Acessibilidade / Reportar erro

A TEMPORALIDADE EM “L’ÊTRE ET LE NÉANT”

RESUMO

O presente artigo pretende restituir o exame ontofenomenológico da ipseidade e da temporalidade em “L’être et le néant” (1943) a partir de dois momentos, quais sejam: fenomenologia das três dimensões temporais e ontologia da temporalidade. Este duplo exame não poderá ser pensado sem uma definição prévia do para-si como ipse temporal que falta de... para..., isto é, como ser que, enquanto nada de ser, é uma falta de ser (falta de coincidência consigo) que busca, em vão, preenchê-la. A impossibilidade deste preenchimento (ou impossibilidade de coincidência), como buscaremos evidenciar, é ontologicamente necessária para que a temporalização do serpara-si não se deixe infestar com a inércia típica do ser-em-si.

Palavras-chave
Temporalidade; Ipseidade; Ontologia; Fenomenologia

ABSTRACT

The present article intends to restore, from the Sartrean work L'être et le néant (1943), the ontophenomenological examination of ipseity and temporality, understanding this examination in two moments: phenomenology of the three temporal dimensions and ontology of temporality. This double exam could not be thought without a previous definition of for-itself’s as temporal ipseas lack of from… to…, that is, as a for-itself which, while nothingness of being, is a lack of being (lack of coincidence) that constantly seeks to fill it. The impossibility of this fill-up (or impossibility of coincidence), as we shall see, is ontologically necessary so that the temporality of the being-for-itself does not let itself infest with the typical inertia of the being-in-itself.

Keywords
Temporality; Ipseity; Ontology; Phenomenology

I. A ipseidade do para-si

Sartre, após o exame ontofenomenológico das estruturas imediatas do para-si, exame realizado ao longo da segunda parte, capítulo I, de “L’être et le néant”,1CAEYMAEX, F. “Temps et Temporalité”. In: Dictionnaire Sartre. Sous la direction de François Noudelmann et Gilles Philippe. Paris: Éditions Honoré Champion, 2013. pp. 483-485. define o ser-para-si, em oposição ao ser-em-si, como presença não idêntica a si mesma (a consciência é consciência (de) si e não identidade a si). Esta definição, en passant, designa o para-si como um ser que se transcende em direção ao mundo com o intuito de preencher (sempre ilusoriamente, não deixemos de indicar) o seu nada/falta de ser. O para-si, segundo o filósofo, “existe de início como falta em ligação sintética imediata com o que lhe falta [...], (e) o evento puro pelo qual a realidade-humana surge como presença ao mundo é apreensão de si mesma enquanto sua própria falta” (Sartre, 2010a_______. “L’être et le néant - Essai d’ontologie phénoménologique”. Paris: Éditions Gallimard, “Tel”, 2010a., p. 125). Alinhavar a falta de ser do para-si ao movimento de transcendência que ele realiza em direção ao mundo reverberará, como veremos, na concepção sartreana da temporalidade, tema do capítulo II, “La temporalité”, da segunda parte da obra dos anos 1943, que complementará a tese sartreana da falta de ser do para-si ao elucidar a ipseidade e a temporalidade; senão vejamos.

No parágrafo acima, dissemos que o ser-para-si é uma falta de ser, falta que faz com que ele constantemente busque preenchê-la. Esta busca, por seu turno, é ordenada em torno a um para-si faltante (futuro) que faria com que o parasi (presente) deixasse de ser seu nada de ser ao advir como identidade. Neste escopo, esta falta ontológica, mais precisamente, a busca de supressão desta falta, é galvanizada pela ipseidade que estrutura a temporalidade. Segundo Alain Flajoliet, em seu artigo “Ipseité et temporalité”, este nível existencial somente pode ser amplamente entendido se se elucida o complexo (e bastante difícil) movimento forjado em três tempos (todos complementares uns aos outros). Tecida esta observação, não nos resta muito senão recuperar a longa, porém preciosa, indicação do comentador citado acima:

Em primeiro lugar, a ontologia fenomenológica fixa o sentido de ser do para-si como ipseidade, isto é, como existente que falta de... para... Aliis verbis: como nadificação da presença (a) si facticial que ‘somos’ em direção a um possível si-na-forma-do-emsi que não podemos ser, sob os auspícios de um valor sempre buscado, mas jamais alcançado.// Em segundo lugar, a fenomenologia ontológica da temporalidade descreve sucessivamente as três dimensões temporais da ipseidade: futurização (futurisation), presentificação (présentification), passadificação (passéification). Passagem da ontologia à fenomenologia.// Em terceiro lugar, a ontologia fenomenológica da temporalidade revela o ser das três dimensões temporais descritas e a dinâmica que traz à luz o surgimento ontológico do novo presente futurizante, deixando atrás de si o antigo presente passadificado. Retorno à ontologia pela fenomenologia (Flajoliet, 2005FLAJOLIET, A. “Ipseité et temporalité”. In: Sartre. Désir et liberté. Paris: PUF, 2005. pp. 59-84. , pp. 59-60).

Desta atentíssima observação preliminar, seriamos capazes de compreender não apenas a dinâmica temporalizadora do para-si, mas, principalmente, a superação de um tipo de filosofia da ordem da instantaneidade que, em “Carnets de la Drôle de Guerre” (1939-1940), constrange Sartre.2 2 Nesta obra-diário, doravante abreviada CDG, lemos: “é com certa reserva que abordo o exame da temporalidade. O tempo sempre me pareceu um quebra-cabeça filosófico e eu construí, sem lhe dar atenção, uma filosofia do instante [...]” (Sartre, 2010b, p. 495). Ora, esta “filosofia do instante”, como sabemos, encontra-se em “La transcendance de l’Ego” (1934): neste ensaio, o movimento de transcendência da consciência em direção ao X qualquer era sincopado pelo instante e, desta lida, não havia a possibilidade de pensar o fluxo temporal da consciência a partir do passado ou do futuro. Sendo assim, a análise ontofenomenológica que se seguirá possui como ímpeto primordial a elucidação da afirmação segundo a qual o ser-para-si é, em seu ser, um ser das lonjuras. Ora, conceber a Temporalidade a partir do conceito de nada/nadificação é fazer com que a transcendência da consciência, seu movimento para fora de si mesma em direção ao mundo, não seja mais pensado como instantes justapostos. Tratase “de marcar o caráter fora de si da consciência sem reduzi-la a uma soma de instantes, mostrar a relação a si da consciência sem confundi-la com ‘a pura relação de imanência e de coesão’ que lhe empregava Bergson” (Caeymaex, 2013CAEYMAEX, F. “Temps et Temporalité”. In: Dictionnaire Sartre. Sous la direction de François Noudelmann et Gilles Philippe. Paris: Éditions Honoré Champion, 2013. pp. 483-485., p. 484).

Esboçada a estrutura geral da presente exposição em curso, comecemos compreendendo o que significa, para o filósofo francês, a ipseidade do parasi. Em primeiro lugar, sabe-se que o termo ipseidade designa aquilo que é determinante para diferenciar um ser de outro, aquilo que faz com que este para-si presente seja si mesmo em detrimento à multiplicidade dos demais para-si. Se se trata de definir o caráter pessoal do indivíduo, sua personalização/ pessoalidade, já sabemos que isso não poderia, jamais, decorrer de um Ego que, desde “La transcendance de l’Ego”, não faz parte da consciência: disso, a assertiva sartreana segundo a qual o Ego não é o polo personalizante da consciência, mas, ao contrário, é a consciência em sua ipseidade fundamental que permite a aparição desse Ego como fenômeno transcendente dessa ipseidade. Dado o seu caráter de objeto, Sartre observa que esse Ego aparece à consciência como um em-si transcendente, como um existente do mundo humano e não como sendo da consciência: “com efeito, nós vimos, é impossível dizer do em-si que ele seja si. Simplesmente ele é” (Sartre, 2010a_______. “L’être et le néant - Essai d’ontologie phénoménologique”. Paris: Éditions Gallimard, “Tel”, 2010a., p. 140).

O Ego, portanto, não poderia representar o si da consciência e não passa senão de um signo da personalidade. Este ponto parece divergir substancialmente do ensaio sobre o ego: lá, como se sabe, o Ego da consciência reflexiva (em nível de reflexão impura, cúmplice) sinalizava a personalidade, ao passo que nas tramas da obra em tela, ele não é senão um signo da personalidade. Disso, de duas, uma: ou a consciência (para-si) é agora personalizada (porque este Ego não é senão um signo da personalidade) ou ela permanece, como em TE, impessoal. Para Sartre, a extirpação do Ego não significa que tenhamos de conceber a consciência como pura e simples contemplação impessoal, pois a ipseidade, definida como presença a si, é uma evidência íntima do vivido e valeria, portanto, como índice de personalidade/pessoalidade do para-si: “o que confere a um ser a existência pessoal, não é a possessão de um Ego [...], mas é o fato de existir por si como presença a si” (Sartre, 2010a_______. “L’être et le néant - Essai d’ontologie phénoménologique”. Paris: Éditions Gallimard, “Tel”, 2010a., p. 140).

Se esta primeira acepção da ipeseidade versa sobre a presença a si enquanto índice de individuação, é preciso observar que existe, igualmente, um segundo aspecto da ipeseidade ou segundo aspecto essencial da pessoal. Enquanto circuito, a ipseidade une o para-si a seus possíveis através do mundo, “na ipseidade, meu possível se reflete sobre minha consciência e a determina como o que ela é”. Neste segundo aspecto, “a ipseidade representa um grau de nadificação mais avançado que a pura presença a si do cogito pré-reflexivo, no sentido em que o possível que eu sou não é uma presença ao para-si como o reflexo ao refletidor, mas presença-ausente” (Sartre, 2010a_______. “L’être et le néant - Essai d’ontologie phénoménologique”. Paris: Éditions Gallimard, “Tel”, 2010a., p. 140). É sob a forma de uma falta de ser que a ipseidade ou segundo aspecto essencial da pessoa se constitui, e constitui-se como falta de ser em detrimento do mundo: sem o mundo não há ipseidade e não há pessoa, sem a ipseidade não há pessoa e não há mundo. Destas duas definições (a ipseidade como presença a si e como circuito), Sartre não deixa de frisar um terceiro aspecto da ipseidade que engloba as duas características precedentes: ela é ainda uma estrutura totalizante de remissão, o que indica que “o para-si é si mesmo lá longe, fora de alcance, nas lonjuras de suas possibilidades. E é esta livre necessidade de ser lá longe o que somos sob a forma de falta que constitui a ipseidade ou segundo aspecto essencial da pessoa” (Sartre, 2010a_______. “L’être et le néant - Essai d’ontologie phénoménologique”. Paris: Éditions Gallimard, “Tel”, 2010a., p. 140).

Para De Coorebyter (2000, p. 572)DE COOREBYTER, V. Sartre face à la phénoménologie: Autour de “L’intentionnalité” et “La transcendance de L’ego”. Paris: Éditions OUSIA, 2000., aquela terceira acepção é a mais englobante por incidir necessariamente sobre as outras duas figuras interdependentes da ipseidade enquanto presença a si e circuito: a consciência apenas pode ser presença a si se ela for, necessariamente, consciência tética do X transcendente. Trata-se aqui, portanto, da estrutura de remissão reflexorefletidor da consciência, estrutura ontofenomenológica que irá designá-la como uma consciência que jamais poderá coincidir consigo mesma.3 3 Esta fórmula, concebida para caracterizar a estrutura ontológica de um ser que é seu próprio nada de ser, ser-para-si, “vai contra as representações deterministas alheias ao modo de ser do para-si e trata a ‘realidade humana’, ser-no-mundo, como uma realidade no meio do mundo” (Mouille, 2000, p. 73), em suma, como um ser-no-meio-do-mundo (être-au-milieu-du-monde). Ora, afirmar que a consciência é presença a si indica que, presente a si (e não idêntica a si), ela é, ao contrário da plenitude maciça do ser-em-si, um ser que é nada de ser: “a presença a si supõe que uma fissura impalpável deslize no ser, o para-si é presença a si porque ele não é de fato si. A presença a si é a marca viva do nada” (De Coorebyter, 2013, p. 393). Caso queiramos compreender esta estrutura, devemos lembrar, como na “Introdução” de EN, que o ser da consciência está em questão para ela, ou seja, seu ser é menos uma coincidência do que uma presença a si, não há adequação plena de seu ser consigo mesma, adequação que, por definição, pertencerá somente ao ser-em-si, ser que é o que é, plenitude maciça de identidade. A consciência, ao contrário desta total plenitude identitária, opaca e maciça, é uma descompressão de ser, entrementes, não traz em seu ser a plena identidade.

Para tornar palatável o que dissemos, debrucemo-nos no exemplo sartreano da crença.4 4 Exemplo ofertado pelo filósofo no capítulo I, “Les structures immédiates du pour-soi”, de EN. Se eu creio, não posso dizer que esta crença seja o que é no sentido identitário A=A, mas, antes, que ela é consciência (de) crença. Há aqui, como salienta o filósofo, um duplo jogo de remissão, qual seja, a consciência (de) crença é crença e a crença é consciência (de) crença. Cada um dos termos remete, necessariamente, ao outro, e são, ao mesmo tempo, diferentes um do outro. Postular que minha crença é consciência (de) crença é produzir um juízo ontológico em vez de um juízo de identidade: “o sujeito e o atributo são radicalmente diferentes, embora na unidade indissolúvel de um mesmo ser” (Sartre, 2010a_______. “L’être et le néant - Essai d’ontologie phénoménologique”. Paris: Éditions Gallimard, “Tel”, 2010a., p. 111). Ao ser consciência (de) crença, a consciência é, nesta mesma atividade, consciência (de) si. A remissão perpétua do reflexo ao refletidor e do refletidor ao reflexo sinaliza, fundamentalmente, a dinâmica ontofenomenológica de uma consciência que, por ser nada de ser, não identidade a si, deve estar voltada necessariamente ao X qualquer (aqui, no caso, a crença).

A ipseidade, ritmada por esta estrutura reflexo-refletidora, não poderia ser pensada - em nenhum de seus três aspectos - como uma estrutura reflexiva justamente pelo fato de que o jogo reflexo-refletidor, enquanto englobando a presença a si e o circuito, é eminentemente uma consciência irrefletida. Sobre este ponto, aliás, não podemos deixar de sublinhar que Sartre insiste, igualmente, no caráter não posicional do circuito: o sujeito é relação a si a partir do mundo, a título de ser das lonjuras, falta de ser que projeta e descobre seus possíveis sem, no entanto, apreendê-los em uma consciência tética que reconduziria ao Ego ou à interioridade. O que busco diante do mundo é a coincidência com um para-si que eu sou e que é consciência do mundo. Mas esse possível que está presente-ausente não téticamente à consciência, não está presente a título de objeto de uma consciência posicional (Sartre, 2010a_______. “L’être et le néant - Essai d’ontologie phénoménologique”. Paris: Éditions Gallimard, “Tel”, 2010a., p. 141). Lembremos, para facilitar o entendimento desta passagem, o exemplo da sede: a sede preenchida que infesta minha sede atual não é consciência (de) si como sede preenchida, mas é consciência tética do copo-sendo-bebido e consciência não tética de si. A consciência apenas se transcende em direção ao copo do qual ela é consciência tética e, como correlativo desta consciência, há uma consciência possível não tética que é o copo-bebido e que infesta o copo cheio como seu possível e o constitui como copo a ser bebido. Portanto, o circuito de remissão não faz irromper uma consciência reflexiva, faz indicar tão somente que a consciência é consciência tética do mundo e consciência não tética de seus possíveis.

Enquanto circuito, ou seja, enquanto remissão incessante do reflexo ao refletidor e do refletidor ao reflexo, a ipseidade não pode ser enquadrada como um índice ordinário de pessoalização (como, por exemplo, a pessoalização promovida pelo Ego psíquico do opúsculo sobre o ego transcendente). Ao contrário disso, faz-se necessário frisar que ela está assentada inexoravelmente em uma falta de ser que impulsiona o para-si a buscar a identificação de si nas lonjuras,5 5 Notemos, não obstante, que esta busca da totalidade faltada é operada sob a forma de um desejo de ser: neste escopo, deve-se compreender que o desejo é bem um apelo de ser cujo sentido ontológico é a ipseidade como transcender infestado por um si-ideal (si idêntico) sempre faltado. Ora, e se este apelo/busca de ser recebe o nome de valor, teríamos de dizer que não há ipeseidade sem valor e não há valor sem ipseidade. em possíveis que jamais poderiam preencher totalmente a falta: “[...] a realização de um possível, ou preenchimento dessa falta determinada, não finda em nenhuma apreensão de si, mas, ao contrário, indica o aparecimento de uma nova falta na qual se encarnará a busca do Si” (De Coorebyter, 2000DE COOREBYTER, V. Sartre face à la phénoménologie: Autour de “L’intentionnalité” et “La transcendance de L’ego”. Paris: Éditions OUSIA, 2000., p. 575). A ipseidade, ou relação do para-si a seus possíveis, será precisamente esta busca interminável pela identidade.

Em relação à presença a si, esta não poderia estabelecer um sujeito dito pessoal (no sentido ordinário de pessoa tal como provido pelo Ego psíquico) à medida que esta estrutura fissura o para-si, impedindo-o de realizar o si ideal, a unificação do reflexo ao refletidor e do refletidor ao reflexo. Ademais, lembremos que a presença a si do para-si é sempre uma maneira de não ser a sua própria coincidência, a presença a si “não é nem o Si como tal e nem consciência do Si porque em ambos os casos isso suporia que o Si pudesse ser alcançado ou realizado como um ser distinto da consciência” (De Coorebyter, 2000DE COOREBYTER, V. Sartre face à la phénoménologie: Autour de “L’intentionnalité” et “La transcendance de L’ego”. Paris: Éditions OUSIA, 2000., p. 574).6 6 Segundo Sartre (2010a, p. 140): “Nós mostramos, ao contrário, que o si, por princípio, não pode habitar a consciência. Ele é, caso queiramos, a razão do movimento infinito pelo qual o reflexo remete ao refletidor e este ao reflexo; por definição, ele é um ideal, um limite”. Bem ao contrário de uma identificação, o aparecimento da presença a si sinaliza a distância deste si à consciência, a fissura interna que atravessa e marca o vivido (só há presença a si se a consciência, ao contrário do ser-em-si que é o que é, for, em seu nada de ser, um ser que não é o que é e é o que não é, isto é, uma falta). Daí que, contrariamente ao que poderíamos supor, a personalização da consciência não é da ordem da plenitude/totalidade, mas expressa o abismo intransponível de uma busca incessante pelo si-idealnormativo (consciência (de) si idêntica a si, o que significa, n’outras palavras, o em-si-para-si).

Tendo como horizonte tudo o que já dissemos, seríamos forçados a concluir que a ipseidade, porque assentada no nada de ser do para-si, em seu irrealizável preenchimento, deve conduzir-nos a compreender o sujeito, ou seja, aquilo que faz do para-si uma pessoa individual, como uma incessante e interminável aspiração ao Si, e cuja realização estaria, necessariamente (porém igualmente ilusória) na realização dos possíveis por meio de um para-si faltante: “somente o faltante vale como singularidade possuída e percebida como tal” (De Coorebyter, 2000DE COOREBYTER, V. Sartre face à la phénoménologie: Autour de “L’intentionnalité” et “La transcendance de L’ego”. Paris: Éditions OUSIA, 2000., p. 575). Sob essa ótica, diremos que a ipseidade não poderia, tout de suite, indicar definitivamente a pessoa, mas tão somente indicar seus contornos porquanto ela permaneça totalmente tencionada a um faltante que lhe entregaria a totalidade do si: “o ipse se prova necessariamente como fracasso de uma irrealizável tentativa de totalizar-se e que o infesta” (Flajoliet, 2005FLAJOLIET, A. “Ipseité et temporalité”. In: Sartre. Désir et liberté. Paris: PUF, 2005. pp. 59-84. , p. 63).

Como ipse, o para-si se reporta a si mediante seu engajamento em um mundo que, enquanto plenitude de ser, faz com que este para-si transcenda a si mesmo rumo a este mundo com a esperança de que ele lhe dará, pela realização de um possível, o si-idêntico-desejado.7 7 “[...] o mundo anuncia ao para-si o que ele é refletindo seus possíveis, dando-lhe a ilusão de tornar-se Si ao realizá-los, quando, na verdade, cada realização revela novamente um possível e, portanto, a busca do Si” (De Correbyter, 2013, p. 254). Enquanto esboço de uma “pessoa” quase vazia,8 8 Este termo é usado por nós porque vimos que a ipseidade é da ordem do pré-reflexivo e, ao mesmo tempo, sinaliza a distância a si de uma consciência que é reflexo-refletidora. o ipse é sinônimo de finitude na medida em que o para-si realiza tal ou tal possível e, desta lida, descarta todos os demais: nesse sentido, o ipse poderia ser compreendido como singularizador da liberdade do para-si ao fixála nesses projetos (possíveis) em exclusão a todos os outros.9 9 Se o ipse é contorno de singularização a partir dos possíveis do para-si, não podemos esquecer que estas possibilidades são dadas sempre em situação e que esta situação guarda um sentido fáctico: é facticial que eu viva uma situação de proletário brasileiro em vez de viver uma situação de proletário francês, por exemplo. Nesta toada, seríamos conduzidos a imputar à ipseidade um caráter facticial: “É [...] certo que a ipseidade é facticial no sentindo em que o projeto de mundo está necessariamente ‘engajado’ em um ‘ponto de vista’” (Flajoliet, 2005, p. 63). Deste ligeiro arrazoado conceitual acerca da ipseidade, diremos que ela é a “pessoa” (como um ser que falta de... para..., uma totalidade fissurada) buscando livremente (leia-se, desejando10 10 “Transcendência ek-stática, o ipse sai do que ele é presentemente e vai em direção ao que ele deseja ser sem jamais poder ser” (Flajoliet, 2005, p. 68). Observemos, à guisa deste comentário, que a impossibilidade de preenchimento do desejo será condição sine qua non do movimento temporal, afinal, se houvesse preenchimento, isto é, fusão do para-si ao si-idêntico (tornando-se, então, em-si-para-si), o para-si se petrificaria e se tornaria uma pura inércia. ), graças à sua falta originária, o preenchimento de seu nada de ser a partir de suas próprias possibilidades (possibilidades dadas por meio do mundo), mas que jamais logrará êxito nesta busca porquanto a consciência seja incessantemente uma estrutura reflexo-refletidor que indica que ela não pode ser consciência não tética de si (presença a si) caso não seja, em contrapartida, consciência tética do objeto (aliás, não nos esqueçamos, é esta estrutura que fissura o vivido e faz com que a consciência seja menos uma identidade do que uma presença).

Neste horizonte, “a ipseidade, para Sartre, é, na melhor das hipóteses, um saber quase inefável, e na pior das hipóteses, uma busca infinita; a pessoa se conhece como ipse por sua busca de si” (De Coorebyter, 2013_______. “Ipséité”. In: Dictionnaire Sartre. Sous la direction de François Noudelmann et Gilles Philippe. Paris: Éditions Honoré Champion, 2013. p. 254. , p. 254), busca dinamizada sob a forma do desejo de ser. Se o ipse é esta busca desejante (leia-se movimento incessante de transcendência da consciência para fora de si mesma em direção ao mundo) pelo si idêntico por meio dos possíveis, somos conduzidos a entrever na ipseidade a raiz mesma da temporalidade, pois o para-si, enquanto ipse, é um ser das lonjuras, uma tensão em direção aos seus possíveis: “é ‘no tempo’ que o para-si é seus próprios possíveis sob o modo do ‘não ser’, é no tempo que meus possíveis aparecem no horizonte do mundo que se tornam meus” (Sartre, 2010a_______. “L’être et le néant - Essai d’ontologie phénoménologique”. Paris: Éditions Gallimard, “Tel”, 2010a., p. 141).

Desvelada a ipseidade do para-si como possibilização que transcende o presente existente em direção àquilo que lhe falta, devemos agora passar ao exame fenomenológico das três dimensões temporais. É somente desvelando a significação do Temporal que poderemos, em seguida, elucidar a transcendência do para-si - seu ser - como temporalidade (ontologia fenomenológica da temporalidade).

II. Fenomenologia das três dimensões temporais

Antes de passarmos efetivamente para a análise das três dimensões temporais (passado, presente e futuro), expliquemos, muito brevemente, o sentido da dissociação entre a fenomenologia das três dimensões temporais e a ontologia da temporalidade. Em primeiro lugar, a passagem de uma a outra é entendida por Sartre como passagem da “descrição dos três ekstases temporais” a uma análise da “temporalidade como estrutura totalitária organizando nela as estruturas ek-státicas secundárias” (Sartre, 2010a_______. “L’être et le néant - Essai d’ontologie phénoménologique”. Paris: Éditions Gallimard, “Tel”, 2010a., p. 165); análise que se desdobra no estudo da temporalidade estática para, em seguida, abordar a dinâmica temporal. Tal como observa Flajoliet (2005, pp. 69-70)FLAJOLIET, A. “Ipseité et temporalité”. In: Sartre. Désir et liberté. Paris: PUF, 2005. pp. 59-84. , a ontofenomenologia sartreana costuma não dissociar fenomenologia e ontologia, mas, muito ao contrário, debruça-se simultaneamente na descrição do fenômeno e na elucidação do ser desse fenômeno: “a dissociação anunciada pelos dois títulos (Fenomenologia das três dimensões temporais e Ontologia da temporalidade) não é totalmente colocada em prática”, pois “a descrição do sentido do passado, do presente, do futuro, é sustentada pela compreensão ontológica do ipse como existente faltando de... para... [...] e pela crítica das concepções ontológicas tradicionais” (Flajoliet, 2005FLAJOLIET, A. “Ipseité et temporalité”. In: Sartre. Désir et liberté. Paris: PUF, 2005. pp. 59-84. , p. 70).

O estudo das três dimensões temporais está alicerçado em uma précompreensão do ser da temporalidade e, inversamente, o ser da temporalidade será o ser dos fenômenos temporais (passado, presente e futuro): a futurização do ipse, movimento pelo qual ele se arranca do presente e abandona o passado, apenas poderá ser amplamente compreendida como “sentido de ser unitário das três dimensões fenomenais temporais” (Flajoliet, 2005FLAJOLIET, A. “Ipseité et temporalité”. In: Sartre. Désir et liberté. Paris: PUF, 2005. pp. 59-84. , p. 70). Este ponto explicitado, passemos efetivamente à análise das três dimensões temporais, não como mera coleção/série infinita de “agoras”,11 11 Definindo as três dimensões temporais como série infinita de momentos justapostos uns aos outros, cairemos forçosamente no seguinte paradoxo: o passado não é mais, o futuro não é ainda e o presente não é porque é o limite de uma divisão infinita: “assim, toda a série se aniquila duplamente, pois o ‘agora’ futuro, por exemplo, é um nada enquanto futuro que se realizaria em nada quando ele passar ao estado de ‘agora’ presente” (Sartre, 2010a, p. 142). mas como momentos estruturados de uma síntese original.

Como Sartre, comecemos pela análise do passado: de início, o filósofo francês reúne um arrazoado de autores (sobretudo Descartes, Bergson e Husserl12 12 Apenas indicaremos, sumariamente, a crítica que Sartre tece em relação a cada um deles. ) para mostrar que cada um deles equivoca-se quanto ao sentido do passado e, finalmente, à própria temporalidade. Bergson, próximo de um entendimento popular da consciência, parece recusar a existência real do passado ao dar-lhe um tipo de “existência honorária”: tornando-se passado, um evento não cessa de ser, mas cessa de agir, perde sua eficácia e confina-se para sempre em seu lugar. Sob uma tal ótica, a concepção bergsoniana do passado não poderia explicar, por exemplo, a interpenetração entre passado e presente, isto é, o fato de que o passado possa “renascer” para infestar o presente. Sairemos desta aporia se, como Husserl, em suas “Lições para uma fenomenologia interna do tempo” (1893-1917), tratássemos a consciência presente como um jogo de retenções que engatam as consciências passadas e conservam-nas em sua data, impedindo que sejam aniquiladas? Se o fenomenólogo alemão parte de um cogito instantâneo, não há como sair dele e, portanto, o passado (bem como o futuro, a protensão) não pode romper jamais “os vidros do presente”.

Já Descartes, contrariamente a estes dois pensadores, afirma que o passado não é mais: à medida que a verdade do cogito é devida a uma certeza primeira e indubitável e que a existência pode ser infinitamente dividida, o filósofo metafísico afirma, desta lida, que não há nenhuma relação necessária entre o que foi e o que será. A crítica sumária a estes três filósofos permitirá afirmar que o passado deve ser pensado, finalmente, como passado do presente. Se considerarmos o fenômeno temporal em sua totalidade, veremos que o passado é inicialmente meu passado, ele existe em função de certo ser que sou: “o passado não é nada (rien), ele não é mais o presente, mas em sua própria fonte acha-se vinculado a certo presente e a certo futuro” (Sartre, 2010a_______. “L’être et le néant - Essai d’ontologie phénoménologique”. Paris: Éditions Gallimard, “Tel”, 2010a., p. 145). Do amigo Paul, por exemplo, podemos dizer hoje que ele “era” ou que ele “foi” estudante da Escola Politécnica nos anos 1920, e isso não no sentido de uma permanência qualquer de Paul no tempo, mas no sentido em que o quadragenário que ele é hoje se reporta ao jovem estudante que ele foi. A condição ontológica da possibilidade desse fenômeno, “é que o sentido de ser do indivíduo Paul é a ipseidade como existência presente se projetando em direção a um possível irrealizável ao extrair-se de seu presente que se volta ao passado. É futurizando-se que o ipse presente constitui seu passado” (Flajoliet, 2005FLAJOLIET, A. “Ipseité et temporalité”. In: Sartre. Désir et liberté. Paris: PUF, 2005. pp. 59-84. , p. 71).

O ser presente, portanto, é o fundamento de seu próprio passado. Doravante, se o passado se caracteriza como passado de algo - ou de alguém -, devemos afirmar que temos um passado e que este passado, necessariamente, é passado em relação ao presente uma vez que “o passado pode muito bem infestar o presente, ele não pode sê-lo; é o presente que é seu passado” (Sartre, 2010a_______. “L’être et le néant - Essai d’ontologie phénoménologique”. Paris: Éditions Gallimard, “Tel”, 2010a., p. 148). Todavia, se afirmamos que temos/possuímos um passado, isso não significa, contudo, que o possuamos tal como possuiríamos um objeto qualquer do mundo, mas que somos nosso próprio passado: ter sido aluno da Escola Politécnica significa que o ser presente tem de ser, em seu ser, o fundamento de seu passado sendo ele mesmo esse passado.

Mas o que significa ser seu próprio passado? Como o presente poderia ser o passado? Em primeiro lugar, vejamos que o “era” é um modo de ser e, nesse sentido, eu sou meu passado ao invés de possuir um passado: se sou meu passado, isso significa que não me dissocio dele, mas sou afetado por ele “até a medula”; logo, sou aquele através do qual meu passado vem ao mundo. Por outro lado, é fato notório e incontestável que o passado é aquilo que não pode mais conter nenhuma possibilidade (por exemplo, não podemos modificá-lo13 13 Ainda que não possamos modificá-lo, é verdade, par contre, que detemos sempre a possibilidade de modificar sua significação enquanto ele é um ex-presente que teve um futuro. No mais, se não podemos modificar seu conteúdo, isso significa, forçosamente, que o passado que eu tenho de ser é da ordem da identidade absoluta do ser-em-si. Nesse sentido, eu sou o que eu sou no passado, aquilo que sou sem, contudo, poder vivê-lo novamente: “o passado é o em-si que eu sou enquanto ultrapassado” (Sartre, 2010a, p. 153). Precisamente por esta identidade absoluta, poderíamos dizer que o passado se assemelha ao valor, embora não o seja: “no valor, o para-si advém si ultrapassando e fundando seu ser, há retomada do em-si pelo si: desta lida, a contingência do ser cede o lugar à necessidade. O passado, ao contrário, é desde já em-si” (Sartre, 2010a, p. 155); é só no passado, por exemplo, que posso afirmar que fui feliz ou infeliz à medida que sou sempre para além do que sou, enquanto sou o que tenho de ser. A partir desta explicação, poderíamos compreender, por exemplo, o apego excessivo de algumas pessoas ao passado: ele representaria, finalmente, a superaçãoda ausência da identidade a si. É óbvio que tal empreitada está sujeita ao fracasso, pois sou meu passado apenas enquanto ser presente. em seu conteúdo), aquilo que consumiu todas as suas possibilidades, portanto, o passado que sou, eu o sou sem nenhuma possibilidade de não sê-lo; n’outras palavras, o passado que eu era é o que é, “é um em-si como as coisas do mundo. E a relação de ser que tenho de sustentar com o passado é uma relação do tipo do em-si, da identificação a si” (Sartre, 2010a_______. “L’être et le néant - Essai d’ontologie phénoménologique”. Paris: Éditions Gallimard, “Tel”, 2010a., p. 151).14 14 Em CDG, lemos: “O passado tem sobre a consciência toda a superioridade de consistência e de solidez, de opacidade também, que lhe confere o em-si. É no passado somente que a consciência pode existir sob o modo do em-si, e o passado não é senão a existência do para-si sob o modo do em-si” (Sartre, 2010b, p. 500). Poderíamos dizer que o passado é um em-si que fora para-si. Mas, se há pouco havíamos afirmado que somos o nosso passado, esta afirmação inicia uma contradição na medida em que não somos o nosso passado porque o erámos: “sou meu passado porque me nego no seio de meu ser” e “eu não sou meu passado porque me nego no seio de meu ser” (Flajoliet, 2005FLAJOLIET, A. “Ipseité et temporalité”. In: Sartre. Désir et liberté. Paris: PUF, 2005. pp. 59-84. , p. 71).

Ora, eu sou meu passado porquanto eu não possa negar que ele seja meu passado, e eu não sou o meu passado porquanto ele seja um ser que é o que é sob o modo idêntico do em-si15 15 Desta assertiva, observa-se o que o em-si não se encerra puramente em uma dimensão ôntica de materialidade. Enquanto em-si, o passado, contudo, “não é objeto do olhar do para-si. [...] O passado, enquanto coisa que somos sem posicionar, enquanto aquilo que assombra o para-si sem ser percebido, está atrás do para-si, fora de seu campo temático, o qual se encontra diante dele, como aquilo que ele esclarece” (Sartre, 2010a, p. 176). No mesmo parágrafo, Sartre indicará que o para-si somente pode apreender seu passado como não sendo (mais) esse passado. e no sentido em que eu já não sou mais o que eu era; conclusão: eu sou meu passado sob o modo de não sê-lo e “se eu não sou mais o que eu era, é necessário, no entanto, que eu tenha de sê-lo na unidade de uma síntese nadificadora que eu mesmo sustento no ser, caso contrário, eu não teria relação de espécie alguma com o que eu já não sou” (Sartre, 2010a_______. “L’être et le néant - Essai d’ontologie phénoménologique”. Paris: Éditions Gallimard, “Tel”, 2010a., p. 152). Enquanto ser que tem de ser seu passado, eu sou meu próprio passado, mas enquanto ser presente, o passado que eu era já não é mais o que eu sou: eu tenho de ser meu passado para não o ser e não tenho de sê-lo para sê-lo. Sob essa ótica, a relação do passado ao presente é constituída por meio de uma negação de tipo interna e não externa: enquanto sou um nada de ser presente (um não ser), eu sou meu passado (que é o que é sob a forma idêntica do serem-si) sob a forma nadificadora e, por isso, eu não sou meu passado (sob a forma da identidade) enquanto estou separado dele pelo não ser que sou, logo, “o ipse se nadifica perpetuamente em seu ser ao constituir-se à distância de si mesmo como presente futurizante de um passado” (Flajoliet, 2005FLAJOLIET, A. “Ipseité et temporalité”. In: Sartre. Désir et liberté. Paris: PUF, 2005. pp. 59-84. , p. 71).

Se falamos aqui de uma relação entre presente e passado a partir de uma negação interna, esta relação será, para Sartre, a relação do ipse à sua facticidade; o passado, tal como a facticidade, representa a contingência do em-si que o para-si tem de ser sem nenhuma possibilidade de não o ser. Ter um passado (ser facticial) significa estar situado, imerso em um ponto de vista que exclui todos os demais pontos de vista: Paul, enquanto ser que é seu próprio passado, tem de ser o que ele era, isto é, o aluno da Escola Politécnica em vez do aluno da Sorbonne. O passado, enquanto facticial, “é o que faz com que a cada instante eu não seja diplomata e marinheiro, que eu seja professor, ainda que eu não possa senão interpretar este ser sem jamais poder unir-me a ele” (Sartre, 2010a_______. “L’être et le néant - Essai d’ontologie phénoménologique”. Paris: Éditions Gallimard, “Tel”, 2010a., p. 154). Finalmente, se se poderia falar em uma essência do para-si, esta deveria ser buscada apenas no passado, pois é nele que o para-si é o que é sem, todavia, poder sê-lo. Com isso compreendemos o sentido da paradoxal assertiva sartreana segundo a qual o para-si não é o que é: ele é seu passado sem sê-lo porque está separado dele pelo não ser que ele é enquanto ser presente. Mas qual o sentido fenomenológico do presente?

Ao contrário do passado, o presente é todo ele para-si e guarda em seu cerne uma antinomia, qual seja: se, de um lado, define-se o presente pelo ser (é presente o que é oposto ao futuro que ainda não é e ao passado que não é mais), de outro, desvencilhá-lo do que ele não é (futuro e passado) seria concebê-lo como um instante infinitesimal, o limite ideal de uma divisão levada ao infinito. Assim, uma primeira definição do presente será a de que ele é, enquanto parasi, presença a, presença aos objetos mundanos: “a presença a... é uma relação interna do ser que é presente com os outros seres os quais ele é presente. [...] A presença a... significa a existência fora de si junto a...” (Sartre, 2010a_______. “L’être et le néant - Essai d’ontologie phénoménologique”. Paris: Éditions Gallimard, “Tel”, 2010a., p. 156). Como o para-si se define, enquanto consciência (de) si, como presença ao ser, o presente é presença deste para-si ao ser-em-si. O para-si é, nestes termos, o ser pelo qual o presente advém no mundo. E para que o para-si seja presença ao em-si, é necessário que ele, enquanto consciência intencional, opere um movimento de transcendência para fora de si mesmo em direção a este em-si: a presença ao ser indica, portanto, que o para-si é presente a si mesmo sob a forma de não ser o em-si ao qual ele é presença, mais, o para-si apenas pode ser presença a si se for, igualmente, presença ao em-si sob o modo de não o ser.

Doravante, diremos que a presença a um ser somente pode ser pensada a partir de uma relação de interioridade, “senão nenhuma ligação do presente com o ser seria possível: mas esse elo de interioridade é um elo negativo, ele nega do ser presente que ele seja o ser ao qual ele é presente. Caso contrário, o elo de interioridade desvanecer-se-ia em pura e simples identificação” (Sartre, 2010a_______. “L’être et le néant - Essai d’ontologie phénoménologique”. Paris: Éditions Gallimard, “Tel”, 2010a., p. 158). Portanto, se a presença ao ser é negativa (o para-si é presente ao em-si enquanto ele não é este em-si), diremos que o presente não é. E o sentido deste não ser do presente e do para-si é devido, como adiantamos acima, ao fato de que o para-si é consciência reflexo-refletidora, um nada de ser que busca, nas lonjuras, a totalidade de seu ser: o para-si não tem ser, uma vez que seu ser está sempre a distância, “está lá longe, no refletidor, se considerarmos a aparência, que não é aparência ou reflexo senão para o refletidor; lá longe, no reflexo, se considerarmos o refletidor, o qual só é em si pura função de refletir esse reflexo” (Sartre, 2010a_______. “L’être et le néant - Essai d’ontologie phénoménologique”. Paris: Éditions Gallimard, “Tel”, 2010a. p. 158). Nesta toada, observamos que a estrutura de base da intencionalidade e da ipseidade é a negação enquanto relação interna do para-si à coisa: o para-si constitui-se como presença a si somente enquanto ele é negação da coisa, o que significa que sua relação ao em-si seja da ordem da negação.

O presente (enquanto presença a...) é, precisamente, a negação e a evasão do ser, o para-si presente é uma perpétua fuga em detrimento do ser. O presente não é, mas se presentifica (présentifie) em forma de fuga, fuga do ser copresente (o em-si) e do ser que ele era em direção ao que ele será. Logo, a presença ao mundo não é senão uma nadificação do ser em-si por meio de um ser-para-si que se nadifica fugindo de seu passado em direção a seu possível (futuro). Enquanto fuga diante do ser, o presente é, na verdade, uma dupla fuga: fuga do ser-em-si e fuga do ser-em-si passado. Se a análise fenomenológica do passado revelou-nos o para-si como um ser que não é o que é (passado), a análise do presente, enquanto presença a..., fuga perpétua do ser em direção ao possível que o para-si tem de ser, revela-nos que o para-si é o que não é, isto é, o futuro. Mas o que é o futuro?

Comecemos notando que o ser-em-si, enquanto pura inércia idêntica a si, não poderia conter, por menor que fosse, o futuro.16 16 “O futuro é um existente transcendente que tem como fonte o para-si. O em-si não possui futuro porque ele é, na totalidade, tudo o que ele é. Não há, portanto, nada fora dele que ele possa ser” (Sartre, 2010b, p. 515). Desse modo, é pela realidade-humana, enquanto nada de ser, que o futuro irrompe no mundo. O futuro será definido por Sartre como a polarização do presente enquanto fuga, o para-si foge do ser-em-si e de seu ser-em-si passado em direção ao ser que ele será. Esta fuga em direção ao possível é dinamizada pela falta de ser que caracteriza o movimento intencional de transcendência do ser-para-si: “o futuro é o em direção a... da fuga compreendida como possível. Possibilização [...] significa que o existente facticial falta ser para ser si mesmo como em-si” (Flajoliet, 2005FLAJOLIET, A. “Ipseité et temporalité”. In: Sartre. Désir et liberté. Paris: PUF, 2005. pp. 59-84. , p. 74). Aqui, novamente, o Autor de EN começará, digamos, limpando o terreno da temporalidade futura das concepções tradicionais: o esse do futuro não pode ser reduzido a seu percipi, e é necessário, por conseguinte, que renunciemos a toda e qualquer ideia/concepção do futuro existindo como mera representação. Tal como entreviu Heidegger, uma vez o futuro tematizado, ele cessa de ser meu futuro para tornar-se um objeto indiferente de minha representação e, enquanto representado, seu conteúdo estaria ligado forçosamente ao presente, n’outras palavras, a representação do futuro somente pode ser representação presente.

Entrementes, em vez de reduzirmos o futuro ao presente, faz-se necessário que o presente seja aberto sob o futuro, afinal, “se começamos confinando o presente no presente é óbvio que dele não sairemos jamais” (Sartre, 2010a_______. “L’être et le néant - Essai d’ontologie phénoménologique”. Paris: Éditions Gallimard, “Tel”, 2010a., p. 160). O para-si apenas pode ser “pleno de futuro”, “espera de porvir” ou “conhecimento do futuro” por meio de uma relação original e pré-judicativa de si a si: o gesto que acabo de realizar enquanto estou jogando tênis, por exemplo, não tem sentido senão pelo gesto que farei em seguida com a minha raquete para que eu possa enviar a bola acima da rede. O gesto futuro, ainda que não tenha sido tematicamente posicionado, advém sobre as posições que adoto para iluminá-las e modificá-las, pois “não há um momento de minha consciência que não seja igualmente definido por uma relação interna a um futuro; que eu escreva, fume, beba ou repouse, o sentido de minha consciência está sempre a distância, lá adiante, fora de mim” (Sartre, 2010a_______. “L’être et le néant - Essai d’ontologie phénoménologique”. Paris: Éditions Gallimard, “Tel”, 2010a., p. 160). Se o futuro não é um agora que não seria ainda (e isso pelo fato preciso de que, procedendo dessa forma, cairíamos no em-si e visaríamos o tempo como um continente dado e estático), nós o definiremos como aquilo que o para-si tem de ser enquanto ele não pode sê-lo.

Se pela análise do presente - ao observarmos que o para-si se presentifica diante do ser como não sendo este ser e como tendo sido o seu passado - verificamos que a presença é fuga nadificante do em-si presente e do emsi passado em direção ao possível, agora depreendemos, a partir da análise fenomenológica da temporalidade, que este possível (enquanto aquilo que falta ao para-si para ser si mesmo em regime de totalidade idêntica a si) é o futuro que o para-si tem de ser (enquanto ipse infestado por uma falta de ser) sem sê-lo (ainda), pois caso o fosse, o para-si deixaria de ter de ser e seria simplesmente. Enquanto conjunto de possibilidade que o para-si projeta, “o futuro não é, mas ele não cessa de se possibilizar. O para-si é o seu próprio futuro no sentindo em que ele é o que ele não é (ainda)” (Caeymaex, 2013CAEYMAEX, F. “Temps et Temporalité”. In: Dictionnaire Sartre. Sous la direction de François Noudelmann et Gilles Philippe. Paris: Éditions Honoré Champion, 2013. pp. 483-485., p. 484). Para o filósofo, o futuro será amplamente compreendido se se entende, em primeiro lugar, que o ipse, enquanto existente que falta de... para..., é nadificação do em-si presente e do em-si passado em direção a um para-si faltante (possível17 17 Sublinhemos que: “O Possível é aquilo que falta ao para-si para ser si ou, se se prefere, a aparição à distância daquilo que sou” (Sartre, 2010a, p. 161). ) que o faria aceder à totalidade em-si-para-si. E se a presença - porque falta de ser - é fuga em direção a...,18 18 “Sabe-se, assim, o sentido da fuga que é presença: “ela é fuga em direção a seu ser, isto é, em direção ao si que ela será por coincidência com o que lhe falta” (Sartre, 2010a, p. 161). esta fuga não é senão o futuro, uma fuga em direção ao ser, ao Si que o para-si seria enquanto coincidência com o que lhe falta, a saber, um para-si faltante que é seu próprio possível sob o modo de não o ser (ainda).

Aclimatando a presença à fuga (que é fuga em direção ao valor ou si sob o modo da identidade), começamos a entrever o sentido ontofenomenológico da afirmação sartreana segundo a qual o para-si é um ser das lonjuras: a presença ao ser não é senão uma fuga do ser em direção a um possível (para-si faltante) que realizaria a totalidade em-si-para-si. Nesta toada, é graças à falta de ser do para-si que a presença pode ser presença (inclusive, aliás, presença (a) si), é através dela (da falta) que a presença é um movimento intencional para fora da consciência, um movimento em direção ao faltante, presença a um em-si que ela não é (mas desejaria ser). Para o filósofo, o futuro, enquanto expressão da falta de ser do para-si,

[...] é o que o para-si se faz ser a si mesmo apreendendo-se perpetuamente para si como inacabado em relação a ele. É aquilo que impregna à distância a díade reflexo-refletidor e aquilo que faz com que o reflexo seja apreendido pelo refletidor (e reciprocamente) como um ainda-não (pas-encore). [...] O futuro revelou-se ao para-si como aquilo que o para-si não é ainda, na medida em que o para-si constitui-se não-téticamente para si como um ainda-não na perspectiva desta revelação e à medida que se faz ser como um projeto de si mesmo fora do presente rumo ao que ele não é ainda (Sartre, 2010a_______. “L’être et le néant - Essai d’ontologie phénoménologique”. Paris: Éditions Gallimard, “Tel”, 2010a., p. 161).

O existente, porque nada e falta de ser, é um ser no qual seu ser está em questão para si mesmo e cujo completo (o si faltado que seria alcançado por meio de um para-si faltante-possível) está a distância de si, ou seja, para além do ser: o futuro é, nesta perspectiva, aquilo que faria com que o para si fosse si mesmo sob o modo da total identidade a si. O valor (o si tornado em-si-para-si) é o sentido ontológico da futurização,19 19 Enquanto o valor é o sentido ontológico de uma dimensão fenomenológica da temporalidade, observemos que não é possível, no limite, operar a fenomenologia separada da ontologia e vice-versa. aquilo que o ipse busca ser ao ser presença para além do ser. Daí, por conseguinte, o paradoxo da temporalidade, quer dizer, o fato de que ela busque, via futurização (realização dos possíveis que visam o valor-si-idêntico), a realização da total coincidência do para-si ao em-si, fusão correlatada de uma atemporalidade enquanto fatura da coincidência absoluta com o si; afinal, “o princípio de identidade, como lei de existência do em-si, repele toda possibilidade de futuro” (Sartre, 2010b_______. “Carnets de la drôle de Guerre”. In: Les mots et autres écrits autobiographiques. Paris: Gallimard, “Bibliothèque de la Pléiade”, 2010b. , p. 515). Assim, uma vez que o existente prova a si mesmo como falta de ser, ele espera alcançar o preenchimento desta falta no futuro (por meio do para-si faltante): agora (no presente), o para-si é presença (futura) ao ser que ele espera ser sob o modo da identidade a si, ele ainda não é si como em-si e por isso se engaja na busca de sê-lo. O futuro é “presença a um ser co-futuro”, o que indica que “o para-si não pode existir senão fora de si próximo do ser e que o futuro é um para-si futuro (um para-si faltante enquanto possibilidade de ser si mesmo)” (Sartre, 2010a_______. “L’être et le néant - Essai d’ontologie phénoménologique”. Paris: Éditions Gallimard, “Tel”, 2010a., p. 162).

Aqui, trata-se de mostrar que o possível, enquanto presença futura ao em-si, é mundo futuro; o que é dado como sentido do para-si presente é o ser cofuturo enquanto este desvelar-se-á ao para-si futuro como isso ao qual o para-si será presente. Destarte, “o em-si, ao aparecer ao para-si, já é futuro. Este copo, enquanto devendo ser segurado, esta cadeira, enquanto dada como aquilo sobre o que vou sentar-me etc., etc., tudo isso está no futuro” (Sartre, 2010b_______. “Carnets de la drôle de Guerre”. In: Les mots et autres écrits autobiographiques. Paris: Gallimard, “Bibliothèque de la Pléiade”, 2010b. , p. 519). Enquanto falta de ser, o mundo aparece ao para-si como futuro sob as bases de um investimento presente: todas as coisas são presenças imediatas que só podemos apreender no futuro. Compreende-se, desta lida, que a futurização (futurisation) é ritmada pela exigência ontológica de ser no seio de um ipse que não é (ainda); o futuro é a espera do para-si presente a um para-si futuro (para-si faltante-possível) enquanto possibilidade (ainda que nunca atingida) de operar a totalidade (em-si-para-si).

No sentido indicado acima, além de ser presença do para-si a um ser situado para além do ser, o futuro é aquilo que atinge diretamente o para-si, n’outras palavras, o futuro é uma das três dimensões ek-státicas do ipse: “o futuro é o ponto ideal em que a compressão súbita e infinita da facticidade (Passado), do para-si (Presente) e de seu possível (Futuro) faria surgir por fim o Si como existência em si do para-si” (Sartre, 2010a_______. “L’être et le néant - Essai d’ontologie phénoménologique”. Paris: Éditions Gallimard, “Tel”, 2010a., p. 163). Ora, porquanto o futuro seja a busca (via possíveis) do Si como existência em-si do para-si, o para-si jamais será no presente o que deveria ser no futuro: todo futuro do para-si presente cai no passado, isto é, ele será futuro ou futuro anterior do para-si. Disso, a constatação do filósofo de que o futuro não se realiza, ou seja, ele não se deixa alcançar, “desliza ao passado como antigo futuro e o para-si presente revela-se em toda a sua facticidade como fundamento de seu próprio nada e, sobremaneira, como falta de um novo futuro” (Sartre, 2010a_______. “L’être et le néant - Essai d’ontologie phénoménologique”. Paris: Éditions Gallimard, “Tel”, 2010a., p. 163).

Todavia, não devemos confundir o futuro e esse futuro-aqui: o primeiro, como vimos, é uma dimensão fundamental do ipse (a futurização), já o segundo, por sua vez, é contingente, ele é escolha de uma possibilidade em detrimento a todas as demais possibilidades, pois “esse possível que eu havia escolhido, eu posso, a qualquer momento, abandoná-lo por outro possível, uma vez que toda escolha original concreta de si mesmo é uma escolha radicalmente imotivada” (Flajoliet, 2005FLAJOLIET, A. “Ipseité et temporalité”. In: Sartre. Désir et liberté. Paris: PUF, 2005. pp. 59-84. , p. 76). Em outras palavras, ainda que eu tenha de ser o meu futuro (enquanto dimensão necessária do ipse), eu sou o meu futuro-aqui na perspectiva constante da possibilidade de não o ser. Em seu ser, o futuro que eu tenho de ser é simplesmente minha possibilidade de presença ao ser para além do ser. Daí, a afirmação sartreana de que o futuro não é, mas se possibiliza: ele é, ao contrário de uma sequência homogênea e cronologicamente ordenada de instantes a vir, a possibilização contínua dos possíveis enquanto sentido do para-si presente.

Enquanto possibilização dos possíveis, a fenomenologia do futuro finda, pensamos, na afirmação de que o futuro não poderá se realizar jamais. Aliás, é o que já sugeria a análise ontofenomenológica do possível (ele é aquilo que está fora de alcance, aquilo que o para-si deseja sem jamais poder obtê-lo porquanto este para-si seja consciência reflexo-refletidora): “no momento em que penso ter alcançado o futuro, ele se desagrega bruscamente e se torna, para meu novo presente, um co-presente irrealizável à medida que um novo futuro aparece como futuro do novo presente” e “o antigo futuro é tornado quase presente em relação ao novo futuro, e tornado quase futuro em relação ao novo passado” (Flajoliet, 2005FLAJOLIET, A. “Ipseité et temporalité”. In: Sartre. Désir et liberté. Paris: PUF, 2005. pp. 59-84. , p. 78). Portanto, o futuro, enquanto sentido do para-si presente, é problemático e escapa radicalmente a ele (ao para-si presente).

Longe de o futuro realizar-se, o que se realiza, na verdade, é um para-si designado pelo futuro e que se constitui em ligação com esse futuro. Ora, enquanto sentido do para-si presente, o futuro é aquilo que o para-si tem de ser, sem, no entanto, poder sê-lo. E ele não pode sê-lo exatamente pela operação acima descrita por Flajoliet e, eo ipso, pelo fato de que o futuro é possibilização contínua de possibilidades que jamais serão atingidas. Se, por exemplo, tenho fome, meu possível-de-comer-algo é apenas atingindo do ponto de vista de uma repleção orgânica e jamais do ponto de vista, digamos, de uma repleção ontológica/transcendental, ou seja, o fato de comer é acompanhado de uma decepção (ela também ontológica/transcendental) na exata medida em que eu não buscava senão a unidade contraditória da plenitude e da vacuidade que teria sido a fome-preenchida enquanto fome-em-si.

A análise fenomenológica do ek-stase temporal futuro finda por revelarnos que o ipse, porque falta de... para..., transcende a si mesmo em direção a seus possíveis na vão ilusão de realizar a famigerada totalidade que o assombra ontologicamente. Em linhas gerais, finalmente, podemos depreender que o futuro (em relação aos outros ek-stases temporais, passado e presente), marca, como não deixamos de frisar, o sentido do para-si: enquanto nada de ser, o para-si é uma falta de ser que deseja preencher-se a si mesmo por meio de um valor (si idêntico) que somente poderia (ainda que ilusoriamente) ser alcançado nas lonjuras, isto é, nos possíveis (tipo de para-si faltante pelo qual o para-si presente realizaria a totalidade). Enquanto ser-que-tem-de-ser-seu-futuro ao arrancar-se do presente nadificando o passado, o para-si não é o que é (passado) e é o que não é (futuro).

Observamos que a fenomenologia das três dimensões temporais indica que o passado é o que o para-si é sob o modo de não o ser mais, que o presente é o que o para-si é sob o modo de não o ser e que o futuro é o que o para-si é sob o modo de não o ser ainda: “na medida em que somos tempo, somos alguma coisa de modo diferente do para-si” (Sartre, 2010b_______. “Carnets de la drôle de Guerre”. In: Les mots et autres écrits autobiographiques. Paris: Gallimard, “Bibliothèque de la Pléiade”, 2010b. , p. 496). Nas três dimensões ek-státicas, podemos observar que o nada de ser (que é falta de... para...) do para-si é o elemento fundamental da temporalidade, e que o instante, tal como em “La transcendance de l’Ego”, é a negação do tempo humano.

III. Ontologia da temporalidade

Nossa descrição da temporalidade não estaria completa se não abordássemos, ainda que de passagem, a ontologia do ipse por meio da fenomenologia das três dimensões temporais; trata-se, por conseguinte, de empregar uma ontofenomenologia da temporalidade estática e depois dinâmica: “isto é, apreender o ser do tempo aparecendo como presente-se-futurizando-aose-arrancar-do-passado” (Flajoliet, 2005FLAJOLIET, A. “Ipseité et temporalité”. In: Sartre. Désir et liberté. Paris: PUF, 2005. pp. 59-84. , p. 79). Trata-se, portanto, de abordar a temporalidade como estrutura totalitária que organiza nela as estruturas ekstáticas secundárias (ek-stases temporais). Assim, por estática da temporalidade, Sartre compreende a análise da constituição do “antes” e “depois” na medida em que essas noções podem ser visadas em seu aspecto ordinal e independente da mudança propriamente dita. N’outras palavras, a estática da temporalidade seria, digamos, uma primeira etapa do enraizamento do tempo fenomenal em seu ser: “a ipseidade como forma do si que sempre falta do possível para poder totalizar-se como em-si-para-si” (Flajoliet, 2005FLAJOLIET, A. “Ipseité et temporalité”. In: Sartre. Désir et liberté. Paris: PUF, 2005. pp. 59-84. , p. 80). A análise da estática temporal, tal como figura em “L’être et le néant”, irá demonstrar que a tradição filosófica (mais especificadamente Descartes, Leibniz, Kant e Bergson) tende a reduzir a ideia de sucessão a um tipo de separação, uma vez que não levou em conta que a sucessão é uma ordem cujo princípio ordenador é a relação antes-depois.

Sem que nos debrucemos minuciosamente em cada crítica, passaremos diretamente ao resultado dela, qual seja: a análise ontofenomenológica da ordem das sucessões conduz, efetivamente, à afirmação de que a temporalidade é uma unidade que se multiplica e uma multiplicidade que se unifica, de modo a indicar que somente o ipse pode ser temporal: “somente um ser com uma certa estrutura de ser pode ser temporal na unidade de seu ser. O antes e o depois não são inteligíveis [...] senão como relação interna” (Sartre, 2010a_______. “L’être et le néant - Essai d’ontologie phénoménologique”. Paris: Éditions Gallimard, “Tel”, 2010a., p. 171). Destarte, se a temporalidade deve possuir a estrutura da ipseidade, ela designará o modo de ser de um ser que é si mesmo fora de si, pois, citando novamente o filósofo, “é somente [...] porque o si é si lá longe, fora de si, em seu ser, que ele pode ser antes ou depois de si, que ele pode ter, em geral, um antes e um depois” (Sartre, 2010a_______. “L’être et le néant - Essai d’ontologie phénoménologique”. Paris: Éditions Gallimard, “Tel”, 2010a., p. 172).

Reforcemos a tinta: se a temporalidade deve possuir a estrutura da ipseidade, observamos que ela é a intraestrutura do para-si enquanto ser que tem de ser seu ser ek-staticamente; inversamente, o ipse não pode ser senão temporalizando-se: a fenomenologia das três dimensões temporais, ademais, já havia demostrado que o para-si não pode ser senão sob a forma temporal. Dessa maneira, a ipseidade é o resultado, digamos, do surgimento do para-si como nadificação do em-si ao constituir-se sob todas as dimensões possíveis de nadificação. Ora, enquanto ser que não pode ser senão fora de si mesmo, o para-si temporaliza-se, leia-se, escapa de seu passado ao transcender seu presente rumo ao futuro. Examinada por esse ângulo, a ipseidade significa, ontologicamente, a nadificação do que se “é” (presença (a) si) rumo a um ser possível que o para-si busca ser (si sob a forma paradoxal do em-si-para-si) sem jamais poder sê-lo e que, por isso, o reconduz novamente ao ser que ele “é” (daí que a miragem ontológica do si idêntico seja o leitmotiv da ipseidade. E, como ipse, o para-si deve: 1) não ser o que ele é; 2) ser o que ele não é; 3) não ser o que ele é e ser o que ele não é na unidade de uma perpétua remissão. Sobremaneira, “trata-se bem das três dimensões ek-státicas, o sentido do ekstase sendo a distância a si” (Sartre, 2010a_______. “L’être et le néant - Essai d’ontologie phénoménologique”. Paris: Éditions Gallimard, “Tel”, 2010a., p. 173). Desta última observação, diremos que o ipse é a unidade ontológica das três dimensões fenomenológicas de ser do para-si: fuga do passado em direção ao futuro mediante a volição do presente.

Em relação à dinâmica da temporalidade, podemos observar que ela completa a reintrodução da descrição fenomenológica do tempo na ontologia do ipse ao levantar duas questões fundamentais: 1) por que o para-si sofre esta modificação de seu ser que faz com que ele se torne passado? 2) e por que um novo para-si surge ex nihilo para tornar-se o presente desse passadoaí? Diante destas duas questões, devemos indagar como e por qual razão o passado se torna presente e como e por que um novo presente surge ex nihilo. Esta última expressão (ex nihilo) é fundamental para que compreendamos, inicialmente, que não se trata aqui de pensar que o futuro torna-se presente para, em seguida, afundar-se no passado. Nesta ótica, será necessário, digamos, ressignificar teoricamente as noções clássicas de permanência e mudança para que cheguemos à conclusão de que a temporalização (em seu aspecto dinâmico) é uma “mudança pura e absoluta [...] mudança sem nada que mude e que é a duração mesma” (Sartre, 2010a_______. “L’être et le néant - Essai d’ontologie phénoménologique”. Paris: Éditions Gallimard, “Tel”, 2010a., p. 179). Desta lida, ver-se-á que o ipse, enquanto “consciência vazia”, possui uma necessidade ontofenomenológica de produzir-se ex nihilo em direção ao futuro ao mesmo tempo que se precipita no passado: “o ipse produz-se ex nihilo rumo ao futuro através da fulgurância do instante onde ele deixa o que ele já não é mais” (Flajoliet, 2005FLAJOLIET, A. “Ipseité et temporalité”. In: Sartre. Désir et liberté. Paris: PUF, 2005. pp. 59-84. , p. 82). Aliás, é por isso que precisamos pensar em conjunto a fuga do novo presente rumo ao futuro e, igualmente, a passeificação (passéification) do antigo presente.

Doravante, o único fenômeno a ser analisado é, de fato, o surgimento de um novo presente passeificando (passéifiant) o presente que ele era e a passeificação de um presente que conduz ao aparecimento de um para-si para o qual esse presente vai tornar-se passado (o presente é um fenômeno que conjuga dois movimentos): “o fenômeno do devir temporal é uma modificação global, pois um passado de nada não seria mais um passado à medida que um presente deve ser necessariamente presente desse passado” (Sartre, 2010a_______. “L’être et le néant - Essai d’ontologie phénoménologique”. Paris: Éditions Gallimard, “Tel”, 2010a., p. 180). Analisando a metamorfose do para-si presente em passado (com o surgimento conexo de um novo presente), é preciso observar que o conjunto do passado recua à medida que o passado anterior se torna passado de um passado ou mais-que-perfeito. Na dinâmica temporal, o presente permanece presente desse passado e se torna presente passado desse passado (a passeificação do ex-presente é passagem ao em-si) e, ao mesmo tempo, um novo presente surge enquanto nadificação desse em-si (ou seja, enquanto presença ao em-si). Finalmente, a metamorfose do para-si presente em para-si passado não pode ser pensada, notemos, sem o surgimento de um novo presente que irá tornar-se presente passado ou, se quisermos, ex-presença ao ser-em-si.

Ora, mas se o presente torna-se presente passado ao mesmo tempo que um novo presente surge, este novo presente é, igualmente, modificação do futuro, o que significa que “um novo futuro surge como futuro de um novo presente (a futurização é uma dimensão necessária do ipse vivo, que jamais pode faltar)” (Flajoliet, 2005FLAJOLIET, A. “Ipseité et temporalité”. In: Sartre. Désir et liberté. Paris: PUF, 2005. pp. 59-84. , p. 83). Ainda que o futuro não cesse de ser futuro (isto é, ele não cessa de permanecer fora do para-si, para além do ser), a passeificação do presente faz com que o futuro torne-se futuro de um passado ou futuro anterior e, eo ipso, o surgimento de um novo presente inicia dois tipos de relação do futuro com esse novo presente, quais sejam: o futuro imediato ou o futuro longínquo. Em relação ao primeiro (futuro imediato ou futuro próximo), a questão é mais difícil (e já tocamos esta questão na seção anterior) à medida que o antigo futuro se realiza (eis aqui o que eu esperava), mas não pode jamais reunir-se realmente ao novo presente (não era a não ser isso o que eu esperava?). O futuro imediato coexiste com o novo presente como um tipo de copresente irreal, e nessa situação “o antigo futuro é, em relação ao novo passado, seu futuro, e o passado em relação a ele, um tipo de futuro anterior” (Flajoliet, 2005FLAJOLIET, A. “Ipseité et temporalité”. In: Sartre. Désir et liberté. Paris: PUF, 2005. pp. 59-84. , p. 83). Tornado presente, o antigo futuro permanece idealmente copresente ao presente como futuro irrealizado do passado desse presente, e isso é devido, como vimos, ao fato ontológico de que o futuro não é senão uma constante possibilização que jamais encontra seu fim à medida que busca uma totalidade ontologicamente impossível.

No caso do futuro longínquo, sua modificação não é problemática como a do futuro próximo porque ele permanece futuro em relação ao novo presente com a condição de que o novo presente, evidentemente, não o abandone e continue a futurizá-lo. Aliás, em um dado sentido, ainda que o para-si possa abandonar a busca pela realização de um possível X ao preferir o possível Y, ele não abandona jamais o que, de fato, impulsiona essa busca: o si como identidade e, ao mesmo tempo, como consciência (de) si. O para-si pode trocar seu futuro longínquo por outro sem, todavia, jamais abandonar seu “verdadeiro alvo” (a totalidade em-si-para-si): com isso, diremos que “o sentimento de unidade e continuidade” do para-si é justamente dado pela busca incessante e interminável do Si (idêntico) que, como vimos, assombra as três dimensões ekstáticas do ipse definido como falta de... para... Eis a razão pela qual o filósofo atente para o fato de que o surgimento de um novo presente (bem como a modificação do futuro, seja o imediato ou o longínquo), a partir da passeificação do presente anterior, não é motivo para que pensemos o surgimento de um ser novo, pois “tudo se passa como se o presente fosse um perpétuo buraco de ser, imediatamente preenchido e perpetuamente renascente”, ou seja, “como se o presente fosse uma perpétua fuga diante da ameaça de ser enviscado no ‘emsi’ até a vitória final do em-si que o arrastará em um passado que não é mais passado de nenhum para-si” (Sartre, 2010a_______. “L’être et le néant - Essai d’ontologie phénoménologique”. Paris: Éditions Gallimard, “Tel”, 2010a., p. 182).

IV. Conclusão

Ao término desta breve análise, somos capazes de depreender, portanto, a lei ontológica essencial da ipseidade, qual seja, o para-si, em hipótese alguma, pode realizar a totalidade (em-si-para-si), o que implica que ele se temporaliza necessariamente/permanentemente até a “vitória final do em-si” (a morte). N’outras palavras, a impossibilidade da totalidade é aquilo que possibilita a temporalização do para-si, o seu constante movimento ek-stático para fora de si mesmo em direção àquilo que lhe falta (o mundo e seus objetos). Nesse sentido, poderemos afirmar que uma possível definição de vida humana está toda ela ligada intrinsecamente à ipseidade. Sobremaneira, se a falta de ser que define a temporalização do ipse é, igualmente, um desejo de ser, concluímos que a impossibilidade do preenchimento do desejo é ontologicamente necessária à temporalização do para-si: ora, se o para-si coincidisse plenamente com o seu desejo (se esse desejo fosse totalmente preenchido), ele se tornaria uma opacidade inerte e atemporal. Tudo se passa, por conseguinte, como se o “ipse temporal não pudesse mais ser senão à distância de si mesmo sem jamais realizar a coincidência sonhada com o si” (Flajoliet, 2005FLAJOLIET, A. “Ipseité et temporalité”. In: Sartre. Désir et liberté. Paris: PUF, 2005. pp. 59-84. , p. 84).

O para-si, enquanto falta de ser que é desejo de ser, é um ser que transcende seu presente ao nadificar seu passado e voltar-se a seu futuro sob a forma de um possível faltante (para-si faltante) que realizaria a tão aguardada totalidade: e é justamente a futurização do ipse que, nos quadros teóricos de “L’être et le néant”, será o objeto de análise da psicanálise existencial, posto ser no futuro que o sentido do projeto original (escolha original) do para-si está assentado. Afinal, um ser que se constitui a si mesmo como falta “não pode se determinar senão lá longe, sob aquilo que lhe falta e que ele é, em suma, por uma perpétua fuga de si rumo ao si que ele tem de ser” (Sartre, 2010a_______. “L’être et le néant - Essai d’ontologie phénoménologique”. Paris: Éditions Gallimard, “Tel”, 2010a., p. 234), ou, ainda, o parasi somente pode ser falta (no presente) se ele é lá longe (no futuro) supressão de falta, uma supressão que ele tem de ser sob o modo de não a ser. Assim, podemos compreender que o que Sartre nomeia como estruturas imediatas do para-si (presença a si, facticidade, valor, possíveis e circuito da ipseidade) corresponde, cada uma delas, ao ser-para-si enquanto desestruturalização do ser-em-si. As estruturas do para-si são desestruturas do em-si, são o resultado direto da irrupção do para-si quando da tentativa frustrada (que chamaremos aqui de fracasso original) do em-si de tornar-se causa sui.

  • 1
    Abreviada doravante como EN.
  • 2
    Nesta obra-diário, doravante abreviada CDG, lemos: “é com certa reserva que abordo o exame da temporalidade. O tempo sempre me pareceu um quebra-cabeça filosófico e eu construí, sem lhe dar atenção, uma filosofia do instante [...]” (Sartre, 2010b_______. “Carnets de la drôle de Guerre”. In: Les mots et autres écrits autobiographiques. Paris: Gallimard, “Bibliothèque de la Pléiade”, 2010b. , p. 495). Ora, esta “filosofia do instante”, como sabemos, encontra-se em “La transcendance de l’Ego” (1934): neste ensaio, o movimento de transcendência da consciência em direção ao X qualquer era sincopado pelo instante e, desta lida, não havia a possibilidade de pensar o fluxo temporal da consciência a partir do passado ou do futuro.
  • 3
    Esta fórmula, concebida para caracterizar a estrutura ontológica de um ser que é seu próprio nada de ser, ser-para-si, “vai contra as representações deterministas alheias ao modo de ser do para-si e trata a ‘realidade humana’, ser-no-mundo, como uma realidade no meio do mundo” (Mouille, 2000MOUILLE, J.-M. “Sartre: Conscience, ego et psyche”. Paris: PUF, 2000. , p. 73), em suma, como um ser-no-meio-do-mundo (être-au-milieu-du-monde). Ora, afirmar que a consciência é presença a si indica que, presente a si (e não idêntica a si), ela é, ao contrário da plenitude maciça do ser-em-si, um ser que é nada de ser: “a presença a si supõe que uma fissura impalpável deslize no ser, o para-si é presença a si porque ele não é de fato si. A presença a si é a marca viva do nada” (De Coorebyter, 2013_______. “Ipséité”. In: Dictionnaire Sartre. Sous la direction de François Noudelmann et Gilles Philippe. Paris: Éditions Honoré Champion, 2013. p. 254. , p. 393).
  • 4
    Exemplo ofertado pelo filósofo no capítulo I, “Les structures immédiates du pour-soi”, de EN.
  • 5
    Notemos, não obstante, que esta busca da totalidade faltada é operada sob a forma de um desejo de ser: neste escopo, deve-se compreender que o desejo é bem um apelo de ser cujo sentido ontológico é a ipseidade como transcender infestado por um si-ideal (si idêntico) sempre faltado. Ora, e se este apelo/busca de ser recebe o nome de valor, teríamos de dizer que não há ipeseidade sem valor e não há valor sem ipseidade.
  • 6
    Segundo Sartre (2010a, p. 140)_______. “L’être et le néant - Essai d’ontologie phénoménologique”. Paris: Éditions Gallimard, “Tel”, 2010a.: “Nós mostramos, ao contrário, que o si, por princípio, não pode habitar a consciência. Ele é, caso queiramos, a razão do movimento infinito pelo qual o reflexo remete ao refletidor e este ao reflexo; por definição, ele é um ideal, um limite”.
  • 7
    “[...] o mundo anuncia ao para-si o que ele é refletindo seus possíveis, dando-lhe a ilusão de tornar-se Si ao realizá-los, quando, na verdade, cada realização revela novamente um possível e, portanto, a busca do Si” (De Correbyter, 2013_______. “Ipséité”. In: Dictionnaire Sartre. Sous la direction de François Noudelmann et Gilles Philippe. Paris: Éditions Honoré Champion, 2013. p. 254. , p. 254).
  • 8
    Este termo é usado por nós porque vimos que a ipseidade é da ordem do pré-reflexivo e, ao mesmo tempo, sinaliza a distância a si de uma consciência que é reflexo-refletidora.
  • 9
    Se o ipse é contorno de singularização a partir dos possíveis do para-si, não podemos esquecer que estas possibilidades são dadas sempre em situação e que esta situação guarda um sentido fáctico: é facticial que eu viva uma situação de proletário brasileiro em vez de viver uma situação de proletário francês, por exemplo. Nesta toada, seríamos conduzidos a imputar à ipseidade um caráter facticial: “É [...] certo que a ipseidade é facticial no sentindo em que o projeto de mundo está necessariamente ‘engajado’ em um ‘ponto de vista’” (Flajoliet, 2005FLAJOLIET, A. “Ipseité et temporalité”. In: Sartre. Désir et liberté. Paris: PUF, 2005. pp. 59-84. , p. 63).
  • 10
    “Transcendência ek-stática, o ipse sai do que ele é presentemente e vai em direção ao que ele deseja ser sem jamais poder ser” (Flajoliet, 2005FLAJOLIET, A. “Ipseité et temporalité”. In: Sartre. Désir et liberté. Paris: PUF, 2005. pp. 59-84. , p. 68). Observemos, à guisa deste comentário, que a impossibilidade de preenchimento do desejo será condição sine qua non do movimento temporal, afinal, se houvesse preenchimento, isto é, fusão do para-si ao si-idêntico (tornando-se, então, em-si-para-si), o para-si se petrificaria e se tornaria uma pura inércia.
  • 11
    Definindo as três dimensões temporais como série infinita de momentos justapostos uns aos outros, cairemos forçosamente no seguinte paradoxo: o passado não é mais, o futuro não é ainda e o presente não é porque é o limite de uma divisão infinita: “assim, toda a série se aniquila duplamente, pois o ‘agora’ futuro, por exemplo, é um nada enquanto futuro que se realizaria em nada quando ele passar ao estado de ‘agora’ presente” (Sartre, 2010a_______. “L’être et le néant - Essai d’ontologie phénoménologique”. Paris: Éditions Gallimard, “Tel”, 2010a., p. 142).
  • 12
    Apenas indicaremos, sumariamente, a crítica que Sartre tece em relação a cada um deles.
  • 13
    Ainda que não possamos modificá-lo, é verdade, par contre, que detemos sempre a possibilidade de modificar sua significação enquanto ele é um ex-presente que teve um futuro. No mais, se não podemos modificar seu conteúdo, isso significa, forçosamente, que o passado que eu tenho de ser é da ordem da identidade absoluta do ser-em-si. Nesse sentido, eu sou o que eu sou no passado, aquilo que sou sem, contudo, poder vivê-lo novamente: “o passado é o em-si que eu sou enquanto ultrapassado” (Sartre, 2010a_______. “L’être et le néant - Essai d’ontologie phénoménologique”. Paris: Éditions Gallimard, “Tel”, 2010a., p. 153). Precisamente por esta identidade absoluta, poderíamos dizer que o passado se assemelha ao valor, embora não o seja: “no valor, o para-si advém si ultrapassando e fundando seu ser, há retomada do em-si pelo si: desta lida, a contingência do ser cede o lugar à necessidade. O passado, ao contrário, é desde já em-si” (Sartre, 2010a_______. “L’être et le néant - Essai d’ontologie phénoménologique”. Paris: Éditions Gallimard, “Tel”, 2010a., p. 155); é só no passado, por exemplo, que posso afirmar que fui feliz ou infeliz à medida que sou sempre para além do que sou, enquanto sou o que tenho de ser. A partir desta explicação, poderíamos compreender, por exemplo, o apego excessivo de algumas pessoas ao passado: ele representaria, finalmente, a superaçãoda ausência da identidade a si. É óbvio que tal empreitada está sujeita ao fracasso, pois sou meu passado apenas enquanto ser presente.
  • 14
    Em CDG, lemos: “O passado tem sobre a consciência toda a superioridade de consistência e de solidez, de opacidade também, que lhe confere o em-si. É no passado somente que a consciência pode existir sob o modo do em-si, e o passado não é senão a existência do para-si sob o modo do em-si” (Sartre, 2010b_______. “Carnets de la drôle de Guerre”. In: Les mots et autres écrits autobiographiques. Paris: Gallimard, “Bibliothèque de la Pléiade”, 2010b. , p. 500).
  • 15
    Desta assertiva, observa-se o que o em-si não se encerra puramente em uma dimensão ôntica de materialidade. Enquanto em-si, o passado, contudo, “não é objeto do olhar do para-si. [...] O passado, enquanto coisa que somos sem posicionar, enquanto aquilo que assombra o para-si sem ser percebido, está atrás do para-si, fora de seu campo temático, o qual se encontra diante dele, como aquilo que ele esclarece” (Sartre, 2010a_______. “L’être et le néant - Essai d’ontologie phénoménologique”. Paris: Éditions Gallimard, “Tel”, 2010a., p. 176). No mesmo parágrafo, Sartre indicará que o para-si somente pode apreender seu passado como não sendo (mais) esse passado.
  • 16
    “O futuro é um existente transcendente que tem como fonte o para-si. O em-si não possui futuro porque ele é, na totalidade, tudo o que ele é. Não há, portanto, nada fora dele que ele possa ser” (Sartre, 2010b_______. “Carnets de la drôle de Guerre”. In: Les mots et autres écrits autobiographiques. Paris: Gallimard, “Bibliothèque de la Pléiade”, 2010b. , p. 515).
  • 17
    Sublinhemos que: “O Possível é aquilo que falta ao para-si para ser si ou, se se prefere, a aparição à distância daquilo que sou” (Sartre, 2010a_______. “L’être et le néant - Essai d’ontologie phénoménologique”. Paris: Éditions Gallimard, “Tel”, 2010a., p. 161).
  • 18
    “Sabe-se, assim, o sentido da fuga que é presença: “ela é fuga em direção a seu ser, isto é, em direção ao si que ela será por coincidência com o que lhe falta” (Sartre, 2010a_______. “L’être et le néant - Essai d’ontologie phénoménologique”. Paris: Éditions Gallimard, “Tel”, 2010a., p. 161).
  • 19
    Enquanto o valor é o sentido ontológico de uma dimensão fenomenológica da temporalidade, observemos que não é possível, no limite, operar a fenomenologia separada da ontologia e vice-versa.

Referências

  • CAEYMAEX, F. “Temps et Temporalité”. In: Dictionnaire Sartre Sous la direction de François Noudelmann et Gilles Philippe. Paris: Éditions Honoré Champion, 2013. pp. 483-485.
  • DE COOREBYTER, V. Sartre face à la phénoménologie: Autour de “L’intentionnalité” et “La transcendance de L’ego”. Paris: Éditions OUSIA, 2000.
  • _______. “Ipséité”. In: Dictionnaire Sartre Sous la direction de François Noudelmann et Gilles Philippe. Paris: Éditions Honoré Champion, 2013. p. 254.
  • FLAJOLIET, A. “Ipseité et temporalité”. In: Sartre. Désir et liberté Paris: PUF, 2005. pp. 59-84.
  • HUSSERL, E. “Leçons pour une phénoménologie de la conscience intime du temps”. Traduit de l’allemand par Henri Dussort. Paris: PUF, 2013.
  • MOUILLE, J.-M. “Sartre: Conscience, ego et psyche”. Paris: PUF, 2000.
  • SARTRE, J.-P. “La transcendance de l’ego et autres textes phénoménologiques”. Texte introduits et annotés par V. de Coorebyter. Paris: J. Vrin, 2003.
  • _______. “L’être et le néant - Essai d’ontologie phénoménologique”. Paris: Éditions Gallimard, “Tel”, 2010a.
  • _______. “Carnets de la drôle de Guerre”. In: Les mots et autres écrits autobiographiques Paris: Gallimard, “Bibliothèque de la Pléiade”, 2010b.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jan 2020
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    25 Jul 2018
  • Aceito
    18 Dez 2018
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG Av. Antônio Carlos, 6627 Campus Pampulha, CEP: 31270-301 Belo Horizonte MG - Brasil, Tel: (31) 3409-5025, Fax: (31) 3409-5041 - Belo Horizonte - MG - Brazil
E-mail: kriterion@fafich.ufmg.br