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A RELAÇÃO ENTRE A ÁGUA E A LOUCURA EM HISTOIRE DE LA FOLIE

THE RELATION BETWEEN WATER AND MADNESS

RESUMO

No artigo “L’Eau et la folie”, Michel Foucault aponta uma possível relação entre a água e a loucura nas “paisagens imaginárias ocidentais” – relação esta que já se fazia presente em Histoire de la folie. A partir da análise de pontos centrais desta obra, tais como o surgimento da Nau dos Loucos entre os séculos XV-XVI e os usos terapêutico-punitivos da água nos séculos XVII e XIX, pretende-se examinar a tríade água-moral-loucura.

Palavras-chave:
Foucault; Loucura; Água; Moral

ABSTRACT

In “L’Eau et la folie”, Michel Foucault points towards a possible relation between water and madness in the “Western imaginary landscapes” – a relation that already made herself present in Histoire de la folie. Through the analysis of some of the key points of that work, such as the emergence of the Ship of Fools between the 15th and 16th centuries, and the therapeutic-punitive uses of the water in the 17th and 19th centuries, we intend to examine the triad water-morals-madness.

Keywords:
Foucault; Madness; Water; Morals

Introdução: fazer emergir a questão

Dois anos após a publicação de Folie et déraison. Histoire de la folie à l’âge classique,1 1 O livro, resultado de sua tese de doutorado, foi publicado originalmente sob este título pela editora Plon. Em 1972, por ocasião da republicação da obra pela editora Gallimard, Foucault reduz o título, que passa a ser apenas Histoire de la folie à l’âge classique. Michel Foucault escreve o pequeno artigo “L’Eau et la folie”, publicado na revista Médecine et hygiène em 1963. Nele, o filósofo indica um possível percurso da relação entre a água e a loucura entre os séculos XVII e XIX: por um lado, a água era usada para descrever a loucura: “é, talvez, a essa liquidez essencial da loucura nas nossas velhas paisagens imaginárias que devemos certo número de temas importantes […]; os vapores, loucuras ligeiras, difusas, enevoadas […]; a melancolia, água negra e calma, lago fúnebre” (Foucault, 2019a, p. 205FOUCAULT, M. “Problematização do sujeito: psicologia, psiquiatria e psicanálise”. Rio de Janeiro: Forense, 2019a. (Ditos e escritos, v. I)) ; por outro, era usada contra a loucura: “a água tem virtudes eficazes contra o oceano venenoso da loucura” (Foucault, 2019a, p. 206FOUCAULT, M. “Problematização do sujeito: psicologia, psiquiatria e psicanálise”. Rio de Janeiro: Forense, 2019a. (Ditos e escritos, v. I)).

Como aponta Elisabetta Basso (2017)BASSO, E. “Complicités et ambivalences de la psychiatrie : Münsterlingen et le carnaval des fous de 1954”. Med Sci, Vol. 33, Nr. 1, jan. 2017., em “Complicités et ambivalences de la psychiatrie : Münsterlingen et le carnaval des fous de 1954”, a água era, ao mesmo tempo, substância da desrazão e meio de combatê-la. Nos séculos XVII e XVIII, havia a ideia de cura por meio de “poderes imaginários” da água aplicados à hidroterapia: a água fria curaria o “calor sem febre” da mania, impedindo, assim, a “dessecação do cérebro”; já a água quente desobstruiria os humores na melancolia, “doença fria e estagnante” (Foucault, 2019a, p. 206FOUCAULT, M. “Problematização do sujeito: psicologia, psiquiatria e psicanálise”. Rio de Janeiro: Forense, 2019a. (Ditos e escritos, v. I)). Entretanto, no século XIX, sobretudo a partir de Philippe Pinel e François Leuret, a hidroterapia se tornaria um agente punitivo, uma violência por meio da qual o louco confessaria sua própria loucura, controlaria seus humores e se submeteria ao trabalho. Em “L’Eau et la folie”, Foucault relata que Pinel prescrevia duchas de água fria sobre a cabeça para desconcertar o louco, até que ele fosse domado. Leuret radicalizaria a prescrição de Pinel, infligindo ainda mais violência ao uso das duchas. Ou seja, o combate à loucura se confundia com o combate ao próprio louco:

A água não é mais o banho apaziguador […]: é a surpresa – o que corta o fôlego e faz perder a compostura. […] [P]ode acontecer que se instale o doente sobre uma plataforma que, de repente, afunda na água. O sujeito, de camisão, é amarrado; a uma distância variável acima de sua cabeça (segundo a violência que se quer obter) há uma torneira que pode ter até cinco centímetros de diâmetro. É que o frio não deve ser mais o agente ativo de um refrigério fisiológico, mas a agressão que abate as quimeras, derruba o orgulho, reenvia os delírios à realidade cotidiana. (Foucault, 2019a, p. 206FOUCAULT, M. “Problematização do sujeito: psicologia, psiquiatria e psicanálise”. Rio de Janeiro: Forense, 2019a. (Ditos e escritos, v. I))

Em verdade, Foucault parece propor, em “L’Eau et la folie”, um percurso de leitura de Folie et déraison, no qual a relação entre a água e a loucura seria um norteador, o que, aliás, vai ao encontro do processo foucaultiano de “fazer aparecer o que está próximo demais de nosso olhar para que possamos ver o que está aí bem perto de nós, mas que nosso olhar atravessa para ver outra coisa” (Foucault, 2016a, p. 69FOUCAULT, M. “O belo perigo”. Belo Horizonte: Autêntica, 2016a.). No artigo, Foucault retoma pontos importantes do livro, como os tratamentos de Pinel e Leuret, além do relato de Michael Ettmüller (Foucault, 2019a, p. 206FOUCAULT, M. “Problematização do sujeito: psicologia, psiquiatria e psicanálise”. Rio de Janeiro: Forense, 2019a. (Ditos e escritos, v. I)), que marca a institucionalização do uso da hidroterapia contra a loucura no século XVII. De fato, “L’Eau et la folie” reúne e sintetiza uma relação que já estava presente em sua tese de doutorado, que receberá posteriormente o título definitivo de Histoire de la folie à l’âge classique.

Em sua passagem pela Universidade de Uppsala, na Suécia, em 1955, Foucault inicia sua pesquisa para Folie et déraison. Cinco anos antes, Erik Waller, um proeminente colecionador, havia doado mais de vinte e um mil documentos para a biblioteca Carolina Rediviva, situada na mesma cidade. “São peças que vão do século XVI ao começo do século XX. […] E sobretudo há o acervo considerável que esse amador constituíra sobre a história da medicina. Quase tudo que se publicou de importante antes de 1800 e boa parte do que se publicou depois” (Eribon, 1990, p. 94ERIBON, D. “Michel Foucault: uma biografia”. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.).

Foucault deixa Uppsala em 1958, passando dois anos entre a Polônia e a Alemanha. Embora a tese tenha sido concluída em Hamburgo, seu corpo fora formado nos três anos de pesquisa na biblioteca walleriana. O datiloscrito de Folie et déraison foi apresentado, em 1960, a Georges Canguilhem, professor de história das ciências na Sorbonne e autor de Le Normal et le pathologique, com vistas de obter orientação de doutorado. A proposta de Foucault era mostrar “como a teoria psiquiátrica inventou, modelou, delimitou seu objeto, a doença mental” (Eribon, 1990, p. 112ERIBON, D. “Michel Foucault: uma biografia”. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.).

No prefácio da primeira edição de Folie et déraison, publicada em 1961, Foucault apresenta com mais clareza essa proposta: “ir ao encontro, na história, desse grau zero da história da loucura” (Foucault, 2019a, p. 152FOUCAULT, M. “Problematização do sujeito: psicologia, psiquiatria e psicanálise”. Rio de Janeiro: Forense, 2019a. (Ditos e escritos, v. I)). No entanto, não se tratava de mapear diagnósticos até atingir um ponto de origem e um núcleo de significação comum que pudesse representar o rosto da loucura na história da medicina, mas de recusar o conforto das verdades médicas, de seus blocos de conhecimento. Tampouco se tratava de uma história do progresso da psiquiatria e da evolução das terapêuticas, de recusar, suprimir, apagar descontinuidades; mas o contrário disso: encontrar as descontinuidades, as rupturas, as cisões.

Entre os três termos citados anteriormente, o que melhor caracteriza a tese de Foucault é “cisão”: a história da loucura é a história das cisões entre razão e loucura, de como essas cisões se constituíram, de acordo com “contingências históricas […] que não são apenas modificáveis, mas estão em perpétuo deslocamento; que são sustentadas por todo um sistema de instituições que as impõem e reconduzem” (Foucault, 2016, p. 13FOUCAULT, M. “A ordem do discurso”. São Paulo: Loyola, 2016.). Apesar da utilização do plural, “cisões”, também não se trata de estabelecer algum tipo de conexão entre elas: cada cisão é uma cisão originária; os loucos nascem a cada momento, herdeiros de práticas institucionais, sociais, morais, políticas e econômicas. O grau zero da loucura se dá em toda parte,2 2 Neste ponto, retomamos a ideia de origem presente no primeiro prefácio de Folie et déraison, buscando uma forma de compreendê-la para além da influência duméziliana. a cada nova cisão e a cada nova terapêutica utilizada contra ela. Cada cisão – e, consequentemente, cada terapêutica – é separada e inseparável daquilo que ela divide.

Segundo Foucault, a cultura determina e naturaliza as cisões e os limites entre razão e loucura, estabelecendo, em si mesma, zonas internas e externas: “poder-se-ia fazer uma história dos limites – desses gestos obscuros, necessariamente esquecidos logo que concluídos, pelos quais uma cultura rejeita alguma coisa que será para ela o Exterior” (Foucault, 2019a, p. 154FOUCAULT, M. “Problematização do sujeito: psicologia, psiquiatria e psicanálise”. Rio de Janeiro: Forense, 2019a. (Ditos e escritos, v. I), grifo original). Com efeito, a cisão é um fato cultural, por meio do qual se constroem territórios que, apesar de nomeadamente internos e externos, não existiriam fora da cultura que os produziu. O que se descobriu sob a poeira dos documentos é que “a loucura não é um fato da natureza, mas um fato da civilização. Sempre, em determinada sociedade, a loucura é uma conduta ou outra, uma linguagem ou outra. Por conseguinte, não haveria história da loucura sem uma história das culturas que a definem como tal e a perseguem” (Eribon, 1990, p. 119ERIBON, D. “Michel Foucault: uma biografia”. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.). Portanto, a história da loucura poderia ser a história dessas cisões e dessas terapêuticas. Se, para mapear as cisões, olhássemos para as terapêuticas, talvez encontrássemos a água várias e várias vezes: brotando, rebentando, movendose. A história da hidroterapia se confunde com a história da loucura, podendo ser mapeada desde a Antiguidade Clássica, como nos “banhos praticados em Epidauro” (Foucault, 2019, p. 326FOUCAULT, M. “História da loucura na idade clássica”. Rio de Janeiro: Perspectiva, 2019.).

A loucura, assim como a doença venérea, foi associada, desde a Idade Média, às impurezas e ao pecado – e sua terapêutica, à purificação. Em “L’Eau et la folie”, Foucault relaciona “os poderes mágicos da água” contra “o oceano venenoso da loucura” com a ideia de que “a água cai do céu”, sendo, portanto, “pura” (Foucault, 2019a, p. 206FOUCAULT, M. “Problematização do sujeito: psicologia, psiquiatria e psicanálise”. Rio de Janeiro: Forense, 2019a. (Ditos e escritos, v. I)). Essa ritualística da água se relacionava diretamente com a ideia de purificar, ou seja, estava situada e situava a loucura no discurso moral. Para o filósofo, terapêuticas como os banhos revelam uma “cumplicidade da medicina com a moral, que atribui todo sentido a essas práticas de purificação” (Foucault, 2019, p. 86FOUCAULT, M. “História da loucura na idade clássica”. Rio de Janeiro: Perspectiva, 2019.). Ou seja, a moral é uma das condições de possibilidade tanto da cisão entre razão e loucura como de sua terapêutica. O paradoxo dessa relação é que, pela ambiguidade de seus valores, a água representa, ao mesmo tempo, o mal da loucura e o bem da cura. Portanto, mal e bem coexistem nessa relação.

Aqui se cruzam dois temas: o da ablução, com tudo o que aparenta aos ritos da pureza e do renascimento […]. A água, líquido simples e primitivo, pertence ao que há de mais puro na natureza; […] o retorno à limpidez da água assume o sentido de um ritual de purificação; nesse frescor transparente renasce-se para a própria inocência de cada um. Mas ao mesmo tempo a água que a natureza fez entrar na composição de todos os corpos restitui a cada um seu equilíbrio próprio; ela serve de regulador fisiológico universal. (Foucault, 2019, p. 326FOUCAULT, M. “História da loucura na idade clássica”. Rio de Janeiro: Perspectiva, 2019.)

A loucura e a hidroterapia ocupavam, portanto, esse espaço “entre” a aplicação dos “poderes mágicos” da água, que seriam a representação da “providência” contra a “tentação” (Foucault, 2019a, p. 206FOUCAULT, M. “Problematização do sujeito: psicologia, psiquiatria e psicanálise”. Rio de Janeiro: Forense, 2019a. (Ditos e escritos, v. I)) da loucura, e o discurso médico que, sobretudo a partir do século XVII, busca sustentação científica para os diagnósticos e as terapêuticas. Contudo, a loucura é um ponto de instabilidade para a medicina tradicional, visto que seus rastros não podem ser mapeados no corpo – ela não possui “substrato orgânico” (Foucault, 2016a, p. 51FOUCAULT, M. “O belo perigo”. Belo Horizonte: Autêntica, 2016a.). Pode-se dizer, portanto, que a loucura subverte o estatuto da medicina, uma vez que não há um domínio, mesmo que instável, sobre o diagnóstico e, consequentemente, sobre as terapêuticas.

A defesa de Folie et déraison acontece no verão de 1961, no auditório Louis-Liard,3 3 Louis-Liard (1846-1917) foi filósofo, responsável pela reforma do ensino superior na França. um dos mais tradicionais da Sorbonne. A banca é formada por Henri Gouhier, Daniel Lagache e, evidentemente, Georges Canguilhem. Diante deles, Foucault relata seu percurso: “a ideia era escrever um livro mais sobre os loucos que sobre os médicos. Mas isso era impossível, pois a voz da loucura foi […] reduzida ao silêncio. Assim, tornava-se necessário recolher os sinais de um perpétuo debate entre razão e desrazão […], daí o mergulho necessário nos arquivos” (Eribon, 1990, p. 119ERIBON, D. “Michel Foucault: uma biografia”. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.). Ou seja, a impossibilidade mesma de escrever um livro sobre os loucos conduziu Foucault a outro caminho, sintetizado no prefácio de Folie et déraison:

A linguagem da psiquiatria, que é o monólogo da razão sobre a loucura, só pode estabelecer-se sobre um tal silêncio. Não quis fazer a história dessa linguagem; antes, a arqueologia desse silêncio. (Foucault, 2019a, p. 153FOUCAULT, M. “Problematização do sujeito: psicologia, psiquiatria e psicanálise”. Rio de Janeiro: Forense, 2019a. (Ditos e escritos, v. I))

É possível entender “arqueologia do silêncio” como um mergulho nos arquivos sobre a loucura. Nesse sentido, “arquivo” não era apenas um conjunto de documentos, como aqueles que formavam a biblioteca walleriana, mas “a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimento dos enunciados” (Foucault, 2017, p. 158FOUCAULT, M. “Arqueologia do saber”. Rio de Janeiro: Forense, 2017.). Com efeito, investigar as leis do que pode ser dito faz surgir também o seu lado eclipsado, ou seja, as leis daquilo que não pode ser dito, ou, ainda, aqueles que não podem dizê-lo: essa é a arqueologia do silêncio. Nesse sentido, este artigo pretende apresentar uma leitura de Histoire de la folie,4 4 Doravante, iremos nos referir ao livro utilizando o título encurtado Histoire de la folie, como é o costume no campo foucaultiano. tendo como objetivo “fazer surgir” a relação entre a água e a loucura, em sua cumplicidade, ambiguidade, violência, indeterminação, instabilidade.

I. Narrenschiff: das ambiguidades da água e da loucura

Jean Batany (1985)BATANY, J. “Un « Estat » trop peu « estable »: navigation maritime et peur de l’eau”. Senefiance, Nr. 15, 1985., ao falar sobre a água na Idade Média, faz uma pergunta interessante: “é possível fixar algo na água”? A água assumia valores ambíguos entre a teologia e a medicina: era, ao mesmo tempo, a água benta que purificava os leprosos nos rituais de segregação (Brocard, 1998BROCARD, N. “Une catégorie à part d’assistés : les lépreux”. In : BROCARD, N. Soins, secours et exclusion. Besançon : Presses universitaires de Franche-Comté, 1998. p. 233-258.), a água dos banhos, a água que amaciava, diluía ou misturava as plantas medicinais e outras substâncias para a composição de xaropes, loções, pomadas, caldos (Lorcin, 1985LORCIN, M.-T. “Humeurs, bains et tisanes : l’eau dans la médecine médiévale”. Senefiance, Nr. 15, 1985.). Contudo, essa infixidez como característica fundamental da água não diz respeito apenas aos valores a ela atribuídos, mas às experiências da navegação. Batany (1985)BATANY, J. “Un « Estat » trop peu « estable »: navigation maritime et peur de l’eau”. Senefiance, Nr. 15, 1985. faz referência a Barthélemy de Chasseneux, quando este afirma que “a água do mar é a mãe de todas as outras águas” (tradução minha). Segundo o autor, essa ideia estaria relacionada ao respeito que as águas do mar exigiriam diante de sua instabilidade. O mar era um lugar de “passagem absoluta”, visto que a navegação “[…] entrega o homem à incerteza da sorte: nela, cada um é confiado a seu próprio destino, todo embarque é, potencialmente, o último” (Foucault, 2019, p. 11FOUCAULT, M. “História da loucura na idade clássica”. Rio de Janeiro: Perspectiva, 2019.).

Nessas paisagens, a água surge, vinda do céu, da terra e da imensidão oceânica, presente no discurso teológico, médico, literário, místico e nas relações intradiscursivas. Com efeito, em uma sociedade que se pensa em termos de moralidade, tais discursos se posicionariam no par opositivo bem/ mal. Entretanto, no caso da água, tais posições não são fixas e/ou definidas. Em “L’Eau et la folie”, Foucault relaciona a água e a loucura nessa particularidade: ambas seriam figuras moventes. E, nessas paisagens imaginárias, o louco, assim como a água, surge em sua infixidez, precisamente por ser produzido pelos/nos encontros e desencontros de discursos. Na água e na loucura nada se fixava.

Segundo Jean-Marie Fritz (apud Fossier, 2004FOSSIER, A. “Le non-sens de la folie : replonger le Moyen-Age dans l’interaction”. Tracés, Vol. 6, 2004.), a palavra louco – fol – era usada na Idade Média para designar os desviantes, os sem conhecimento, os imorais, pecadores, descrentes, bobos da corte. Arnaud Fossier (2004)FOSSIER, A. “Le non-sens de la folie : replonger le Moyen-Age dans l’interaction”. Tracés, Vol. 6, 2004. resume essa variação de significado como um certo “fracasso na adaptação social” e uma “relação heterodoxa com a Igreja”, mas reitera que é difícil definir os limites entre loucura, debilidade e inspiração, até porque esses lugares também não são fixos:

[O]s termos que designam essas realidades, que se tornaram heterogêneas para nós, muitas vezes são intercambiáveis: louco, furioso, estúpido, idiota, são – como vimos – recorrentes nos vários discursos assinalados. Esses termos se referem tanto aos iletrados, cujo conhecimento espiritual é fora do comum, como aos falsos profetas, eremitas, santos, místicos ou até mesmo feiticeiros. (Fossier, 2004FOSSIER, A. “Le non-sens de la folie : replonger le Moyen-Age dans l’interaction”. Tracés, Vol. 6, 2004., s.p., tradução minha)

Em Le Discours du fou au Moyen Âge, Fritz separa os discursos sobre a loucura na Idade Média entre médicos, teológicos, jurídicos e literários: a medicina estava associada à filosofia e classificava a loucura em um discurso nosográfico, como o dos humores frios e quentes, que correspondiam à melancolia e ao frenesi/fúria; a teologia, por sua vez, entendia a loucura como consequência da relação entre criador e criatura, Deus e homem, seja como castigo ou como graça divina; no discurso jurídico, a loucura não recebia grande destaque em relação a outras deficiências, embora existissem debates pontuais sobre aprisionar ou não o louco; já a literatura brincava “livremente com todos os discursos” (Fritz, 1992FRITZ, J.-M. “Le discours du fou au Moyen Âge”. Paris : Presses universitaires de France, 1992., s.p., tradução minha).

Portanto, o louco não era, na Idade Média, objeto de um discurso particular, sendo encontrado, de forma esparsa, nessa torrente discursiva que, como dito anteriormente, estava inserida em uma sociedade que pensa em si mesma em termos morais. Consequentemente, todo e qualquer discurso era atravessado pelo teológico, que se fazia hegemônico e se queria totalizante. “O louco é, portanto, objeto de um discurso no qual essas disciplinas [medicina, teologia, direito, literatura] se chocam e se confrontam, o paradoxo de uma figura marginal, que, no entanto, ocupa um lugar central, na encruzilhada dos discursos” (Fritz, 1992FRITZ, J.-M. “Le discours du fou au Moyen Âge”. Paris : Presses universitaires de France, 1992., s.p., tradução minha).

Água e loucura se encontram precisamente nessa encruzilhada discursiva, na qual, pela similaridade de valores, se tornam alegoria uma da outra: da água à loucura e da loucura de volta à água. No primeiro capítulo da primeira parte de Histoire de la folie, Foucault afirma que “a água e a loucura estarão ligadas por muito tempo no sonho do homem europeu” (Foucault, 2019, p. 12FOUCAULT, M. “História da loucura na idade clássica”. Rio de Janeiro: Perspectiva, 2019.). Recorre, sobretudo, aos discursos literário e místico para sustentar essa hipótese, citando exemplos como o episódio em que Tristão se disfarça de louco. Trazido pelos marinheiros, Tristão é jogado em terra: ele parece saber muitos segredos “para não ser de outro mundo […]. Não vem de terra sólida, mas sim das inquietudes do mar, desses caminhos desconhecidos que escondem tantos estranhos saberes, dessa planície fantástica, avesso do mundo” (Foucault, 2019, p. 12FOUCAULT, M. “História da loucura na idade clássica”. Rio de Janeiro: Perspectiva, 2019.). Contudo, se o mar representa a instabilidade, a inquietude, enfim, o outro mundo, a embarcação parece surgir no sentido oposto, como nos mostra Christine Bénévent (2012)BÉNÉVENT, C. “Folie et société(s) au tournant du Moyen Âge et de la Renaissance”. Babel, Vol. 25, 2012.:

De fato, a alegoria do navio, muito popular ao longo de toda a Idade Média, tem uma origem cristã que parece inevitável. Basta pensar na nave da igreja, a parte entre o portal e o transepto, delimitada pelas duas fileiras de pilares que suportam a abóbada e cuja forma geral lembra o casco de um navio virado: é o lugar principal onde os fiéis realizam os seus ofícios e celebrações. […] A viagem na nave, embora sujeita a muitos perigos, pode representar uma autêntica vida cristã: a nave permanece, assim, um símbolo ambivalente, dependendo da direção que tomar. (Bénévent, 2012BÉNÉVENT, C. “Folie et société(s) au tournant du Moyen Âge et de la Renaissance”. Babel, Vol. 25, 2012., tradução minha)

Ao encontro de Bénévent, Foucault ressalta a alegoria mística da almabarca, que será “prisioneira da grande loucura do mar se não souber lançar sólidas âncoras, a fé, ou esticar suas velas espirituais para que o sopro de Deus a leve ao porto” (Foucault, 2019, p. 13FOUCAULT, M. “História da loucura na idade clássica”. Rio de Janeiro: Perspectiva, 2019.). Pierre de L’Ancre veria no mar “a vocação demoníaca de todo um povo”, relacionando o mar, essa “grande planície perturbada” (Foucault, 2019, p. 13FOUCAULT, M. “História da loucura na idade clássica”. Rio de Janeiro: Perspectiva, 2019.), com a perda da fé. Portanto, não espanta que tivesse despontado, já na Renascença, a Narrenschiff.

A Narrenschiff tem uma dupla-existência na Europa da Renascença: por um lado, a iconografia e a literatura, por outro, as embarcações que atravessaram os rios da Renânia e os canais flamengos. Segundo Foucault, é possível supor que essas embarcações estivessem relacionadas às duas formas de “exílios rituais”: a “peregrinação” e a “contraperegrinação” (Foucault, 2019, p. 11FOUCAULT, M. “História da loucura na idade clássica”. Rio de Janeiro: Perspectiva, 2019.). Na primeira, os loucos embarcariam em uma viagem na qual buscariam a razão em destinos como Gheel e Bensançon. Essas peregrinações eram “organizadas e às vezes subvencionadas pelas cidades ou pelos hospitais” (Foucault, 2019, p. 11FOUCAULT, M. “História da loucura na idade clássica”. Rio de Janeiro: Perspectiva, 2019.) que acolhiam os loucos. Já a contraperegrinação tinha como destino cidades como Nuremberg, nas quais os loucos não eram tratados, mas aprisionados. Contudo, os destinos de peregrinação e contraperegrinação, de cura e exclusão, se confundiam, visto que ambos encerram os loucos no “espaço sagrado do milagre” (Foucault, 2019, p. 11FOUCAULT, M. “História da loucura na idade clássica”. Rio de Janeiro: Perspectiva, 2019.).

Os loucos são aprisionados nesse lugar de passagem, que se apresenta com clareza em sua relação com a religião: “o acesso às Igrejas é proibido […], enquanto o direito eclesiástico não lhes proíbe o uso dos sacramentos” (Foucault, 2019, p. 11FOUCAULT, M. “História da loucura na idade clássica”. Rio de Janeiro: Perspectiva, 2019.). Apesar de não serem ‘enterrados vivos’, como os leprosos, os loucos vivem nessa antessala da vida, nesse entremundos: às portas da Igreja, às portas da terra firme, em uma experiência de “passagem absoluta” (Foucault, 2019, p. 11FOUCAULT, M. “História da loucura na idade clássica”. Rio de Janeiro: Perspectiva, 2019.). Lançados em viagens cujo destino é, na relação entre cura e exclusão, a esperança do milagre. Um estranho percurso atravessado pela “massa obscura” (Foucault, 2019, p. 11FOUCAULT, M. “História da loucura na idade clássica”. Rio de Janeiro: Perspectiva, 2019.) dos valores da água. Mediando a passagem entre esses dois mundos, como nos aponta Jonas Kurscheidt (2012)KURSCHEIDT, J. “Le Narrenschiff de Sébastien Brant à l’épreuve du filtre foucaldien”. Babel, Vol. 25, 2012., surge a nau:

Na tradição cristã, a nave é a imagem da fé e da Igreja, enquanto o mar representa o mundo dos perigos e das tentações do Mal contra os quais a nave da Igreja oferece segurança. A nave de Brant deve ser entendida neste contexto. Ele nos apresenta uma espécie de contra-imagem dessa nave da crença. Os Narren [insensatos] procuram embarcar em um navio que está condenado a afundar. (Kurscheidt, 2012KURSCHEIDT, J. “Le Narrenschiff de Sébastien Brant à l’épreuve du filtre foucaldien”. Babel, Vol. 25, 2012., s.p., tradução minha)

Nos séculos XV e XVI, houve uma recuperação do tema mítico do ciclo dos argonautas, sobretudo pelas publicações de Symphorien Champier, que, curiosamente, era médico, tendo escrito mais de trinta manuais de medicina, além de livros sobre grandes navegações, tais como La Nef des Princes, de 1502, e La Nef des dames vertueuses, de 1503. No entanto, se tivermos como referência os grandes heróis que tripularam a nau Argo, os insensatos descritos em Narrenschiff, de Sebastian Brant, seriam seu outro radical. Se os argonautas eram exemplo de moral, coragem e de habilidade para navegação, os insensatos eram imorais, guiados por uma coragem ingênua e pela incapacidade de navegar. Portanto, prisioneiros de si mesmos e das intempéries do mar. Não definiam seu destino, e, certamente, seu caminho não encontraria a fortuna, a verdade e a sabedoria, mas uma forma de punição por suas falhas. É dessa forma que a água se apresenta em Narrenschiff, sobretudo no cântico 108, “A nau da Cocanha”:

[…] [O]s rochedos se lançaram contra nosso navio, golpeando os dois flancos e deixando-o em pedaços […]. O vento nos arremessa para lá e para cá: a nau dos tolos nunca retornará depois de ter afundado de vez. Nós não temos nenhum juízo ou sensatez para nadar até a costa, como fez Ulisses […]. Se [o tolo] não for acolhido neste navio, logo entrará no próximo, onde terá abundante companhia. (Brant, 2010, pp. 325-329BRANT, S. “A nau dos insensatos”. São Paulo: Octavo, 2010.)

Brant publicou Narrenschiff em 1494, quando já havia concluído o doutorado na Universidade da Basileia, onde passou a lecionar direito canônico e direito civil. Segundo Kurscheidt (2012)KURSCHEIDT, J. “Le Narrenschiff de Sébastien Brant à l’épreuve du filtre foucaldien”. Babel, Vol. 25, 2012., o remédio para a loucura, em Brant, é se reconhecer como louco e confessar sua loucura, um procedimento que será central nas práticas médicas dos séculos seguintes:

eu sei muito bem onde o sapato me aperta, e, portanto se ouvir criticarem-me dizendo: “Médico, curai a vós mesmos, pois sois a mesma categoria”, eu o sei e confesso a Deus que cometi muitos contrassensos e faço parte da ordem dos tolos. Por mais que puxe para tirar o gorro dos insensatos, ele nunca me abandona (Brant, 2010, p. 337BRANT, S. “A nau dos insensatos”. São Paulo: Octavo, 2010.).

No prólogo de Narrenschiff, Brant desafia os leitores a encontrarem a si mesmos no livro: “que se mirem todas as pessoas nesse espelho” (Brant, 2010, p. 23BRANT, S. “A nau dos insensatos”. São Paulo: Octavo, 2010.). Para tanto, o autor apresenta, de forma satírica, mais de cem estereótipos de insensatez: jogadores, vaidosos, arrogantes, preguiçosos, infiéis, mentirosos, difamadores, invejosos, zombeteiros, adúlteros, soberbos, imprudentes, apaixonados… Ou seja, a falha moral, a prática do mal, o pecado, estão relacionados à loucura. Contudo, diferentemente do que ocorreu com a lepra, a relação de causa e consequência não é bem estabelecida, visto que não é possível definir se o pecado leva à loucura, se a loucura leva ao pecado, ou ainda: se o pecado e a loucura se misturam e se confundem.

Há, na Renascença, “toda uma literatura de contos e moralidades, ela assume uma superfície considerável: longa série de ‘loucuras’ […]. A denúncia da loucura torna-se a forma geral da crítica” (Foucault, 2019, pp. 13-14FOUCAULT, M. “História da loucura na idade clássica”. Rio de Janeiro: Perspectiva, 2019.). Com efeito, a loucura identificada por Brant é um tipo de loucura moral que se opõe à sapiência associada à doutrina cristã – o que pode ser visto na nota final, que expressa o desejo de que se conquiste, a partir da leitura, “sabedoria, juízo e bons costumes” (Brant, 2010, p. 341BRANT, S. “A nau dos insensatos”. São Paulo: Octavo, 2010.). Contudo, tantos são os possíveis desvios, que até mesmo o autor, um católico fervoroso, ora se percebe como arrazoado, ora como insensato. Na edição de 1499 de Narrenschiff, o autor acrescenta uma nota assinada pelo “insensato Sebastian Brant” (Brant, 2010, p. 341BRANT, S. “A nau dos insensatos”. São Paulo: Octavo, 2010.), ou seja, “loucura e razão entram numa relação eternamente reversível que faz com que toda loucura tenha sua razão que a julga e controla e toda razão, sua loucura, na qual encontra sua verdade irrisória” (Foucault, 2019, p. 30FOUCAULT, M. “História da loucura na idade clássica”. Rio de Janeiro: Perspectiva, 2019.). Essa tensão entre loucura e sabedoria, juízo e bons costumes, que aparece em Brant, vai se estabelecer, enquanto cisão na razão/desrazão, na Idade Clássica.

II. O Hospital Geral: a água e a loucura contrapostas

Na Idade Clássica, a loucura não estava mais aprisionada na passagem, no espaço entremundos que as naus representavam: estava retida no Hospital Geral. Nos corredores, pátios e celas, a água, também retida, assumiria outros usos, tais como as duchas e os banhos. As “figuras moventes” (Foucault, 2019a, p. 205FOUCAULT, M. “Problematização do sujeito: psicologia, psiquiatria e psicanálise”. Rio de Janeiro: Forense, 2019a. (Ditos e escritos, v. I)), deformadas, borradas, que pareciam existir em contiguidade com seu próprio deslocamento, se tornaram, portanto, figuras retidas: de um lado, o louco acorrentado; de outro, a água empoçada. A loucura não está, como esteve antes, diante da violência própria da água, quando esta se faz onda ou corredeira, mas diante do uso violento que a medicina faria dela. Portanto, a água é amansada, empoçada e reconduzida para se tornar veículo da razão sobre a loucura. Uma e outra retidas. Uma e outra contrapostas.

A experiência clássica representava a separação, a partição, a divisão, enfim, a cisão razão/loucura, que Foucault associa sobretudo ao cartesianismo.5 5 Ver História da Loucura, capítulo 2, primeira parte: “A grande internação”. Exterior à razão, a loucura se tornaria o outro radical contra o qual ela se oporia e a partir do qual ela afirmaria sua superioridade: “demarcada por oposição à razão, a loucura é transformada em desrazão” (Muchail, 2004, p. 44MUCHAIL, S. “Foucault, simplesmente”. São Paulo: Loyola, 2004.). Portanto, a cisão representa também oposição e hierarquia. Para Foucault, o estabelecimento da loucura como desrazão estaria relacionado às práticas de segregação e de exclusão da loucura no século XVII, visto que de diferentes discursos decorriam diferentes rituais e práticas – “para ela” e “contra ela” (Foucault, 2019a, p. 206FOUCAULT, M. “Problematização do sujeito: psicologia, psiquiatria e psicanálise”. Rio de Janeiro: Forense, 2019a. (Ditos e escritos, v. I)). Enquanto havia apenas uma tensão, uma instabilidade, um intercâmbio entre a razão e a loucura, a segregação e a exclusão dos loucos, a exemplo da Narrenschiff, não era uma prática hegemônica e institucionalizada como as práticas de internamento que surgiriam nos Hospitais Gerais.

Da perspectiva de Salma Muchail (2004)MUCHAIL, S. “Foucault, simplesmente”. São Paulo: Loyola, 2004., os Hospitais Gerais “constituem a estrutura visível e a forma institucional da cisão entre razão e desrazão” (p. 44), sendo possível entender essa complexa estrutura como um espaço “tanto discursivo como não discursivo” (Fossier, 2002FOSSIER, A. “Le grand renfermement”. Tracés, Vol. 1, 2002., s.p.). Contudo, há uma relação de interferência entre tais espaços, visto que o discurso que antecedia e era condição de possibilidade dessas instituições também se presentificava em sua materialidade. Espaço discursivo e não discursivo estariam interligados, afirmando e reafirmando um ao outro. Por sua vez, a água, que não pode ser partida, cindida ou fixada, seguia como líquido jorrante do agora delimitado espaço entre razão e loucura. Ou, mais precisamente, entre razão e desrazão.

Como indica André Yazbek (2016)YAZBEK, A. “O louco e o sonhador: Jacques Derrida leitor de História da loucura, de Michel Foucault (notas sobre uma polêmica)”. Trágica, Vol 9, Nr. 2, 2016., a espacialização da cisão se afiguraria no grand renfermement. Na prática, “espacializar a cisão” seria excluir, segregar, desterrar os loucos, que teriam como destino último o Hospital Geral. Os loucos não eram mais lançados às águas correntes dos canais e dos rios, mas, banidos de suas terras, reencontrariam, no internamento, a água como purificação e como renascimento. Ou seja, a ideia de que a loucura não pertencia à terra firme prevalecia como paisagem imaginária e, evidentemente, como discurso – os loucos eram, por fim, os desterrados (Foucault, 2019a, p. 206FOUCAULT, M. “Problematização do sujeito: psicologia, psiquiatria e psicanálise”. Rio de Janeiro: Forense, 2019a. (Ditos e escritos, v. I)). Na Idade Clássica, a loucura será percebida como “uma desordem moral associada indiferenciadamente a outras tantas manifestações da desrazão (mendicância, libertinagem, vagabundagem, ateísmo, devassidão, etc.)” (Yazbek, 2016, p. 26YAZBEK, A. “O louco e o sonhador: Jacques Derrida leitor de História da loucura, de Michel Foucault (notas sobre uma polêmica)”. Trágica, Vol 9, Nr. 2, 2016.). Embora se tratasse de uma “loucura moral”, como na Renascença, havia uma diferença crucial no campo do discurso que a antecedia: não eram apenas as autoridades eclesiásticas e a teologia que a delimitavam, visto que havia também uma forte influência da burguesia em ascensão.

A partir da era clássica, e pela primeira vez, a loucura é percebida através de uma condenação ética da ociosidade e numa imanência social garantida pela comunidade do trabalho. Essa comunidade adquire um poder ético de divisão que lhe permite rejeitar, como num outro mundo, todas as formas de inutilidade social. É nesse outro mundo, delimitado pelos poderes sagrados do labor, que a loucura vai adquirir esse estatuto que lhe reconhecemos. Se existe na loucura clássica alguma coisa que fala de outro lugar e de outra coisa, não é porque o louco vem de um outro céu, o do insano, ostentando seus signos. É porque ele atravessa por conta própria as fronteiras da ordem burguesa, alienando-se fora dos limites sacros de sua ética. (Foucault, 2019, p. 73FOUCAULT, M. “História da loucura na idade clássica”. Rio de Janeiro: Perspectiva, 2019.)

Com efeito, a ascensão da burguesia no século XVII promove uma mudança no campo discursivo, de modo que, diferentemente do que ocorreu com a lepra, que era vista a partir da ideia de uma punição divina, e da própria loucura, que, até então, estava relacionada sobretudo ao pecado, essa nova “loucura moral” surgiria também como “incapacidade para o trabalho e incapacidade de seguir os ritmos da vida social” (Foucault, 2019, p. 72FOUCAULT, M. “História da loucura na idade clássica”. Rio de Janeiro: Perspectiva, 2019.). No primeiro momento do grand renfermement, em 1656, quando foi criado o Hospital Geral, a instituição recebeu a “tarefa de impedir a ‘mendicância e a ociosidade, bem como as fontes de todas as desordens’” (Foucault, 2019, p. 63FOUCAULT, M. “História da loucura na idade clássica”. Rio de Janeiro: Perspectiva, 2019.).

O trabalho é apresentado como meio de reintegração do delinquente, do pobre ou do “desarrazoado”. Na realidade, é utilizado como instrumento de perseguição física, impondo ao indivíduo um trabalho insípido, monótono, brutal, exaustivo. (Fossier, 2002FOSSIER, A. “Le grand renfermement”. Tracés, Vol. 1, 2002., s.p., tradução minha)

Instituições como Salpêtrière e Bicêtre estavam destinadas a receber os “pobres de Paris” (Foucault, 2019, p. 49FOUCAULT, M. “História da loucura na idade clássica”. Rio de Janeiro: Perspectiva, 2019.), um grupo complexo e heterogêneo de pessoas que, pela primeira vez, se via unido sob a égide da marginalização: eram eles de “todos os sexos, lugares, idades, de qualquer qualidade de nascimento, e seja qual for sua condição, válidos ou inválidos, doentes ou convalescentes, curáveis ou incuráveis”.6 6 Édito de 1656, art. XI apud FOUCAULT, História da loucura na idade clássica, p. 49. Entretanto, a segregação não era baseada no reconhecimento daqueles que, de alguma forma, não pertenciam ao grupo social, mas, ao contrário, na identificação daqueles que refletiam as injustiças sociais, as crises políticas e econômicas, enfim, a precariedade de uma sociedade. Paradoxalmente, os desterrados eram aqueles que mais pertenciam àquela terra, os que carregavam, na cabeça e no corpo, os sinais de sua falência. Essa continuidade extraterritorial dos hospitais gerais era controlada pelos diretores, que tinham poder de “autoridade, direção, administração, comércio, polícia, jurisdição, correção e punição sobre todos os pobres”.7 7 Édito de 1656, art. XIII apud FOUCAULT, História da loucura na idade clássica, p. 50. Eram tão ávidos pela limpeza social, que, “poucos anos após sua fundação, o único Hospital Geral de Paris agrupava seis mil pessoas, ou seja, cerca de 1% da população” (Foucault, 2019, p. 55FOUCAULT, M. “História da loucura na idade clássica”. Rio de Janeiro: Perspectiva, 2019.).

Os hospitais gerais, herdeiros dos leprosários, ainda podiam ser entendidos como “prisões da ordem moral” (Foucault, 2019, p. 77FOUCAULT, M. “História da loucura na idade clássica”. Rio de Janeiro: Perspectiva, 2019.), nas quais os discursos moral, médico, policial, jurídico pareciam, aos poucos, se transformar, mas sempre disputando com os discursos que os antecediam. Nesse sentido, a moral burguesa não substituiu inteiramente a moral cristã: por exemplo, os hábitos de trabalho impostos nessas instituições muitas vezes eram precedidos por orações. Já a medicina, atravessada por essas morais que carregavam, evidentemente, muitos pontos de convergência, mantinha rituais de purificação, a exemplo dos banhos.

Os banhos eram usados, desde a Antiguidade Clássica, para tratamento de “fadiga muscular” e “transtornos mentais decorrentes de distúrbios corporais, tais como raiva e febre alta” (Richardson; Walker, 2006, p. 1RICHARDSON, D., WALKER, S. “The rise and decline of psychiatric hydrotherapy: an online exhibit from Oskar Diethelm Library”, 2006.). Na Idade Clássica, o médico belga Jean-Baptiste van Helmont retoma essa tradição a partir de um método que pretendia “sufocar as ideias loucas” (Van Helmont apud Richardson; Walker, 2006, p. 1RICHARDSON, D., WALKER, S. “The rise and decline of psychiatric hydrotherapy: an online exhibit from Oskar Diethelm Library”, 2006.) e que vai ter grande impacto na medicina asilar do século XVIII. Provavelmente iluminado por uma série de estudos de casos como os de Ettmüller, o médico propõe que os pacientes sejam pendurados de cabeça para baixo e, por meio de um sistema de cordas e roldanas, sejam submersos em uma tina, até o limite do afogamento. Era como se a morte ocupasse o espaço entre razão e loucura, de modo que a travessia de um lado a outro da cisão passaria, inelutavelmente, pela experiência do renascimento. Em The spirit of diseases, or, Diseases from the spirit, Franciscus Mercurius van Helmont, filho do médico belga, descreve o método de “choque e comoção” utilizado pelo pai:

Método de cura para pessoas loucas […]. O modo como o fez foi o seguinte: tendo deixados nus os indivíduos, ele amarrou as mãos em suas costas e os pés a uma corda presa a uma roldana, para que pudesse mergulhá-los, em diferentes profundidades, em uma grande vasilha de água. Assim, ele os puxaria pela corda presa aos seus pés e os colocaria, de cabeça para baixo, no compartimento com água. Contudo, as cabeças não deveriam tocar o fundo de tal compartimento, mesmo que seus membros superiores estivessem submersos. De fato, devido ao medo ou por não serem fortes o suficiente para tal método, alguns falhavam e morriam. (Van Helmont apud Richardson; Walker, 2006, p. 2RICHARDSON, D., WALKER, S. “The rise and decline of psychiatric hydrotherapy: an online exhibit from Oskar Diethelm Library”, 2006., tradução minha)

De acordo com Foucault, ao fim do século XVII, “a cura pelos banhos toma lugar ou retoma lugar entre as terapêuticas maiores da loucura” (Foucault, 2019, p. 327FOUCAULT, M. “História da loucura na idade clássica”. Rio de Janeiro: Perspectiva, 2019.). Dessa forma, a água passa a ser recomendada para o tratamento do frenesi, da mania, da melancolia, da imbecilidade e para fortalecer o temperamento (Foucault, 2019, p. 327FOUCAULT, M. “História da loucura na idade clássica”. Rio de Janeiro: Perspectiva, 2019.). Em outra descrição de seu método, Van Helmont afirma que “o único cuidado que se deve ter é mergulhar de repente e de improviso os doentes na água e mantê-los nela por bastante tempo”. E completa: “não há o que temer por suas vidas” (Foucault, 2019, p. 327FOUCAULT, M. “História da loucura na idade clássica”. Rio de Janeiro: Perspectiva, 2019.).

III. O espaço asilar: a água, a loucura nos “estados vizinhos da morte”

“Ele [Jan Baptist van Helmont] lembra […] o acidente ocorrido com um maníaco que havia caído por acaso em um poço profundo, sendo retirado em um estado aparentemente de morte, depois voltando à vida e ao livre exercício de sua razão” (Pinel, 2007, p. 51PINEL, P. “Tratado médico-filosófico sobre a alienação mental ou a mania”. Porto Alegre: UFRGS, 2007.). Este trecho, extraído da introdução do Traité médico-philosophique sur l’aliénation mentale ou la manie, do psiquiatra francês Philippe Pinel, demonstra que a hidroterapia e os métodos desenvolvidos a partir de estudos de caso e de anedotas do século XVII sobreviveram nos séculos seguintes (Cf. Foucault, 2019, pp. 326-331FOUCAULT, M. “História da loucura na idade clássica”. Rio de Janeiro: Perspectiva, 2019.). Entre os séculos XVIII e XIX, há uma transformação no discurso sobre a loucura, que passa a ser entendida como doença mental. Quando o saber psiquiátrico se espacializa, o Hospital Geral dá lugar ao asilo: é em seu interior que a hidroterapia se estabelece – como terapêutica e como punição.

Em “L’Eau et la folie”, são descritas quatro funções específicas da água: “ela é dolorosa”, “ela humilha”, “ela reduz ao silêncio”, “ela castiga” (Foucault, 2019a, p. 207FOUCAULT, M. “Problematização do sujeito: psicologia, psiquiatria e psicanálise”. Rio de Janeiro: Forense, 2019a. (Ditos e escritos, v. I)). Segundo Foucault, a dor é uma forma de reconduzir o louco “a esse mundo da percepção atual à qual ele tende a escapar” (Foucault, 2019a, p. 207FOUCAULT, M. “Problematização do sujeito: psicologia, psiquiatria e psicanálise”. Rio de Janeiro: Forense, 2019a. (Ditos e escritos, v. I)). É possível relacionar essa centralidade da dor no tratamento da loucura aos casos estudados por médicos na Idade Clássica, como aqueles descritos por Ettmüller e Van Helmont, nos quais se recobraria a razão nos “estados vizinhos da morte” (Pinel apud Foucault, 2019, p. 330FOUCAULT, M. “História da loucura na idade clássica”. Rio de Janeiro: Perspectiva, 2019.). Nesse sentido, Leuret escreve: “Não empregais as consolações, pois elas são inúteis […]. Muito sangue frio e quando se tornar necessário, a severidade […]. Uma única corda vibra ainda neles [os loucos], aquela da dor, tenhais bastante coragem para tocála” (Leuret apud Silva, 2005, p. 6SILVA, M. “Sobre François Leuret e sua obra”. Revista Latino-americana de Psicopatologia Fundamental, ano VIII, Nr. 3, setembro de 2005.). Como consequência da dor, a humilhação de admitir-se louco, sendo colocado “diante de sua própria realidade desiludida” (Foucault, 2019a, p. 207FOUCAULT, M. “Problematização do sujeito: psicologia, psiquiatria e psicanálise”. Rio de Janeiro: Forense, 2019a. (Ditos e escritos, v. I)). Com efeito, o silêncio seria o silenciar da loucura a partir dos métodos que buscam “sufocar as ideias loucas” (Van Helmont apud Richardson; Walker, 2006, p. 1RICHARDSON, D., WALKER, S. “The rise and decline of psychiatric hydrotherapy: an online exhibit from Oskar Diethelm Library”, 2006., tradução minha), ou seja, não se tratava do silêncio enquanto tal, absoluto, mas de silenciar as diferenças do “ver”, do “ouvir” e do “falar” que a experiência da loucura produz. Por fim, o castigo “representa a instância de julgamento no asilo” (Foucault, 2019a, p. 207FOUCAULT, M. “Problematização do sujeito: psicologia, psiquiatria e psicanálise”. Rio de Janeiro: Forense, 2019a. (Ditos e escritos, v. I)), que tem como principal objetivo a confissão.

[A]plica-se a ducha para que o delirante reconheça que aquilo que ele diz é ilusão, falsas crenças, imagens presunçosas – puro e simples delírio. O louco deve reconhecer que ele é louco: o que, em uma época na qual julgamento e vontade eram considerados como constituindo a razão (e a desrazão), devia conduzi-lo diretamente à saúde. A água é o instrumento da confissão: o escoamento vigoroso que arrasta as impurezas, as ideias inúteis, todas essas quimeras que são tão próximas das mentiras. (Foucault, 2019a, p. 207FOUCAULT, M. “Problematização do sujeito: psicologia, psiquiatria e psicanálise”. Rio de Janeiro: Forense, 2019a. (Ditos e escritos, v. I))

De acordo com Foucault, “não se confessa sem a presença ao menos virtual de um parceiro, que não é simplesmente o interlocutor, mas a instância que requer a confissão, impõe-na, avalia-a e intervém para julgar, punir” (Foucault, 2018, pp. 70-71FOUCAULT, M. “História da sexualidade, v. I: a vontade de saber”. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2018.). É preciso confessar a loucura, dizer em voz alta, admitir que é louco diante desses estranhos lugares de autoridade nos quais o médico circula. “La naissance de l’asile”, capítulo treze da terceira parte de Histoire de la folie, evidencia que a prática médica e, mais especificamente, a psiquiatria, no século XIX, muitas vezes se reduziam aos “velhos ritos da Ordem, da Autoridade e do Castigo” e que a cura dependia precisamente de um jogo no qual o médico assumiria o papel de “Pai e Juiz, Família e Lei” (Foucault, 2019, p. 518FOUCAULT, M. “História da loucura na idade clássica”. Rio de Janeiro: Perspectiva, 2019.). Pinel descreve o caso de uma adolescente de dezessete anos que sofria de um “delírio alegre”, relacionando esse estado ao tratamento de “extrema indulgência” (Pinel apud Foucault, 2019, p. 518FOUCAULT, M. “História da loucura na idade clássica”. Rio de Janeiro: Perspectiva, 2019.) dado pelos pais. Para alcançar a cura, ela precisaria ser submetida a um regime de “autoridade estrita” (Foucault, 2019, p. 518FOUCAULT, M. “História da loucura na idade clássica”. Rio de Janeiro: Perspectiva, 2019.), no qual confessaria sua loucura. No interior do asilo, a água se torna veículo da autoridade médica e é por meio dela que as ideias loucas são confessadas, subjugadas, silenciadas:

[A] fim de domar esse caráter inflexível [da adolescente], o vigilante escolhe o momento do banho e manifesta-se com veemência contra certas pessoas desnaturadas que ousam levantar-se contra as ordens de seus pais e desconhecer a autoridade deles. Previne-a que a partir dali ela seria tratada com toda a severidade que merece, uma vez que ela própria se opõe à sua cura e dissimula com obstinação insuperável a causa primitiva de sua doença. (Pinel apud Foucault, 2019, p. 518FOUCAULT, M. “História da loucura na idade clássica”. Rio de Janeiro: Perspectiva, 2019.)

Diante do “rigor e [da] ameaça” (Foucault, 2019, p. 518FOUCAULT, M. “História da loucura na idade clássica”. Rio de Janeiro: Perspectiva, 2019.), a adolescente confessa que teria perdido a razão por ter sido “contrariada numa inclinação do coração” (Pinel apud Foucault, 2019, p. 519FOUCAULT, M. “História da loucura na idade clássica”. Rio de Janeiro: Perspectiva, 2019.). Embora a loucura tivesse sido diferenciada da miséria e de outras formas de desrazão ainda no século XVIII, se estabelecendo como doença mental no século XIX, os discursos morais continuavam delimitando seus caminhos; por fim, o adoecimento viria das extravagâncias do coração, esse estranho órgão cujos impulsos desorganicizados estariam ligados às falhas morais. Após “reconhece[r] seus erros” (Foucault, 2019, p. 518FOUCAULT, M. “História da loucura na idade clássica”. Rio de Janeiro: Perspectiva, 2019.) em confissão, a adolescente alcançaria a cura:

Efetuou-se uma mudança das mais favoráveis…; ela se sente agora aliviada e não consegue expressar, como gostaria, todo o seu reconhecimento ao vigilante que fez cessar suas contínuas agitações e devolveu a tranquilidade e a calma ao seu coração. (Pinel apud Foucault, 2019, p. 519FOUCAULT, M. “História da loucura na idade clássica”. Rio de Janeiro: Perspectiva, 2019.)

No século XVIII, havia uma associação entre a água e as estruturas físicas do corpo nos tratamentos médicos, a exemplo dos banhos mornos ou frios, que teriam a propriedade de combater as “doenças dos nervos” (Foucault, 2019, p. 329FOUCAULT, M. “História da loucura na idade clássica”. Rio de Janeiro: Perspectiva, 2019.) relacionadas com um “endurecimento do gênero nervoso” e com a “secura das membranas” (Pomme apud Foucault, 2019, p. 329FOUCAULT, M. “História da loucura na idade clássica”. Rio de Janeiro: Perspectiva, 2019.). Ao embeber os tecidos, a água agiria contra esses males, devolvendo a flexibilidade dos nervos e das membranas. Para tanto, eram recomendadas de três a seis horas de banho por dia (Foucault, 2019, p. 330FOUCAULT, M. “História da loucura na idade clássica”. Rio de Janeiro: Perspectiva, 2019.). Na virada do século XVIII para o século XIX,

os poderes da água se esgotam nos próprios excessos de suas riquezas qualitativas: fria, ela pode esquentar; quente, ela refresca. […] No pensamento médico, ela forma um tema terapêutico flexível e utilizável à vontade, cujos efeitos podem ser encaixados nas fisiologias e patologias mais diversas. (Foucault, 2019, p. 330FOUCAULT, M. “História da loucura na idade clássica”. Rio de Janeiro: Perspectiva, 2019.).

Com efeito, no século XIX, a psiquiatria se apropria dos valores mais primordiais da água, tais como a surpresa e a violência, que atordoava marinheiros e loucos já no Renascimento. Na estrutura asilar, a autoridade conferida aos médicos tinha um papel primordial tanto na organização como nas cenas de cura. Era preciso domar e vencer a loucura, o que significava, em verdade, o domínio e a vitória sobre o louco. Ao encontro disso, a ducha se tornara uma “técnica privilegiada” (Foucault, 2019, p. 330FOUCAULT, M. “História da loucura na idade clássica”. Rio de Janeiro: Perspectiva, 2019.).

[A] água reencontra, além de todas as suas variações fisiológicas da época anterior, sua função simples de purificação. A única qualidade de que é encarregada é a violência; deve arrastar num fluxo irresistível todas as impurezas que constituem a loucura; através de sua própria força curativa, deve reduzir o indivíduo à sua mais simples expressão possível, à sua menor e mais pura forma de existência, possibilitando-lhe assim um segundo nascimento. (Foucault, 2019, p. 330FOUCAULT, M. “História da loucura na idade clássica”. Rio de Janeiro: Perspectiva, 2019.)

O Hospital Geral não realizou o sonho da Idade Clássica de criar um espaço de segregação no qual a obrigação moral triunfaria sobre a desrazão, uma vez que essas instituições se assemelhavam, em sua miséria e ociosidade, às prisões e aos depósitos de mendigos. Portanto, se fez necessária “uma nova exclusão no interior da antiga” (Foucault, 2019, p. 398FOUCAULT, M. “História da loucura na idade clássica”. Rio de Janeiro: Perspectiva, 2019.): tratava-se do surgimento dos asilos na Modernidade, os quais, a despeito de se fundarem na possibilidade de cura por meio do saber psiquiátrico, se assemelhavam aos hospitais gerais, visto que os loucos permaneciam trancados e que o internamento era resultado de uma aliança com a lei e com a polícia (Danet, 2013DANET, F. “La psychiatrie, une spécialité marginale dans la modernité”. L’Information psychiatrique, Vol. 89, Nr. 1, 2013.). Ambos se colocavam como instâncias judiciárias, isto é, julgavam e condenavam; a diferença talvez estivesse nas formas de punição: o Hospital Geral operava como a prisão, usava “as mesmas celas, as mesmas sevícias físicas” (Foucault, 2019, p. 513FOUCAULT, M. “História da loucura na idade clássica”. Rio de Janeiro: Perspectiva, 2019.). Em contrapartida, o espaço asilar não emprestava “da outra justiça seus modos de opressão; inventa os seus” (Foucault, 2019, p. 513FOUCAULT, M. “História da loucura na idade clássica”. Rio de Janeiro: Perspectiva, 2019.). Desta perspectiva, a água, sobretudo nas duchas, era técnica privilegiada, como nos mostra o diálogo entre Leuret e um paciente:

Leuret: Você promete não pensar mais nisso?

O doente cede com dificuldade.

Leuret: Você promete trabalhar todos os dias?

Ele hesita, depois aceita.

Leuret: Como eu não acredito nas suas promessas, você vai receber a ducha, e continuaremos todos os dias até que você mesmo peça para trabalhar (ducha).

Leuret: você vai trabalhar hoje?

A.: Já que me obrigam, eu tenho mesmo que ir!

Leuret: Você vai com boa vontade ou não?

Hesitação (ducha).

A.: Sim, eu vou trabalhar!

Leuret: Então você estava louco?

A.: Não, eu não estava louco.

Leuret: Você não estava louco?

A.: Eu acho que não (ducha).

Leuret: Você estava louco?

A.: Então estar louco é ver e ouvir!

Leuret: Sim!

A.: Está bem, doutor, é a loucura.

Ele promete ir trabalhar. (Leuret apud Foucault, 2019a, p. 208FOUCAULT, M. “Problematização do sujeito: psicologia, psiquiatria e psicanálise”. Rio de Janeiro: Forense, 2019a. (Ditos e escritos, v. I))

Considerações finais: a água, a loucura, a moral

É possível supor que a relação entre a água e a loucura surja no Ocidente como “paisagem imaginária” (Foucault, 2019, p. 8FOUCAULT, M. “História da loucura na idade clássica”. Rio de Janeiro: Perspectiva, 2019.), contudo, no percurso de Histoire de la folie, aquilo que parecia apenas alegoria se converte nas naus que, em seus percursos pelos rios da Renânia e pelos canais flamengos, aprisionam o louco no lugar de passagem, de partida sem chegada; na imersão do louco em lagos tempestuosos, até o limite do afogamento, que provocaria, entre o risco da morte e o renascimento, a vitória da razão sobre a loucura; nas incontáveis horas de banho e na violência das duchas, que, no interior do asilo, iam da purificação à confissão, da terapêutica à punição; nas idas e vindas do louco entre as cercanias dos muros.

Na recomposição destas paisagens, a moral emergiu como parte dos discursos que se tornaram condição de possibilidade da loucura e dos usos da água “para ela” e “contra ela” (Foucault, 2019a, p. 206FOUCAULT, M. “Problematização do sujeito: psicologia, psiquiatria e psicanálise”. Rio de Janeiro: Forense, 2019a. (Ditos e escritos, v. I)). Contudo, a loucura, assim como a água, não se fixa e não se deixa fixar, de modo que sua captura pela moral é sempre tão somente o instante antes de ela escapar-lhe entre os dedos. Mesmo diante da exclusão, da segregação, da dor, da humilhação, da redução ao silêncio, dos castigos… há algo que resta. A vitória da razão sobre a loucura, que tenta se fazer enquanto cura, enquanto subjugação e enquanto subjugação pela cura, é sempre fragmentária e parcial.

Em “L’Eau et la folie”, Foucault mostra que, no espaço moral do asilo, o “escoamento vigoroso” da água tinha, por objetivo último, arrastar “todas [as] quimeras que são tão próximas das mentiras” e conduzir “[à] verdade nua” (Foucault, 2019a, p. 207FOUCAULT, M. “Problematização do sujeito: psicologia, psiquiatria e psicanálise”. Rio de Janeiro: Forense, 2019a. (Ditos e escritos, v. I)). Mas o que se vê, da Narrenschiff aos hospitais gerais e dos hospitais gerais aos asilos, é a tentativa de produzir uma verdade sobre a loucura que, inevitavelmente, reproduziria uma verdade moral que se queria única. Uma forma de afogar, asfixiar, conduzir aos “estados vizinhos da morte” outras formas de verdade. A loucura é precisamente esse momento e esse lugar, é essa promessa de eclosão não da verdade, mas de uma verdade que questione todas as outras. Uma verdade que, em sua experiência outra, em sua moral outra, em sua paixão outra, mostre as fragilidades e as artificialidades das experiências hegemônicas.

  • 1
    O livro, resultado de sua tese de doutorado, foi publicado originalmente sob este título pela editora Plon. Em 1972, por ocasião da republicação da obra pela editora Gallimard, Foucault reduz o título, que passa a ser apenas Histoire de la folie à l’âge classique.
  • 2
    Neste ponto, retomamos a ideia de origem presente no primeiro prefácio de Folie et déraison, buscando uma forma de compreendê-la para além da influência duméziliana.
  • 3
    Louis-Liard (1846-1917) foi filósofo, responsável pela reforma do ensino superior na França.
  • 4
    Doravante, iremos nos referir ao livro utilizando o título encurtado Histoire de la folie, como é o costume no campo foucaultiano.
  • 5
    Ver História da Loucura, capítulo 2, primeira parte: “A grande internação”.
  • 6
    Édito de 1656, art. XI apud FOUCAULT, História da loucura na idade clássica, p. 49.
  • 7
    Édito de 1656, art. XIII apud FOUCAULT, História da loucura na idade clássica, p. 50.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    Ago 2023

Histórico

  • Recebido
    15 Jun 2022
  • Aceito
    06 Fev 2023
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