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MOTIVAÇÃO E REALISMO NA FILOSOFIA MORAL DE HUME

RESUMO

Neste texto argumento que a filosofia moral de Hume tem uma base realista num sentido específico. Os sentimentos "peculiares" da moralidade, as formas morais de dor e prazer na contemplação das ações, sentimentos e caracteres dos outros, estão assentados sobre uma base pertencente à nossa sensibilidade que envolve o fato bruto da realidade da dor e do prazer. Argumento que a ênfase de Hume na "praticalidade" da moral não está a serviço prioritariamente de um projeto filosófico de explicação do fenômeno moral, mas remete ao fundamento realista da moralidade em sentimentos humanos: "coisas" sentidas por seres humanos a respeito de outros seres humanos. Embora com implicações para a discussão tradicional sobre a ontologia moral de Hume, minha análise procura mostrar que o fundamento encontrado responde, de acordo com a orientação empirista em filosofia, a uma pergunta anterior sobre o que é real quando estão em jogo os interesses práticos de nossas vidas, por oposição aos teóricos.

Palavras-chave:
Filosofia moral de Hume; Motivação; Realismo; Sentimento moral

ABSTRACT

I argue that Hume's moral philosophy is, basically, realist in that the "peculiar" sentiments constituting morality, the moral forms of pain and pleasure in the contemplation of actions, sentiments and characters are based on our sensibility as it reveals the brute realities of pain and pleasure. I argue that the place of pride Hume gives to the "practicality" of morals is not primarily in the service of the explanation of the moral phenomenon, it concerns rather the realist grounding of morality in the human sentiments: what we feel in regard to other human beings. In spite of the implications to the traditional discussion about Hume's morals ontology, my analysis aims to show that such a grounding answers, in tandem with the empiricist commitments of Hume's philosophy, the previous question about what is real when what concerns us are the practical interests of our lives, not merely the theoretical ones.

Keywords:
Hume's philosophy of morals; Motivation; Realism; Moral sentiment

"[Hume] is far from inconsistent, but betrays a greater awareness of the real contours of human motivation than his successors." (Simon Blackburn. "The Flight to Reality", p. 46)

1. O problema da motivação moral

Hume é bem convincente a respeito de uma "vantagem" da filosofia (T 3.1.1/1-D496 ) quando do seu tratamento da moralidade. A vantagem relaciona-se ao seguinte fato: "A moral é um tema que nos interessa mais que qualquer outro" (T 3.1.1/1-D495-61 1 As passagens do Tratado de Hume serão identificadas com "T", seguidas da indicação do Livro, da Parte, da Seção e do parágrafo segundo a edição de Norton e Norton para a Oxford University Press (2000), e, depois do hífen, virá a indicação da página da tradução de Deborah Danowski para a Unesp da seguinte forma: "D496". Utilizarei a tradução brasileira. ). Esse nosso interesse na moralidade é apresentado por Hume, no começo do livro 3 do Tratado, como sendo devido à sua influência sobre nossas paixões e ações, e é nessa medida que a moralidade é o objeto da filosofia prática, precisamente porque se supõe que "influencie nossas paixões e ações, e que vá além dos juízos calmos e impassíveis do entendimento" (T3.1.1/1-D497). A moralidade é, então, para Hume, "um princípio ativo" em relação às "ações dos seres racionais" (idem). Essa característica da moralidade, que é confirmada pela experiência como um fato, pode ser chamada a sua praticalidade. "Isso se confirma pela experiência corrente, que nos informa que os homens são freqüentemente governados por seus deveres, abstendo-se de determinadas ações porque as julgam injustas, sendo impelidas a outras porque julgam tratar-se de uma obrigação" (idem).

Mas qual é exatamente a vantagem que é conferida à filosofia quando ela lida com a moralidade, que está relacionada com a sua praticalidade?

A concepção de Hume da tarefa da filosofia com relação à moralidade é apresentada, nos seus termos técnicos, como esta de determinar mediante análises e argumentos se "será por meio de nossas idéias ou impressões que distinguimos entre o vício e a virtude, e declaramos que uma ação é condenável ou louvável?" (T3.1.1/3-D496, grifos originais). Essa questão identifica em termos humeanos qual é o problema a respeito da origem da moral, e as fontes previstas por Hume como as únicas - talvez não completamente excludentes para ele - possibilidades são a razão e os sentimentos. Mas perguntemo-nos, mais uma vez: qual é exatamente a vantagem para a filosofia moral, na sua empreitada de lidar com o problema da origem da moral por meio de análises e argumentos, que advém da praticalidade da moral?

Uma possibilidade seria que a praticalidade da moral permitiria a apresentação de um argumento irresistível a respeito da disputa. Quanto a isso, é bem conhecido o argumento motivacional direto de Hume sobre a impotência da razão na moral: "A moral desperta paixões, e produz ou impede ações. A razão, por si só, é inteiramente impotente quanto a esse aspecto. As regras da moral, portanto, não são conclusões de nossa razão" (T3.1.1/6-D497).

Parece que não há maneira de evitar a conclusão de que algo que mereceria o nome de "exigência motivacional"2 2 "Motivacional" porque o tópico é este dos motivos que levam à ação, como no famoso dito de Hume: "a razão, sozinha, não pode nunca ser motivo para uma ação da vontade" (T2.3.3/1-D449). Cf. a apresentação de Philippa Foot desse ponto: [...] algo que realmente é uma característica do juízo moral: o caráter de guia da ação da moralidade, no que Hume tanto insistiu e que tomou como o fundamento da sua filosofia moral. A moralidade, Hume afirmou, é necessariamente prática, servindo para produzir e evitar a ação, e eu irei chamar isso de 'a exigência da praticalidade de Hume'" ("Does Moral Subjectivism Rest on a Mistake?", p. 110). As traduções de todos os outros textos em língua estrangeira serão minhas. desempenha um papel crucial no argumento de Hume que visa mostrar as limitações da razão em relação ao estabelecimento das "distinções morais". Em um ponto em particular, quando Hume está argumentando contra o racionalismo de Samuel Clarke, ele apresenta uma condição para uma solução satisfatória para o problema filosófico de que está tratando. Ele afirma que é necessário que, mesmo que o racionalista consiga mostrar que existem as tais relações eternas e imutáveis que constituem o bem e o mal morais (as diferenças racionais abstratas baseadas nos ajustes e desajustes das coisas), os efeitos dessas relações sobre as ações das criaturas racionais precisam ser demonstrados serem necessariamente os mesmos. Isso, para Hume, é mostrar que existe uma "conexão entre a relação e a vontade" de todo ser racional; e ele exige, nesse sentido, que seja provado que "essa conexão é tão necessária que deve ter lugar e exercer sua influência em toda mente bem intencionada, ainda que a diferença entre essas mentes seja, sob outros aspectos, imensa e até infinita" (T3.1.1/22-D505).

Quanto a essa exigência, pode-se pensar que ela não apresenta uma espécie de condição internalista, ou seja, uma exigência de que as medidas do certo e do errado, que são leis eternas de fato obrigatórias para as mentes de todos os seres racionais, devam efetivamente produzir as ações dessas mentes. Pois Hume parece adotar quanto a esse assunto, nesse contexto, uma posição anti-internalista: "Uma coisa é conhecer a virtude, e outra conformar a vontade com ela" (T3.1.1/22-D505). Na sequência, Hume, então, apresenta a exigência mencionada: a demonstração do efeito necessário das "relações" sobre as mentes de todos os seres racionais bem-intencionados. Essa é a "exigência motivacional". De acordo com sua apresentação nesse contexto argumentativo, portanto, é necessário que lidemos filosoficamente com a praticalidade da moral (e isso, aparentemente, independentemente de preocupações internalistas). Desse modo, qual é a natureza da "exigência motivacional" no contexto dialético do tratamento filosófico dos fundamentos da moral?

Pode parecer, não obstante o anterior, que nós deveríamos responder a essa pergunta atentando para a maneira de Hume apresentar a tarefa filosófica em mãos: a de explicar a origem das distinções morais. Desse modo, para sermos capazes de explicar a origem da moral seria necessário que reconhecêssemos a sua praticalidade. Fazendo isso, nós poderíamos então usufruir a "vantagem" que Hume atribui à filosofia moral.

Entretanto, existem razões para suspeitarmos que o interesse filosófico de Hume na "explicação" de algo não seja um assunto assim tão simples. A dificuldade pode estar sendo empurrada para um estágio posterior. Neste ponto, é importante fazer referência a três passagens que podem sugerir - contra o que penso ser o caso - a visão de que Hume se interessaria quase que exclusivamente por "explicações". A seção que antecede à famosa "Dos Motivos que Influenciam a Vontade" (T2.3.3) termina com um resumo do que foi feito até então e esclarece o que se seguirá como disso: [...] tendo provado que todas as ações da vontade têm causas particulares, passo agora a explicar quais são essas causas e como elas operam" (T2.3.2/10-D448).

As outras duas passagens iriam implicar claramente o interesse "explicativo" de Hume com relação às origens da moral. O texto a seguir mostraria, primeiramente, um forte comprometimento de Hume com o modelo conativista da crença-desejo da explicação da ação.

Nada pode ser mais real, ou nos interessar mais, que nossos próprios sentimentos de prazer e desprazer; e se estes forem favoráveis à virtude e desfavoráveis ao vício, nada mais pode ser preciso para a regulação de nossa conduta e comportamento (T3.1.1/26-D509).

E o seu registro explícito de um fato poderia, então, reforçar ainda mais a atribuição a Hume de um forte interesse "explicativo":

[...] Qual a natureza dessas impressões e de que maneira atuam sobre nós? Não podemos hesitar por muito tempo quanto à resposta; devemos afirmar que a impressão derivada da virtude é agradável, e a procedente do vício é desagradável (T 3.1.2/2-D510).

Pode-se facilmente interpretar Hume, por causa de passagens como essas, como estando quase que exclusivamente interessado na explicação do fenômeno complexo da moral.3 3 Cf. Christine Korsgaard para a concepção de um critério de "adequação explicativa": "[...] Os efeitos práticos e psicológicos de nossas idéias morais constituem um critério de adequação explicativa para uma teoria dos conceitos morais. A nossa teoria dos conceitos morais precisa conter recursos para explicar por que e como essas idéias podem nos influenciar de maneiras tão profundas. [...] Os racionalistas [Samuel Clarke entre eles] certamente não explicaram como a razão provê a motivação moral. Eles simplesmente asseveraram que ela o fazia. [...] Esse é o elemento de verdade na crítica de Hume. Os racionalistas não explicaram por que a moralidade parece tão importante para nós e nos move da maneira em que faz" (Sources of Normativity, p. 12, grifos originais). Na medida, no entanto, em que Korsgaard separa radicalmente o critério acima exposto de um critério de "adequação normativa e justificatória" (cf. p. 13 e ss.), parece que é ao menos dubitável que ela faça justiça à posição de Hume com a sua caracterização dela como mantendo uma solução de "endosso refletido" para a "questão normativa" (cf. pp. 49-89). Não estou certo sobre o que pensa Barbara Herman sobre esses assuntos (ela que é tão simpática às posições de Korsgaard no que toca ao seu desafio, quanto à razão prática, para os humeanos) se nos ativermos a passagens como as seguintes. Num momento, ela afirma que "teorias redutivas", que concebem o motivo moral como estranho e que procuram explicá-lo em termos de causas confiáveis para o resultado moral, mantêm que "o que conta é que nós termos uma disposição moral é explicado, e, nesse sentido limitado, justificado. Eu penso que isso é um erro". Noutro momento, ela afirma que "importa muito que o motivo moral - e desse modo nosso caráter moral - tenha disponível alguma transparência com relação à sua origem. Isso não quer dizer que nós precisemos ser capazes de recuperar e endossar todos os passos de desenvolvimento que produzem nosso caráter. Mas a estrutura do caráter que é o produto desse processo deve ter conexão reflexiva com o conteúdo moral. Ele não é neutro. Quando submetido à pressão reflexiva, as condições do nosso envolvimento com a moralidade afetam os recursos que temos à disposição para uma resposta moral" ("Making Room for Character", pp. 4-5). Parece a mim que Hume poderia concordar com essa última exigência. Mas então a posição de Hume não seria "redutiva", atribuição com a qual Korsgaard está comprometida. Cf. ainda as observações de Herman: "Será consistente com essa espécie de internalismo [internalismo-de-teoria: do qual a preocupação seria a natureza e o propósito de diferentes direções possíveis para o desenvolvimento humano, em oposição ao que um indivíduo em um determinado ponto do tempo seria capaz de fazer] ver os fatos da natureza humana como constrangendo a figura de uma vida moral sem, no entanto, a determinar. Nós devemos ser capazes de falar de possíveis direções de crescimento moral e de desenvolvimento sem termos que argumentar a favor de qualquer idéia teleológica forte sobre o florescimento humano. Experiências, especialmente experiência morais, criam possibilidades de caráter" (p. 6). Mas será necessário que voltemos a esses textos para uma compreensão alternativa de sua importante mensagem.

2. Razões para duvidar da exclusividade do interesse explicativo de Hume

Podemos encontrar razões para duvidar da exclusividade do interesse explicativo de Hume nas seguintes considerações. A referência de Hume à realidade e ao nosso interesse nos "nossos sentimentos [morais] de prazer e insatisfação" pode não ter como objetivo promover o modelo conativista crença-desejo da explicação da ação. Hume, alternativamente, poderia estar interessado em apontar, dessa maneira, para a importância do contato com uma realidade na esfera da moralidade. Seria como se ele estivesse nos dizendo que nada pode ser mais real, e ser exatamente por isso crucial para a moralidade, do que nossos sentimentos de prazer e insatisfação. Nós deveríamos, então, notar que Hume não utiliza na passagem citada a expressão "sensações" de prazer e dor, mas afirma serem "sentimentos de prazer e insatisfação", estados com uma complexidade certamente superior a estes dos prazeres e dores físicos e mentais simpliciter. Não obstante, para nós, assim como com os últimos, são eles os mais reais e que nos concernem mais. De fato, Hume afirma que "nada é mais real" sem mais. Como isso não deveria ser de importância fundamental para a moralidade, para as boas e más ações?

Há, no entanto, uma determinação filosófica geral desse "mais real" que tem consequências epistemológicas muito importantes para a concepção humeana da moralidade. Ela também tem consequências para a concepção metaética da base última para as nossas decisões a respeito de padrões morais e de valores (Hume, no entanto, qualifica o que é exigido para a correção desses padrões e para a concepção adequada desses valores). A determinação filosófica é uma típica do empirismo: sensações são o que nos oferece os inputs da realidade, isto é, nos coloca em contato com o que há, com a realidade. Pode-se pensar nisso como a concepção empirista da "confiança nos nossos sentidos" (por oposição à "evidência dos nossos sentidos"), agora, para Hume, com relação à moralidade. Vejamos esses pontos no texto a seguir.

Ninguém precisa estranhar que até aqui eu tenha tentado estabelecer meu sistema com base na pura razão, sem quase nunca citar sequer a opinião de filósofos ou historiadores, e que agora passe a apelar para a autoridade popular, opondo opiniões da plebe ao raciocínio filosófico. Deve-se observar que as opiniões dos homens, neste caso, carregam consigo uma autoridade peculiar, sendo, em grande medida, infalíveis. A distinção entre o bem e o mal morais se funda no prazer ou na dor que resulta da contemplação de um sentimento ou caráter; e como esse prazer ou essa dor não podem ser desconhecidos da pessoa que os sente, segue-se que, em cada caráter, há tanto vício ou tanta virtude quanto cada um põe nele; é impossível nos enganarmos quanto a isso. E embora nossos juízos concernentes à origem de um vício ou de uma virtude não sejam tão certos quanto os que se referem a seus graus, como o problema aqui não diz respeito à origem filosófica de uma obrigação, mas a uma simples questão de fato, não é fácil conceber como poderíamos cometer um erro (T3.2.8/8-D586).

Esse texto distingue duas preocupações com a moralidade. Uma é filosófica, num sentido específico, ao dizer respeito à origem da obrigação presente nas determinações "virtude" e "vício". Outra é com uma questão de fato com respeito aos graus de vício e virtude nos sentimentos e caracteres. Com relação à segunda preocupação, Hume sustenta que decisivo é o que nós sentimos de prazer ou dor quando contemplamos estes "objetos" especiais: sentimentos e caracteres. E sobre esse ponto, que concerne ao funcionamento da nossa sensibilidade, Hume afirma a sua convicção epistemológica: esse prazer ou dor não podem ser desconhecidos da pessoa que os sente. A partir disso Hume chega a uma importante conclusão: haverá tanta realidade de vício e virtude em qualquer sentimento ou caráter quanto há de prazer ou dor sentidos quando de suas contemplações, e não haverá qualquer possibilidade de erro a respeito disso. Essa é a base - o funcionamento da nossa sensibilidade - que é essencial à constituição dos nossos sentimentos morais (nesse sentido, então, o ponto do texto não diz respeito à possibilidade do relativismo: uma tentativa de barrá-lo por meio da impossibilidade de vícios e virtudes objetivos provocarem nos "observadores" dores e prazeres que meramente os detectariam de um modo relativo ao observador. O movimento de Hume vai na direção oposta).

Podemos ver que o ponto aqui diz respeito à base da moralidade em função do que Hume afirma numa nota aposta ao texto citado. Nela Hume distingue uma terceira preocupação com os graus do vício e da virtude, isto é, a preocupação com a objetividade na determinação deles, o que, por implicação, faz o ponto sobre a nossa sensibilidade na passagem no corpo do texto ser sobre os fundamentos da moralidade.

Essa proposição [que há em cada caráter tanto vício ou tanta virtude quanto cada um põe nele, porque esse prazer ou essa dor não podem ser desconhecidos da pessoa que os sente] tem de ser rigorosamente verdadeira para toda qualidade determinada apenas pelo sentimento. Consideraremos posteriormente em que sentido se pode falar de um gosto correto ou errado no que diz respeito à moral, à retórica ou à beleza. Enquanto isso, podemos observar que existe tal uniformidade nos sentimentos gerais da humanidade, que essas questões se tornam pouco importantes (T3.2.8/8n-D586n10).

Em relação ao que estou chamando a "base" da moralidade - o funcionamento de nossa sensibilidade em relação a ela -, a nota acima afirma a posição filosófica de Hume, e então permite que, por um lado, constatemos algo e, por outro, façamos uma pergunta. Podemos ver, primeiramente, que Hume é otimista em relação à universalidade dos sentimentos morais quando o problema é o de sua correção ou incorreção: há uma uniformidade nos "sentimentos gerais da humanidade" ("gerais" aqui querendo dizer "comuns à espécie"). A pergunta que ocupa os intérpretes de Hume, então, é: quando ele diz, nesses termos gerais, que uma "qualidade" é "determinada pelo sentimento", o que exatamente quer dizer determinar nesse contexto?

Há duas posições diametralmente opostas sobre o assunto, e há espaço intermediário para posições que tendem mais para um ou outro dos extremos. Uma versão do que veio a ser chamado de "projecionismo" atribui a Hume uma "teoria do erro" (error-theory): John Mackie (1980)MACKIE, J. "Hume's Moral Theory". Londres: Routledge, 1980. sustenta que Hume afirma que a realidade é sem qualidades morais mesmo que nossa mentalidade nos faça acreditar nelas como reais. No extremo oposto está a leitura de Hume como um "realista". De acordo com Fate Norton, nossos sentimentos morais fazem justiça a certos "correlatos objetivos" que existem fora de nós, e que são as "causas particulares" dos prazeres e dores peculiares que são esses sentimentos. Mesmo que virtudes e vícios sejam "relacionais", eles são "propriedades reais", presumivelmente por serem os "correlatos objetivos" dos nossos sentimentos morais.4 4 Cf. "Hume's Moral Ontology", pp. 197, 202, 205.

Posições intermediárias no espectro interpretativo são ocupadas por abordagens como as seguintes. Contra o projecionismo, e a favor do realismo, Pitson argumenta, usando uma distinção entre propriedades que os objetos têm absolutamente e outras que eles somente têm relativamente, que é possível atribuir a Hume a posição de que existem certas qualidades nos objetos da apreciação moral (caracteres) que são disposições desses objetos de nos fazer sentir certos sentimentos que são morais (de aprovação ou desaprovação). Nessa medida, a existência de qualidades morais envolve os objetos aos quais elas são atribuídas, de um lado, e os observadores delas, que são constituídos de modo a serem afetados pelos objetos como eles são, de outro. Seguindo essa interpretação, nós deveríamos notar que para Hume nós temos um "sentido moral", isto é, há uma maneira de nós obtermos "informação" que depende da ocorrência de certas impressões.5 5 Cf. "Projectionism, Realism, and Hume's Moral Sense", pp. 68, 71, 77. Cf. também: "A função do sentido moral, então, é nos facultar discernir as qualidades de caráter que tornam as ações virtuosas ou viciosas, assim como os sentidos corporais - quando adequadamente corrigidos - nos oferecem informações sobre as características permanentes dos objetos que subjazem as suas aparências momentâneas" (pp. 81-82); "Mas o sentido moral ele mesmo - assim como o sentido externo - opera como uma fonte de informações somente com o apoio da razão ou entendimento" (p. 87); "O sentido moral realiza a sua tarefa quando ele nos habilita a discernir as qualidades da mente ou caráter que fazem uma ação (junto com as suas tendências) ser virtuosa ou viciada. Ao fazer isso ele nos oferece informações sobre ações - sobre suas causas e efeitos - de uma maneira que evita que possamos equacionar a teoria de Hume com a negação de que há qualquer coisa nessas ações correspondendo aos nossos sentimentos morais" (p. 89).

A interpretação de Annette Baier é bastante sutil em alguns pontos cruciais. De um lado, há algo "'realmente lá' no sentido mais forte que Hume pode aceitar" (p. 1936 6 As páginas entre parênteses a seguir se referirão à obra de Baier A Progress of Sentiments. , cf. também pp. 191, 195). De outro lado, a posição de Hume também merece ser chamada de "projecionismo" (p. 195). A interpretação em questão é extremamente interessante para os meus propósitos por causa da sua orientação geral, precisamente por considerar ser um erro tentar separar os nossos objetivos explicativos dos nossos objetivos avaliativos em relação à moral (cf. p. 193). Eu gostaria de caracterizar a posição de Baier um pouco melhor.

A primeira coisa a notar é que de acordo com ela o vocabulário do "cientista" da natureza humana, isto é, o vocabulário, em parte, de Hume nas suas explicações das paixões no Livro 2 do Tratado, é um vocabulário moral. Ele está lidando com orgulho e humildade, amor e ódio, como paixões, e suas manifestações interessam-nos muito moralmente. Baier sustenta que o vocabulário da psicologia poderia ter sido um vocabulário estabelecido a partir de um ponto de vista especial, um ponto de vista esotérico; mas que para Hume não foi, pois ele foi tomado do nosso vocabulário ordinário, o vocabulário moral (cf. pp. 191-193). "A sua [de Hume] psicologia realmente é uma psicologia moral, em função de que as suas categorias descritivas são tomadas do discurso moral" (p. 193). O que acontece, entretanto, é que quando nós fazemos psicologia o que nós queremos é explicar, isto é, nós queremos saber por que as pessoas fazem certas coisas em certas circunstâncias. Nossas explicações fazem referência a caracteres e traços de caráter nas pessoas que realmente as caracterizam psicologicamente. Esses são traços da mentalidade dos agentes que estão "realmente lá", e que são "traços de caracteres humanos geralmente recorrentes", eles são caracteres particulares "repetidos e repetíveis" (p. 191). Entretanto, embora o vocabulário da explicação tenha uma origem moral, ele não constitui uma linguagem moral quando o nosso interesse é meramente o de explicar.

A segunda coisa a notar a respeito da posição de Hume, de acordo com Baier, concerne à constituição de "uma outra linguagem", essa da moralidade (E 272, cf. p. 193). Essa outra linguagem confere um estatuto diferente aos traços de caráter dos agentes, dá-lhes o estatuto de virtudes ou vícios. Não há um nome especial para a humildade como um fenômeno moral, a não ser a sua avaliação como um vício. A constituição dessa linguagem moral é o que exige um ponto de vista especial, que é esse da avaliação. Mas é precisamente nesse ponto que a avaliação constrói sobre uma realidade. "[...] Tais qualidades [traços de caráter que ocorrem efetivamente, tais como serenidade e alegria] precisam existir em algumas pessoas, a fim de que o julgador moral possa torná-las bem-vidas e aprová-las, e assim julgá-las virtudes" (p. 194). Mas o que essa avaliação adiciona à realidade? Como ela dá um novo estatuto a um traço psicológico real?

Sobre isso, a posição de Hume é a de que as avaliações morais "douram" o mundo humano que está sendo avaliado, dessa maneira colorindo o mundo "com as cores tomadas emprestadas do sentimento interno", e nessa medida fazendo surgir "de um modo uma nova criação" (E 294). Baier comenta:

O estatuto moral virtuoso ou viciado, e a preocupação com esse estatuto, é a nova criação a que o juízo moral dá lugar, mas o que ele doura ou tinge com a avaliação são traços psicológicos reais, tão reais como quaisquer outras qualidades. Hume [...] compara virtudes e vícios, na medida em que eles são traços julgados, distintos de traços simpliciter, às cores aplicadas a algo, mobília ou objeto natural, que presumivelmente tinham alguma cor anteriormente, antes de serem tingidos ou dourados. Não há nenhuma boa razão para vê-lo como comparando o estatuto de virtudes àquele das "qualidades secundárias" se essas devem ser vistas como de alguma maneira menos reais que outras, as chamadas "primárias" (p. 194).

Essas observações claramente apontam para o fato de que, se as cores dos objetos estavam neles antes do "tingimento" ou do "dourar", então, o "objeto tingido ou dourado" tem agora como consequência igualmente a nova cor neles, ou seja, também realmente. Baier afirma o seguinte sobre o assunto:

Os traços de caráter estão "lá", nas pessoas nas quais eles são encontrados. O "dourado", ou a aprovação, está nos aprovadores, mas a sua aprovação efetiva faz uma diferença real para as pessoas aprovadas - ela lhes dá um estatuto particular numa comunidade moral, e pode lhes causar orgulho, ou lhes encorajar a conservar ou reforçar os traços de caráter aprovados (talvez pudéssemos chamar isso de "realismo interno"?) (p. 195).

Nós poderíamos dizer que de acordo com Baier a "realidade moral" é concebida por Hume em termos da "diferença real" que as aprovações fazem a todos os participantes envolvidos na avaliação das pessoas. Mas é crucial nesta altura não recair na visão de que essa "diferença real" é meramente a diferença "expressivista" nas reações, nos comportamentos, mesmo que isso também seja algo que se pensa que acontece. A diferença em questão é, ao contrário, uma diferença no estatuto das pessoas e de seus traços de caráter.

É claro que é necessário algo no peito humano [...] para reconhecer e avaliar o que está nos peitos humanos, e é claro que é necessária uma comunidade de avaliadores morais mútuos para "criar" um estatuto moral particular, tal como "depravado" ou "de caráter perfeito". A "ontologia" moral de Hume (se precisamos usar tais noções) das virtudes e vícios, necessariamente nos peitos humanos se eles estão em algum lugar, conjuntamente à "máxima indubitável", que limita a habilidade "criativa" do sentimento moral ao mero dourar ou repintar, o protege efetivamente de qualquer foco de preocupação a respeito da "realidade" daquilo ao que a sua linguagem moral faz referência (p. 195, grifos originais).

O que temos até o presente momento é, então, com a ajuda de Baier, uma espécie de realismo moral em Hume. Eu gostaria agora de voltar ao que me parece ser um aspecto importante dessa visão de Hume: o realismo que pertence à base da moralidade. É necessário admitir, no entanto, que a conexão apresentada por Baier entre explicação e avaliação não esclarece, por si só, a maneira e com quais meios Hume poderia estar apresentando e defendendo uma concepção da dimensão normativa da moralidade. Mas existem elementos importantes no que foi visto até aqui, e que dão uma indicação de caminho a seguir no exame que faremos na sequência.

3. A natureza e a importância dos sentimentos morais

No que se segue, irei detalhar o modo realista e naturalista de Hume articular a natureza básica e a origem dos sentimentos morais.

A visão de Hume do que é normalmente chamado de "juízo moral" é complexa e sutil o suficiente para que recusemos uma compreensão comum de sua filosofia moral.7 7 É digno de nota que tanto Foot, que está se afastando de Hume, quanto Baier, uma humeana insuspeita, abordam os temas tratados no presente trabalho em termos de "juízo moral". Essa concepção pode ter seu preço em relação à compreensão do pensamento de Hume. A sua posição não é uma forma de "hedonismo", se o hedonismo é a tese de que é com base nos nossos estados hedônicos, com uma fenomenologia específica, que nós fazemos asserções sobre as características das ações e caracteres. "Não inferimos que um caráter é virtuoso porque nos agrada; ao sentirmos que nos agrada dessa maneira particular [como um prazer particular], nós de fato sentimos que é virtuoso" (T3.1.2/3-D511). Hume também sustenta que a "nossa aprovação está implícita no prazer imediato que estes [todo tipo de beleza, gostos e sensações - e caracteres] nos transmitem" (idem). Ou seja, nós estamos lidando com uma forma imediata de sensibilidade, que não poderia ser formada por certos estados constituídos de modo independente dos objetos que os produzem.

A posição não é hedonista, então, no sentido tradicional em que essa é a doutrina de que avaliações morais são determinadas pelas experiências de prazeres e dores meramente físicos e mentais. "[...] É evidente que, sob o termo prazer, compreendemos sensações muito diferentes, e que não apresentam mais que uma distante semelhança umas com as outras, suficiente apenas para fazer que sejam expressas pelo mesmo termo abstrato. [...] Tanto um objeto inanimado quanto o caráter ou os sentimentos de uma pessoa podem nos dar satisfação; contudo, como a satisfação é diferente, isso nos impede de confundir nossos sentimentos relativos a cada um deles, e nos faz atribuir virtude à pessoa, mas não ao objeto" (T3.1.2/4-D511).8 8 NB: aqui Hume usa, quase que indiferentemente, "sensação" e "sentimento". Não obstante, ele parece querer registrar uma acepção intransitiva da "sensação" do prazer e uma transitiva dos "sentimentos relativos" a vários objetos. Nesse caso do caráter ou dos sentimentos de pessoas - quando a perspectiva é moral -, nós estamos lidando com um prazer ou uma dor que são de um "tipo peculiar", um prazer ou uma dor que em razão da maneira e das circunstâncias em que são produzidos são de fato um prazer ou uma dor morais. Vejamos isso mais de perto.

Quando Hume está argumentando contra o tipo de racionalismo que sustenta que virtude e vício são "questões de fato, cuja existência [podemos] inferir pela razão" (T3.1.1/25-D508), ele desafia a tese solicitando que examinemos um caso de homicídio voluntário de todos os ângulos na tentativa de encontrar o que seria o "fato, ou existência real, que chamamos vício". O vício, segundo Hume, está em outro "lugar": "O vício nos escapa por completo, enquanto consideramos o objeto. Não o encontraremos até dirigirmos nossa reflexão para o nosso próprio íntimo e darmos com um sentimento de desaprovação, que se forma em nós contra essa ação" (idem). Devemos tomar cuidado com essa maneira de Hume se expressar.

Levando em consideração o que já vimos, podemos perceber que Hume não está sugerindo que o vício de um homicídio voluntário está em nós: que nós somos viciados ao reagirmos de uma maneira particular à ação em questão. O que ele quer dizer é que, ao reagirmos sentimentalmente (o que não deve ser visto como mera reação comportamental de cunho expressivo) a um objeto "complexo" (Hume chama tal "objeto" de "a totalidade do complexo objeto, composto da ação e da situação" [T3.1.1/19n-D504n3]), nós de fato com isso temos a constituição da dimensão moral do que aconteceu. O que estou chamando de "reagir sentimentalmente" é uma maneira de nós nos sentirmos em relação ao que acontece, algo que depende da nossa constituição como seres com sensibilidade. "Desse modo, quando declaramos que uma ação ou caráter são viciosos, tudo o que queremos dizer é que, dada a constituição de nossa natureza, experimentamos um sentimento [a feeling or sentiment] de censura quando os contemplamos" (T3.1.1/26-D508).

O que vimos até agora é algo que Hume toma como um fato a nosso respeito. É simplesmente desse modo que acontece. Entretanto, a respeito dos aspectos específicos da natureza desses sentimentos morais que nós sentimos, Hume apresenta-nos a concepção realista dupla do fenômeno. Em primeiro lugar, Hume insiste na importância de nós efetivamente olharmos para como as coisas são de fato, portanto no sentido ordinário de alguém que é "realista". E agora, em segundo lugar, podemos voltar àqueles textos já citados no início deste trabalho e entendê-los de outra maneira.

A próxima questão é: qual a natureza dessas impressões e de que maneira atuam sobre nós? Não podemos hesitar por muito tempo quanto à resposta; devemos afirmar que a impressão derivada da virtude é agradável, e a procedente do vício é desagradável. A cada instante a experiência nos convence disso (T3.1.2/2-D510).

Bem, essa afirmação está inserida num rationale filosófico realista para a sua visão sobre a natureza das virtudes e dos vícios.

Nada pode ser mais real, ou nos interessar mais, que nossos próprios sentimentos de prazer e desprazer; e se estes forem favoráveis à virtude e desfavoráveis ao vício, nada mais pode ser preciso para a regulação de nossa conduta e comportamento (T3.1.1/26-D509; minha ênfase).

Não há como negar o papel crucial que jogam o prazer e a dor no fenômeno moral de acordo com Hume, não obstante o fato de a posição não ser hedonista. O principal interesse de Hume parece ser conferir uma dimensão realista dupla à sua filosofia moral. E mesmo que possa parecer paradoxal, essa é a mensagem fundamental da afirmação de que "a moralidade [...] é mais propriamente sentida que julgada [...]" (T3.1.2/1-D510).

Mas o que mais pode ser dito a respeito desses prazer e dor morais? Passagens como a seguinte não parecem muito elucidativas: "Por que uma ação, sentimento ou caráter é virtuoso ou vicioso? Porque sua visão causa um prazer ou desprazer de um determinado tipo" (T3.1.2/3-D510). A respeito desse problema, Hume parece querer conduzir nossa atenção para, precisamente, as condições e circunstâncias de acordo com as quais esse tipo de prazer e dor particulares nos são transmitidos, e é nisso que deveríamos encontrar a solução do problema.

A mais importante dessas circunstâncias a ressaltar nesse momento é que, mesmo que os objetos desses tipos de prazer e dor sejam seres humanos, eles não são do tipo de prazer e dor que possam ser confundidos com as "causas" das "paixões indiretas".

Além disso, nem todo sentimento de prazer ou dor derivado de um caráter ou ação é do tipo peculiar que nos faz louvar ou condenar. As boas qualidades de um inimigo são penosas para nós; mas, ainda assim, podem merecer nossa estima e respeito. É somente quando um caráter é considerado em geral, sem referência ao nosso interesse particular, que causa essa sensação ou sentimento em virtude do qual o denominamos de moralmente bom ou mau (T3.1.2/4-D512; minha ênfase, a segunda).

Portanto, na moralidade, nós estamos lidando com uma forma de prazer e dor que são sentidos de uma perspectiva que não envolve nossos interesses particulares, quando naturalmente contemplamos as ações, os sentimentos e os caracteres dos outros, e até de nós mesmos.

Outra circunstância importante é esta do que a virtude e o vício produzem naturalmente no que toca às nossas paixões. Como a virtude e o vício são "marcados" por prazer e dor respectivamente, e são relacionados às pessoas, a nós e aos outros, será, então, inevitável que eles devam produzir, por meio do mecanismo psicológico da dupla relação entre impressões e ideias, uma das quatro paixões indiretas, dependendo de se tratar de uma virtude ou de um vício, de ser eu ou uma outra pessoa o seu sujeito.

Essas duas "circunstâncias" a respeito dos nossos sentimentos morais que "constituem" virtude e vício, que são formas "peculiares" de prazer e dor e que são naturalmente acompanhadas das paixões indiretas, são tornadas relevantes nas "explicações" humeanas somente ante o pano de fundo da dimensão realista e naturalista da sua filosofia moral. Essa dimensão também convida, sem quaisquer sobressaltos, para o próximo passo na execução do projeto filosófico de Hume em relação à moral, a saber, responder a uma

simples questão: por que uma ação ou sentimento, quando são contemplados ou considerados de uma forma geral, produzem em nós certa satisfação ou desconforto? É a resposta a essa questão que nos permitirá mostrar a origem da retidão ou depravação morais dessa ação ou sentimento, sem precisar buscar relações e qualidades incompreensíveis, que jamais existiram na natureza, e nem sequer em nossa imaginação, como objetos de uma concepção clara e distinta (T3.1.2/10-D515).

E com essa resposta nós estaremos lidando, novamente, com resultados que convencerão porque eles serão obtidos a partir de uma base que é realista e naturalista: há qualidades que agradam a nós ou aos outros ou que são úteis para nós ou para os outros, e será precisamente nessa medida que produzirão em seus contempladores as formas específicas daqueles prazer e dor que são os sentimentos morais. Mas o que é de interesse para as preocupações do presente trabalho é que será via simpatia, corrigida pela perspectiva "sem referência a nosso interesse particular", que nos importaremos moralmente pelos prazeres e dores dos pacientes daqueles de quem contemplamos "ação, sentimento ou caráter", ou seja, dos agentes.

  • 1
    As passagens do Tratado de Hume serão identificadas com "T", seguidas da indicação do Livro, da Parte, da Seção e do parágrafo segundo a edição de Norton e Norton para a Oxford University Press (2000), e, depois do hífen, virá a indicação da página da tradução de Deborah Danowski para a Unesp da seguinte forma: "D496". Utilizarei a tradução brasileira.
  • 2
    "Motivacional" porque o tópico é este dos motivos que levam à ação, como no famoso dito de Hume: "a razão, sozinha, não pode nunca ser motivo para uma ação da vontade" (T2.3.3/1-D449). Cf. a apresentação de Philippa Foot desse ponto: [...] algo que realmente é uma característica do juízo moral: o caráter de guia da ação da moralidade, no que Hume tanto insistiu e que tomou como o fundamento da sua filosofia moral. A moralidade, Hume afirmou, é necessariamente prática, servindo para produzir e evitar a ação, e eu irei chamar isso de 'a exigência da praticalidade de Hume'" ("Does Moral Subjectivism Rest on a Mistake?", p. 110FOOT, P. "Does Moral Subjectivism Rest on a Mistake?". In: R. Teichmann (ed.). Logic, Cause and Action. Essays in Honour of Elizabeth Anscombe. Royal Institute of Philosophy Supplement: 46; Cambridge University Press, 2000. pp. 107-123.). As traduções de todos os outros textos em língua estrangeira serão minhas.
  • 3
    Cf. Christine Korsgaard para a concepção de um critério de "adequação explicativa": "[...] Os efeitos práticos e psicológicos de nossas idéias morais constituem um critério de adequação explicativa para uma teoria dos conceitos morais. A nossa teoria dos conceitos morais precisa conter recursos para explicar por que e como essas idéias podem nos influenciar de maneiras tão profundas. [...] Os racionalistas [Samuel Clarke entre eles] certamente não explicaram como a razão provê a motivação moral. Eles simplesmente asseveraram que ela o fazia. [...] Esse é o elemento de verdade na crítica de Hume. Os racionalistas não explicaram por que a moralidade parece tão importante para nós e nos move da maneira em que faz" (Sources of Normativity, p. 12, grifos originais). Na medida, no entanto, em que Korsgaard separa radicalmente o critério acima exposto de um critério de "adequação normativa e justificatória" (cf. p. 13 e ss.), parece que é ao menos dubitável que ela faça justiça à posição de Hume com a sua caracterização dela como mantendo uma solução de "endosso refletido" para a "questão normativa" (cf. pp. 49-89). Não estou certo sobre o que pensa Barbara Herman sobre esses assuntos (ela que é tão simpática às posições de Korsgaard no que toca ao seu desafio, quanto à razão prática, para os humeanos) se nos ativermos a passagens como as seguintes. Num momento, ela afirma que "teorias redutivas", que concebem o motivo moral como estranho e que procuram explicá-lo em termos de causas confiáveis para o resultado moral, mantêm que "o que conta é que nós termos uma disposição moral é explicado, e, nesse sentido limitado, justificado. Eu penso que isso é um erro". Noutro momento, ela afirma que "importa muito que o motivo moral - e desse modo nosso caráter moral - tenha disponível alguma transparência com relação à sua origem. Isso não quer dizer que nós precisemos ser capazes de recuperar e endossar todos os passos de desenvolvimento que produzem nosso caráter. Mas a estrutura do caráter que é o produto desse processo deve ter conexão reflexiva com o conteúdo moral. Ele não é neutro. Quando submetido à pressão reflexiva, as condições do nosso envolvimento com a moralidade afetam os recursos que temos à disposição para uma resposta moral" ("Making Room for CharacterHERMAN, B. "Making Room for Character". In: ______. Moral Literacy. Cambridge (MA): Harvard UP, 2007. pp. 1-28.", pp. 4-5). Parece a mim que Hume poderia concordar com essa última exigência. Mas então a posição de Hume não seria "redutiva", atribuição com a qual Korsgaard está comprometida. Cf. ainda as observações de Herman: "Será consistente com essa espécie de internalismo [internalismo-de-teoria: do qual a preocupação seria a natureza e o propósito de diferentes direções possíveis para o desenvolvimento humano, em oposição ao que um indivíduo em um determinado ponto do tempo seria capaz de fazer] ver os fatos da natureza humana como constrangendo a figura de uma vida moral sem, no entanto, a determinar. Nós devemos ser capazes de falar de possíveis direções de crescimento moral e de desenvolvimento sem termos que argumentar a favor de qualquer idéia teleológica forte sobre o florescimento humano. Experiências, especialmente experiência morais, criam possibilidades de caráter" (p. 6).
  • 4
    Cf. "Hume's Moral OntologyNORTON, D. F. "Hume's Moral Ontology". Hume Studies (10th Anniversary Issue), pp.189-214, 1984.", pp. 197, 202, 205.
  • 5
    Cf. "Projectionism, Realism, and Hume's Moral SensePITSON, A. E. "Projectionism, Realism, and Hume's Moral Sense Theory". Hume Studies, Vol. XV, Nr. 1, pp. 61-92, April 1989.", pp. 68, 71, 77. Cf. também: "A função do sentido moral, então, é nos facultar discernir as qualidades de caráter que tornam as ações virtuosas ou viciosas, assim como os sentidos corporais - quando adequadamente corrigidos - nos oferecem informações sobre as características permanentes dos objetos que subjazem as suas aparências momentâneas" (pp. 81-82); "Mas o sentido moral ele mesmo - assim como o sentido externo - opera como uma fonte de informações somente com o apoio da razão ou entendimento" (p. 87); "O sentido moral realiza a sua tarefa quando ele nos habilita a discernir as qualidades da mente ou caráter que fazem uma ação (junto com as suas tendências) ser virtuosa ou viciada. Ao fazer isso ele nos oferece informações sobre ações - sobre suas causas e efeitos - de uma maneira que evita que possamos equacionar a teoria de Hume com a negação de que há qualquer coisa nessas ações correspondendo aos nossos sentimentos morais" (p. 89).
  • 6
    As páginas entre parênteses a seguir se referirão à obra de Baier A Progress of Sentiments.
  • 7
    É digno de nota que tanto Foot, que está se afastando de Hume, quanto Baier, uma humeana insuspeita, abordam os temas tratados no presente trabalho em termos de "juízo moral". Essa concepção pode ter seu preço em relação à compreensão do pensamento de Hume.
  • 8
    NB: aqui Hume usa, quase que indiferentemente, "sensação" e "sentimento". Não obstante, ele parece querer registrar uma acepção intransitiva da "sensação" do prazer e uma transitiva dos "sentimentos relativos" a vários objetos.

Referências

  • BAIER, A. "A Progress of Sentiments, Reflections on Hume's Treatise". Cambridge (MA): Harvard UP, 1991.
  • BLACKBURN, S. "The Flight to Reality". In: R. Hursthouse, G. Lawrence, W. Quinn (eds.). Virtues and Reasons, Philippa Foot and Moral Theory Oxford: Clarendon, 1995. pp. 35-56.
  • FOOT, P. "Does Moral Subjectivism Rest on a Mistake?". In: R. Teichmann (ed.). Logic, Cause and Action Essays in Honour of Elizabeth Anscombe. Royal Institute of Philosophy Supplement: 46; Cambridge University Press, 2000. pp. 107-123.
  • HERMAN, B. "Making Room for Character". In: ______. Moral Literacy Cambridge (MA): Harvard UP, 2007. pp. 1-28.
  • HUME, D. "A Treatise of Human Nature". Oxford University Press, D.F.: Norton and M.J. Norton, 2000.
  • HUME, D. "Enquiry concerning Human Understanding". Oxford: Clarendon, 1975. [Selby-Bigge and Nidditich edition].
  • HUME, D. "Tratado da Natureza Humana". Tradução de Deborah Danowski. São Paulo: Ed. Unesp, 2000.
  • KORSGAARD, C. "Sources of Normativity". Cambridge: Cambridge UP, 1996.
  • MACKIE, J. "Hume's Moral Theory". Londres: Routledge, 1980.
  • NORTON, D. F. "Hume's Moral Ontology". Hume Studies (10th Anniversary Issue), pp.189-214, 1984.
  • PITSON, A. E. "Projectionism, Realism, and Hume's Moral Sense Theory". Hume Studies, Vol. XV, Nr. 1, pp. 61-92, April 1989.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Maio 2019
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2019

Histórico

  • Recebido
    06 Dez 2017
  • Aceito
    04 Abr 2018
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