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INFERÊNCIA DA MELHOR EXPLICAÇÃO E O PROBLEMA DO DIRECIONAMENTO AXIOLÓGICO

INFERENCE TO THE BEST EXPLANATION AND THE ISSUE OF AXIOLOGICAL TARGETING

RESUMO

O argumento da inferência da melhor explicação estabelece que, dado um fenômeno a ser explicado, várias hipóteses rivalizam para oferecer essa explicação, e a hipótese que melhor explicar o fenômeno fornece boas razões para a crença em sua verdade e, portanto, para a aceitação dessa hipótese. O argumento pressupõe que essas hipóteses rivais compartilham o mesmo fenômeno a ser explicado. Neste artigo, é argumentado que, em alguns episódios científicos, cientistas com hipóteses diferentes, mesmo que compartilhem o fenômeno a ser explicado, possuem objetivos diferentes quanto ao tratamento do fenômeno; isso, por sua vez, geraria um problema para a estrutura do argumento, pois a colocação de objetivos diferentes para o tratamento de um fenômeno teria como consequência um direcionamento axiológico por parte dos cientistas, direcionamento este não contido na estrutura do argumento. Além disso, o direcionamento axiológico pode também se revelar decisivo para a questão da aceitação de uma hipótese, situação esta não prevista no argumento da inferência da melhor explicação. O objetivo deste artigo é o de defender, por meio da concepção de “programas de pesquisa” de Imre Lakatos, e por meio de um estudo de caso – a aceitação do modelo da dupla hélice do DNA –, a ideia de que a diferença axiológica pode se revelar fundamental para a aceitação de uma hipótese em detrimento de outras hipóteses rivais.

Palavras-chave:
Axiologia; Aceitação; Programas de pesquisa

ABSTRACT

The argument of inference to the best explanation sets up that, given a phenomenon to be explained, several rival hypotheses race to provide an explanation and the hypothesis that explains the phenomenon better than its rival gives good reasons for the belief in its truth and, therefore, for the acceptance of such hypothesis. The argument supposes that these rival hypotheses share the same phenomenon to be explained. In this paper it is argued that, in a few scientific episodes, scientists with different hypotheses, even if sharing the phenomenon to be explained, have different goals regarding the handling of the phenomenon; but then an issue arises as to the structure of the argument, since setting different aims to handle a phenomenon would result in an axiological targeting by the scientists, one not enclosed in the structure of the argument. In addition, axiological targeting can also show itself as something crucial for the issue of accepting a hypothesis, a state of affair not foreseen in the argument of inference to the best explanation again. The purpose of this paper is, by means of “research programs” principle by Imre Lakatos, and by means of a case study – the acceptance of the DNA double helix model – to sustain the concept that the axiological difference may prove to be crucial for the acceptance of one hypothesis rather than other rival hypotheses.

Keywords:
Axiology; Acceptance; Research programs

Introdução

A inferência da melhor explicação1 1 A partir daqui, neste artigo, IBE. é um raciocínio (muitas vezes apresentado na forma de um argumento, como será feito neste artigo) que tem por objetivo explicar e legitimar filosoficamente a crença na verdade de uma teoria. O argumento – cuja versão original remonta a 1965, com Gilbert Harman – é assim apresentado: a) um fenômeno precisa ser explicado; b) várias hipóteses rivais podem explicar o fenômeno e a melhor delas é eleita como melhor explicação; c) conclusão: há boas razões para acreditar na verdade dessa hipótese.2 2 Em algumas versões, inclusive na do próprio Harman, o argumento possui um acréscimo em sua conclusão. Considerando que muitas vezes as hipóteses empregam entidades inobserváveis em suas explicações, o argumento passa a ser assim apresentado: a) um fenômeno precisa ser explicado; b) várias hipóteses rivais podem explicar o fenômeno e a melhor delas é eleita como melhor explicação; c) conclusão: há boas razões para acreditar na verdade dessa hipótese e podemos acreditar na existência das entidades inobserváveis postuladas por essa hipótese. Esse acréscimo é derivado da seguinte passagem de Harman: “Quando um cientista infere a existência de átomos e de partículas subatômicas, ele está inferindo a verdade de uma explicação para os diversos dados que ele deseja explicar” (Harman, 2018, p. 326). Neste artigo esse acréscimo será desconsiderado.

Deixando de lado desafios céticos,3 3 Entre esses desafios céticos se encontram o famoso argumento do conjunto defeituoso (às vezes denominado também de “argumento da subconsideração”), formulado por Bas van Fraassen (1989, pp. 142-143) e o argumento das alternativas não consideradas, de Kyle Stanford (2006, capítulo 2). em uma primeira visualização, e avaliando os enunciados das premissas e da conclusão, o argumento parece ser extremamente trivial.4 4 Por “trivial”, aqui, denota-se algo inteligível e não um argumento dedutivamente válido. Aliás, argumentos do tipo da inferência da melhor explicação são chamados ou de indutivos (pelo fato de as premissas não implicarem a conclusão) ou, em uma discussão mais técnica, de abdutivos. Não há discussão quanto à necessidade de fenômenos serem explicados (premissa (a)); considerando a complexidade envolvida na atividade científica, nem todos os cientistas concordam entre si e, portanto, são capazes de produzir várias hipóteses (premissa (b)) e podemos compará-las entre si; por fim, a hipótese eleita apresenta-se como digna de crédito em sua verdade (conclusão).

Defensores de IBE tratam a premissa (a) como um enunciado trivial: a expressão “explicar um fenômeno” é tomada em seu valor de face: não há nada de especial em enunciar que cientistas explicam fenômenos. Há, no entanto, uma série de complexidades que estão envolvidas na atividade de explicar um fenômeno. Vários filósofos têm argumentado no sentido de esclarecer de que modo ocorre a explicação de um fenômeno.5 5 Dentre esses filósofos, podemos destacar Carl Hempel e Peter Lipton. Estudos como os desses filósofos têm alertado para a complexidade do significado de “explicar um fenômeno”. Nesse sentido, o objetivo das duas primeiras seções deste artigo é o de esclarecer o significado da expressão, i) mostrando as complexidades envolvidas no próprio ato de explicação e ii) sugerindo que essas complexidades incidirão decisivamente na aceitação da melhor hipótese.

Uma vez esclarecida a expressão “explicar um fenômeno”, propõe-se aqui uma articulação entre explicar um fenômeno e aceitar uma hipótese a partir de um direcionamento axiológico.6 6 Há no mínimo mais dois direcionamentos que também colocam problemas para a formulação da premissa (a) de IBE: i) um direcionamento holístico (onde ocorre compartilhamento, por teorias rivais, de um fenômeno (F) a ser explicado, mas F se relaciona com aspectos científicos diferentes em cada uma das teorias rivais); ii) um direcionamento ontológico (onde não ocorre compartilhamento de fenômenos por teorias rivais, mas existência de uma aparência de compartilhamento em função de as teorias estarem usando a mesma palavra para fenômenos que na verdade são diferentes). Neste artigo, no entanto, discute-se apenas a questão do direcionamento axiológico. Para defensores de IBE, tal relação (entre explicação e aceitação) começa a se estabelecer apenas a partir da análise da premissa (b) (a premissa da comparação entre hipóteses rivais). Ocorre, no entanto, que a história da ciência registra a existência de episódios em que a escolha de um objetivo de pesquisa (e por isso foi empregada a expressão “direcionamento axiológico”) para o tratamento do fenômeno foi fundamental para a aceitação posterior da hipótese; assim, “explicar um fenômeno” não significa apenas explicar um fenômeno, senão que explicá-lo à luz de algum objetivo previamente definido; ou seja: haveria algo que antecederia a premissa (a) e não está presente na formulação de IBE.

Uma das tantas formas de relacionar a escolha do fenômeno (premissa (a)) com a aceitação da hipótese que melhor explicou o fenômeno (conclusão (c)) ocorre por meio da noção de “programas de pesquisa” de Imre Lakatos. Para Lakatos, no interior de um programa de pesquisa as hipóteses científicas são compostas por dois segmentos diferentes: de um lado, afirmações que devem estar protegidas (ao menos por algum tempo) de investigações empíricas; de outro, afirmações que devem ser submetidas a testes. Isso, contudo, não é algo “natural”, nem mesmo trivial, senão que depende de decisões prévias – decisões essas que, neste artigo, estão encapsuladas na expressão “direcionamento axiológico”. Desse modo, o significado de “explicar um fenômeno” apresenta-se, na perspectiva de Lakatos, como algo complexo e não como algo trivial. Assim, o objetivo da terceira seção é o de apresentar a concepção de Lakatos como um problema para os defensores de IBE (o que não significa que tal concepção seja uma refutação de IBE).

Por fim, na conclusão, argumenta-se que a noção de programa de pesquisa de Lakatos é uma excelente ferramenta para compreender casos de aceitação respeitando-se a noção de direcionamento axiológico. Porém, é importante o registro de que este artigo não é uma crítica a IBE, senão que uma sugestão de um acréscimo a seu argumento. Aparentemente há algo que antecede a premissa (a) e que é extremamente relevante e fundamental para explicar a aceitação de uma produção científica. O que este artigo tentará mostrar é que esse “algo” seria um direcionamento axiológico que antecederia as investigações científicas. Desse modo, a trivialidade pressuposta pelos defensores de IBE desaparece quando se avaliam os detalhes dos componentes do argumento, no caso, da premissa (a).

A PREMISSA (A) DE IBE

IBE é um argumento destinado a explicar filosoficamente como ocorre a aceitação de hipóteses científicas.7 7 Além disso, IBE é um argumento filosófico com profundas consequências para a compreensão da história da ciência, pois ela opera como uma indicação meta-historiográfica com o objetivo de apresentação de estudos de caso de história da ciência. Seu primeiro enunciado se encontra em Harman:

Ao inferir a melhor explicação se infere, do fato de que uma certa hipótese explicaria a evidência, a verdade desta hipótese. Em geral várias hipóteses podem explicar a evidência, por isso devemos ser capazes de rejeitar todas hipóteses alternativas antes de estarmos seguros ao fazer a inferência. Portanto se infere, da premissa de que uma dada hipótese forneceria uma “melhor” explicação para a evidência do que quaisquer outras hipóteses, a conclusão de que esta determinada hipótese é verdadeira (Harman, 2018HARMAN, G. “Inferência da Melhor Explicação.” Tradução de M. R. da Silva e M. S. de Lima. Dissertatio, 47, pp. 325-332, 2018., p. 326).

A partir de Harman podemos formular o seguinte argumento: a) um fenômeno precisa ser explicado; b) várias hipóteses rivais podem explicar o fenômeno e uma delas é eleita como melhor explicação; c) conclusão: há boas razões para acreditar na verdade dessa hipótese.8 8 Para outras formulações muito próximas da de Harman e desenvolvimentos de IBE, ver Bird (1998, p. 85; 1999, p. 26), Ladyman (2002, pp. 196-197; 209), Thagard (2017), Leplin (1997, p. 116) e Giere (1999, p. 193). Uma formulação um pouco diferente do argumento pode ser encontrada em Psillos (2007, pp. 442-443), Fumerton (1980, pp. 594-595) e, mais particularmente, em Lipton (2004, capítulo 4).

O argumento de Harman foi formulado com a finalidade de mostrar a superioridade filosófica de IBE em relação à indução enumerativa (Harman, 2018, pp. 325-326HARMAN, G. “Inferência da Melhor Explicação.” Tradução de M. R. da Silva e M. S. de Lima. Dissertatio, 47, pp. 325-332, 2018.). No entanto, ele foi assumido pelos filósofos do realismo científico como um fundamento conceitual para explicar filosoficamente a superioridade de uma hipótese em relação a outras rivais, e por fim justificar por que a hipótese eleita apresenta boas razões para acreditarmos em sua verdade. Uma caracterização primária dessa concepção filosófica é a de que, para um realista, i) as teorias científicas referem-se a objetos reais (eventos, entidades e processos, (observáveis e inobserváveis)), que fazem parte da realidade (Boyd, 1990BOYD, R. “Realism, Approximate Truth, and Method”. Minnesota Studies in the Philosophy of Science, Vol. XIV (ed. Savage, C. W.). Minneapolis: University of Minnesota Press, 1990.; Psillos, 1999PSILLOS, S. “Scientific Realism: How Science Tracks Truth”. Londres: Routledge, 1999., p. 3); ii) as teorias, ao se referirem a esses objetos, produzem conhecimento confável sobre a realidade (Chakravartty, 2017CHAKRAVARTTY, A. “Scientific Realism”. Stanford Encyclopedia of Philosophy, 2017.; Boyd, 1990BOYD, R. “Realism, Approximate Truth, and Method”. Minnesota Studies in the Philosophy of Science, Vol. XIV (ed. Savage, C. W.). Minneapolis: University of Minnesota Press, 1990.; Kukla, 1998KUKLA, A. “Studies in Scientific Realism”. Oxford: Oxford University Press, 1998., p. 8); e, por fim, iii) as teorias aceitas são superiores a suas rivais do ponto de vista explicativo (Leplin, 1997LEPLIN, J. “A novel defense of scientific realism”. Oxford: Oxford University Press, 1997., pp. 100, 116; Boyd, 1985BOYD, R. “Lex Orandi est Lex Credendi”. Images of Science (ed. Churchland, P. & Hooker, C.). Chicago: Chicago Press, 1985., p. 9; Lipton, 2004LIPTON, P. “Inference to the best explanation”. 2. ed. London: Routledge, 2004., p. 56).

Harman, com sua formulação, deixou (propositadamente (Harman, 2018HARMAN, G. “Inferência da Melhor Explicação.” Tradução de M. R. da Silva e M. S. de Lima. Dissertatio, 47, pp. 325-332, 2018., p. 326)) um problema em aberto: quais seriam os critérios para se determinar que uma hipótese é superior a outras? Esse problema foi assumido por, entre outros, Paul Thagard. Em 1978, Thagard publicou um artigo no qual apresentou alguns critérios, a saber, simplicidade, analogia e consiliência. Trataremos aqui deste último, que significa o número de fatos explicados por uma teoria; com isso, uma hipótese é mais consiliente do que outra se explica uma classe de fatos maior que outra hipótese (2017, p. 148). A noção decisiva aqui é exatamente a de classes de fatos.

Uma classe de fatos não é meramente uma reunião de fatos: os fatos de uma classe devem estar interligados. Como argumenta Thagard:

as distribuições de espécies de tentilhões e as distribuições de tartarugas nas Ilhas Galápagos não são fatos de diferentes classes e portanto contam como uma aplicação única da teoria da evolução. Ambas as distribuições dizem respeito à distribuição geográfica de Galápagos. Se Darwin tivesse tido qualquer razão para esperar que os tentilhões estivessem distribuídos de uma forma bem diferente das tartarugas, quem sabe as duas espécies poderiam contar como aplicações diferentes (Thagard, 2017THAGARD, P. “A Melhor Explicação: Critérios para a Escolha de Teorias”. Tradução de M. R. da Silva. Cognitio, 18, Vol. 1, pp. 145-160, 2017., p. 149).

Um outro fator importante para o fortalecimento de uma hipótese a partir da apresentação de uma boa classe de fatos é o de que os elementos da classe de fatos original sejam aplicados a outros domínios:

Huygens apontou para classes de fatos a respeito da propagação, da reflexão, da refração e da dupla propagação da luz. Young expandiu a teoria ondulatória e melhorou o argumento em seu favor acrescentando listas de fatos sobre a cor. Fresnel melhorou o argumento ainda mais, explicando vários fenômenos da difração e polarização. Com seu trabalho, a teoria ondulatória da luz tornou-se obviamente mais consiliente do que a teoria newtoniana (Thagard, 2017THAGARD, P. “A Melhor Explicação: Critérios para a Escolha de Teorias”. Tradução de M. R. da Silva. Cognitio, 18, Vol. 1, pp. 145-160, 2017., p. 150).

Ou seja: uma boa hipótese não se aplica apenas ao fenômeno a ser explicado (premissa (a)), mas se estende a outros fenômenos relacionados. Mais do que isso: a explicação de outros fenômenos se revela, obviamente, como uma virtude da hipótese eleita como melhor explicação.

Assim, a partir do desenvolvimento de IBE promovido por Paul Thagard, poderíamos formular uma versão ligeiramente modificada de IBE, como segue (com um exemplo abstrato e hipotético):

a) um fenômeno F1 precisa ser explicado; a hipótese A explica F1 e também F2 e F3; a hipótese B explica F1 e F2; b) A explica uma classe de fatos maior do que B; c) conclusão: há boas razões para acreditar na verdade de A.

Uma das dificuldades da noção de classe de fatos como um critério para dar um sentido à premissa (b) de IBE é o que denominaremos aqui de “problema da comparação”. Suponha uma hipótese que explica os fenômenos F1, F2, F3 e F4; essa hipótese não explica F5. Uma segunda hipótese explica F1, F2, F3 e F5; essa segunda hipótese não explica F4. Como escolher a melhor hipótese? De acordo com Thagard, por meio de uma decisão:

Algumas vezes, proponentes de uma teoria simplesmente ignorarão uma classe de fatos, como na recusa dos teóricos do fogisto de considerar o aumento de peso de corpos em combustão. Fatos inexplicados são negligenciados por teóricos que estão mais interessados em desenvolver uma teoria do que em criticá-la (Thagard, 2017THAGARD, P. “A Melhor Explicação: Critérios para a Escolha de Teorias”. Tradução de M. R. da Silva. Cognitio, 18, Vol. 1, pp. 145-160, 2017., p. 149).

Thagard está deixando claro o elemento volitivo da escolha de classes de fatos. E, mais do que isso, está apontando problemas para uma avaliação mais apropriada da premissa (a) e do significado de “explicar um fenômeno”.9 9 A afirmação de que Thagard está “apontando problemas para uma avaliação mais apropriada da premissa (a)” não se aplica ao próprio Thagard, uma vez que ele fará uso de mais dois critérios (simplicidade e analogia) para resolver o problema deixado por Harman. No entanto, entende-se aqui que o ponto colocado no artigo – o do direcionamento axiológico – não é alterado, mesmo quando se empregam os critérios de simplicidade e analogia. Vamos nos deter neste tema na seção seguinte. (Na conclusão deste trabalho, retomaremos a noção de classes de fatos.)

Antes, porém, de passarmos à próxima seção, é importante esclarecer ainda mais o significado da primeira premissa de IBE, no sentido de mostrar como ela é inserida por seus defensores. Como já assinalado, ela é introduzida de modo não problemático; ou seja: não haveria nada que antecederia, para um cientista, a necessidade de uma explicação (seja o cientista proponente de uma explicação, sejam seus pares que avaliam a explicação fornecida).

Ocorre, contudo, que a necessidade de explicações emerge de demandas – demandas explicativas, por assim dizer. E aqui está o ponto para o qual será chamada a atenção neste artigo: cientistas (e grupos de pesquisa) diferentes podem operar a partir de demandas diferentes, com expectativas diferentes por parte de seus pares. E, nesse sentido, a filosofia da ciência tradicional parece não ter atentado a este ponto, senão vejamos.

A afirmação de que “cientistas buscam explicações”, por si só, oculta uma série de condicionantes associados à própria necessidade de explicação. Diante de um enunciado abstrato tal como “Newton desejava explicar o movimento”, a impressão resultante é que Newton decidiu explicar o movimento, quando, na verdade, o movimento era um problema clássico para a mecânica e havia persistido por alguns séculos. E, mais do que isso, não foi exatamente “o problema do movimento” que instigou Newton a produzir o que produziu; seu problema não era o mesmo de todos os que desejavam explicar o movimento, mas o problema de unificar os movimentos celeste e terrestre. (Um exemplo mais detalhado, sobre outro episódio da ciência, será apresentado na próxima seção.) Assim, torna-se claro o direcionamento axiológico que antecedeu o trabalho, no caso, de Newton.

Em termos bastante diretos, o problema filosófico da estrutura de IBE é que é assumida a noção de necessidade de explicação sem que se investigue o modo como o próprio problema se enraizou na comunidade filosófica. Por assim dizer, um problema possui uma história, um modo pelo qual se desenvolveu durante certo período de investigação preliminar. Desse modo, outros elementos que não apenas epistemológicos são aqui fundamentais para entender, inclusive, o desenvolvimento de uma narrativa historiográfica baseada em IBE.

As complexidades do significado de “explicar um fenômeno”

O que significa explicar um fenômeno? O recorte aqui feito diz respeito à escolha do fenômeno a ser explicado, a partir do conceito de seleção. Em um segundo momento, relaciona-se a seleção do fenômeno à aceitação da explicação do fenômeno. Em linhas gerais, será indicado que decisões antecedem aquilo que está enunciado na premissa (a).

Cientistas, mesmo operando em um domínio restrito, o fazem no interior de laboratórios (Knorr-Cetina, 1981KNORR-CETINA, K. “The Manufacture of Knowledge”. Oxford: Pergamon Press, 1981., pp. 3-4), o qual restringe ainda mais o domínio. No laboratório, os cientistas selecionam linhas de ação; ou seja: possibilidades relacionadas com aquelas que são oferecidas pela “manipulação instrumental” (Knorr-Cetina, 1981KNORR-CETINA, K. “The Manufacture of Knowledge”. Oxford: Pergamon Press, 1981., p. 4); ou seja: o laboratório determina o que deve/pode ser investigado, e determina portanto o que merece ser tratado como um “problema científico”, o que necessita de uma explicação (Laudan, 2010LAUDAN, L. “O Progresso e seus Problemas”. Tradução de R. L. Ferreira. São Paulo: Unesp, 2010., p. 25). Pode-se dizer, portanto, que no interior de uma comunidade científica ocorre uma seleção de problemas que devem ser solucionados, uma seleção que ocorre em função de nosso desejo por explicações de um certo tipo (van Fraassen, 1980VAN FRAASSEN, B. “The Scientific Image”. Oxford: Clarendon Press, 1980., p. 156). Essa seleção, é claro, excluirá certas alternativas, ainda que estas possam ser consideradas sérias e plausíveis (Stanford, 2006STANFORD, K. “Exceeding our Grasp”. Oxford: Oxford University Press, 2006., cap. 3), pois a ciência é, por definição, finita e limitada (Bloor, 2009BLOOR, D. “Conhecimento e Imaginário Social”. Tradução de Marcelo Penna-Forte. São Paulo: Unesp, 2009., p. 54), e precisa estabilizar algumas formas de conhecimento (Lenoir, 2003LENOIR, T. “Instituindo a Ciência”. Tradução de A. Zir. São Leopoldo: Unisinos, 2003., p. 69).

A noção central que parece perpassar a ideia geral aqui captada dessas referências escolhidas é a de seleção: cientistas escolhem fenômenos que merecem investigação científica.

A questão que aqui importa, a partir de agora, é saber por que ocorre tal seleção. Uma primeira resposta seria bastante óbvia em qualquer abordagem da filosofia da ciência e dispensa referências: a diversidade fenomênica é bastante ampla e nem tudo pode ser investigado. Uma segunda resposta é a de que na verdade não ocorreria seleção alguma apenas por parte dos cientistas: os cientistas e as instituições de fomento de pesquisa é que indicariam o rumo das investigações (Stanford, 2015STANFORD, K. “Unconceived Alternatives and Conservatism in Science: the impact of professionalization, peer-review, and Big-Science”. Synthese, Vol. 196, Nr. 10, pp. 3915-3932, 2015.). Um terceiro caminho é oferecido pela filosofia realista: a seleção é feita com base no conhecimento anterior já consolidado (Boyd, 1985BOYD, R. “Lex Orandi est Lex Credendi”. Images of Science (ed. Churchland, P. & Hooker, C.). Chicago: Chicago Press, 1985., p. 9; Lipton, 2010LIPTON, P. “O melhor é bom o suficiente?” Tradução de M. R. da Silva e A. M. Luz. Princípios, 17, 27, pp. 313-329, 2010., pp. 327-328; Psillos, 2000PSILLOS, S. “Sobre a crítica de van Fraassen ao raciocínio abdutivo”. Tradução de M. R. da Silva e A. M. Luz. Crítica, Vol. 6, Nr. 21, pp. 35-62, 2000., pp. 47-50; Leplin, 1997LEPLIN, J. “A novel defense of scientific realism”. Oxford: Oxford University Press, 1997., p. 116; Bird, 2014BIRD, A. “Inferência da Única Explicação”. Tradução de M. R. da Silva, Cognitio, Vol. 15, Nr. 2, pp. 375-384, 2014., p. 378; Thagard, 2017THAGARD, P. “A Melhor Explicação: Critérios para a Escolha de Teorias”. Tradução de M. R. da Silva. Cognitio, 18, Vol. 1, pp. 145-160, 2017., pp. 156-158).

Sem negar nenhuma dessas três respostas, sugere-se aqui outro caminho: a seleção é conduzida com vistas a uma posterior aceitação de uma solução a um problema científico legitimado cientificamente e comunitariamente antes da seleção.10 10 Um claro exemplo disso é a pesquisa conduzida pelo geneticista Thomas Hunt Morgan e colaboradores na Universidade de Columbia, nas décadas de 1910 a 1930. A pesquisa acerca da relação entre a teoria cromossômica da herança conduzida por Edmund Wilson e os genes havia se legitimado tanto teoricamente (por conta de pesquisas anteriores de William Bateson e Wilhelm Johannsen) quanto comunitariamente (devido ao apoio de instituições americanas de financiamento). Sobre este ponto, ver Bowler (1989, capítulo 7) e Berry (2014). Como, no entanto, ocorre esse processo “seleção/aceitação”?

De acordo com van Fraassen (1980, p. 202)VAN FRAASSEN, B. “The Scientific Image”. Oxford: Clarendon Press, 1980., cientistas operam em programas de pesquisa diferentes, no interior do qual se selecionam problemas diferentes. Não é difícil entender tal diferença: programas de pesquisa ocorrem no interior de práticas científicas diferentes: laboratórios diferentes (Pickering, 1990PICKERING, A. “Openness and Closure: On the Goals of Scientific Pratice”. Ed. H. Le Grand. Dordrecht: Kluwer, 1990.), práticas experimentais diferentes (Geison, 1995GEISON, G. “The Private Science of Louis Pasteur”. Princeton: Princeton University Press, 1995., p. 130), orientações disciplinares diferentes (Bowler, 1989BOWLER, P. “The Mendelian Revolution”. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1989., cap. 7), treinamento científico diferente (Lewens, 2005LEWENS, T. “Realism and the Strong Program”. British Journal for the Philosophy of Science, 56, 2005., p. 561) etc. Assim, se é verdade que se pode falar de unidade quanto à percepção dos resultados finais das várias ciências, tal unidade nem sempre é o caso quando os cientistas estão selecionando os fenômenos que lhes interessam. Vejamos um caso específico, tratado por Ronald Giere.

De acordo com Giere,11 11 O relato de Giere é amplamente legitimado pela pesquisa historiográfica. Para algumas dessas referências, ver Watson (1997), Olby (1974) e Judson (1979). no início da década de 1950 pesquisas sobre o DNA eram realizadas basicamente por três grupos de pesquisa diferentes: um grupo no King’s College, em Londres, grupo esse que contava com os pesquisadores Maurice Wilkins e Rosalind Franklin;12 12 Para detalhes do trabalho realizado no King’s College, ver Wlkins (2003). um grupo no Instituto Cavendish, em Cambridge (Inglaterra), que contava com James Watson e Francis Crick; e por fim o grupo liderado por Linus Pauling, no Caltech, na Califórnia. O fenômeno a ser explicado estava materializado em chapas de raio-x do DNA (obtidas por meio da técnica de difração de Raios x), e foi produzido como evidência pelo grupo do King’s College, especificamente devido ao trabalho de Rosalind Franklin. A questão compartilhada pelos três grupos era a de descrever o arranjo químico-físico da molécula.13 13 O objetivo de Linus Pauling continha um outro elemento: a procura por uma generalização metodológica: Pauling estava em busca de estruturas de várias moléculas (e já havia descoberto a estrutura de uma proteína, a queratina) (Morange, 1998, p. 109). Uma das complexidades envolvidas no objetivo assumido por todos (determinar a estrutura da molécula) era a de especificar o arranjo da parte interna da estrutura, onde estão localizadas as bases nitrogenadas (Giere, 1999GIERE, R. “Science without laws”. Chicago: The University of Chicago Press, 1999., p. 192). Por conta de pesquisas paralelas do bioquímico Erwin Chargaff, estava consolidada a tese de que as bases possuíam uma proporção específica: para cada quantidade da base química adenina haveria uma quantidade muito próxima da base química timina, e para cada quantidade da base química citosina haveria uma quantidade muito próxima da base química guanina, o que seria expresso na seguinte notação: AT=1 / CG=1. Contudo, o que não se sabia – e isso era decisivo para se alcançar a estrutura do DNA – era como se dava o arranjo espacial dessas bases no interior do DNA. Assim, o objetivo de pesquisa dos três grupos era exatamente o de determinar o arranjo químico-físico da molécula.

Um dos grupos, no entanto, possuía um segundo e exclusivo objetivo. Watson e Crick desejavam compreender a estrutura da molécula (primeiro objetivo) para poder em seguida apontar um caminho para o entendimento da função genética da molécula (segundo objetivo) (Watson, 1997WATSON, J. “The Double Helix”. London: Weidenfeld & Nicolson, 1997., p. 147, p. 154; Olby, 1974OLBY, R. “The path to the double helix”. London: MacMillan, 1974., pp. 396-397, 416; Creager e Morgan, 2008CREAGER, A, MORGAN, G. “After the Double Helix”. Isis, 99, pp. 239-272, 2008., p. 270; Morange, 1998MORANGE, M. “A History of Molecular biology”. Tradução de M. Cobb. Cambridge: Harvard University Press, 1998., pp. 115-116; Watson e Crick, 1953aWATSON, J., CRICK, F. “A Structure for Deoxyribose Nucleic Acid”. Nature, 171, Vol. 4361, pp. 737-738, 1953a., p. 737; Watson e Crick, 1953bWATSON, J., CRICK, F. “Genetical Implications of the Structure of Deoxyribose Acid”. Nature, 171, Vol. 4356, pp. 964-967, 1953b., p. 965; Crick, 1988CRICK, F. “What mad pursuit. a personal view of scientific discovery”. New York: Basic Books, 1988., p. 69). Esse segundo objetivo era tão fundamental que Watson e Crick não tinham a intenção de apenas propor uma estrutura para a dupla hélice, mas propor somente se a estrutura indicasse sua função genética (Olby, 1974OLBY, R. “The path to the double helix”. London: MacMillan, 1974., p. 416; Watson, 1997WATSON, J. “The Double Helix”. London: Weidenfeld & Nicolson, 1997., p. 14714 14 De acordo com Watson, antes de proporem o modelo, havia momentos em que ele e Crick se preocupavam com a possibilidade de uma estrutura do DNA não ser importante do ponto de vista genético (Watson, 1997, p. 147). O interessante, como veremos em seguida, é que eles não apresentam evidências empíricas para o próprio modelo; mesmo assim, acreditam que a virtude do modelo é que ele pode abrir um caminho para uma compreensão da função genética do DNA (Olby, 1974, p. 416). ). Por fim, tendo estabelecido esse objetivo, Watson e Crick reinterpretaram as Regras de Chargaff e propuseram seu modelo.15 15 Tal reinterpretação fornecia sentido ao objetivo de Watson e Crick: “Adescoberta-chavefoi a determinação de Jim [Watson] da natureza exata dos dois pares de bases (A com T, G com C” (Crick, 1988, pp. 55-56). Sobre a utilização de Watson e Crick das Regras de Chargaff, conferir Sayre (1975, p. 164), Maddox (2002, p. 204) e Polcovar (2006, p. 104). É importante contudo registrar que tal reinterpretação não foi conduzida sem a percepção de que a experimentação não revelava claramente as Regras de Chargaff, como registram os próprios Watson e Crick sobre a sequência das bases, pois esta seria “muito irregular” (Watson e Crick, 1953b, p. 965).

Percebemos, portanto, que a seleção do fenômeno foi considerada de modo diferente por cada grupo. Veremos agora que a seleção de Watson e Crick não se deu por acaso; ao invés, foi movida pela aceitação e para a resolução de um problema específico.

Em 25 de abril de 1953, Watson e Crick apresentaram seu clássico artigo contendo a estrutura do DNA. Esse artigo foi secundado logo em seguida por um outro, também da autoria de ambos, publicado em 30 de maio. O segundo artigo pressupunha a estrutura apresentada no primeiro artigo e sugeria o desenvolvimento da pesquisa para a compreensão da função genética do DNA.

A sugestão, no entanto, era tão contundente que Max Delbrück, um dos organizadores do Seminário de Cold Spring Harbor de 1953, convidou Watson para dar uma palestra no evento. Max Delbrück era um dos líderes do chamado “grupo dos fagos”; esse grupo americano contava também com o orientador da tese de doutorado de Watson, Salvador Luria.16 16 O grupo era assim denominado pois estudava os bacteriófagos (vírus que atacam as bactérias). Esses estudos influenciaram fortemente James Watson, pois eram uma forma de se compreender a atuação dos genes.

Aliás, como já vimos, Watson estava trabalhando no Instituto Cavendish no momento em que propôs a dupla hélice. Mas ele não estava lá por acaso. Luria e Delbrück haviam atuado para que Watson fosse para a Europa, de modo a compreender a química dos genes. De fato, Luria, Delbrück e Watson estavam bastante impressionados com a orientação geral proposta por Erwin Schrödinger em What is Life? para compreender fenômenos do mundo vivo por meio das leis da química e da física. Assim, quando Watson e Crick propuseram a dupla hélice, a expectativa quanto à função genética do DNA era bastante grande por parte de Luria e Delbrück.

Conforme já assinalado, Delbrück estava na comissão de organização dos Seminários de Cold Spring Harbor de 1953. O tema dos seminários era “vírus”; porém, isso não impediu Delbrück de, na última hora (Judson, 1979JUDSON, H. “The eight day of creation”. London: Jonathan Cape, 1979., p. 160), convidar Watson para dar uma palestra (sobre DNA e não vírus) no evento. Delbrück conseguiu um financiamento para as despesas de Watson com a viagem e se dedicou aos detalhes de sua apresentação.17 17 E se dedicou tanto que a) distribuiu cópias para todos os participantes do primeiro artigo de Watson e Crick (McElheny, 2003, p. 72), b) escreveu uma introdução para que os participantes pudessem compreender a “relevância” (McElheny, 2003, p. 72) do artigo para o tema do simpósio (McElheny, 2003, p. 72), c) encaixou Watson na programação na metade do evento, de modo que os participantes não estivessem cansados na hora da palestra (McElheny, 2003, p. 73), e por fim d) sugeriu que a fala de Watson não fosse muito longa (McElheny, 2003, p. 73). A palestra de Watson foi, no final, o grande acontecimento do evento; e, como seria de se esperar, as principais questões dirigidas a Watson não diziam respeito à fundamentação empírica da dupla hélice, mas às possibilidades abertas pela dupla hélice à genética molecular (Watson, 2003WATSON, J. “O Segredo da Vida”. Tradução de C. A. Malferrari. São Paulo: Companhia das Letras, 2003., cap. 2). Durante sua apresentação no evento, Watson mostrou-se sintonizado com Delbrück, argumentando que a dupla hélice já poderia ser considerada como uma explicação para a duplicação do material genético, mesmo ainda não especificando “claramente como [a dupla hélice] exerceria uma influência específica na célula” (McElheny, 2003MCELHENY, V. “Watson and DNA”. Cambridge: Perseus Publishing, 2003., p. 75). Ao final do evento, a dupla hélice havia sido aceita não apenas como uma realização científica específica (sua estrutura18 18 Na verdade, a estrutura do modelo só foi definitivamente confirmada perto da década de 1980 (Crick, 1988, p. 73). ) –, mas como direção para a pesquisa genética. De acordo com Lilly Kay, mesmo os que não concordaram totalmente com Watson captaram o “imenso significado” (Kay, 1993KAY, L. “The Molecular Vision of Life”. Oxford: Oxford University Press, 1993., p. 271) da dupla hélice.

Percebe-se então que o direcionamento axiológico de Watson e Crick foi fundamental em sua seleção do fenômeno, tendo em vista igualmente o desejo dos geneticistas de aceitação de algo que indicasse um rumo para a investigação. O que segue aqui é um esboço de uma explicação filosófica do movimento de Watson e Crick (e, portanto, da relação entre seleção e aceitação).

A dupla hélice do DNA como um ponto de partida de um programa de pesquisa em genética molecular

De acordo com Imre Lakatos, um “programa de pesquisa” é a plataforma na qual os cientistas se movem em busca de explicações científicas e formulações teóricas19 19 A proposta de Lakatos insere-se no interior do debate entre Karl Popper e Thomas Kuhn. Em linhas gerais, Popper defendia que todos os elementos de uma teoria científica devem estar sujeitos ao falseamento, ao passo que Kuhn entendia que os paradigmas (amplas orientações de pesquisa, que não devem ser confundidas com teorias) não estão sujeitos ao falseamento. Lakatos tentou contornar a discussão sugerindo a noção de “programas de pesquisa”, os quais possuiriam elementos que seriam protegidos da refutação e elementos que estariam sujeitos à refutação. Porém, como argumenta Ladyman, Lakatos estava aprimorando a concepção de Popper (Ladyman, 2002, p. 90). Assim, e considerando o tom ácido, contudo, na crítica de Lakatos a Kuhn (Lakatos, 1978, pp. 90-91), Lakatos está aparentemente mais próximo do programa de Popper do que do de Kuhn. . Um programa de pesquisa é constituído por um núcleo (Lakatos, 1978LAKATOS, I. “Falsification and the Methodology of Scientific Research Programmes”. pp. 8-101. Ed. J. Worral, G. Currie. The Methodology of Scientific Research Programmes (Philosophical Papers, Vol. 1). Cambridge: Cambridge University Press, 1978., p. 48) e um cinturão protetor (Lakatos, 1978LAKATOS, I. “Falsification and the Methodology of Scientific Research Programmes”. pp. 8-101. Ed. J. Worral, G. Currie. The Methodology of Scientific Research Programmes (Philosophical Papers, Vol. 1). Cambridge: Cambridge University Press, 1978., p. 49). O núcleo (heurística negativa) estabelece aquilo que o programa pressupõe a fim de poder desenvolver uma pesquisa. Assim, no caso da dupla hélice, o núcleo continha pelo menos: i) a própria dupla hélice; ii) o conhecimento anterior pressuposto para que Watson e Crick tivessem condições de apresentá-la – leis da química e da física e as regularidades de Chargaff–; iii) a orientação geral de Erwin Schrödinger de que o conceito de vida deveria ser compreendido por meio de leis da química e da física; e iv) a demanda dos geneticistas por estruturas moleculares que tivessem relevância para a genética. Já o cinturão protetor (heurística positiva) é constituído por pesquisas posteriores que têm o objetivo de reforçar as diretrizes programáticas do núcleo; no caso da genética molecular seriam: as pesquisas que se seguiram sobre a função do RNA, o modo como as proteínas sintetizavam as informações recebidas do próprio DNA etc. O importante a ser ressaltado é que, ao passo que o núcleo deve ser mantido (tanto quanto possível) inalterável, o que se obtém no domínio do cinturão protetor pode ser objeto de controvérsias. Como argumenta Lakatos (1978, p. 50)LAKATOS, I. “Falsification and the Methodology of Scientific Research Programmes”. pp. 8-101. Ed. J. Worral, G. Currie. The Methodology of Scientific Research Programmes (Philosophical Papers, Vol. 1). Cambridge: Cambridge University Press, 1978.:

A heurística negativa especifica o ‘núcleo’ do programa, núcleo esse irrefutável devido à decisão metodológica de seus proponentes; a heurística positiva consiste de um conjunto parcialmente articulado de sugestões ou pistas sobre como alterar e desenvolver as “variáveis refutáveis” do programa de pesquisa, e como modificar e sofisticar o cinturão protetor “refutável”.

Um outro aspecto fundamental da proposta de Lakatos é o de que o núcleo não necessariamente deva possuir uma fundamentação segura (Lakatos, 1978LAKATOS, I. “Falsification and the Methodology of Scientific Research Programmes”. pp. 8-101. Ed. J. Worral, G. Currie. The Methodology of Scientific Research Programmes (Philosophical Papers, Vol. 1). Cambridge: Cambridge University Press, 1978., p. 48). Evidentemente, isso não significa que o núcleo pode advir de qualquer ideia geral, mas simplesmente que é possível a constituição de um núcleo de um programa de pesquisa ainda que o próprio núcleo não esteja completamente bem definido. A propósito, é exatamente essa a função do cinturão protetor: desenvolver pesquisas que mostrem a confiabilidade do núcleo e façam com que os cientistas não se percam a cada dificuldade que é inevitável na ciência (Lakatos, 1978LAKATOS, I. “Falsification and the Methodology of Scientific Research Programmes”. pp. 8-101. Ed. J. Worral, G. Currie. The Methodology of Scientific Research Programmes (Philosophical Papers, Vol. 1). Cambridge: Cambridge University Press, 1978., p. 50). E um programa de pesquisa é considerado progressivo e deve ser desenvolvido caso seja gerador de novos problemas e possua a capacidade de resolver esses problemas (Lakatos, 1978LAKATOS, I. “Falsification and the Methodology of Scientific Research Programmes”. pp. 8-101. Ed. J. Worral, G. Currie. The Methodology of Scientific Research Programmes (Philosophical Papers, Vol. 1). Cambridge: Cambridge University Press, 1978., p. 48). Inversamente, é degenerativo se não conduz à solução de problemas (Lakatos, 1978LAKATOS, I. “Falsification and the Methodology of Scientific Research Programmes”. pp. 8-101. Ed. J. Worral, G. Currie. The Methodology of Scientific Research Programmes (Philosophical Papers, Vol. 1). Cambridge: Cambridge University Press, 1978., p. 48).

No caso de Watson e Crick, uma das partes do núcleo não possuía completa fundamentação empírica: o item (i) (a própria dupla hélice). Eles mesmos afirmam no primeiro artigo: “[...] a estrutura é compatível com os dados experimentais, mas deve ser considerada como não provada até que seja checada contra resultados mais exatos” (Watson e Crick, 1953aWATSON, J., CRICK, F. “A Structure for Deoxyribose Nucleic Acid”. Nature, 171, Vol. 4361, pp. 737-738, 1953a., p. 737). E prosseguem no segundo artigo:

Recentemente propusemos uma estrutura [...] que, se correta, imediatamente sugere um mecanismo para [...] [a] autoduplicação [do DNA]. [...] Embora a estrutura não esteja completamente provada até que seja feita uma comparação mais ampla com os dados de Raio x, nos sentimos suficientemente confiantes em sua precisão para discutir suas implicações genéticas (Watson e Crick, 1953bWATSON, J., CRICK, F. “Genetical Implications of the Structure of Deoxyribose Acid”. Nature, 171, Vol. 4356, pp. 964-967, 1953b., p. 965).

Além disso, quanto a uma parte do item (ii) (as regularidades de Chargaff), Watson e Crick entendem que a visualização empírica da sequência das bases revelava algo “muito irregular” (Watson e Crick, 1953bWATSON, J., CRICK, F. “Genetical Implications of the Structure of Deoxyribose Acid”. Nature, 171, Vol. 4356, pp. 964-967, 1953b., p. 965).

É interessante perceber que, de fato, todos os elementos do núcleo (exceto, claro, uma parte do item (ii) (as leis da física e da química)) não estavam assentados no momento da palestra de Watson de junho de 1953 em Cold Spring Harbor. Contudo, como já vimos, a orientação programática geral se estabeleceu. Resta entender por que isso ocorreu.

Uma explicação que parece promissora é exatamente essa que emprega a noção de “programas de pesquisa” de Lakatos: o núcleo cumpriu exemplarmente sua tarefa de explicitar a direção da pesquisa futura. Não havia, de fato, certezas quanto à estrutura do DNA, mas, como disseram Watson e Crick, “se ela fosse correta”, ela apontaria o rumo da investigação. Os biólogos moleculares decidiram, mesmo sem evidência completa a respeito da dupla hélice, aceitar essa orientação programática. Como argumenta Rheinberger (2011, p. 16)RHEINBERGER, H. “A Short History of Molecular Biology”. Disponível em https://www.eolss.net/Sample-Chapters/C05/E6-89-06-00.pdf. 2011.
https://www.eolss.net/Sample-Chapters/C0...
:

Entre 1953 e 1958 a estrutura teórica do modelo tornou-se significativamente mais precisa, e foi crescentemente interpretada em termos do fuxo de informação genética pelo círculo de biólogos moleculares em torno de Crick e que se autodenominava de “RNA Tie Club”.

Sem essa decisão comunitária, a dupla hélice do DNA teria de deixar de fazer parte do núcleo, e o programa de pesquisa seria completamente diferente (se é que haveria algum).

É importante registrar também que o que foi aceito a partir da participação de Watson em Cold Spring Harbor foi menos a dupla hélice do que o início de uma institucionalização da pesquisa, com “novas pessoas, novos e maiores laboratórios, congressos, revistas e livros cada vez mais consolidados” (Judson, 1979JUDSON, H. “The eight day of creation”. London: Jonathan Cape, 1979., p. 225). Essa institucionalização pode ser percebida quando, em dezembro de 1953, a Fundação Rockefeller doou 1,5 milhão de dólares para pesquisas em genética molecular a serem realizadas no Caltech (Kay, 1993KAY, L. “The Molecular Vision of Life”. Oxford: Oxford University Press, 1993., p. 269).

Conclusão

Seja pelo registro histórico, seja pela explicação filosófica de Lakatos, a dupla hélice do DNA não foi acolhida como a melhor explicação para fenômenos genéticos. Ao invés, ela foi sim acolhida, mas como uma direção para a pesquisa. Na melhor das hipóteses, a dupla hélice de Watson e Crick foi considerada pela comunidade como plausível.

Porém, seja como for, tal plausibilidade não foi reconhecida devido a um julgamento comunitário comparativo,20 20 Evidentemente, seria possível manter o emprego da palavra “comparação” aqui e dizer que a dupla hélice estava sendo comparada com sua inexistência. Esta é a ideia (geral, não direcionada especificamente ao DNA) de Peter Lipton, para quem não é necessário que haja sempre uma teoria alternativa para haver comparação. Para Lipton “[...] os cientistas comparam a probabilidade da existência e não existência de entidades, causas e processos” (Lipton, 2010, pp. 319-320). como exige a estrutura de IBE em sua premissa (b). Ela se estabeleceu devido à sua potencialidade. E essa potencialidade possui uma fonte axiológica: a escolha, por parte de Watson e Crick, de um objetivo de pesquisa diferente de Linus Pauling e do grupo do King’s College. Para esses últimos, elucidar a estrutura molecular do DNA ofereceria como resultado final, por assim dizer, uma explicação específica sobre o arranjo químico do DNA. Já para Watson e Crick, elucidar a estrutura química do DNA significava oferecer aos biólogos um ponto de partida geral para a compreensão de fenômenos genéticos à luz da nascente genética molecular (Ridley, 2006RIDLEY, M. “Francis crick: discoverer of the genetic code”. New York: Harper Colins, 2006., p. 197) – ou, em outras palavras, construir um programa de pesquisa a partir do qual a pesquisa se desenvolveria. Assim, por esse viés axiológico, não podemos, ao menos nesse caso, falar de comparação de hipóteses.

A sugestão de IBE (em sua versão de Thagard, como vimos na primeira seção) de que Watson e Crick trabalhavam com uma classe de fatos maior,21 21 A classe de fatos de Watson e Crick seria maior, pois lidaria com questões tanto a respeito da estrutura do DNA quanto da função genética dele. É importante registrar que Thagard não usou esse episódio da história da ciência em seus exemplos. ainda que não esteja errada, desvia o foco para a dupla hélice e deixa de lado a aceitação comunitária. Pois a dupla hélice do DNA, ainda que possa ser considerada (em termos relativamente triviais, filosoficamente falando) a melhor explicação para os fenômenos observados por meio da difração de Raios x, era muito mais do que isso; e esse acréscimo não consegue ser capturado pela noção de classe de fatos. Até porque, como vimos, a dupla hélice do DNA não era exatamente, no momento de sua proposição e apresentação pública, um repositório de diversas classes de fatos.

A conclusão é a de que a diferença axiológica (em relação aos objetivos dos outros pesquisadores que trabalhavam com DNA) foi decisiva para que Watson e Crick tivessem obtido a aceitação da dupla hélice. E, considerando que essa diferença axiológica conduziu Watson e Crick exatamente para uma questão aberta na comunidade dos biólogos, e como essa questão não era a respeito da estrutura do DNA, mas a respeito da função genética do DNA, não é insensato concluir que a aceitação da dupla hélice ocorreu menos por suas virtudes intrínsecas do que pela sua potencialidade em abrir o caminho para um desenvolvimento da genética molecular.

É importante ressaltar que a noção de um direcionamento axiológico em nada retira da dupla hélice suas propriedades científicas que a tornam uma produção científica por excelência. Contudo, IBE não consegue captar um dos movimentos fundamentais para a emergência da dupla hélice: o desejo por um certo tipo de explicação. E, para alcançar esse desejo, o conceito de programa de pesquisa de Lakatos é extremamente útil: a dupla hélice, como já assinalado, era mais um rumo para a explicação do que a própria explicação (embora ela, em si mesma, possa ser considerada explicativa, ainda que com certos limites – limites, aliás, normais em qualquer empreendimento pioneiro).

Finalizando, este artigo não é uma crítica a IBE, senão que uma sugestão de um acréscimo a seu argumento. Aparentemente, há algo que antecede a premissa (a) e que é extremamente relevante e fundamental para explicar a aceitação de uma produção científica. O que este artigo procurou mostrar foi que esse “algo” seria um direcionamento axiológico que antecederia as investigações científicas.

  • 1
    A partir daqui, neste artigo, IBE.
  • 2
    Em algumas versões, inclusive na do próprio Harman, o argumento possui um acréscimo em sua conclusão. Considerando que muitas vezes as hipóteses empregam entidades inobserváveis em suas explicações, o argumento passa a ser assim apresentado: a) um fenômeno precisa ser explicado; b) várias hipóteses rivais podem explicar o fenômeno e a melhor delas é eleita como melhor explicação; c) conclusão: há boas razões para acreditar na verdade dessa hipótese e podemos acreditar na existência das entidades inobserváveis postuladas por essa hipótese. Esse acréscimo é derivado da seguinte passagem de Harman: “Quando um cientista infere a existência de átomos e de partículas subatômicas, ele está inferindo a verdade de uma explicação para os diversos dados que ele deseja explicar” (Harman, 2018HARMAN, G. “Inferência da Melhor Explicação.” Tradução de M. R. da Silva e M. S. de Lima. Dissertatio, 47, pp. 325-332, 2018., p. 326). Neste artigo esse acréscimo será desconsiderado.
  • 3
    Entre esses desafios céticos se encontram o famoso argumento do conjunto defeituoso (às vezes denominado também de “argumento da subconsideração”), formulado por Bas van Fraassen (1989, pp. 142-143)VAN FRAASSEN, B. “Laws and Symmetry”. Oxford: Oxford University Press, 1989. e o argumento das alternativas não consideradas, de Kyle Stanford (2006, capítulo 2)STANFORD, K. “Exceeding our Grasp”. Oxford: Oxford University Press, 2006..
  • 4
    Por “trivial”, aqui, denota-se algo inteligível e não um argumento dedutivamente válido. Aliás, argumentos do tipo da inferência da melhor explicação são chamados ou de indutivos (pelo fato de as premissas não implicarem a conclusão) ou, em uma discussão mais técnica, de abdutivos.
  • 5
    Dentre esses filósofos, podemos destacar Carl Hempel e Peter Lipton.
  • 6
    Há no mínimo mais dois direcionamentos que também colocam problemas para a formulação da premissa (a) de IBE: i) um direcionamento holístico (onde ocorre compartilhamento, por teorias rivais, de um fenômeno (F) a ser explicado, mas F se relaciona com aspectos científicos diferentes em cada uma das teorias rivais); ii) um direcionamento ontológico (onde não ocorre compartilhamento de fenômenos por teorias rivais, mas existência de uma aparência de compartilhamento em função de as teorias estarem usando a mesma palavra para fenômenos que na verdade são diferentes). Neste artigo, no entanto, discute-se apenas a questão do direcionamento axiológico.
  • 7
    Além disso, IBE é um argumento filosófico com profundas consequências para a compreensão da história da ciência, pois ela opera como uma indicação meta-historiográfica com o objetivo de apresentação de estudos de caso de história da ciência.
  • 8
    Para outras formulações muito próximas da de Harman e desenvolvimentos de IBE, ver Bird (1998, p. 85BIRD, A. “Philosophy of Science”. Montreal: Mcgill-Queen’s University Press, 1998.; 1999, p. 26)BIRD, A. “Scientific Revolutions and Inference to the Best Explanation”, Danish Yearbook of Philosophy, 34, Nr. 1, pp. 25-42, 1999., Ladyman (2002, pp. 196-197; 209)LADYMAN, J. “Understanding Philosophy of Science”. Londres: Routledge, 2002., Thagard (2017)THAGARD, P. “A Melhor Explicação: Critérios para a Escolha de Teorias”. Tradução de M. R. da Silva. Cognitio, 18, Vol. 1, pp. 145-160, 2017., Leplin (1997, p. 116)LEPLIN, J. “A novel defense of scientific realism”. Oxford: Oxford University Press, 1997. e Giere (1999, p. 193)GIERE, R. “Science without laws”. Chicago: The University of Chicago Press, 1999.. Uma formulação um pouco diferente do argumento pode ser encontrada em Psillos (2007, pp. 442-443)PSILLOS, S. “The Fine Structure of Inference to the Best Explanation”. Philosophy and Phenomenological Research, LXXIV, Nr. 2, 2007., Fumerton (1980, pp. 594-595)FUMERTON, R. “Induction and Reasoning to the Best Explanation”. Philosophy of Science, 47, 1980. e, mais particularmente, em Lipton (2004, capítulo 4)LIPTON, P. “Inference to the best explanation”. 2. ed. London: Routledge, 2004..
  • 9
    A afirmação de que Thagard está “apontando problemas para uma avaliação mais apropriada da premissa (a)” não se aplica ao próprio Thagard, uma vez que ele fará uso de mais dois critérios (simplicidade e analogia) para resolver o problema deixado por Harman. No entanto, entende-se aqui que o ponto colocado no artigo – o do direcionamento axiológico – não é alterado, mesmo quando se empregam os critérios de simplicidade e analogia.
  • 10
    Um claro exemplo disso é a pesquisa conduzida pelo geneticista Thomas Hunt Morgan e colaboradores na Universidade de Columbia, nas décadas de 1910 a 1930. A pesquisa acerca da relação entre a teoria cromossômica da herança conduzida por Edmund Wilson e os genes havia se legitimado tanto teoricamente (por conta de pesquisas anteriores de William Bateson e Wilhelm Johannsen) quanto comunitariamente (devido ao apoio de instituições americanas de financiamento). Sobre este ponto, ver Bowler (1989, capítulo 7)BOWLER, P. “The Mendelian Revolution”. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1989. e Berry (2014)BERRY, D. “Bruno to Brünn; or the Pasteurization of Mendelian gentics”. Studies in History and Philosophy of Biological and Biomedical Sciences, 48, pp. 280-286, 2014..
  • 11
    O relato de Giere é amplamente legitimado pela pesquisa historiográfica. Para algumas dessas referências, ver Watson (1997)WATSON, J. “The Double Helix”. London: Weidenfeld & Nicolson, 1997., Olby (1974)OLBY, R. “The path to the double helix”. London: MacMillan, 1974. e Judson (1979)JUDSON, H. “The eight day of creation”. London: Jonathan Cape, 1979..
  • 12
    Para detalhes do trabalho realizado no King’s College, ver Wlkins (2003)WILKINS, M. “The Third Man of the Double Helix”. Oxford: Oxford University Press, 2003..
  • 13
    O objetivo de Linus Pauling continha um outro elemento: a procura por uma generalização metodológica: Pauling estava em busca de estruturas de várias moléculas (e já havia descoberto a estrutura de uma proteína, a queratina) (Morange, 1998MORANGE, M. “A History of Molecular biology”. Tradução de M. Cobb. Cambridge: Harvard University Press, 1998., p. 109).
  • 14
    De acordo com Watson, antes de proporem o modelo, havia momentos em que ele e Crick se preocupavam com a possibilidade de uma estrutura do DNA não ser importante do ponto de vista genético (Watson, 1997WATSON, J. “The Double Helix”. London: Weidenfeld & Nicolson, 1997., p. 147). O interessante, como veremos em seguida, é que eles não apresentam evidências empíricas para o próprio modelo; mesmo assim, acreditam que a virtude do modelo é que ele pode abrir um caminho para uma compreensão da função genética do DNA (Olby, 1974OLBY, R. “The path to the double helix”. London: MacMillan, 1974., p. 416).
  • 15
    Tal reinterpretação fornecia sentido ao objetivo de Watson e Crick: “Adescoberta-chavefoi a determinação de Jim [Watson] da natureza exata dos dois pares de bases (A com T, G com C” (Crick, 1988CRICK, F. “What mad pursuit. a personal view of scientific discovery”. New York: Basic Books, 1988., pp. 55-56). Sobre a utilização de Watson e Crick das Regras de Chargaff, conferir Sayre (1975, p. 164)SAYRE, A. “Rosalind Franklin and DNA”. New York: W.W. Norton & Company, 1975., Maddox (2002, p. 204)MADDOX, B. “Rosalind Franklin: The Dark Lady of DNA”. New York: Harper Colins, 2002. e Polcovar (2006, p. 104)POLCOVAR, J. “Rosalind Franklin and the Structure of Life”. Greensboro: Morgan Reynolds, 2006.. É importante contudo registrar que tal reinterpretação não foi conduzida sem a percepção de que a experimentação não revelava claramente as Regras de Chargaff, como registram os próprios Watson e Crick sobre a sequência das bases, pois esta seria “muito irregular” (Watson e Crick, 1953bWATSON, J., CRICK, F. “Genetical Implications of the Structure of Deoxyribose Acid”. Nature, 171, Vol. 4356, pp. 964-967, 1953b., p. 965).
  • 16
    O grupo era assim denominado pois estudava os bacteriófagos (vírus que atacam as bactérias). Esses estudos influenciaram fortemente James Watson, pois eram uma forma de se compreender a atuação dos genes.
  • 17
    E se dedicou tanto que a) distribuiu cópias para todos os participantes do primeiro artigo de Watson e Crick (McElheny, 2003MCELHENY, V. “Watson and DNA”. Cambridge: Perseus Publishing, 2003., p. 72), b) escreveu uma introdução para que os participantes pudessem compreender a “relevância” (McElheny, 2003MCELHENY, V. “Watson and DNA”. Cambridge: Perseus Publishing, 2003., p. 72) do artigo para o tema do simpósio (McElheny, 2003MCELHENY, V. “Watson and DNA”. Cambridge: Perseus Publishing, 2003., p. 72), c) encaixou Watson na programação na metade do evento, de modo que os participantes não estivessem cansados na hora da palestra (McElheny, 2003MCELHENY, V. “Watson and DNA”. Cambridge: Perseus Publishing, 2003., p. 73), e por fim d) sugeriu que a fala de Watson não fosse muito longa (McElheny, 2003MCELHENY, V. “Watson and DNA”. Cambridge: Perseus Publishing, 2003., p. 73).
  • 18
    Na verdade, a estrutura do modelo só foi definitivamente confirmada perto da década de 1980 (Crick, 1988CRICK, F. “What mad pursuit. a personal view of scientific discovery”. New York: Basic Books, 1988., p. 73).
  • 19
    A proposta de Lakatos insere-se no interior do debate entre Karl Popper e Thomas Kuhn. Em linhas gerais, Popper defendia que todos os elementos de uma teoria científica devem estar sujeitos ao falseamento, ao passo que Kuhn entendia que os paradigmas (amplas orientações de pesquisa, que não devem ser confundidas com teorias) não estão sujeitos ao falseamento. Lakatos tentou contornar a discussão sugerindo a noção de “programas de pesquisa”, os quais possuiriam elementos que seriam protegidos da refutação e elementos que estariam sujeitos à refutação. Porém, como argumenta Ladyman, Lakatos estava aprimorando a concepção de Popper (Ladyman, 2002LADYMAN, J. “Understanding Philosophy of Science”. Londres: Routledge, 2002., p. 90). Assim, e considerando o tom ácido, contudo, na crítica de Lakatos a Kuhn (Lakatos, 1978LAKATOS, I. “Falsification and the Methodology of Scientific Research Programmes”. pp. 8-101. Ed. J. Worral, G. Currie. The Methodology of Scientific Research Programmes (Philosophical Papers, Vol. 1). Cambridge: Cambridge University Press, 1978., pp. 90-91), Lakatos está aparentemente mais próximo do programa de Popper do que do de Kuhn.
  • 20
    Evidentemente, seria possível manter o emprego da palavra “comparação” aqui e dizer que a dupla hélice estava sendo comparada com sua inexistência. Esta é a ideia (geral, não direcionada especificamente ao DNA) de Peter Lipton, para quem não é necessário que haja sempre uma teoria alternativa para haver comparação. Para Lipton “[...] os cientistas comparam a probabilidade da existência e não existência de entidades, causas e processos” (Lipton, 2010LIPTON, P. “O melhor é bom o suficiente?” Tradução de M. R. da Silva e A. M. Luz. Princípios, 17, 27, pp. 313-329, 2010., pp. 319-320).
  • 21
    A classe de fatos de Watson e Crick seria maior, pois lidaria com questões tanto a respeito da estrutura do DNA quanto da função genética dele. É importante registrar que Thagard não usou esse episódio da história da ciência em seus exemplos.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    Ago 2022

Histórico

  • Recebido
    23 Mar 2021
  • Aceito
    29 Nov 2021
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