei momentaneamente que Le Verrier realmente não tem atitudes de re. Faço isso apenas para expor a distinção que Donnellan faz entre (a) saber que uma sentença expressa uma proposição verdadeira e (b) conhecer a proposição expressada, que será essencial mais à frente.

Mesmo que não haja conhecimento de re, diz Donnellan, ainda temos uma forte intuição de que Le Verrier passa a conhecer algo a priori com a estipulação de "Netuno" como nome do objeto que satisfaz a descrição definida "o corpo celeste (...)". De fato, parece ser justamente essa intuição que inicialmente motiva Kripke a apresentar sua tese do contingente a priori. Mas o que é isso que ele passa a conhecer? Quando Le Verrier fixa a referência de "Netuno", ele passa a saber que:

(A) Dado que o corpo celeste responsável pelas perturbações na órbita de Urano existe, a sentença "Netuno é o corpo celeste (...)" expressa uma verdade contingente.

Quando Le Verrier batiza o objeto designado por "o corpo celeste (...)" com o nome "Netuno", portanto, ele passa a saber, a priori, que a sentença "Netuno é o corpo celeste (...)" irá expressar uma verdade contingente, seja lá qual ela for. Colocando isso em termos de proposições, ele passa a saber que a sentença "Netuno é o corpo celeste (...)" expressa uma proposição singular contingente verdadeira. Com a estipulação realizada, ele cria um fato linguístico: o nome "Netuno" designará o objeto que tem as propriedades expressadas pela descrição utilizada para fixar sua referência, qualquer que ele seja. Além disso, Le Verrier sabe que qualquer objeto que satisfizer tal descrição o fará apenas de maneira contingente. Como ele próprio é o autor desse novo fato linguístico, ele não precisa recorrer à experiência para saber que a sentença criada por ele expressará uma verdade contingente. O conhecimento a priori que ele passa a ter após a estipulação, portanto, é um conhecimento metalinguístico, i.e., um conhecimento sobre as sentenças da linguagem que ele utiliza. Dessa forma, ele passa a conhecer a priori que determinada sentença expressa uma verdade contingente, mas ele não pode ter acesso cognitivo a essa verdade, uma vez que não tem acesso ao referente do nome "Netuno". Dizendo de outra maneira, Le Verrier sabe a priori que a sentença "Netuno é o corpo celeste (...)" expressa uma proposição singular contingente contendo o próprio objeto Netuno e sabe que essa proposição é verdadeira, mas não é capaz de captar ou compreender essa proposição porque não há nenhuma atitude de re. Kripke, talvez impressionado com o poder dos nomes millianos, confundiu o fenômeno de conhecer verdades metalinguísticas a priori com a capacidade de conhecer proposições singulares contingentes a priori. Ele confundiu, portanto, (a) saber que uma sentença expressa uma proposição verdadeira e (b) conhecer a proposição expressada.

3 Nomes millianos e atitudes de re

Com essa discussão, acredito que Donnellan tocou em algo bastante significativo a respeito de nomes próprios e seu papel na linguagem. A questão fundamental aqui é a questão do que é necessário para se compreender um nome milliano num sentido forte e se essa compreensão é condição necessária para termos competência com ele. Donnellan percebeu isso. Ele não nega que o termo "Netuno", tal como introduzido por Le Verrier, é um nome milliano. Ele se refere diretamente (com sucesso) ao objeto que satisfaz a descrição utilizada para fixar sua referência e tem o mesmo comportamento semântico do que qualquer outro nome da linguagem. No entanto, Donnellan resiste em admitir que uma propriedade semântica, i.e., ser diretamente referencial, tenha qualquer relevância para a relação entre cognição e o objeto da referência. Aceitar isso seria confundir semântica com epistemologia. Para estarmos em posição de (b) conhecer a proposição que a sentença expressa não basta sermos competentes com o nome no discurso: é preciso que tenhamos uma relação epistêmica (de re) mais íntima com o seu referente. Dito de outra forma, Donnellan acredita que ser bem-sucedido na referência com nomes millianos introduzidos por meio de descrições não nos coloca necessariamente em posição de ter atitudes de re em relação ao seu referente. Mesmo que Le Verrier seja capaz de se referir diretamente a Netuno com o recém-introduzido nome "Netuno", isso não basta para que ele tenha uma atitude de re e, portanto, que ele compreenda o nome no sentindo relevante. A propriedade de um termo de ser diretamente referencial, portanto, não tem relevância alguma para o tipo de contato epistêmico que os falantes têm com o referente desse termo.

O que a substituição da descrição pelo nome induz é apenas uma alteração no comportamento modal das sentenças que o contêm. O nome permite que Le Verrier e outras pessoas se refiram a Netuno sem que sua referência gere falsidades em situações contrafactuais. A estipulação linguística é útil justamente para termos uma garantia de que estamos falando sobre a mesma coisa em diferentes contextos. Contudo, isso não significa que nossa relação epistêmica com o objeto em questão é alterada pelo batismo in absentia: mesmo que o nome seja milliano, nossas atitudes continuam sendo de dicto.

Donnellan considera apenas casos como o de Le Verrier, em que nomes millianos são introduzidos por meio de uma descrição que fixa sua referência. No entanto, acredito que o fenômeno de saber que uma sentença expressa uma proposição verdadeira sem conhecer a proposição que essa sentença expressa não se restringe apenas a esses casos peculiares. Pelo contrário, ele é muito mais geral do que comumente se pensa. Acredito que esse fenômeno também ocorre no caso de qualquer sentença que contenha um nome próprio cuja referência não se encontra numa relação epistêmica mais íntima conosco. Defenderei a ideia de que, quando não temos acquaintance com o referente de um nome, não podemos ter atitudes de re em relação ao seu portador e não compreendemos seu significado completamente, mesmo que ele seja um nome introduzido e aprendido da maneira tradicional, tal como "Aristóteles" ou "Gödel". Isso, contudo, não interfere de modo algum em nossa competência linguística. A distinção entre (a) e (b) feita por Donnellan, então, é muito mais interessante e abrangente do que ele originalmente pensou.

A ideia fundamental por trás dessa tese é, obviamente, a ideia de que nomes próprios são apenas etiquetas cujo significado são seus próprios referentes, i.e., que nomes são efetivamente millianos(7KRIPKE, S. "A Puzzle About Belief. Philosophical Troubles". New York: Oxford University Press, 2011. Collected Papers v. 1.). Afinal, como Russell argumenta, nomes próprios não possuem nenhum tipo de definição que poderia ser encontrada em um dicionário, ao contrário das demais expressões da linguagem. De fato, não procuramos no dicionário a definição de "João", "Godofredo" ou "Aristóteles", por mais famosos que sejam seus portadores. Nomes são apenas símbolos ou marcas arbitrárias usadas para etiquetar indivíduos e, por essa razão, não possuem um significado convencional estabelecido pelas normas linguísticas. Seu único conteúdo semântico é meramente o objeto nomeado.

Se esse é o caso, então os falantes de uma língua não aprendem o significado de nomes próprios da mesma maneira que aprendem o significado das demais expressões da linguagem. Tomemos como exemplo o indexical "ele". Seu significado linguístico é estabelecido pelas regras do português (o que Kaplan (1989KAPLAN, D. "Demonstratives". In: ALMOG; PERRY; WETTSTEIN. (Eds.). Themes from Kaplan. Oxford: Oxford University Press, 1989. (pp. 481-564)a) chama de caráter). Dessa forma, qualquer falante que aprenda a língua de maneira satisfatória aprenderá o significado dessa expressão e será capaz de utilizá-la corretamente, nas ocasiões apropriadas. O conhecimento da língua basta para conhecer o significado linguístico do indexical em questão, uma vez que indexicais têm suas regras de uso estabelecidas pelas normas da linguagem. Contudo, o mesmo não se aplica a nomes próprios. Para aprender o significado de um nome como "Godofredo", não basta que o falante seja competente com todas as regras linguísticas. Ele pode muito bem ter decorado o melhor dicionário e a melhor gramática de português existentes e, mesmo assim, ser completamente ignorante a respeito do significado desse nome: o significado de "Godofredo" simplesmente não faz parte do conjunto de regras e convenções da linguagem, ao contrário do significado do indexical "ele".

O que é necessário, então, para conhecer o significado de um nome? Ora, se nomes próprios têm objetos extramentais como conteúdo semântico, captar ou conhecer esse conteúdo não é algo que pode ser realizado apenas por compreender normas linguísticas: esse conteúdo semântico está lá fora, no mundo, e uma relação epistêmica mais substancial é necessária para conhecê-lo. Essa relação epistêmica substancial, qualquer que ela seja, é o que tradicionalmente se chama de acquaintance, e foi defendida inicialmente por Russell.

As preocupações de Russell eram as seguintes: se nomes são meras etiquetas cujo significado é esgotado pelos seus portadores, então o único modo de conhecermos seu significado é termos uma relação epistêmica apropriada - acquaintance - com esses portadores. No entanto, para Russell, a relação de acquaintance é extremamente restritiva. Para ele, temos acquaintance apenas com dados sensoriais, com universais e (talvez) conosco. Objetos extramentais não são objetos da minha acquaintance. Por essa razão, só podemos compreender o significado de nomes próprios se seus portadores forem dados sensoriais, universais e (talvez) nós mesmos. Em suma, portanto, Russell admite a existência de nomes millianos (o que ele chama de nomes logicamente próprios), cujo significado é esgotado pelo referente, mas a classe de coisas que podem ser seus portadores é extremamente restrita.

Muitos filósofos concordam que uma relação epistêmica relevante é realmente necessária para se conhecer o significado de um nome milliano e para ser possível ter atitudes de re em relação a seu referente. No entanto, poucos estão satisfeitos com tamanha restrição ao princípio de acquaintance. Muitos (se não todos) aceitam que temos acquaintance com objetos em nosso campo perceptual, e portanto podemos ter atitudes de re em relação a esses objetos. Outros filósofos, ainda insatisfeitos, acreditam que a acquaintance é dada por relações causais, sendo a percepção apenas um tipo de relação causal. Nesses casos, para conhecer o significado de um nome (e ter atitudes de re em relação a seu portador), basta estar em uma relação causal com o referente do nome(8LYCAN, W. G. "Philosophy of Language: a contemporary introduction". 2 ed. London and New York: Routledge, 2008. ). Não há espaço aqui pra desenvolver uma crítica detalhada a essa posição, mas acredito que ela seja falsa. Acredito que a relação de acquaintance, ainda que não seja tão limitada como Russell propõe, também não é tão liberal como esses filósofos defendem(9MARTONE, F. "Singular Reference Without Singular Thought". Manuscrito, v. 39, n. 1, pp. 33-60, mar. 2016.). Nos próximos parágrafos, argumentarei apenas indiretamente contra a tese de que a relação de acquaintance é dada por relações causais. Farei isso mostrando (1) que as condições de compreensão de um nome milliano parecem depender das mesmas condições de compreensão de uma referência demonstrativa e (2) que uma das principais motivações para se estender a acquaintance além da percepção é consideravelmente enfraquecida se levarmos a distinção entre (a) e (b) de Donnellan a sério.

Voltemos à ideia de que nomes próprios são apenas etiquetas cujo significado é o próprio objeto referido. Etiquetas são, essencialmente, apenas marcas discriminatórias sem conotação, criadas fundamentalmente para podermos mencionar objetos. Parece bastante plausível, portanto, dizer que a compreensão de uma etiqueta depende de uma definição ostensiva: só podemos conhecer o significado de um nome N se pudermos enunciar com sucesso a sentença "isto é N", em que o objeto demonstrado está em nosso campo perceptual. Em outras palavras, só podemos conhecer o significado de um nome se estivermos em posição de realizar uma referência demonstrativa (não-deferida) a seu portador. De fato, só parece possível conhecermos o "conteúdo" de uma etiqueta se esse conteúdo é dado em nossa experiência imediata, i.e., quando podemos percebê-lo; da mesma maneira, um nome só pode ser compreendido completamente se for associado à percepção do objeto nomeado. Afinal, o conteúdo semântico de um nome milliano é um objeto.

Algo que pode iluminar essa discussão é pensar como nomes em geral são introduzidos na linguagem. Como diz McGinn (1981), "nomes entram na linguagem a partir de outros modos de referência mais primários". Esses modos de referência primários são demonstrações e descrições definidas. Eles são primários pois são os mecanismos de referência que são capazes de discriminar um objeto por si mesmos, sem depender, em princípio, de outros mecanismos. Nomes, por outro lado, não têm essa propriedade. Pensemos em uma típica cerimônia de batismo, em que o objeto a ser batizado está perceptualmente presente. Sem um modo de referência primário, tal como uma demonstração, o nome a ser introduzido simplesmente não seria associado ao objeto com sucesso. A razão disso é que, quando batizo algo, não basta simplesmente enunciar o nome na presença do objeto. Esse nome não vai "grudar": se o objeto não está saliente de alguma maneira no contexto, o nome simplesmente não vai etiquetar coisa alguma e o batismo será falho. O objeto, portanto, precisa ser discriminado de tal maneira que fique evidente que o nome sendo introduzido é um nome daquele objeto. A referência demonstrativa, dessa forma, é necessária para realizar essa tarefa de discriminação. Em outras palavras, eu preciso ser capaz de me referir ao objeto antes de batizá-lo.

Se esse é o caso, é razoável dizer que as condições de compreensão de um nome nesse caso são as mesmas condições de compreensão da referência demonstrativa empregada para introduzi-lo. Afinal, só conhecemos o objeto que está sendo batizado porque conhecemos o demonstratum da demonstração. Mas quais são essas condições? Só compreendemos completamente uma referência demonstrativa se pudermos identificar perceptualmente, no contexto de seu uso, o objeto demonstrado. Caso contrário, compreendemos apenas algo como o que Perry (1988PERRY, J. "Cognitive Significance and New Theories of Reference". Noûs, v. 22, n. pp. 1-18, 1988.) chama de conteúdo reflexivo: sabemos apenas as condições sob as quais o enunciado é verdadeiro, mas não sabemos qual é o objeto demonstrado por ele no contexto. Se alguém diz corretamente "ele derrubou café", por exemplo, eu sei que o enunciado "ele derrubou café" é verdadeiro se o indivíduo demonstrado realmente derrubou café. Esse conhecimento é dado trivialmente pelo conhecimento das normas linguísticas. Sem perceber o demonstratum, contudo, eu não posso ter acesso à proposição singular que esse enunciado expressa. Sem contato perceptual, portanto, eu conheço apenas as condições em que o enunciado é verdadeiro, mas não a proposição que ele de fato expressa no contexto. Como as condições de compreensão de um nome são as mesmas da compreensão de uma referência demonstrativa, fica claro por que essas condições não são satisfeitas por falantes que não estão em posição de ter contato perceptual com o objeto da referência.

Mesmo no caso de Le Verrier, em que o objeto é batizado a partir de uma descrição definida (que também é um modo de referência primário, segundo McGinn), as coisas são essencialmente as mesmas. A descrição cumpre com sucesso o papel de discriminar o objeto a ser nomeado, tal como a referência demonstrativa. No entanto, o nome introduzido não é sinônimo dessa descrição; ela é utilizada apenas para fixar sua referência. Para conhecer essa referência, é necessário conhecer a extensão da descrição empregada, e conhecer a extensão de uma descrição não é algo que pode ser realizado apenas recorrendo ao conteúdo descritivo. As mesmas condições para se compreender uma referência demonstrativa, portanto, também devem ser atendidas nesse caso.

Parece contraintuitivo dizer que o contato perceptual é necessário para conhecer o significado de um nome próprio, uma vez que falamos sobre inúmeras coisas com as quais não temos nem nunca poderemos ter contato perceptual, e o fazemos precisamente usando nomes próprios. Afinal, parece que conhecemos muito bem o significado de nomes como "Aristóteles" e "Gödel". Essa é uma das razões que motivam os filósofos a defender que a acquaintance não pode ser restrita à percepção: se esse fosse o caso, então teríamos de admitir que efetivamente não conhecemos o significado de muitos dos nomes que empregamos. Portanto, a acquaintance deve se dar por relações causais em geral, e não apenas pela percepção. Ao aprender um nome como "Aristóteles", por exemplo, participamos de uma cadeia histórico-causal que tem origem no próprio Aristóteles, e essa relação causal permite termos atitudes de re em relação a ele e garante que conheçamos o significado de "Aristóteles". Contudo, se for possível explicar nossa competência linguística com nomes de objetos remotos sem recorrer à acquaintance causal, ao menos uma das motivações dos filósofos que a defendem perde seu apelo. É justamente para isso que a distinção de Donnellan entre (a) saber que uma sentença expressa uma verdade e (b) saber a verdade que ela expressa é interessante.

Não aprendemos a definição de um nome qualquer ao aprender uma língua, mas aprendemos como funcionam nomes próprios em geral. Em outras palavras, o domínio da linguagem pode não nos proporcionar o significado dos nomes particulares que utilizamos, mas a proficiência linguística nos ensina as regras do uso de nomes próprios em geral, i.e., como utilizá-los nas sentenças que enunciamos, como interpretá-los nas sentenças que captamos e qual é sua contribuição semântica típica. Em suma, a competência linguística nos ensina o papel dos nomes na linguagem. É por essa razão que somos capazes de utilizar com sucesso o nome de um objeto que nunca percebemos e muitas vezes sobre o qual temos pouquíssima informação. Dito de outra forma, somos capazes de nos referir a um objeto usando um nome e podemos saber que a referência foi realizada com sucesso, mas não temos acesso cognitivo ao significado do nome que empregamos. Essa parece ser uma consequência trivial da tese de que nomes próprios têm como conteúdo semântico objetos extramentais; não há por que supor que temos acesso cognitivo imediato a esse conteúdo e que podemos ter atitudes de re apenas por meio de nossa competência linguística. Propriedades semânticas de nomes próprios não têm nada a dizer a respeito de como cognizamos seus referentes. Essa é uma questão epistemológica, não semântica.

Obviamente, o uso bem-sucedido de nomes próprios em casos não perceptuais depende de nossa habilidade de utilizá-los em casos paradigmáticos, nos quais tivemos contato perceptual com o referente. É a partir desses casos mais básicos que aprendemos como funcionam nomes próprios e qual é sua contribuição típica para as sentenças em que ocorrem. Só assim podemos utilizá-los em casos mais complexos, como o de objetos remotos.

Para ilustrar isso, pensemos no nome "Túlio". Não são muitas as pessoas que são capazes de dizer quem foi Túlio e fornecer descrições exaustivas dessa pessoa. Na verdade, pode até ser que alguém tenha ouvido o nome en passant e não saiba mais nada a respeito desse indivíduo a não ser que ele era chamado de "Túlio". No entanto, como argumenta Kripke, isso não impede que esses falantes se refiram a ele com sucesso. Se os falantes não fossem capazes de empregar nomes corretamente mesmo sendo bastante ignorantes a respeito de seus portadores, a pergunta "quem é Túlio?" não faria sentido ou não poderia ser genuinamente feita por alguém; ela seria de alguma forma defectiva, já que pressuporia justamente o tipo de informação que o falante está querendo adquirir. Obviamente, esse não é o caso. Posso me referir por meio de um nome mesmo não sabendo mais coisa alguma a respeito de seu portador, além do fato de que ele é assim nomeado.

Dessa maneira, por conhecer o papel dos nomes próprios na linguagem e suas regras gerais de uso, somos capazes de utilizar corretamente nomes cujo significado nos é totalmente desconhecido, como ocorre no caso de objetos remotos do passado como Aristóteles, Platão, etc. Essa habilidade, portanto, é parasítica em relação aos casos mais elementares, em que de fato conhecemos o significado dos nomes utilizados. Quando falamos sobre Aristóteles, por exemplo, nós sabemos que nossa referência é bem-sucedida, e também sabemos que expressamos uma proposição singular que tem Aristóteles como ingrediente. Para nossos propósitos comunicativos, no entanto, não é necessário também captar ou compreender essa proposição singular. É suficiente saber qual é o papel semântico do nome "Aristóteles" e como ele funciona em sentenças. Se pudéssemos também compreender essa proposição, melhor; muitas vezes, contudo, saber que expressamos uma proposição verdadeira é o melhor que podemos fazer. Assim, a distinção entre (a) saber que uma sentença expressa uma proposição verdadeira e (b) saber que proposição é essa é bastante relevante, pois é (a) que explica nossa proficiência linguística com nomes cujo significado nos é desconhecido. Se isso é plausível, parece que não precisamos estender a acquaintance além do caso paradigmático da percepção.

Agora, é interessante examinar uma objeção que é frequentemente feita pelos filósofos que se opõem à tese que defendo aqui, inclusive pelos defensores da acquaintance causal. Acredito que ela é a objeção mais forte que pode ser colocada, justamente porque apela para um princípio que parece bastante evidente a respeito da relação entre pensamento e linguagem. Esse princípio é expresso em Jeshion (2001JESHION, R. "Donnellan on Neptune". Philosophy and Phenomenological Research, v. LXIII, n. 1, pp. 111-135, 2001) e é chamado de acessibilidade do conteúdo:

(AC): para todas as expressões E em uma linguagem L, e todas as sentenças S em L expressando alguma proposição P, se o agente A entende todas as expressões contidas em S, e se A souber todas as informações contextuais relevantes, então A pode ter uma atitude contendo P como seu conteúdo ao entender S .

Jeshion e outros filósofos argumentam que posições do tipo que defendo aqui implicam a violação desse princípio. Esse princípio acarreta que, se eu sou competente com um nome próprio na linguagem, i.e., se eu consigo utilizá-lo em sentenças corretamente e sou capaz de reagir de maneira apropriada a elocuções que o envolvem, então eu tenho acesso cognitivo completo às proposições que essas sentenças expressam. Em outras palavras, se entendo e emprego de maneira apropriada determinada sentença, então posso ter uma atitude proposicional em relação à proposição que essa sentença expressa. Em suma, o princípio sugere que a manipulação correta de qualquer expressão (ou um "movimento correto" no jogo de linguagem) implica o acesso cognitivo completo a seu conteúdo, uma vez que essa é uma condição necessária da competência semântica dos falantes.

O que parece estar por trás desse princípio é a intuição de que só podemos explicar nossa competência linguística se aceitarmos que ela pressupõe a compreensão completa do conteúdo expressado. Como Jeshion diz, o princípio (AC) parece até mesmo uma sentença analítica no que diz respeito ao entendimento da linguagem. Para ela, o abandono desse princípio implica o abandono de uma maneira bastante plausível de conceber a relação entre linguagem e pensamento: a rejeição de (AC) torna possível que os falantes expressem proposições que eles próprios não compreendem completamente, e qualquer filósofo da linguagem deveria evitar essa consequência drástica. O descompasso entre linguagem e pensamento, portanto, deve ser admitido somente em último caso.

Concordo que esse princípio é bastante intuitivo e plausível. De fato, se não dominássemos e não tivéssemos acesso ao conteúdo semântico do que expressamos, não seríamos muito diferentes de máquinas que apenas manipulam regras sintáticas sem competência semântica alguma. De maneira geral, portanto, o domínio da linguagem depende de compreendermos completamente o conteúdo das expressões que utilizamos. No entanto, penso que não é muito claro se podemos incluir sem ressalvas nomes próprios no conjunto de "expressões E em uma linguagem L". Se somos millianos, então devemos admitir a ideia de que nomes próprios são apenas etiquetas cujo significado não é dado pelas regras linguísticas. Se esse é o caso, então há um sentido muito forte em que nomes simplesmente não fazem parte da linguagem, como argumentei acima. Apenas a competência linguística não é suficiente para dar acesso a seu conteúdo semântico, ao contrário de descrições definidas e indexicais, por exemplo: o domínio da linguagem e o conhecimento das "informações contextuais relevantes" basta para dar acesso ao conteúdo semântico que esses termos expressam (embora não sejam suficientes para conhecer sua extensão). Nomes próprios, dessa maneira, estão fora do escopo do princípio proposto por Jeshion ou, ao menos, não são contemplados por ele de maneira satisfatória.

O que quero dizer é que, se deixarmos nomes próprios de lado, o princípio AC é muito mais intuitivo e evidente: a compreensão do significado de uma sentença que não contém nomes (desde que tenhamos conhecimento apropriado do contexto) nos dá acesso completo e imediato à proposição que ela expressa. Mas nomes próprios são expressões peculiares. Se seu significado é exclusivamente um item extralinguístico, como defende o millianismo, não há razões para se assumir que esse significado seja imediatamente dado à minha cognição no instante em que o nome entra no meu vocabulário e independentemente da relação epistêmica que tenho com esse item. Em suma, referir com nomes próprios é fácil; conhecer o significado desses nomes e ter atitudes de re em relação a seus portadores, nem tanto. É preciso, portanto, modificar AC para algo do tipo:

(AC*): para todas as expressões E em uma linguagem L, e todas as sentenças S em L expressando alguma proposição P, se o agente A entende todas as expressões contidas em S, e se A souber todas as informações contextuais relevantes e tiver o contato epistêmico apropriado com os referentes dos nomes em S, então A pode ter uma atitude contendo P como seu conteúdo ao entender S .

Por fim, tendo isso em vista, gostaria de fazer algumas observações sobre Russell. Acredito que é plausível dizer, a partir do que foi exposto até agora, que as preocupações epistêmicas que o levaram a defender uma teoria descritivista dos nomes próprios são bem fundamentadas, apesar de essa teoria estar errada. Como disse alguns parágrafos acima, Russell também defendeu a ideia de que nomes próprios são somente marcas arbitrárias que significam apenas seus referentes. Ele também defendeu a tese de que, para conhecer o significado de um nome, não basta ter competência linguística, já que nomes não fazem parte da linguagem da mesma maneira que as outras expressões. É preciso ter acquaintance com seu referente.

Até agora, estamos de acordo. A minha divergência com Russell está justamente na admissão de um princípio como AC. Ora, sabendo que usamos nomes próprios de objetos remotos a todo momento e assumindo algo como o princípio AC, Russell concluiu que tais nomes próprios não podem funcionar como nomes próprios genuínos, sob pena de violar AC. Em outras palavras, Russell acreditava que a única explicação possível para nossa competência com nomes de objetos remotos, dada a inexistência de acquaintance com seus referentes, era que esses nomes na verdade não são nomes próprios genuínos: eles só poderiam ser descrições abreviadas dos objetos designados. Se esse não fosse o caso, isto é, se nomes de objetos remotos fossem nomes millianos genuínos, haveria um descompasso entre o plano semântico e o plano cognitivo, pois eu poderia expressar uma proposição singular contendo o próprio objeto mas não teria acesso cognitivo a essa proposição. É essa ideia que o princípio AC tenta evitar e é precisamente ela que eu aceito: expressamos proposições singulares que não compreendemos com frequência admirável. Se abandonarmos o princípio AC, podemos respeitar as preocupações epistêmicas de Russell em relação ao uso e à compreensão de nomes próprios, mas não precisamos comprar a teoria das descrições como explicação para nossa competência com nomes de objetos remotos. Numa palavra, não precisamos confundir questões semânticas com questões epistemológicas. A distinção de Donnellan entre (a) e (b) é suficiente.

3 Conclusão

A própria natureza dos nomes próprios, portanto, ao contrário do que muitos filósofos pensam, nos força a aceitar um descompasso entre linguagem e pensamento. No entanto, esse descompasso não é tão drástico. A violação do princípio AC não é irrestrita, e por isso não é tão desastrosa como Jeshion e outros acreditam: ela parece específica ao caso dos nomes próprios, precisamente dada a sua peculiaridade. Não conhecer o significado de um nome não nos impede de manipulá-lo com sucesso na linguagem, i.e., nos referir com sucesso, como fica bastante claro no caso de Le Verrier e, se eu estiver correto, em todos os casos de nomes próprios cuja referência não é dada à nossa percepção. Em suma, a competência semântica com nomes próprios não implica o acesso cognitivo a seu significado, sem que isso diminua nossa habilidade com eles no discurso. A semântica de nomes próprios é uma coisa; como cognizamos seus valores semânticos é outra.

Assim, podemos ver por que Kripke se enganou em defender a possibilidade de conhecer verdades contingentes a priori, em casos como o de Le Verrier: o significado do nome próprio de um objeto concreto, não importa a maneira como é introduzido, nunca pode ser conhecido a priori, uma vez que conhecê-lo depende de um contato perceptual com esse objeto; e qualquer contato perceptual só pode ser, obviamente, a posteriori. Kripke confundiu o fenômeno de (a) saber que uma sentença expressa uma proposição verdadeira com o de (b) conhecer a proposição que ela expressa.

Referências

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  • SALMON, N. "How to Measure the Standard Meter". In: "Content, Cognition, and Communication". Oxford: Clarendon Press, 2007a. (pp. 309-339)
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  • WETTSTEIN, H. "The Magic Prism: an essay in the philosophy of language". Oxford: Oxford University Press, 2004
  • 1
    O presente artigo é uma versão levemente modificada do primeiro capítulo de minha tese de doutorado, intitulada Theodor W. Adorno, um crítico na era dourada do capitalismo, escrita sob orientação do Prof. Alessandro Pinzani, a quem agradeço, assim como aos professores que participaram da banca de defesa: Emiliano Gambarotta, Eduardo Neves, Alexandre Vaz, Denilson Werle e Marta Rios.
  • 1
    Cf. Russell (1949).
  • 2
    Ao menos numa leitura de escopo amplo do operador modal.
  • 3
    Exceto, obviamente, uma descrição da essência de Aristóteles (assumindo, como Kripke, que o essencialismo seja verdadeiro). Contudo, é evidente que falantes comuns não associam descrições de essências a nomes públicos como "Aristóteles".
  • 4
    Vale notar que Kripke evita deliberadamente se comprometer de maneira explícita com o millianismo (1980, p. 20), i.e., com a tese positiva de que o conteúdo semântico de nomes próprios é esgotado pelo referente, como notam Soames (2002, cap. 1) e Lycan (2008, p. 49). Em outras palavras, embora Kripke mencione repetidas vezes a influência que as teses de Mill tiveram sobre sua obra e como ele é bastante simpático ao espírito milliano (e.g. 1980, p. 127), ele não defende explicitamente a tese de que o significado de um nome é o próprio referente. Ele defende apenas a tese negativa de que nomes não funcionam semanticamente como descrições. Oficialmente, portanto, Kripke não é um milliano sobre nomes próprios. A razão disso é que ele não aceita algumas supostas consequências do millianismo. Uma delas é a tese de que nomes correferenciais são semanticamente equivalentes em qualquer contexto, inclusive em contextos epistêmicos, tal como defendem Soames (2002) e Salmon (1986). Além disso, ele parece acreditar que um milliano deve aceitar a existência de proposições singulares, tal como fez Russell e como fazem muitos dos referencialistas contemporâneos. Kripke, no entanto, não é simpático à ideia de proposições singulares, como fica evidente em Kripke (2011). Ele acredita que, em certos contextos epistêmicos, a noção de proposição parece se desintegrar (2011, p. 158). Dessa forma, por acreditar que um milliano precisa aceitar essas duas teses, ele não se considera um milliano. No entanto, é difícil pensar como Kripke não seria um milliano, ao menos em um sentido mais fraco de "milliano". Ele claramente rejeita a tese de que o conteúdo semântico de um nome é uma descrição ou um cluster de descrições, e também não parece simpatizar com a tese de que esse conteúdo possa ser uma descrição rigidificada, uma vez que seu argumento epistêmico também se aplicaria nesse caso. Ora, se Kripke rejeita que descrições de qualquer espécie possam ser o conteúdo semântico de um nome, não parece haver outra opção a não ser aceitar que, ao menos em contextos extensionais, o conteúdo semântico de nomes próprios é o referente. Nesse sentido mais fraco, portanto, Kripke pode ser perfeitamente considerado um milliano. Um milliano nesse sentido pode aceitar que o conteúdo semântico de um nome é esgotado pelo referente em contextos extensionais, mas não precisa aceitar a tese da substitutividade universal em contextos epistêmicos, como em relatos de atitudes proposicionais (e.g. Perry (1979); Crimmins & Perry (1989); Richard (1990); Sider (1995)), e nem ter um compromisso com proposições singulares (e.g. Wettstein (2004)). Em suma, portanto, a rejeição de Kripke da alcunha de "milliano" está baseada numa concepção bastante particular de millianismo. Se o leitor não estiver convencido dessa interpretação, ele pode ler este artigo como defendendo o seguinte condicional: se nomes próprios são millianos, então a tese do contingente a priori não pode estar correta. Isso evita atribuir o millianismo a Kripke, mas cumpre o mesmo propósito: explorar uma distinção de Donnellan e argumentar contra a tese do contingente a priori.
  • 5
    Estritamente falando, o que Le Verrier conhece é o condicional "Se Netuno existe, então Netuno é o corpo celeste responsável pelas perturbações na órbita de Urano". Isso evita que ele saiba a priori que Netuno existe. Contudo, isso é irrelevante para a discussão deste artigo.
  • 6
    Proposições singulares são proposições que envolvem o próprio objeto da referência. Tais proposições foram inicialmente propostas por Russell, mas foi David Kaplan o grande responsável por sua popularização recente. Podemos entendê-las como o conteúdo de sentenças que contêm termos diretamente referenciais, tais como nomes próprios e indexicais, e como as coisas que são objeto de atitudes proposicionais, como crença e conhecimento.
  • 7
    Não discuto neste artigo o problema dos nomes vazios nem o problema dos nomes de entidades abstratas. Obviamente, uma teoria milliana satisfatória de nomes próprios (como a que defendo aqui) deve, em algum momento, explicar o funcionamento de nomes como "Vulcano", "Papai Noel", "Sherlock Holmes" e "4" (assumindo que "4" seja o nome do número quatro). Contudo, esses problemas não são o foco do artigo, e discuti-los aqui nos levaria para muito longe do assunto central.
  • 8
    Ver, por exemplo, Salmon (2007b), Bach (1987) e Recanati (2010).
  • 9
    Uma das razões é que temos relações causais com tantas coisas que a motivação original para postular algo como a acquaintance é perdida. Ver Martone (2016) para uma crítica mais detalhada da acquaintance causal.
  • Erratum

    No artigo "DONNELLAN, NOMES MILLIANOS E O CONTINGENTE A PRIORI", publicado no volume 58, number 138, 2017: DOI: 10.1590/0100-512X2017n13705fm, na página 539
    Onde se lê:
    1 O presente artigo é uma versão levemente modificada do primeiro capítulo de minha tese de doutorado, intitulada Theodor W. Adorno, um crítico na era dourada do capitalismo, escrita sob orientação do Prof. Alessandro Pinzani, a quem agradeço, assim como aos professores que participaram da banca de defesa: Emiliano Gambarotta, Eduardo Neves, Alexandre Vaz, Denilson Werle e Marta Rios.
    Universidade de Lavras. Artigo recebido em: 13/07/2015 e aprovado em: 15/01/2016
    Leia-se:
    Universidade de Campinas. Artigo recebido em: 22/04/2016 e aprovado em: 24/10/2016

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2017

Histórico

  • Recebido
    24 Abr 2016
  • Aceito
    04 Out 2016
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