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COMO DEVEMOS VIVER? DUAS FORMULAÇÕES DO TEMA A PARTIR DO LIVRO I DA “REPÚBLICA”* *Dedicado ao Teodoro Rennó Assunção.

RESUMO

Tendo o Livro I da “República” de Platão como seu horizonte de referência, este artigo pretende, enquanto apresenta sumariamente as posições defendidas por Sócrates e Trasímaco sobre a justiça, examinar suas principais implicações para nós, no sentido de estabelecer algumas pistas sobre como responder à pergunta feita em seu título, a saber, “como devemos viver?”.

Palavras-Chave
Justiça; Sócrates; Trasímaco; tirania; vida boa

ABSTRACT

Having Book I of Plato's "Republic" as its reference horizon, this paper intends, while briefly presenting the positions on justice, as held by Socrates and Thrasymachus, to examine their main implications to us, aiming to establish some clues about how to answer the question made in its title, namely, "how should one live?".

Keywords
Justice; Socrates; Thrasymachus; tyranny; good life

O encontro entre Sócrates e Trasímaco narrado no livro I da “República” (336b-354c)1 1 As edições consultadas foram “A república”. Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996; “A república de Platão”. Tradução e organização de J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2006; e “A justiça”. Tradução e notas de Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2016. traz à luz um conjunto de questões decisivas para quem se disponha a pensar sobre como se deve viver para realizarmos nosso melhor. Muito por alto, trata-se, ali, de buscar razões que permitam estabelecer hierarquia entre duas concepções contrastantes a respeito do assunto, ambas pretendendo portar consigo a formulação de qual é, propriamente falando, uma existência humana excelente. O intenso debate entre os protagonistas gira em torno da definição de justiça e conta com a participação eventual de alguns dentre os circunstantes. Matéria tão importante assim não cessa de convocar a atenção de intérpretes e comentaristas. Com efeito, as posições respectivas do filósofo e do sofista (Cf. Capizzi, 2017DAS GRAÇAS DE MORAES AUGUSTO, Maria. “O argumento cômico no diálogo entre Sócrates e Trasímaco no Livro I da República”. In: O que nos faz pensar, [S.l.], Vol. 23, Nr. 34, pp. 147-182, Março 2014. ISSN 0104-6675. Disponível em: http://www.oquenosfazpensar.fil.puc-rio.br/index.php/oqnfp/article/view/410. (Acessado em 15 de janeiro de 2019).
http://www.oquenosfazpensar.fil.puc-rio....
)2 2 Embora consagrada, a caracterização de Trasímaco como sofista não é unânime. Capizzi, na esteira de Grote, qualifica-o de preferência como retórico. já foram restituídas e glosadas de inúmeras maneiras. No que se segue, não pretendemos recensear os caminhos dessas discussões nem oferecer delas um mapeamento global, mas levar adiante um exercício escolar. Percorrendo a linha geral dos argumentos de parte a parte, sem descuidar dos elementos dramáticos que integram o andamento da cena, desejamos recuperar aquilo que nos afeta em nossas experiências políticas e éticas efetivas.3 3 Em que pese o risco de anacronismo, consideramos pertinente tratar, sem discriminação de fronteira disciplinar, questões éticas e políticas. Pelo menos para o pensamento antigo aqui emulado esse não era um procedimento imprudente. A respeito, veja-se por exemplo o capítulo X do “Platão” de Trabattoni, “A ética e a política n’A República” (2010, pp. 165-202). Vale dizer, a reflexão em curso aspira a elucidar, tanto na dimensão teórica quanto praticamente, os delineamentos propostos por Platão na construção das posições em conflito, de modo a que possamos nos orientar ainda hoje nesses termos em relação à vida boa. Portanto, em que pese o caráter singelo de tal estratégia em vista da magnitude das implicações do tema, cumpre determinar o que é típico da visão de mundo e do pensamento antropológico dos personagens em estudo, a partir do que poderemos comparar suas opções existenciais básicas com as nossas, visando a obter um saldo crítico ao final, tendo a questão da justiça como fiel da balança.

O apelo direto do escrito platônico é notável desde o início (Cf. Williams, 2000ADORNO, F. “Sócrates”. Tradução de A. J. P. Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 1990.).4 4 Nessa mesma direção, lê-se que “Platão é um grande escritor, capaz de dominar extraordinária ingenuidade, charme e poder” (Williams, 2000, p. 8). Prestes a voltar para a cidade após comparecer a certas festividades nas redondezas do porto, Sócrates é alcançado pelo convite de um amigo para participar de uma reunião na casa do pai deste. Lá se encontrava um grupo formado por gente variada e, como já se sabia, o filósofo tinha predileção por conversar, pois isso lhe dava reiteradas oportunidades para, atendendo à injunção do oráculo,5 5 “Como testemunha da minha sabedoria, se realmente ela existe e qualquer que ela seja, apresentar-vos-ei o deus de Delfos”: com essa abordagem irônica inicia-se a passagem em que somos inteirados da consulta ao oráculo e de seus desdobramentos. Veja-se Platão, “Apologia de Sócrates”, 20e (tradução de Manuel de Oliveira Pulquério). examinar a pretensa sabedoria dos que eram então considerados sábios.6 6 Sobre a ocupação do Sócrates histórico, mas principalmente, tendo em vista o contexto de época, sobre a natureza das questões que ele levanta e sobre o acesso adequado a elas, considerando também as fontes alternativas à versão platônica, vale consultar os escritos de F. Adorno (1990) e Vander Waerdt (1994). Ambos sustentam não ter havido uma conversão filosófica socrática contra as práticas científicas de seus contemporâneos, mas, sim, uma suplementação da pesquisa deles por uma estratégia investigativa diferente, voltada para aspectos da experiência humana irredutíveis às pautas do conhecimento técnico. Diz Adorno (1990, p. 19): “[...] se conclui que a postura socrática está inteiramente voltada para o saber pensar, para colocar as condições para se conseguir discursos corretos. E precisamente por isso, de cada vez, a questão esboça-se de modo diferente, sem preconceitos, maleavelmente, sem um saber já dado à partida; mais, num saber que se vem constituindo, uma e outra vez, através da própria pesquisa”. Traços límpidos desenham o cenário em que o leitor também vai se movimentar: estamos nos domínios de um cidadão próspero e respeitado para privar com camaradas, e na ocasião a conversação ocupará o tempo livre.

Ainda que de passagem, vale apontar alguns elementos dispostos na cena de abertura do diálogo cujo interesse foi muito realçado pela pesquisa erudita. A descida de Sócrates da cidade para o porto a fim de participar da festa de uma divindade estrangeira sugere diversas ressonâncias de cunho cívico e religioso. A zona portuária é território de circulação franca onde se misturam, alheios aos limites que valem na cidade alta, forasteiros, comerciantes, patrícios, jovens e velhos, homens, mulheres e crianças - ainda mais em se tratando de ocasião festiva (Cf. Brandão, 2016CAPIZZI, A. “A confluência dos sofistas a Atenas”. In: MARQUES, M. (org.). Filosofia dos sofistas. Tradução de C. P. Mello Filho. São Paulo: Paulus, 2017. pp. 73-84.).7 7 Nesse sentido lê-se que “é importante a relação com a festa, por configurar uma situação pública, a reunião de pessoas num espaço a princípio externo (a rua), mas que pode infiltrar-se no oikos. Mais que qualquer outro evento, as festas religiosas, em especial, permitem uma sorte de encontro da cidade consigo mesma [...]” (Brandão, 2016, p. 23). Essa abertura à participação geral empresta aos assuntos que serão debatidos adiante um alcance ecumênico, indicando que as consequências do debate devem se estender a todos os viventes, dimensionados estritamente como seres humanos. A par disso, os temas da elevação e do rebaixamento, originalmente vinculados a ritos de iniciação, patenteiam a necessidade de se transitar ativamente entre os polos alto e baixo da realidade caso se pretenda demonstrar sua mútua implicação, estabelecendo assim continuidade entre o pensamento do ser e da verdade e o cotidiano material da vida em comum (Cf. Pereira, 2008PICHANICK, A. “Why might (or must?) Philosophy be for the young? The case of Cephalus in Plato’s Republic”. In. Cahiers des études anciennes, Quebec, Vol. LV, pp. 145-159, 2018.).8 8 Em outras palavras, é “Como se se dissesse que o ser humano, antes de se dedicar à análise lógica do que é o acto da polis, deve celebrar esse mesmo acto [...]. Primeiro, celebra-se a cidade e uma deusa da cidade, como marca do carácter absoluto de haver cidade. O habitante da cidade tem consciência (o que Platão não ignora) de que haver cidade é um bem absoluto, isto é, absolutamente irredutível e insubstituível; isto é, de que sem cidade não há verdadeiramente ser humano, de que a cidade é o topos único próprio do ser humano, sua matriz política, mas também ética, seu ventre de possibilidade de humanidade e de plenitude dessa e nessa humanidade” (Pereira, 2008, p. 39). De mais a mais, passa-se neste proêmio de uma festa pública a outra doméstica, movimento que sublinha a disposição para o compartilhamento como condição para o êxito da iniciativa dialógica.9 9 “Em resumo: para que haja diálogo devem existir outras pessoas, além da primeira” (Brandão, 2016, p. 21)..

A evocação da partilha como fundamento da sociabilidade em cujo âmbito acontece o diálogo permite, por sua vez, uma conjectura a favor da continuidade entre os rituais de hospitalidade narrados nos poemas homéricos e a prática da conversação filosófica. O clima tranquilo e cordial produzido pela troca de presentes e pela disponibilidade da comida e da bebida para todos os convivas funciona como um convite à troca de histórias, por meio do que se promove reconhecimento mútuo. A saciedade contribui para desarmar os envolvidos, gerando uma atmosfera propícia à cooperação e avessa à disputa. Sem escamotear os conflitos que formam a existência humana, trata-se de mirá-los desde uma perspectiva não acossada pela ansiedade. Ora, o tempo livre que se segue a um banquete é ocasião excelente, seja para a interação do aedo com sua audiência, seja para a interlocução entre os praticantes da filosofia (Cf. Assunção, 2013BARAVALLE, L. “As muitas faces do altruísmo: pressões seletivas e grupos humanos”. Scientiae Studia, São Paulo, Vol. 12, Nr. 1, pp. 97-120, 2014.).10 10 A seguinte passagem formula o ponto de maneira lapidar “Esta disponibilidade, ou esta espécie de tempo vazio, supostas para quem quer contar ou ouvir estórias bem narradas, poderia, assim, ser pensada como constituída, enquanto estado anímico de distensão, pelo prazer e a saciedade fornecidos pela comida e a bebida partilhadas, bem marcados pelo verso formular que descreve retrospectivamente o consumo: ‘Mas quando expulsaram o desejo de comida e de bebida’ [...] e que indica precisamente o momento de transição ou para a escuta de um aedo ou para a conversação entre anfitrião e hóspede (ambas comportando necessariamente narrativas), sendo a conversação - assim como a comida e bebida compartilhadas - integrável em um ritual maior de hospitalidade (que não visa diretamente à produção de bens nem ao comércio, ainda que implique a troca de presentes segundo o modelo da reciprocidade). Uma tal disponibilidade (p. ex., pouco pensável e cada vez mais rara em um mundo urbano capitalista regido apenas pelo trabalho e no qual o tempo se compartimenta cada vez mais) pode, assim, parecer prefigurar a skholé (ou otium) como condição para a filosofia, assim como o banquete (ou sympósion) também será posteriormente uma ocasião privilegiada para a conversação filosófica [...]” (Assunção, 2013, pp. 111-112).

É nesse espírito que os recém-chegados se juntam a Céfalo, o velho dono da casa, ao redor de quem tomam assento. Trocadas as amenidades de praxe, Sócrates pergunta ao outro - admitida sua condição de senhor honrado e que, não sem algum medo,11 11 A caracterização de Céfalo no diálogo permite ampla variação interpretativa. Há desde aqueles que o consideram “aterrorizado pelo que virá depois da morte” (Pichanick, 2018, p. 145) quanto quem reconheça em sua acolhida a Sócrates indícios de “jovial bonomia” e “madura serenidade” (Lopes, 1997, p. 168). Alinhamo-nos ao segundo intérprete - nisso e em praticamente tudo o mais, aliás. se avizinhava da morte - sobre a condução de sua vida, nos âmbitos público e privado. Depois de algumas considerações sensatas, embora demasiado convencionais, sobre as vantagens da fortuna, atingimos o ponto nuclear da palestra: trata-se de saber se e como a justiça seria capaz, enquanto virtude, de governar uma vida digna e feliz, voltada para a consecução do bem. Decorre daí a primeira tentativa de definição da justiça em termos de retribuição baseada no mérito - ou, mais abstratamente, em termos de reciprocidade. Mesmo que intuitivamente plausível, a proposta prova-se insuficiente por seu grau de indeterminação e pelos contrassensos a que leva - por exemplo, o compromisso de restituir algo a alguém pode variar em função das circunstâncias, não tendo o valor de regra que se lhe pretendia atribuir.12 12 O dilema sugerido é aquele em que um pede a outro que guarde suas armas e, depois, visivelmente transtornado, as requisita de volta. Não há regra inequívoca que decida se cumpriria ou não devolvê-las. Herdeiro de seu pai, nisso e em tudo o mais, Polemarco retoma a discussão a partir do mesmo modelo e desenvolve-o com algum pormenor, enquanto o venerável homem velho se retira, levando consigo uma sabedoria incapaz de atender às exigências da dialética posta em marcha.

Se, para andar de cabeça erguida entre seus iguais, bastava para os adeptos do costume dizer sempre a verdade e não deixar nenhuma dívida pendente, a mesma receita não resolve as demandas vigentes numa comunidade atravessada por transformações tão radicais quanto a Atenas de então (Cf. Funke, 2001GOLDSCHMIDT, V. “Os diálogos de Platão: estrutura e método dialético”. Tradução de D. D. Macedo. São Paulo: Loyola, 2002.). O progresso material da cidade, estribado em sua expansão mercantil, militar e demográfica, imprimiu nas relações humanas ali vividas uma complexidade inédita, fomentando dúvida legítima sobre os padrões para atribuição de sentido e valor à experiência. Este processo, associado a manifestações religiosas e artísticas atentas às urgências espirituais emergentes, culminou em uma atmosfera cultural de crise. Ora, o empenho socrático estava em buscar o encaminhamento para problemas axiológicos a partir do exame racional de seus elementos constituintes e de sua articulação com as práticas da vida vividapor seus concidadãos. É um esforço constante para ficar à altura do legado dos homens de bem de outrora e ao mesmo tempo atender ao apelo do novo - e em especial das novas formas da moralidade, das ciências e das artes, doravante instruídas pelo exame crítico.

Assim, Sócrates é convocado a explorar uma versão mais qualificada da concepção em causa, proposta pelo herdeiro da discussão. A autoridade do poeta Simônides é invocada, pois para este sábio a justiça e a boa vida a ela correlata não consistiriam numa capacidade de retribuição indiscriminada, mas em pagar aos amigos com o bem e aos inimigos com o mal. Uma série de ponderações é esgrimida e o extrato da objeção socrática à definição corrigida pode ser enunciado assim: fazer o mal aos maus nunca os tornou melhores, com o que, se se quer ser justo, alcançando assim o melhor para todos, inclusive os maus, cumpre fazer o bem em todas as circunstâncias, sem visar jamais ao prejuízo de ninguém.13 13 Decerto existem aqueles que estão aquém de aprender a viver assim: “é possível que tais fatores [as paixões e os desejos] tenham agido em uma alma tão profundamente a ponto de torná-la incurável. Para essas almas assim tão degeneradas, a reeducação [por meio do exame dialético] não seria de nenhuma utilidade e, portanto, não restará nada mais que a pena de morte: a qual, nesse caso, será duplamente útil: purifica a cidade dos malvados e serve de exemplo para os outros. Platão permaneceu por toda a vida fiel ao princípio socrático segundo o qual a vida só tem valor se for boa” (Trabattoni, 2010, p. 304). Nessa acepção, a justiça teria o potencial de restaurar as condições para a retomada da coexistência entre viventes tornados adversários por força de algum conflito.14 14 A ideia de justiça restaurativa recebe, assim, sua primeira formulação filosófica. Ainda estribada na expectativa de proporcionalidade, esta acepção do conceito avança ao entender que a condição para o exercício de qualquer modalidade de justiça é a existência efetiva de laços comunitários sãos. Essas cogitações preparam a entrada de Trasímaco no debate, que talvez fosse mais correto chamar de irrupção ou investida. Assumindo a posição de sujeito realista, que sabe por experiência como as coisas do mundo funcionam, o personagem cuida logo de declarar o que lhe parece ser o caso, isto é, o que é a justiça tal como exercida na convivência efetiva entre agentes poderosos e entre estes e as pessoas comuns, que são muitas. Ainda segundo ele, os que se destacam dos demais nas relações humanas, guiados pelo desejo de prevalência, agem sempre em benefício próprio, ditando os rumos que os negócios e a política devem seguir. Quem pode, manda, defendendo seus interesses em primeiro lugar, ainda que isso ocorra em detrimento da comunidade.15 15 Se Rosen declara que, “[...] if might makes right, then life is a perpetual war of each against all, as Hobbes teaches: we are all enemies. If there is such a thing as friendship, it is an allegiance to dominate others; the moment there is a shift in the balance of power, friends become enemies and enemies friends. Today we call this real politik” (2005, p. 39), Blackburn vai além, e classifica Trasímaco como representante maquiavélico da real politik, formando com seus iguais um grupo de “[...] ancestrais diretos da blitzkrieg, do terrorismo, da adoração do livre mercado e da ética da escola de comércio” (2008, p. 43). Ao assegurar vantagens para si e os seus, o indivíduo de sucesso consumaria o que todos realmente desejam, restando ao público em geral admitir que a proeminência social é a melhor evidência de que aquele andou bem em suas escolhas e feitos.16 16 Nessa altura, leituras utilitaristas do ponto, orientadas pelo par conceitual altruísmo/egoísmo, defenderiam a existência de um mecanismo como o “darwinismo social”, apto a confirmar, sob roupagens modernas, as concepções egoístas de Trasímaco. Entretanto, mesmo nas ciências biológicas o debate está longe de ser simples. Reconhecendo a vigência de um “processo de transmissão não genética de informações relevantes para o comportamento social”, as chamadas “variantes culturais”, Baravalle conjectura: “Como as forças evolutivas vinculam os organismos dentro de unidades sociais? Ou, em outras palavras, por que os organismos são levados, em determinadas circunstâncias, a subordinar seus próprios interesses aos da comunidade? A resposta será: devido ao potencial adaptativo dos comportamentos altruístas” (2014, pp. 110 e 99, respectivamente). Embora a exemplificação corroborativa não se atenha apenas a populações humanas, a incidência da questão sobre nosso tema é inescapável. Se não se quer passar por ingênuo ou tolo, características infantis dos perdedores, cumpre concluir que “a justiça é a mesma em toda a parte: a conveniência do mais forte” (Platão, “República”, 339a).

Antes de enfrentar os desenvolvimentos que partem daí, é oportuna uma palavra sobre o modo de proceder assentido entre os participantes do diálogo.17 17 Não se trata de questão menor. O que aqui aparece resumido será objeto de estudo pormenorizado em separado, segundo as linhas gerais desenhadas por Vlastos e Dixsault (2012). Conforme sugestão de Sócrates, o andamento não se assemelha ao de um torneio, em que as ideias de um serão contrapostas às de outro, aguardando o parecer de uma autoridade para definir o vencedor. Diversamente, trata-se de um exame em comum do que cada um tem a declarar, no qual a validade respectiva das ideias expostas deve ser estipulada pelos próprios envolvidos. É uma diferença simples mas crucial. Enfatizam-se, mais uma vez, a troca, o compartilhamento e as correções mútuas de percurso, ao invés de se tomar os discursos como representantes de posições incompatíveis e definitivas, situação em que o sucesso de um deles acarretaria a refutação do outro. Provas argumentadas são o meio homogêneo em que circulam as ideias, mas o mais importante é a disposição para a construção em comum dos resultados da investigação. Afinal, vale insistir que o convencimento entre os participantes da conversação depende de boas razões, mas também de uma atitude existencial que favoreça a admissão de razões como mediação constitucional da prática dialógica em curso.18 18 O que motiva a adesão ao diálogo é uma espécie de constatação incontornável de que tudo o que se tomava por certo até então pode, afinal, não ser como se pensava. Apenas algo desta ordem é capaz de provocar a reação envergonhada que, mais adiante, Platão atribui a Trasímaco. Nada assegura a duração desta perplexidade, que é também admiração, mas sua percepção, no instante em que ocorre, é evidente. Segundo Pierre Hadot (2014, p. 97), “trata-se de fazer [o interlocutor] sentir seu erro, não o refutando diretamente, mas o expondo a ele de tal modo que sua absurdidade lhe apareça claramente”.

Nesse sentido, a obtenção de conhecimento certo sobre o assunto em discussão não supõe a vitória de um dos oponentes sobre seu rival, pois consistirá num concerto capaz de franquear a coabitação das várias perspectivas em jogo, mesmo que o acordo entre os participantes se resuma à constatação de que não houve ainda solução para os impasses com os quais se debateram. Isso é o que assegura o enraizamento prático da discussão. A exortação ao exame pelo pensamento, via de pesquisa da verdade, estimula os envolvidos a falarem segundo suas convicções, e não apenas por falar (Cf. Adorno, 1990ALCÂNTARA, P. I. S. “Razão, poder, erro e justiça: comentário ao Livro I da República valorizando o contexto narrativo dos Σωκρατικοί Λόγοι”. 168 f. Disponível em http://repositorio.unb.br/handle/10482/33001. Dissertação (Mestrado em Metafísica) - Universidade de Brasília, Brasília, 2018.
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).19 19 Em outras palavras, “Sócrates foi essencialmente um protréptico, um mestre de vida, um homem que procurou fazer pensar os outros, encaminhar os outros para saberem raciocinar, viver, em cada circunstância, segundo a razão, [...] e não levados pelas paixões, ao acaso” (Adorno, 1990, p. 11). Com isso se esclarecem as disposições de ânimo dos protagonistas - a arrogância, os modos agressivos e a suscetibilidade de Trasímaco, muito autênticos e em tudo opostos à tranquilidade, à constância e ao bom humor de Sócrates, marcas de confiança quanto à pertinência de sua empresa filosófica.20 20 Semelhante caracterização dos personagens evidencia a discrepância entre suas respectivas visões antropológicas, no sentido seguinte: “[...] rivalizando com a antropologia pleonéxica defendida por Trasímaco [...], Sócrates, a partir da exigência de unidade do homem e da cidade, vai tecendo outra antropologia bem mais complexa. Nesta outra antropologia, o homem revela-se como um ser dilacerado por múltiplas tendências, e sua única chance de êxito, possibilidade frágil e instável, está em estabelecer uma dinâmica harmoniosa na qual o pensamento, elemento ‘mais frágil’ e também ‘melhor’, possa governar, com o auxílio da irascibilidade, o desejo, o elemento ‘mais forte’ e ‘pior’ da alma” (Araújo Jr., 2011, p. 198).

Voltemos à fórmula enunciada por Trasímaco e à troca de argumentos que daí se segue para determinar o alcance das posições firmadas. Advertidos sobre a dificuldade do ponto, foco de importante controvérsia entre os intérpretes (Cf. Trabattoni, 2011______. “Quantas teses sustenta Trasímaco no Livro I da República?”. In: XAVIER, D.; CORNEILLE, G. (orgs.). A República de Platão: outros olhares. São Paulo: Loyola, 2011. pp. 87-98., pp. 87-98; Vegetti, 2015______. “Um paradigma no céu: Platão político, de Aristóteles ao século XX”. Tradução de M. G. G. Pina. São Paulo: Annablume, 2010., pp. 357-370),21 21 A título de ilustração, cabe mencionar o debate entre Trabattoni e Vegetti, girando em torno da própria definição em causa. procuraremos explorar o que é atribuído aos personagens projetando sua máxima consistência. Isto é, na recepção do que dizem e fazem na cena, tenderemos por princípio a destacar aquilo que contribui para que a posição defendida confirme sua maior plausibilidade teórica e dramatúrgica, sempre aderidos a Platão.22 22 A questão sobre se Sócrates é bem-sucedido na disputa com Trasímaco é, talvez, a mais difícil em relação à matéria em estudo. A exemplo de Havelock, a maioria considera que “No clear answer is given, the argument ends aporetically, in the manner of other ethical dialogues” (1978, p. 308). Muita sutileza é mobilizada por Rowe (2007) para cogitar que tal aporia não é viciosa, na medida em que deriva de uma diferença quanto aos pressupostos admitidos por um e outro dos interlocutores. Seja como for, alinhamo-nos de preferência à reconstrução feita por Barney, que, depois de discernir um fracasso retórico de um êxito filosófico, desenvolve com finura múltiplas articulações entre as etapas da argumentação, provando ao final que “[...] Socrates’ arguments are somewhat more promising than interpreters tended to suppose [...]”, de sorte que “The book I arguments [...] are a philosophically necessary preparation for us to recognize justice when we encounter it [in Book IV]” (2006, pp. 44 e 59, respectivamente). Com isso, os elementos próprios da condição de cada um dos antagonistas serão considerados típicos, e o tipo valerá pelo tanto que se provar consequente, exibindo características que possibilitem discriminá-lo com clareza em qualquer contexto. Se bem-sucedida, tal operação permitirá perseguir o objetivo fixado de início, reconhecendo, sem exagerar o risco de anacronismo, a incidência em nossa vida do debate platônico sobre a justiça. Convocado pelos interlocutores a esclarecer as implicações do que alega no que concerne à qualificação do mais forte, bem como ao exercício do poder no espaço público em sua relação com a força, a lei e a justiça, Trasímaco acrescenta que esta última é também um “[...] bem alheio, que na realidade consiste na vantagem do mais forte e de quem governa, e que é próprio de quem obedece e serve ter prejuízo [...]” (Platão, “República”, 343c). Vale dizer, a justiça ocorreria em função da sujeição do cidadão comum ao governante: constrangido pelo medo a se ater ao mínimo - a preservação de sua vida e seus bens, ameaçados por sanções ao alcance do governante -, aquele deve seguir o que foi ditado pelo interesse do mais forte. A implementação em escala política de um governo conveniente a tal interesse, uma vez alcançada, distinguiria o forte do fraco, reservando ao primeiro a prerrogativa de praticar a injustiça com boa consciência e relegando ao outro a preocupação com o justo. Os envolvidos no diálogo concordam que a capacidade de se impor pela força bruta não basta como característica distintiva daquele que alcança defender seu interesse enquanto governante. Afinal, os próprios regimes de governo variam, e com eles os processos deliberativos e o conteúdo positivo das respectivas legislações. Não apenas a monarquia, mas também a aristocracia e a democracia atenderiam às preferências dos governantes, sendo indiferente o teor de suas convicções em relação à legitimidade de suas ações. Sem exceção, tratar-se-ia de guiar a vida pública por escolhas que só respondem à circunstância de que, em dado contexto, são aquelas que foram feitas por quem detém o poder de fazê-las. Neste sentido, o poder apareceria como um fenômeno axiologicamente neutro, indiferente à sua apropriação por qualquer agente ou partido políticos. Todos os que se encontram em posição de mando, mandam em função desta posição, cometendo já injustiça pelo fato de decidirem dessa ou daquela forma, sempre visando ao benefício próprio. Donde: o fraco, que cumpre deveres impostos pela lei vigente, resigna-se a ser justo, servindo à vantagem alheia, ao passo que o forte, dotado dos expedientes necessários para ditar a lei, pode agir ao seu bel prazer, obrigando os demais a conformar-se às suas exigências injustas.

Importa, então, determinar a compatibilidade entre os dois momentos da explicação dada por Trasímaco sobre a justiça.23 23 De forma extremamente condensada e em termos que não são empregados pelos autores, o contraponto entre Trabattoni e Vegetti pode ser apresentado como se segue. Para Vegetti, a chamada primeira tese platônica mostraria Trasímaco como apologista da força e a segunda tese como apologista da violência de cunho egoísta. A força valeria por si, mas apenas em mãos violentas seria plenamente exercida, à medida que, neste caso, iria de encontro aos ditames de nossa natureza tirânica. Já para Trabattoni, porque Trasímaco é desde sempre um apologista da violência a serviço do egoísmo, é-lhe conveniente também fazer a apologia da força. Para que a violência, que nos é inerente, tenha livre curso, que valha também a força, assumida como meio real de toda e qualquer prática política. Por um lado, há uma tese forte, referenciada a contingências históricas reconhecíveis por todos os presentes (Cf. Alcântara, 2018ARAÚJO JR., A. “Os sentidos de kreítton no Livro I da República de Platão”. In: XAVIER, D., CORNEILLE, G. (orgs.). A República de Platão: outros olhares. São Paulo: Loyola, 2011. pp. 197-207., pp. 113-115 e pp. 132-133), segundo a qual cada configuração efetiva de poder se exerce de acordo com as intenções do governante da hora. Por outro, há um desdobramento igualmente forte disto, que parece introduzir no debate o seguinte acréscimo: apenas os indivíduos que se apropriam do governo realizam o que todos, no fundo, desejam, que é prevalecer sobre os demais. Propõe-se, assim, a existência de algo como uma natureza humana que se define a partir de uma tendência constante à busca por primazia. Semelhante imagem de nossa condição pode ser nomeada como antropologia da pleonexia, retrato sem retoques de uma constituição naturalmente tirânica. Diante disso, a seguinte alternativa apresenta-se. Ou bem Trasímaco defende a opinião de que a justiça não depende de nossa posição política, sejamos governantes ou governados, uma vez que se resume à consequência factual de mandarmos em causa própria ou obedecermos em causa alheia, ou bem ele defende que a justiça se define por uma tendência geral ao mando e à prevalência sobre os demais, realizando-se como vantagem do forte e prejuízo do fraco - o que, inclusive, suscita o elogio do forte pelos pragmáticos. Em termos correntes, haveria aí uma tese juspositivista, preconizando que dos fatos políticos se origina a lei, e dela a justiça, em contraste com outra, de extração antropológica, de acordo com o que os fatos políticos eles mesmos articulam-se a uma tendência inata nos homens e mulheres a exercerem tirania sobre qualquer um.

Ao leitor de hoje, porém, não convém negligenciar que os fatos sempre existem em correlação com interpretações.24 24 Numa formulação sintética, é o que propõe por exemplo Nietzsche: “Contra o positivismo, que permanece no fenômeno: ‘só há fatos’, diria eu: não, justamente não há fatos, apenas interpretações” (KSA XII, 7 [60]). Se isto está admitido, cabe perguntar se a alegada base factual do sofista corresponde ou não a experiências concretas e expectativas culturais específicas de uma determinada sociedade, inscrevendo-se num registro que é muito menos genérico do que o que ele pretende. Trasímaco fala partindo de um lugar e de uma classe cujas ambições representa à perfeição, mas, embora pretenda descrever um traço essencial do que é humano, talvez tenha se precipitado ao projetá-lo sobre a totalidade das relações comunitárias entre os indivíduos da espécie. Mesmo que a luta por poder seja uma realidade humana recorrente em quase todos os âmbitos, várias são as formas de uso do poder e diversas são as finalidades que se cumpre com sua conquista. A arbitrariedade sem limites se integra bem a uma visão do mundo e da humanidade radicalmente distintas das delineadas por Sócrates, que entende o poder segundo uma perspectiva oposta, para a qual a cooperação e a hierarquia fundam-se num conhecimento diferente, ainda por demonstrar, da necessária associação entre todos para a constituição de uma cidade justa.25 25 Aspecto decisivo das transformações sociais cogitadas por Platão, a reforma da educação pública recebe tratamento digno de nota por parte de Schofield (2006), principalmente no que tange ao controle dos desejos pleonéticos. Na seção 5 do capítulo 6 (respectivamente intitulados “Taming the beast within” e “Money and the soul”), lê-se que “The key to the ability to exercise [...] control over appetite [...] is education” (p. 271). Mas tal estado de coisas dependeria, como se reivindica amiúde, de um acesso racional à experiência e de uma estruturação racional da convivência civil. Seu interlocutor principal mobiliza também a racionalidade, embora reconheça para ela valor apenas instrumental. Subordinada por natureza à paixão por prevalência, a razão segundo ele não teria direitos, salvo servir ao senso de oportunidade dos fortes a cada ocasião, maximizando, conforme o contexto, o cálculo de suas vantagens.

Dada sua centralidade, vale retomar o ponto, a título de reiteração: se a justiça é, simultaneamente, a vantagem do forte e o ônus do fraco, à primeira vista parece não haver restrição relativa às suas formas de exercício. Navegando sob qualquer bandeira, o mais forte é aquele que exerce poder de fato, independentemente de suas crenças, digamos, ideológicas. Tiranos, oligarcas ou democratas teriam seus interesses assegurados quando em posição institucional de mando. Qualquer que fosse seu conteúdo, a legislação aprovada ou imposta pelo mandante serviria a um único propósito, facultar a ele que lidasse com o poder em termos vantajosos. Aquém de toda avaliação, o fenômeno social do poder seria totalmente positivo, manipulável à discrição de seu possuidor, não obstante a variedade de preferências possíveis em matéria política (Cf. Strauss, 2016TRABATTONI, F. “A ética e a política n’A República”. In:______. Platão. Tradução de R. Quinalia. São Paulo: Annablume, 2010. cap. X, pp. 165-202.).26 26 Esta é, em suma, a posição defendida por Strauss (2016, p. 174): “No entanto, [...] a tese [de Trasímaco] prova ser apenas a consequência de uma opinião que não é apenas manifestamente selvagem, mas também altamente respeitável. Segundo essa opinião, o justo é o mesmo que o lícito ou o legal, vale dizer, que aquilo que os costumes ou leis da cidade prescrevem. Mas essa opinião implica que não há nada mais alto a que o homem possa recorrer além das leis e convenções de origem humana. Trata-se da opinião hoje conhecida pelo nome de positivismo legal [...]”.

Essa interpretação da questão, contudo, não se acomoda bem aos esclarecimentos dados por seu proponente, atendendo a instâncias de Sócrates. No dilema que se abre - sobre se o poder é uma realidade em si mesma, constituindo-se como finalidade autônoma, ou se atende a quem o toma, valendo como meio para a promoção de determinado modo de viver - fica patente que Trasímaco julga que bom, para qualquer efeito, é a apropriação do governo em causa própria. Vive bem quem força os demais a agirem em benefício de si mesmo, e esta visão das coisas restringe o escopo do que parecia uma posição abrangente, vinculando-a à tirania.27 27 Ou, conforme Trabattoni (2011, p. 92): “[...] Trasímaco não quer dizer que a lei (portanto o poder que a promulga) determina a natureza do justo e do injusto, mas diz que a lei se encarrega de tornar conhecido o princípio (que pode ser válido independentemente de qualquer lei e de qualquer poder) segundo o qual o justo é o útil de quem manda”. Há, sim, uma componente moral em seu raciocínio: aquela tipicamente imoralista,28 28 Pode-se exercitar o imoralismo de diversas maneiras e por diversos motivos. Uma disposição experimental na lida com os fenômenos morais pode, inclusive, inclinar alguém a uma atitude de contestação das convenções morais e exploração de alternativas a elas a título filantrópico. Trata-se do paradoxal “imoralismo por moralidade”, discutido por Nietzsche no “Prólogo” de “Aurora” (2004). Por razões firmadas alhures, talvez seja o caso de incluir Sócrates nesta linha (veja-se a nota 40 a seguir). ligada à busca desenfreada pela vantagem egoísta. Em suma, ele não sustenta uma concepção de justiça animada por aspirações universais, como requeria seu interlocutor, mas uma especificamente tirânica, única em que o poder de mando é apreciado como um ganho completo, dadas as facilidades que propicia a seu detentor. Neste registro faz sentido definir justiça como interesse do mais forte ou, mutatis mutandis, como um bem de outro, proporcionado pelo mais fraco àquele que o tiraniza.

A iniciativa de se filosofar em comum, buscando equacionar de modo razoável os assuntos que dizem respeito a todos, demanda outra concepção das realidades humanas. Uma iniciação filosófica como a que é proposta e praticada por Sócrates investe seus melhores recursos numa educação cívica pautada por grandes esperanças quanto à obtenção da verdade. Se, a par de sujeitos dotados de apetites na maioria das vezes tirânicos, somos também animais gregários, aptos ao exame compartilhado, que pode conduzir à verdade, algum bem deve decorrer disso - um bem nem próprio nem alheio, mas comum.

A partir daqui, os intrincados desdobramentos da discussão podem ser ordenados em torno de três núcleos. Convém ponderar que o encadeamento dos argumentos nem sempre resulta claro e que sua articulação de conjunto às vezes parece carecer de unidade29 29 Ou ainda: “Também se argumentou amplamente que muitos, senão a maioria, dos argumentos de Sócrates [no Livro I] são claramente inconvincentes, e dependem precisamente do tipo de sofistaria linguística que ele condena - em outras passagens da República” (Purshouse, 2010, p. 26). - fatores que, em contrapartida, tornam a narrativa tão convincente, pois tudo nela se passa como na vida. Sendo assim, a progressão apresentada a seguir tem caráter tentativo, e sua inspiração, cabe repetir, é o resgate das ideias em debate desde um ângulo que empreste aos personagens sua maior consistência enquanto tipos humanos exemplares. Embora possa parecer lacunar, em vista de um sem-número de aspectos do diálogo deliberadamente desconsiderados na presente exposição,30 30 Para um resgate do que foi aqui simplificado, veja-se a reconstrução da passagem em estudo proposta por Das Graças De Moraes Augusto (2014), plena de insights luminosos e demonstrações probantes. esta orientação permitirá reconstruir duas figurações defensáveis das posições em jogo. A expectativa é que o ganho em inteligibilidade compense o risco exegético.

Para contestar que o interesse da justiça seja atendido quando prevalece sem restrição a vantagem do mais forte, recorre-se em primeiro lugar a uma comparação impressionante, dadas suas repercussões extemporâneas, ligadas a um meio em tudo distinto do meio urbano florescente em que as questões em foco emergiram. Estando admitido que as relações entre o governante e seus governados são análogas àquelas que o pastor mantém com seus rebanhos, Sócrates defende que ambos, governante e pastor, agem de modo justo quando se dedicam ao bem daqueles que estão sob sua guarda. Trasímaco repudia duramente esta concepção das coisas, insistindo ser ela sinal de uma percepção equivocada do mundo. Entre os bobos até pode ser assim, mas só se torna rico, poderoso e invejado quem em tudo sabe garantir sua vantagem. Donde o bom do gado é engordar para benefício de seu dono,31 31 Segundo uma formulação bastante direta, “Thrasymachus describes a ‘law of the jungle’ that many american capitalists would likely agree with” (Fissel, 2009, p. 42). assim como o bom dos governados é obedecer às leis em proveito daquele a quem se submetem.

A objeção socrático-platônica vem de pronto. Ao aceitarmos esta lição, não estaríamos confundindo aspectos diversos de uma atividade composta, tomando uma parte sua pelo todo? Certamente o pastor depende dos lucros de seu empreendimento para se manter ativo nele. Mas isso não significa que a busca de lucro deva reger integralmente sua atividade. Conforme tradições posteriores, que vieram a ser muito influentes na cultura ocidental, a virtude de um bom pastor é proverbialmente ilustrada quando ele dá sua vida pelas ovelhas.32 32 Segundo o evangelho de João, os termos da parábola são: “Eu sou o bom pastor, o bom pastor dá sua vida pelas ovelhas” (João, 10, 10-11). Perdê-las para os lobos, para o abismo, para ladrões ou para a doença parece não ser simples questão econômica, mas algo que depõe sobre as muitas competências exigidas de seu cuidador. Para poder abatê-la, realizando sua vantagem econômica, ele tem de saber protegê-la. Mas este saber não é questão de tino comercial, e, sim, de conhecimento de causa. De várias causas, aliás, que concernem ao pastoreio enquanto tal, e não aos negócios, que em boa ordem dele dependem e a ele se subordinam.33 33 Não é improvável que o leitor conheça a história de Temple Grandin, cidadã norte-americana nossa contemporânea. Autista de alto desempenho, graduada em Psicologia e doutora em Zootecnia, notabilizou se, entre outras coisas, por propor e implementar mudanças revolucionárias no manejo industrial de rebanhos para abate. Introduziu para tanto um conjunto de procedimentos padrão voltados para o bem-estar do gado, hoje universalmente reconhecidos por gerarem benefícios para todos os envolvidos na atividade pecuária. Os principais adversários de suas inovações defendiam pontos de vista muito próximos dos atribuídos a Trasímaco.

Embora o temperamental interlocutor não se deixe ainda mover por estas alegações, a conversação avança explorando o veio descoberto. Incluindo no exame os exemplos da medicina e da navegação, Sócrates indica que, à revelia da dimensão da vantagem pessoal, parece haver a maneira reta de fazer as coisas em cada domínio. O mérito objetivo da medicina é cuidar bem da saúde, o da pilotagem, conduzir em segurança os barcos e sua tripulação, e assim por diante. Decerto existem idiossincrasias que muitas vezes imprimem direções peculiares ao trabalho deste médico ou deste piloto, como a ganância ou um temperamento tirânico, mas o que conta ao final, na avaliação de um público sensato, não é seu prestígio pessoal, mas o efeito verificável de suas ações. Ou ao menos deveria ser assim, implicando eficiência técnica e virtude sob a direção da última. O saldo desta segunda linha argumentativa é o seguinte: porque se admite que há o modo correto de realizar cada atividade em vista de sua excelência - ponto que precisa ainda ser determinado a quente pelo exame crítico34 34 O esforço pela ancoragem ontológica para o conjunto da reflexão em curso culmina na narrativa do mito da caverna, passagem em que, sob a regência ideal da absoluta integração entre todas as ordens de realidade, são estipulados os modos de ser e de conhecer que permitem associar o bem e a verdade. Consuma-se assim a iniciativa mais ambiciosa já tomada para preencher a intuição filosófica primitiva segundo a qual “Tudo é um”. Sobre o cumprimento das pretensões sistemáticas do pensamento de Platão, veja-se Goldschmidt (2002). -, pouco importa se, ao realizá-la, está-se ou não prevalecendo sobre seus demais praticantes. O que conta é se se aproxima ou não do desempenho funcional adequado à consecução dos fins daquela atividade - fator que interfere também no contentamento que o agente pode obter em sua prática. É claro que a atribuição de justeza a um desempenho variará em função de considerações de ordem epistêmica e metafísica, articuladas, no caso da “República”, em torno da exposição sobre as formas. Mas o que importa por enquanto no diálogo é definir o caráter necessário do horizonte descortinado, e não seu preenchimento com a meditação correspondente. Ela virá quando pertinente, na esteira desta demarcação preparatória, nos nove Livros restantes que integram a obra, configurando sua integridade de conjunto.35 35 Em face dos contornos colossais da questão - afinal, “That the Republic is structured by ring-composition seems to belong to the common folk wisdom of Platonic scholarship, in a way which (so far as I can discover) outruns anything reflected in the published literature” (Barney, 2010, p. 9) -, atemo-nos a assinalar o uso da composição em anel na “República” num ponto apenas. Ao arrematar o Livro I, Sócrates faz notar que o curso da investigação cumpriu uma trajetória circular e levou-os de volta ao início. As proposições debatidas resultaram em esboços mais ou menos acabados de perguntas e respostas que agora precisam de um reexame de ponta a ponta. Pois agiu-se como glutões, que beliscam de todos os pratos sem ordem nem atenção, chegando ao fim da festa sem saber direito sobre nada do que provaram, demandando que refaçam o caminho para entenderem o que aconteceu.

Tendo referido na discussão algumas atividades humanas complexas, que envolvem vários participantes, Sócrates pode então mobilizar um elemento que perpassa todas elas, de modo a insistir junto a seus companheiros de jornada que o justo é também o melhor justificado e o mais feliz. Sempre que se associam em grupo para alguma realização dotada de objetivos comuns, os membros de um coletivo precisam fazer valer algo como um mínimo de respeito mútuo. Cada qual no seu papel, impõe-se a todos eles que contribuam para o intento do grupo, deixando de lado sua vantagem exclusiva. Mesmo entre bandidos deve haver uma noção qualquer de justiça, senão suas ações não resultam proveitosas para o bando de cuja união eles dependem.

Ora, se esta é uma situação extrema, parece plausível que, em condições menos severas, a proporcionalidade deva valer ainda mais.36 36 Pois nos casos em que os participantes de um empreendimento comum são menos malvados, as capacidades de cada um podem ser aproveitadas sem que a influência das disposições tirânicas se agigante. Um time funciona bem quando os jogadores desempenham adequadamente as funções que competem a sua posição, sem pretenderem, todos ao mesmo tempo, liderar. Afinal, “o bem não é algo de que se tira vantagem, mas o que temos a vantagem de realizar” (Grimaldi, 2006, p. 15). Por extensão, fica patente que uma vida comunitária bem-sucedida exige alguma medida de reconhecimento recíproco entre seus integrantes. Não se trata de banir de uma vez por todas a competição em nome da cooperação - fantasia que ignora a história, a começar pela cultura agonística que domina o mundo grego desde o período arcaico -, mas de entender que mesmo a guerra pode ser boa ou ruim, digna ou não, conforme a ideia de justiça vigente entre os adversários. Visadas desde tal perspectiva, entende-se porque iniciativas como a “guerra total” só podem surgir em contextos destituídos de qualquer vestígio de decência. Não que não aconteçam coisas deste tipo - o difícil é defendê-las por meio de razões aceitáveis.37 37 O célebre episódio do envio à ilha de Melos de uma expedição ateniense e o não menos célebre diálogo havido entre as partes explicitam os dois lados da questão no âmbito das hoje chamadas relações internacionais. Veja-se Tucídides, “História da guerra do Peloponeso” (Livro V).

Nesta altura, desarmado pela eloquência do que foi dito, tão aplicável a si lhe pareceu, Trasímaco reluta, sua em profusão e termina corando de vergonha. Do ângulo reivindicado por ele no início - vale lembrar, o do homem mundano, conhecedor das realidades da vida -, a chance de que seu proceder, passada a hora desta conversa, seja por ela afetado, é pequena. Parece valer quanto a sua condição o ditado “vencido mas não convencido”. Mas algo espantoso aconteceu: pelo menos no âmbito do drama narrado, um imoralista adepto da tirania foi levado a perceber que a implementação de suas convicções tenderia a danificar sem remédio qualquer experiência comunitária, revertendo de algum modo em prejuízo para ele. O entendimento da justiça e da vida justa que ele defendeu terminaria por inviabilizar a coexistência humana, convertendo uma vitória concreta de suas ideias num acontecimento inglório e relegando o vencedor à solidão. Pode-se viver assim, e de fato um ideário nesses moldes parece nortear as esferas decisórias da sociedade mundial contemporânea (Cf. Barney, 2006______. “Socrates’ refutation of Thrasymachus”. In: SANTAS, G. (ed.). The Blackwell Guide to Plato's Republic. Oxford: Blackwell Publishing, 2006. pp. 44-62.).38 38 É muito precisa a formulação de Rachel Barney sobre o ponto: “Plato was not in a position to have Thrasymachus use the jargon of ‘maximizing return to shareholders’, but he would easily recognize it as an updating of the Thrasymachean ideal, with the difference that instead of the individual, the agent practising the craft [...] is now often a corporate entity whose ‘advantage’ is construed in terms of profit margins and stock price” (2006, p. 51). A dúvida que resiste é se assim ainda faz sentido falar de uma vida boa.

Seja como for, o desenrolar do encontro de Sócrates com Trasímaco explicita uma polarização de concepções típicas a respeito da natureza primordial das relações humanas. Para uns, viver de forma justa é dominar, prevalecer, impor-se por qualquer meio sobre os demais; para outros, viver na justiça é conviver, criar condições para distribuir poderes e responsabilidades equitativamente, aproveitando o melhor de cada um conforme suas aptidões. Um intérprete relativista do ponto diria: no fundo cada qual busca o que quer e faz o que dá conta, não existindo um critério seguro para fixar a superioridade de qualquer das duas perspectivas. Para um olhar mais consequente, porém, não existe equivalência entre elas, já que os resultados práticos daquilo que cada uma sustenta diferem diametralmente. A primeira tem o potencial de corroer qualquer laço civil, ao passo que a outra é a que assegura a chance da consolidação de laços interpessoais fecundos. Não há nada de errado com a busca do próprio interesse, desde que mediada pela convivência e integrada a ela sob uma lei comum que vale para todos.39 39 A questão das relações entre moral individual e moralidade coletiva, considerada a tensão constitutiva entre elas, é muito mais complexa do que este esboço permite ver. Não obstante, parece haver em Sócrates um equacionamento razoável do ponto, na medida em que a crítica e mesmo a desobediência eventual às leis pretende seu aperfeiçoamento e não sua supressão. Mesmo que o exame socrático leve a impasses práticos, serve-se melhor à vida boa por seu intermédio do que aceitando como válidas decisões arbitrárias, descoladas do espírito público. Trata-se de uma forma individualista de cidadania, apoiada, não na tradição e no costume, mas no exercício de uma consciência secularizada. Daí a típica “política” socrática: resistência, ou mesmo dissidência, diante das maiorias construídas no jogo da opinião pública, em nome da autodeterminação daquele que pratica o exame crítico. Veja-se a respeito Villa (2001).

Não admitir que semelhante descrição das relações humanas pode ter papel prescritivo acarreta, justamente, o aviltamento dessas relações. A injustiça promove um modo de viver que favorece somente um tipo humano, o tirano, deixando de fora todos os outros. A disseminação de uma tal monotonia beligerante empobrece em demasia nossas possibilidades de vida, razão pela qual pretendemos que a visão defendida por Trasímaco seja considerada inferior ao ponto de vista socrático.40 40 Embora a atribuição de duas teses distintas a Trasímaco seja um ponto disputado, tendemos a seguir o autor em sua exposição da antropologia da tirania, no mínimo reconhecendo seu acerto descritivo em relação a muitos contextos, infelizmente bastante familiares. Veja-se Vegetti (2015). A construção de uma cidade justa mobiliza trabalho educacional árduo, mas é promissora, a de uma cidade injusta é fácil, pois segue inclinações mais imediatas, mas dissemina infelicidade e traz consigo instabilidade permanente, não resultando digna de imitação.

Impõe-se, em conclusão, retomar uma observação ensaiada acima. Trasímaco pode até ter razão num ponto sensível do debate, mas tira disso uma consequência discutível. Conscientemente ou não, o sentimento de poder41 41 Para esclarecimentos quanto a isso, consulte-se o aforismo 13 de Nietzsche (2001), precisamente intitulado “Sobre a teoria do sentimento de poder”. é um afeto estimado por todos, pois sinaliza um estado ótimo das próprias forças para alguém, sua melhor disposição para reconhecer e desempenhar as funções que lhe cabem em vista de seus melhores talentos. Os arranjos para alcançá-lo, contudo, são muito diversos, e em sua perseguição cada um mostra sua inclinação mais típica. A forma de vida tipicamente tirânica é a que quer levar vantagem em tudo, que quer tudo só para si, provando com isso que, num sentido preciso, infantil é o sofista, e não Sócrates.42 42 Numa evocação talvez extravagante, permitimo-nos comparar o tipo tirânico ao magnata que dá título ao filme de 1941 dirigido por Orson Welles, “Cidadão Kane”. Dita no leito de morte, sua última palavra remete à primeira propriedade exclusiva do menino Kane, um trenó de neve, indicando o fulcro de sua vida inteira: posse e controle. A um costuma atrair aquilo que mais lhe falta. Afinal, este exerce seu melhor em comum, em nome de uma amizade bem conhecida, a serviço da cidade, enquanto o outro é um escravo de seus apetites, condenado à falta de medida própria da criança infeliz que só conhece a violência - o mísero valentão.43 43 Segundo Weiss, em artigo que remete diretamente a personagens assim, “What Socrates’ argument shows is that it is precisely the perfectly unjust who can accomplish nothing, for surely some measure of justice is needed if anything is to get done. But what the argument implies is that the more justice people have within, the more in harmony they are with themselves, with others, and with the gods. By introducing the idea that justice is harmony, Socrates challenges the Thrasymachean view that justice is of no value to the just man himself. Moreover, Socrates’ conception of justice in Book 1 as internal harmony- whether in city, clan, army, or individual - prefigures his characterization of it in Book 4 as the healthy condition of the city (434c) or soul (445a-b)” (2007, p. 113). Um estado ótimo para o desenvolvimento de todas as forças inerentes à condição humana, situação excepcional, só ocorrerá no seio de comunidades regidas pela distribuição equitativa e harmônica das oportunidades de exercício de poder - cidades enfim tornadas justas.44 44 Nesse sentido, concorda-se que “não há felicidade pública sem justiça na conduta social e individual” (Vegetti, 2010, p. 281).

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    Professor do DEFIL / IFAC / UFOP.
  • 1
    As edições consultadas foram “A república”. Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996; “A república de Platão”. Tradução e organização de J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2006; e “A justiça”. Tradução e notas de Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2016.
  • 2
    Embora consagrada, a caracterização de Trasímaco como sofista não é unânime. Capizzi, na esteira de Grote, qualifica-o de preferência como retórico.
  • 3
    Em que pese o risco de anacronismo, consideramos pertinente tratar, sem discriminação de fronteira disciplinar, questões éticas e políticas. Pelo menos para o pensamento antigo aqui emulado esse não era um procedimento imprudente. A respeito, veja-se por exemplo o capítulo X do “Platão” de Trabattoni, “A ética e a política n’A República” (2010, pp. 165-202).
  • 4
    Nessa mesma direção, lê-se que “Platão é um grande escritor, capaz de dominar extraordinária ingenuidade, charme e poder” (Williams, 2000WILLIAMS, B. “Platão: a invenção da filosofia”. Tradução de I. F. Franco. São Paulo: Ed. Unesp, 2000. , p. 8).
  • 5
    “Como testemunha da minha sabedoria, se realmente ela existe e qualquer que ela seja, apresentar-vos-ei o deus de Delfos”: com essa abordagem irônica inicia-se a passagem em que somos inteirados da consulta ao oráculo e de seus desdobramentos. Veja-se Platão, “Apologia de Sócrates”, 20e (tradução de Manuel de Oliveira Pulquério).
  • 6
    Sobre a ocupação do Sócrates histórico, mas principalmente, tendo em vista o contexto de época, sobre a natureza das questões que ele levanta e sobre o acesso adequado a elas, considerando também as fontes alternativas à versão platônica, vale consultar os escritos de F. Adorno (1990)ADORNO, F. “Sócrates”. Tradução de A. J. P. Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 1990. e Vander Waerdt (1994)VANDER WAERT, P. “Socrates in the clouds”. In: ______. (ed.). The socratic movement. Ithaca: Cornell U.P., 1994. pp. 48-86. . Ambos sustentam não ter havido uma conversão filosófica socrática contra as práticas científicas de seus contemporâneos, mas, sim, uma suplementação da pesquisa deles por uma estratégia investigativa diferente, voltada para aspectos da experiência humana irredutíveis às pautas do conhecimento técnico. Diz Adorno (1990, p. 19)ADORNO, F. “Sócrates”. Tradução de A. J. P. Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 1990.: “[...] se conclui que a postura socrática está inteiramente voltada para o saber pensar, para colocar as condições para se conseguir discursos corretos. E precisamente por isso, de cada vez, a questão esboça-se de modo diferente, sem preconceitos, maleavelmente, sem um saber já dado à partida; mais, num saber que se vem constituindo, uma e outra vez, através da própria pesquisa”.
  • 7
    Nesse sentido lê-se que “é importante a relação com a festa, por configurar uma situação pública, a reunião de pessoas num espaço a princípio externo (a rua), mas que pode infiltrar-se no oikos. Mais que qualquer outro evento, as festas religiosas, em especial, permitem uma sorte de encontro da cidade consigo mesma [...]” (Brandão, 2016BRANDÃO, J. “O filósofo na casa de um homem justo (comentários a República 327a-331d, parte 1)”. Virtua Jus, Belo Horizonte, Vol. 12, Nr, 1, pp. 8-30, 2016. , p. 23).
  • 8
    Em outras palavras, é “Como se se dissesse que o ser humano, antes de se dedicar à análise lógica do que é o acto da polis, deve celebrar esse mesmo acto [...]. Primeiro, celebra-se a cidade e uma deusa da cidade, como marca do carácter absoluto de haver cidade. O habitante da cidade tem consciência (o que Platão não ignora) de que haver cidade é um bem absoluto, isto é, absolutamente irredutível e insubstituível; isto é, de que sem cidade não há verdadeiramente ser humano, de que a cidade é o topos único próprio do ser humano, sua matriz política, mas também ética, seu ventre de possibilidade de humanidade e de plenitude dessa e nessa humanidade” (Pereira, 2008PEREIRA, A. “Comentário ao primeiro livro da Politeia de Platão”. Covilhã: Luso Sofia Press, 2008. , p. 39).
  • 9
    “Em resumo: para que haja diálogo devem existir outras pessoas, além da primeira” (Brandão, 2016BRANDÃO, J. “O filósofo na casa de um homem justo (comentários a República 327a-331d, parte 1)”. Virtua Jus, Belo Horizonte, Vol. 12, Nr, 1, pp. 8-30, 2016. , p. 21)..
  • 10
    A seguinte passagem formula o ponto de maneira lapidar “Esta disponibilidade, ou esta espécie de tempo vazio, supostas para quem quer contar ou ouvir estórias bem narradas, poderia, assim, ser pensada como constituída, enquanto estado anímico de distensão, pelo prazer e a saciedade fornecidos pela comida e a bebida partilhadas, bem marcados pelo verso formular que descreve retrospectivamente o consumo: ‘Mas quando expulsaram o desejo de comida e de bebida’ [...] e que indica precisamente o momento de transição ou para a escuta de um aedo ou para a conversação entre anfitrião e hóspede (ambas comportando necessariamente narrativas), sendo a conversação - assim como a comida e bebida compartilhadas - integrável em um ritual maior de hospitalidade (que não visa diretamente à produção de bens nem ao comércio, ainda que implique a troca de presentes segundo o modelo da reciprocidade). Uma tal disponibilidade (p. ex., pouco pensável e cada vez mais rara em um mundo urbano capitalista regido apenas pelo trabalho e no qual o tempo se compartimenta cada vez mais) pode, assim, parecer prefigurar a skholé (ou otium) como condição para a filosofia, assim como o banquete (ou sympósion) também será posteriormente uma ocasião privilegiada para a conversação filosófica [...]” (Assunção, 2013ASSUNÇÃO, T. “O banquete a as narrativas na Odisséia”. Romanitas, Vitória, Nr. 2, pp. 98-114, 2013., pp. 111-112).
  • 11
    A caracterização de Céfalo no diálogo permite ampla variação interpretativa. Há desde aqueles que o consideram “aterrorizado pelo que virá depois da morte” (Pichanick, 2018PICHANICK, A. “Why might (or must?) Philosophy be for the young? The case of Cephalus in Plato’s Republic”. In. Cahiers des études anciennes, Quebec, Vol. LV, pp. 145-159, 2018., p. 145) quanto quem reconheça em sua acolhida a Sócrates indícios de “jovial bonomia” e “madura serenidade” (Lopes, 1997LOPES, A. O. O. D. “A dificuldade de Trasímaco: uma interpretação do livro I da República de Platão a partir dos poemas homéricos -Parte I”. Kleos, Rio de Janeiro, Nr. 1, pp. 167-209, 1997., p. 168). Alinhamo-nos ao segundo intérprete - nisso e em praticamente tudo o mais, aliás.
  • 12
    O dilema sugerido é aquele em que um pede a outro que guarde suas armas e, depois, visivelmente transtornado, as requisita de volta. Não há regra inequívoca que decida se cumpriria ou não devolvê-las.
  • 13
    Decerto existem aqueles que estão aquém de aprender a viver assim: “é possível que tais fatores [as paixões e os desejos] tenham agido em uma alma tão profundamente a ponto de torná-la incurável. Para essas almas assim tão degeneradas, a reeducação [por meio do exame dialético] não seria de nenhuma utilidade e, portanto, não restará nada mais que a pena de morte: a qual, nesse caso, será duplamente útil: purifica a cidade dos malvados e serve de exemplo para os outros. Platão permaneceu por toda a vida fiel ao princípio socrático segundo o qual a vida só tem valor se for boa” (Trabattoni, 2010TRABATTONI, F. “A ética e a política n’A República”. In:______. Platão. Tradução de R. Quinalia. São Paulo: Annablume, 2010. cap. X, pp. 165-202., p. 304).
  • 14
    A ideia de justiça restaurativa recebe, assim, sua primeira formulação filosófica. Ainda estribada na expectativa de proporcionalidade, esta acepção do conceito avança ao entender que a condição para o exercício de qualquer modalidade de justiça é a existência efetiva de laços comunitários sãos.
  • 15
    Se Rosen declara que, “[...] if might makes right, then life is a perpetual war of each against all, as Hobbes teaches: we are all enemies. If there is such a thing as friendship, it is an allegiance to dominate others; the moment there is a shift in the balance of power, friends become enemies and enemies friends. Today we call this real politik” (2005, p. 39), Blackburn vai além, e classifica Trasímaco como representante maquiavélico da real politik, formando com seus iguais um grupo de “[...] ancestrais diretos da blitzkrieg, do terrorismo, da adoração do livre mercado e da ética da escola de comércio” (2008, p. 43).
  • 16
    Nessa altura, leituras utilitaristas do ponto, orientadas pelo par conceitual altruísmo/egoísmo, defenderiam a existência de um mecanismo como o “darwinismo social”, apto a confirmar, sob roupagens modernas, as concepções egoístas de Trasímaco. Entretanto, mesmo nas ciências biológicas o debate está longe de ser simples. Reconhecendo a vigência de um “processo de transmissão não genética de informações relevantes para o comportamento social”, as chamadas “variantes culturais”, Baravalle conjectura: “Como as forças evolutivas vinculam os organismos dentro de unidades sociais? Ou, em outras palavras, por que os organismos são levados, em determinadas circunstâncias, a subordinar seus próprios interesses aos da comunidade? A resposta será: devido ao potencial adaptativo dos comportamentos altruístas” (2014, pp. 110 e 99, respectivamente). Embora a exemplificação corroborativa não se atenha apenas a populações humanas, a incidência da questão sobre nosso tema é inescapável.
  • 17
    Não se trata de questão menor. O que aqui aparece resumido será objeto de estudo pormenorizado em separado, segundo as linhas gerais desenhadas por Vlastos e Dixsault (2012)VLASTOS, G., DIXSAULT, M. “O Élenkhos socrático: método é tudo” e “Refutação e dialética”. In: Refutação. Tradução de J. Mafra. São Paulo: Paulus, 2012..
  • 18
    O que motiva a adesão ao diálogo é uma espécie de constatação incontornável de que tudo o que se tomava por certo até então pode, afinal, não ser como se pensava. Apenas algo desta ordem é capaz de provocar a reação envergonhada que, mais adiante, Platão atribui a Trasímaco. Nada assegura a duração desta perplexidade, que é também admiração, mas sua percepção, no instante em que ocorre, é evidente. Segundo Pierre Hadot (2014, p. 97)HADOT, P. “A figura de Sócrates”. Tradução de F. F. Loque e L. Oliveira. In:_____. Exercícios espirituais e filosofia antiga. São Paulo: É Realizações, 2014. pp. 91-127., “trata-se de fazer [o interlocutor] sentir seu erro, não o refutando diretamente, mas o expondo a ele de tal modo que sua absurdidade lhe apareça claramente”.
  • 19
    Em outras palavras, “Sócrates foi essencialmente um protréptico, um mestre de vida, um homem que procurou fazer pensar os outros, encaminhar os outros para saberem raciocinar, viver, em cada circunstância, segundo a razão, [...] e não levados pelas paixões, ao acaso” (Adorno, 1990ADORNO, F. “Sócrates”. Tradução de A. J. P. Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 1990., p. 11).
  • 20
    Semelhante caracterização dos personagens evidencia a discrepância entre suas respectivas visões antropológicas, no sentido seguinte: “[...] rivalizando com a antropologia pleonéxica defendida por Trasímaco [...], Sócrates, a partir da exigência de unidade do homem e da cidade, vai tecendo outra antropologia bem mais complexa. Nesta outra antropologia, o homem revela-se como um ser dilacerado por múltiplas tendências, e sua única chance de êxito, possibilidade frágil e instável, está em estabelecer uma dinâmica harmoniosa na qual o pensamento, elemento ‘mais frágil’ e também ‘melhor’, possa governar, com o auxílio da irascibilidade, o desejo, o elemento ‘mais forte’ e ‘pior’ da alma” (Araújo Jr., 2011ARAÚJO JR., A. “Os sentidos de kreítton no Livro I da República de Platão”. In: XAVIER, D., CORNEILLE, G. (orgs.). A República de Platão: outros olhares. São Paulo: Loyola, 2011. pp. 197-207., p. 198).
  • 21
    A título de ilustração, cabe mencionar o debate entre Trabattoni e Vegetti, girando em torno da própria definição em causa.
  • 22
    A questão sobre se Sócrates é bem-sucedido na disputa com Trasímaco é, talvez, a mais difícil em relação à matéria em estudo. A exemplo de Havelock, a maioria considera que “No clear answer is given, the argument ends aporetically, in the manner of other ethical dialogues” (1978, p. 308). Muita sutileza é mobilizada por Rowe (2007)ROWE, C. “Appendix to Chapter 5: Socrates vs. Thrasymachus in Republic I”. In:_____. Plato and the art of philosophical writing. Cambridge: Cambridge U. P., 2007. pp. 186-197. para cogitar que tal aporia não é viciosa, na medida em que deriva de uma diferença quanto aos pressupostos admitidos por um e outro dos interlocutores. Seja como for, alinhamo-nos de preferência à reconstrução feita por Barney, que, depois de discernir um fracasso retórico de um êxito filosófico, desenvolve com finura múltiplas articulações entre as etapas da argumentação, provando ao final que “[...] Socrates’ arguments are somewhat more promising than interpreters tended to suppose [...]”, de sorte que “The book I arguments [...] are a philosophically necessary preparation for us to recognize justice when we encounter it [in Book IV]” (2006, pp. 44 e 59, respectivamente).
  • 23
    De forma extremamente condensada e em termos que não são empregados pelos autores, o contraponto entre Trabattoni e Vegetti pode ser apresentado como se segue. Para Vegetti, a chamada primeira tese platônica mostraria Trasímaco como apologista da força e a segunda tese como apologista da violência de cunho egoísta. A força valeria por si, mas apenas em mãos violentas seria plenamente exercida, à medida que, neste caso, iria de encontro aos ditames de nossa natureza tirânica. Já para Trabattoni, porque Trasímaco é desde sempre um apologista da violência a serviço do egoísmo, é-lhe conveniente também fazer a apologia da força. Para que a violência, que nos é inerente, tenha livre curso, que valha também a força, assumida como meio real de toda e qualquer prática política.
  • 24
    Numa formulação sintética, é o que propõe por exemplo Nietzsche: “Contra o positivismo, que permanece no fenômeno: ‘só há fatos’, diria eu: não, justamente não há fatos, apenas interpretações” (KSA XII, 7 [60]).
  • 25
    Aspecto decisivo das transformações sociais cogitadas por Platão, a reforma da educação pública recebe tratamento digno de nota por parte de Schofield (2006), principalmente no que tange ao controle dos desejos pleonéticos. Na seção 5 do capítulo 6 (respectivamente intitulados “Taming the beast within” e “Money and the soul”), lê-se que “The key to the ability to exercise [...] control over appetite [...] is education” (p. 271).
  • 26
    Esta é, em suma, a posição defendida por Strauss (2016, p. 174)STRAUSS, L. “Platão 427-347 a.C”. In:_____. Uma introdução à filosofia política. Tradução de É. Verçosa Filho. São Paulo: É Realizações, 2016. pp. 169-235.: “No entanto, [...] a tese [de Trasímaco] prova ser apenas a consequência de uma opinião que não é apenas manifestamente selvagem, mas também altamente respeitável. Segundo essa opinião, o justo é o mesmo que o lícito ou o legal, vale dizer, que aquilo que os costumes ou leis da cidade prescrevem. Mas essa opinião implica que não há nada mais alto a que o homem possa recorrer além das leis e convenções de origem humana. Trata-se da opinião hoje conhecida pelo nome de positivismo legal [...]”.
  • 27
    Ou, conforme Trabattoni (2011, p. 92)______. “Quantas teses sustenta Trasímaco no Livro I da República?”. In: XAVIER, D.; CORNEILLE, G. (orgs.). A República de Platão: outros olhares. São Paulo: Loyola, 2011. pp. 87-98.: “[...] Trasímaco não quer dizer que a lei (portanto o poder que a promulga) determina a natureza do justo e do injusto, mas diz que a lei se encarrega de tornar conhecido o princípio (que pode ser válido independentemente de qualquer lei e de qualquer poder) segundo o qual o justo é o útil de quem manda”.
  • 28
    Pode-se exercitar o imoralismo de diversas maneiras e por diversos motivos. Uma disposição experimental na lida com os fenômenos morais pode, inclusive, inclinar alguém a uma atitude de contestação das convenções morais e exploração de alternativas a elas a título filantrópico. Trata-se do paradoxal “imoralismo por moralidade”, discutido por Nietzsche no “Prólogo” de “Aurora” (2004). Por razões firmadas alhures, talvez seja o caso de incluir Sócrates nesta linha (veja-se a nota 40 a seguir).
  • 29
    Ou ainda: “Também se argumentou amplamente que muitos, senão a maioria, dos argumentos de Sócrates [no Livro I] são claramente inconvincentes, e dependem precisamente do tipo de sofistaria linguística que ele condena - em outras passagens da República” (Purshouse, 2010PURSHOUSE, L. “A República de Platão: um guia de leitura”. Tradução de L. Pudenzi. São Paulo: Paulus, 2010., p. 26).
  • 30
    Para um resgate do que foi aqui simplificado, veja-se a reconstrução da passagem em estudo proposta por Das Graças De Moraes Augusto (2014)DAS GRAÇAS DE MORAES AUGUSTO, Maria. “O argumento cômico no diálogo entre Sócrates e Trasímaco no Livro I da República”. In: O que nos faz pensar, [S.l.], Vol. 23, Nr. 34, pp. 147-182, Março 2014. ISSN 0104-6675. Disponível em: http://www.oquenosfazpensar.fil.puc-rio.br/index.php/oqnfp/article/view/410. (Acessado em 15 de janeiro de 2019).
    http://www.oquenosfazpensar.fil.puc-rio....
    , plena de insights luminosos e demonstrações probantes.
  • 31
    Segundo uma formulação bastante direta, “Thrasymachus describes a ‘law of the jungle’ that many american capitalists would likely agree with” (Fissel, 2009FISSEL, B. “Thrasymachus and the order of pleonexia”. Aporia, Provo (Utah), Vol. 19, Nr. 1, pp. 35-43, 2009., p. 42).
  • 32
    Segundo o evangelho de João, os termos da parábola são: “Eu sou o bom pastor, o bom pastor dá sua vida pelas ovelhas” (João, 10, 10-11).
  • 33
    Não é improvável que o leitor conheça a história de Temple Grandin, cidadã norte-americana nossa contemporânea. Autista de alto desempenho, graduada em Psicologia e doutora em Zootecnia, notabilizou se, entre outras coisas, por propor e implementar mudanças revolucionárias no manejo industrial de rebanhos para abate. Introduziu para tanto um conjunto de procedimentos padrão voltados para o bem-estar do gado, hoje universalmente reconhecidos por gerarem benefícios para todos os envolvidos na atividade pecuária. Os principais adversários de suas inovações defendiam pontos de vista muito próximos dos atribuídos a Trasímaco.
  • 34
    O esforço pela ancoragem ontológica para o conjunto da reflexão em curso culmina na narrativa do mito da caverna, passagem em que, sob a regência ideal da absoluta integração entre todas as ordens de realidade, são estipulados os modos de ser e de conhecer que permitem associar o bem e a verdade. Consuma-se assim a iniciativa mais ambiciosa já tomada para preencher a intuição filosófica primitiva segundo a qual “Tudo é um”. Sobre o cumprimento das pretensões sistemáticas do pensamento de Platão, veja-se Goldschmidt (2002)GOLDSCHMIDT, V. “Os diálogos de Platão: estrutura e método dialético”. Tradução de D. D. Macedo. São Paulo: Loyola, 2002..
  • 35
    Em face dos contornos colossais da questão - afinal, “That the Republic is structured by ring-composition seems to belong to the common folk wisdom of Platonic scholarship, in a way which (so far as I can discover) outruns anything reflected in the published literature” (Barney, 2010______. “Socrates’ refutation of Thrasymachus”. In: SANTAS, G. (ed.). The Blackwell Guide to Plato's Republic. Oxford: Blackwell Publishing, 2006. pp. 44-62., p. 9) -, atemo-nos a assinalar o uso da composição em anel na “República” num ponto apenas. Ao arrematar o Livro I, Sócrates faz notar que o curso da investigação cumpriu uma trajetória circular e levou-os de volta ao início. As proposições debatidas resultaram em esboços mais ou menos acabados de perguntas e respostas que agora precisam de um reexame de ponta a ponta. Pois agiu-se como glutões, que beliscam de todos os pratos sem ordem nem atenção, chegando ao fim da festa sem saber direito sobre nada do que provaram, demandando que refaçam o caminho para entenderem o que aconteceu.
  • 36
    Pois nos casos em que os participantes de um empreendimento comum são menos malvados, as capacidades de cada um podem ser aproveitadas sem que a influência das disposições tirânicas se agigante. Um time funciona bem quando os jogadores desempenham adequadamente as funções que competem a sua posição, sem pretenderem, todos ao mesmo tempo, liderar. Afinal, “o bem não é algo de que se tira vantagem, mas o que temos a vantagem de realizar” (Grimaldi, 2006GRIMALDI, N. “Sócrates, o feiticeiro”. Tradução de N. N. Campanário. São Paulo: Loyola, 2006. , p. 15).
  • 37
    O célebre episódio do envio à ilha de Melos de uma expedição ateniense e o não menos célebre diálogo havido entre as partes explicitam os dois lados da questão no âmbito das hoje chamadas relações internacionais. Veja-se Tucídides, “História da guerra do Peloponeso” (Livro V).
  • 38
    É muito precisa a formulação de Rachel Barney sobre o ponto: “Plato was not in a position to have Thrasymachus use the jargon of ‘maximizing return to shareholders’, but he would easily recognize it as an updating of the Thrasymachean ideal, with the difference that instead of the individual, the agent practising the craft [...] is now often a corporate entity whose ‘advantage’ is construed in terms of profit margins and stock price” (2006, p. 51).
  • 39
    A questão das relações entre moral individual e moralidade coletiva, considerada a tensão constitutiva entre elas, é muito mais complexa do que este esboço permite ver. Não obstante, parece haver em Sócrates um equacionamento razoável do ponto, na medida em que a crítica e mesmo a desobediência eventual às leis pretende seu aperfeiçoamento e não sua supressão. Mesmo que o exame socrático leve a impasses práticos, serve-se melhor à vida boa por seu intermédio do que aceitando como válidas decisões arbitrárias, descoladas do espírito público. Trata-se de uma forma individualista de cidadania, apoiada, não na tradição e no costume, mas no exercício de uma consciência secularizada. Daí a típica “política” socrática: resistência, ou mesmo dissidência, diante das maiorias construídas no jogo da opinião pública, em nome da autodeterminação daquele que pratica o exame crítico. Veja-se a respeito Villa (2001)VILLA, D. “Socratic citizenship”. Princeton: Princeton U. P., 2001. .
  • 40
    Embora a atribuição de duas teses distintas a Trasímaco seja um ponto disputado, tendemos a seguir o autor em sua exposição da antropologia da tirania, no mínimo reconhecendo seu acerto descritivo em relação a muitos contextos, infelizmente bastante familiares. Veja-se Vegetti (2015)VEGETTI, M. “Antropologia da πλεονεξίαem Platão”. In: MIGLIORI, M. Platoethicus: a filosofia é vida. Tradução de S. C. Leite e É. G. Verçosa Filho. São Paulo: Loyola, 2015. pp. 357-370. .
  • 41
    Para esclarecimentos quanto a isso, consulte-se o aforismo 13 de Nietzsche (2001)NIETZSCHE, F. “A gaia ciência”. Tradução de P. C. Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001., precisamente intitulado “Sobre a teoria do sentimento de poder”.
  • 42
    Numa evocação talvez extravagante, permitimo-nos comparar o tipo tirânico ao magnata que dá título ao filme de 1941 dirigido por Orson Welles, “Cidadão Kane”. Dita no leito de morte, sua última palavra remete à primeira propriedade exclusiva do menino Kane, um trenó de neve, indicando o fulcro de sua vida inteira: posse e controle. A um costuma atrair aquilo que mais lhe falta.
  • 43
    Segundo Weiss, em artigo que remete diretamente a personagens assim, “What Socrates’ argument shows is that it is precisely the perfectly unjust who can accomplish nothing, for surely some measure of justice is needed if anything is to get done. But what the argument implies is that the more justice people have within, the more in harmony they are with themselves, with others, and with the gods. By introducing the idea that justice is harmony, Socrates challenges the Thrasymachean view that justice is of no value to the just man himself. Moreover, Socrates’ conception of justice in Book 1 as internal harmony- whether in city, clan, army, or individual - prefigures his characterization of it in Book 4 as the healthy condition of the city (434c) or soul (445a-b)” (2007, p. 113).
  • 44
    Nesse sentido, concorda-se que “não há felicidade pública sem justiça na conduta social e individual” (Vegetti, 2010______. “Um paradigma no céu: Platão político, de Aristóteles ao século XX”. Tradução de M. G. G. Pina. São Paulo: Annablume, 2010., p. 281).

Referências

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    » http://repositorio.unb.br/handle/10482/33001
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    » http://individual.utoronto.ca/rbarney/Ring.pdf
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  • BLACKBURN, S. “A República de Platão: uma biografia”. Tradução de R. F. Valente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008.
  • BRANDÃO, J. “O filósofo na casa de um homem justo (comentários a República 327a-331d, parte 1)”. Virtua Jus, Belo Horizonte, Vol. 12, Nr, 1, pp. 8-30, 2016.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jan 2020
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    04 Set 2018
  • Aceito
    06 Mar 2019
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