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KANT, LIBERDADE E A HERMENÊUTICA DO FRACASSO

KANT, FREEDOM AND THE HERMENEUTICS OF FAILURE

RESUMO

Neste artigo, analiso o modo como uma importante tradição interpretativa do kantismo se deixou desencaminhar pelo fato de Kant trabalhar, em sua filosofia prática, com duas acepções distintas e aparentemente conflitantes da liberdade da vontade humana em sentido positivo: como causalidade numênica e como poder de escolha entre possibilidades alternativas. Em primeiro lugar, defendo que nenhuma acepção de liberdade na filosofia kantiana pode ser conflitante com aquela que, afirmada nas mais importantes obras fundacionais do filósofo, a define como o efetivo (e não meramente potencial) exercício da racionalidade moral. Em seguida, procuro mostrar, por argumentos tanto textuais quanto conceituais, a impertinência da adesão predominante a uma versão equivocada da segunda delas: a liberdade de escolha como o poder de escolher a favor ou contra a moralidade. Finalmente, sustento que a única maneira consistente de se entender a liberdade de escolha em consonância com a liberdade como efetivo exercício da moralidade implica uma real dificuldade conceitual no kantismo, que é o problema da imputabilidade das decisões imorais. O fio condutor desta exposição é uma interpretação das passagens mais importantes do artigo de Karl Ameriks de 2002 intitulado “Pure Reason of Itself Alone Suffices to Determine the Will”.

Palavras-chave:
Liberdade; Moralidade; Escolha; Imputabilidade

ABSTRACT

In this paper I attempt to show how an important traditional line of interpretation of Kantian philosophy went astray by the fact that Kant works in its practical philosophy with two distinct and apparently conflicting conceptions of the freedom of human will, namely, freedom as noumenal causality and freedom as the power of choice between alternative possibilities. Firstly, I argue that no conception of freedom in Kant`s philosophy can possibly conflict with that asserted in his most foundational works on practical philosophy, which defines freedom as the actual exercise of moral rationality. I next endeavor to show, by means of both textual and conceptual arguments, the inconsistency of the dominant adoption of a wrong version of the second alternative, namely that of freedom of choice as a supposed free power of choosing for or against morality. Finally, I defend that the only consistent way of conceiving Kant’s freedom of choice in accordance with his freedom as the actual exercise of morality reveals a real conceptual difficulty in Kant`s practical philosophy, namely, the problem of the accountability of immoral decisions. The guiding-thread of this exposition is an interpretation of Karl Ameriks’s article of 2002: “Pure Reason of Itself Alone Suffices to Determine the Will”.

Keywords:
Freedom; Morality; Choice; Imputation

Um dos principais alvos da hermenêutica que se debruça sobre a filosofia prática de Kant é uma certa duplicidade que caracteriza o projeto fundacional da liberdade e da moralidade. Essa duplicidade tem uma expressão material imediata que se faz ver no fato de Kant ter produzido duas obras maiores – a Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785) e a Crítica da Razão Prática (1788)1 1 Como referência para as citações de todas as obras de Kant, exceto a Crítica da Razão Pura, utilizo a Edição da Academia (doravante AA): KANT, I. Gesammelte Schriften. Hrsg.: Bd. 1-22: Preussische Akademie der Wissenschaften, Bd 23: Deutsche Akademie der Wissenschaften zu Berlin, ab Bd. 24: Akademie der Wissenschaften zu Göttingen. Berlin: 1900ff, assumindo a responsabilidade pelas traduções e adotando o modelo de citação recomendado pela AA. Para a Crítica da Razão Pura, utilizo a edição da Felix Meiner: Kritik der Reinen Venunft, Hamburg, 1990, seguindo, na maior parte das vezes, a tradução de Santos e Morujão (Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2008). Como é praxe, indico no corpo do texto apenas a paginação das edições originais de 1781 e 1787, A e B respectivamente. Para a Fundamentação da Metafísica dos Costumes, sigo a tradução de Guido Almeida (São Paulo: Discurso Editorial, 2009) e, para a Crítica da Razão Prática, a de Valério Rohden, na maioria das vezes (São Paulo: Martins Fontes, 2002). — que reservam partes decisivas a um projeto aparentemente único: buscar (aufsuchen), estabelecer (festsetzen),2 2 Cf. GMS AA 04: 392. indicar (angeben) e justificar (rechtfertigen)3 3 Cf. KpV AA 05: 8. o princípio supremo da moralidade.

Um dos problemas mais importantes que os intérpretes desde sempre se esforçam por discernir é se a essa duplicidade material corresponde uma duplicidade de objetivos ou se as duas obras pretendem fornecer uma justificação filosófica do mesmo por caminhos argumentativos diferentes. A segunda opção, predominante na literatura secundária, também predominantemente produziu duas teses interpretativas sobre essa duplicidade.

A primeira foi a de que a estratégia argumentativa implementada na obra de 1788 seria resultado da constatação de um fracasso na de 1785 — que Kant jamais admitiu, diga-se de passagem, mesmo quando declaradamente recusou, ao fim e ao cabo, o projeto de uma “dedução” da moralidade,4 4 Cf. KpV AA 05: 46-7. em princípio central no caminho da Fundamentação. E a segunda foi a tese de que, ao renunciar ao projeto dedutivo, Kant não teria superado o fracasso de 85, na medida em que, com o “argumento” do “facto da razão”, teria passado a oscilar entre uma postulação dogmática do caráter obrigante da moralidade para nós e a simples renúncia a qualquer projeto argumentativo justificacional. Em função dessas duas teses, permitir-me-ei, por motivos óbvios, chamar essa linha predominante de interpretação da duplicidade do projeto fundacional da filosofia prática de Kant de hermenêutica do fracasso.

A hermenêutica do fracasso tende a se reconhecer explicitamente na caracterização simplista e pedagógica das duas teses que propus acima. Mas, para além delas, eu gostaria de identificar um pressuposto normalmente tácito na base das mais virulentas denúncias e cobranças com que essa interpretação confronta o kantismo. Minha hipótese é a de que os adeptos dessa hermenêutica se movem no horizonte de uma certa compreensão do que deve ser o conceito kantiano de liberdade que, no limite, é injustificável, seja por uma dedução transcendental, seja como “facto da razão”, e que, precisamente por isso, não comparece no projeto fundacional da filosofia prática de Kant.

De saída, eu gostaria de reconhecer algum direito a essa linha interpretativa que, nas páginas que seguem, pretendo construtivamente criticar. Esse direito repousa no fato de que é o próprio Kant quem parece seduzir seu leitor com uma (aparente?) equivocidade de importantes consequências para o seu projeto justificacional.

De um lado, é Kant quem nos transmite a convicção, pulverizada ao longo de todas as suas obras de filosofia prática, de que a vontade (razão prática) humana é livre na medida em que, negativamente, não é necessitada, em suas decisões, por impulsos sensíveis ou eventos anteriores segundo a lei de uma causalidade natural; e, positivamente, na medida em que, sendo capaz de iniciar por si uma série de eventos no mundo, sempre poderia ter escolhido uma alternativa relativamente à escolha que fez.5 5 Cf. KpV AA 05: 99-100; KrV A555/B583; MS AA 06: 226 etc. De outro lado, também é Kant quem nos transmite a convicção de que somos livres em nossas decisões na medida em que nossa vontade, não sendo necessitada por impulsos sensíveis, opera sempre em suas deliberações no elemento de uma causalidade racional, que é, para uma vontade sempre entendida como razão prática, a lei causal de sua própria autonomia.6 6 Passagens importantes do texto kantiano apontam muito resolutamente para a assimilação entre liberdade e efetivo exercício da moralidade. Permito-me aqui citar algumas delas, porque a hermenêutica do fracasso que aqui questiono tende a mitigá-las para além do limite do razoável. Cf. as teses kantianas de que “liberdade e lei prática incondicional referem-se reciprocamente (weisen also wechselweise auf einander zurück)” (KpV AA 05: 29); de que “liberdade e legislação própria da vontade [isto é, lei moral] são ambas autonomia e, portanto, Wechselbegriffe” (GMS AA 04: 450); de que “uma vontade livre e uma vontade sob leis morais é uma e mesma coisa” (GMS AA 04: 447); de que “a liberdade [...] tem que ser uma causalidade segundo leis imutáveis, porém de espécie peculiar” (GMS AA 04: 446); a caracterização da “liberdade enquanto uma causalidade da razão pura” (KrV AA 05: 48, meu grifo), que não pode ser outra senão a legalidade moral, e enquanto uma “causalidade que é determinável unicamente pela lei [moral]” (KpV AA 05: 78); a identificação da vontade livre com uma vontade dependente da lei moral: “...dass man das praktische Freiheit auch durch Unabhängigkeit des Willens von jedem anderen ausser allein dem moralischen Gesetze definieren könnte” (KpV AA 05: 94); a identificação do justifica a moralidade de uma ação como o mesmo que justifica sua liberdade: “independência de toda matéria de lei” e “determinação do arbítrio pela simples forma legislativa universal” (KpV AA 05: 33) (“In der Unabhängigkeit nämlich von aller Materie des Gesetzes [...] und zugleich doch Bestimmung der Willkür durch die blosse allgemeine gesetzgebende Form, deren eine Maxime fähig sein muss, besteht das alleinige Prinzip der Sittlichkeit. Jene Unabhängigkeit aber ist Freiheit im negativen, diese eigene Gesetzgebung aber der reinen, und, als solche, praktischen Vernunft ist Freiheit im positiven Verstande“ (meu negrito). Cf. ademais GMS AA 04: 453, 457; KpV AA 05: 47 etc. Em seu artigo originalmente publicado na revista Mind que virou uma das referências sobre o assunto, Henry Sidgwick, não sem algum constrangimento, radicaliza essa duplicidade, identificando no texto kantiano o pecado de uma categórica equivocidade.7 7 É com base nessa equivocidade que Eric Weil, a propósito da filosofia prática de Kant, se permitiu produzir um comentário que parece tornar filosoficamente elevado o que antes de mais nada precisa ser filosoficamente explicado: “o ser humano não escuta [por vezes] a voz da razão e a voz da liberdade precisamente porque ele é livre” (Weil, 1990, p. 13). “Ser livre para recusar ser livre” é uma fórmula que tira seu único sentido possível da ambiguidade entre liberdade como causalidade racional e liberdade como voluntarismo eletivo racionalmente neutro, como veremos no que segue. Segundo ele, “Kant, em diferentes partes da exposição da sua doutrina, expressa com a mesma palavra ‘liberdade’, duas concepções essencialmente diferentes, ainda que ele não pareça estar consciente de nenhuma variação de sentido do termo”8 8 Sidgwick define cada uma das duas liberdades kantianas nos seguintes termos: de um lado, “a liberdade que nós realizamos ou manifestamos na medida em que fazemos o certo”, que ele batiza de “liberdade racional”; de outro, “a liberdade que é realizada ou manifestada igualmente quando escolhemos ou bem o certo, ou bem o errado”, que ele propõe chamar de “liberdade neutra”, ou “liberdade moral” (essa última expressão, que considero pouco oportuna, só podendo significar “liberdade em relação à moralidade”) (Sidgwick, 1962, pp. 511-16). Timmermann observa que, ao adotar a “liberdade neutra”, Sidgwick “grabs the wrong horn of the dilema” (Timmermann, 2007, p. 164). Sidgwick justifica sua escolha afirmando que adoção da “liberdade racional” envolveria uma “excisão mais séria” na filosofia prática de Kant (provavelmente a imediata excisão da imputabilidade do mal moral, sob a evidência de que a razão não escolhe a desrazão, como veremos adiante no artigo). Mas o “erro” de Sidgwick, a meu ver, é anterior à sua escolha por um dos polos do dilema (o da “liberdade neutra”, que, ao fim e ao cabo, tampouco garante a livre escolha pelo mal). Ele nasce na própria concepção de uma liberdade de escolha como escolha a favor ou contra o moralmente certo. Veremos no decorrer deste trabalho por que essa formulação não pode corresponder a nenhum conceito propriamente kantiano de liberdade, embora o texto kantiano pareça frequentemente flertar com ele. (Sidgwick, 1962, p. 511SCHÖNECKER, D. “Kant`s Moral Intuitionism: The Fact of Reason and Moral Predispositions”. Kant Studies Onlinhe, 2013., meu grifo).

“Conscientemente” justapostas ou não, essas duas caracterizações kantianas da liberdade em sentido positivo podem não produzir uma real equivocidade. Mas, para isso, é preciso que o leitor, com pouquíssima ajuda de Kant, construa interpretativamente o sentido da compatibilidade entre uma escolha governada pela lei da autonomia racional e uma escolha sujeita ao princípio das possibilidades alternativas.9 9 Assumo nesta última formulação todo o risco do anacronismo porque, a meu ver, ele é preferível a caracterizar e entender de antemão, nos termos de Sidgwick e Reinhold, uma eventual “liberdade de escolha” no kantismo como escolha a favor ou contra “a razão” ou “a moralidade”, definição que Kant repudiou explicitamente, como também aparecerá adiante neste ensaio.

Minha hipótese, então, agora mais delimitada, é a de que a hermenêutica do fracasso se dedicou muito pouco a essa tarefa. E o resultado foi que, trabalhando a cada vez com acepções de liberdade positiva não compatibilizadas, exigiu do projeto fundacional de Kant a impossível prova da realidade objetiva de uma liberdade que garantiria à vontade humana o poder de deixar de ser a razão prática que ela mesma é. Noutros termos: entendeu a prova kantiana da liberdade como causalidade numênica e inteligível — na linha da Fundamentação III — como uma prova suficiente apenas para uma vontade santa; mas como uma prova insuficiente para a “nossa” vontade, uma vontade dita “imperfeita”, “imperfeitamente racional” ou “finita”, cuja liberdade, em função dessa imperfeição, seria, antes, uma liberdade para alternativas não limitadas pela racionalidade prática.

O que eu pretendo neste artigo é explicitar esse descuido hermenêutico tornando o mais claro possível que, dadas as escolhas fundacionais e argumentativas da filosofia prática de Kant, não faz sentido exigir para a vontade humana finita uma prova da sua liberdade que seja diferente da prova da liberdade da razão em sua operação prática de determinação representacional de fins, e que não há “facto da razão” que seja capaz de fornecer qualquer base justificacional a uma liberdade para ilimitadas escolhas alternativas.

Minha estratégia para isso será apresentar e comentar o que considero o essencial no importante artigo de Karl Ameriks de 2002AMERIKS, K. “Pure reason of itself alone suffices to determine the will”. In: HÖFFE, Otfried (Hrgb). Kritik der Praktischen Vernunft. Akademieverlag, Berlin, pp. 99-114, 2002., que traz como título uma das mais debatidas frases da Crítica da Razão Prática, presente na Introdução da obra na forma de uma condicional: se “A razão pura por si mesma é suficiente para determinar a vontade” (Ameriks, 2002, p. 99AMERIKS, K. “Pure reason of itself alone suffices to determine the will”. In: HÖFFE, Otfried (Hrgb). Kritik der Praktischen Vernunft. Akademieverlag, Berlin, pp. 99-114, 2002.). O motivo dessa escolha é que, nesse artigo, Ameriks defende posições e se move sob o comando de pressupostos que, a meu ver, representam de modo privilegiado o tipo de problematização que o que chamei de hermenêutica do fracasso impõe ao projeto fundacional da filosofia prática de Kant.

Mas meu interesse aqui não é apenas o de denunciar o que considero um descaminho hermenêutico na lida com o conceito kantiano de liberdade. Ao final do artigo, pretendo mostrar que, apesar de ser um erro interpretativo exigir de Kant uma prova da liberdade da vontade como poder de escolha entre o bem e o mal moral, o necessário abandono dessa reivindicação mantém viva uma real dificuldade no sistema da filosofia prática de Kant, que é o problema da (in)imputabilidade do mal moral.

Como a maioria dos intérpretes da filosofia prática de Kant, Ameriks entende que Kant precisa operar nas obras fundacionais sobre a moralidade com dois conceitos de liberdade. Na sua terminologia própria, existiria no kantismo uma dupla “autodeterminação”, uma dupla “autonomia” da razão, ou ainda uma duplicidade de “aspectos” no conceito kantiano de autonomia.10 10 A referência para todas as citações do trabalho de Ameriks nos próximos cinco parágrafos é Ameriks, 2002, pp. 102-104. Por praticidade e economia textual, no corpo do texto aparecerá apenas a paginação. Dado que a autonomia é textualmente apresentada como a definição kantiana de liberdade em sentido positivo,11 11 Cf. GMS AA 04: 446-7, KpV AA 05: 33. então existiriam em Kant, segundo Ameriks, duas liberdades.

O comentador justifica essa duplicidade sugerindo que Kant adota a concepção de que, “como seres puramente práticos e autodeterminantes, temos que ser capazes de fazer as coisas certas e, antes, saber que coisas são essas” (p. 104). Supostamente, portanto, uma das liberdades é tal que diz respeito ao “saber quais são as coisas certas” a se fazer, enquanto a outra liberdade diz respeito ao “ser capaz de fazer” essas coisas certas que, em virtude da primeira liberdade, já sabemos quais são. Ameriks, então, especifica conceitualmente cada uma dessas liberdades, ou aspectos da autonomia kantiana.

A primeira seria uma autodeterminação da razão prática que ele chama de “formal”. Sobre ela, afirma que se trata de um “saber qual é a coisa certa a fazer de acordo com a razão” (p. 103, grifo do autor); que seria um saber que compromete o sujeito agente com uma racionalidade em algum sentido psicológica ou avaliativa;12 12 “O agente individual opera racionalmente em algum sentido psicológico ou avaliativo” (p. 103). que essa autonomia diz respeito a uma “determinação do conteúdo da moralidade por considerações puramente racionais” (p. 102) e, finalmente, que essa primeira autonomia é uma “mera reflexão conceitual [que] pode revelar a autonomia do conteúdo da moralidade, mas [...] não pode revelar por si mesma que essa autonomia de fato não passa de uma quimera em nossas vidas” (p. 104).

Ademais, ainda no interior do espaço conceitual dessa autonomia dita “formal”, Ameriks identifica dois movimentos distintos e cooperativos de autodeterminação. O primeiro seria aquele em que a razão prática determina para si mesma o conteúdo de um comportamento propriamente racional,13 13 “O conteúdo puro que é reconhecido (cognized) pela nossa razão prática” (loc. cit). portanto, o conteúdo da moralidade; e o segundo seria o ato pelo qual essa mesma razão prática reconhece (cognizes) como válido aquele conteúdo racional e moral,14 14 “O puro ato de cognição que realizamos ao reconhecer (cognize) esse conteúdo” (loc. cit). que é um movimento propriamente epistêmico de “discernir” que nós devemos fazer aquilo que a nossa razão prática pura determina como sendo aquilo que nós devemos fazer.

Fato é que, por complexa e bipartida que seja a chamada “autonomia formal”, nada nela garantiria, segundo Ameriks, que “de fato” somos autônomos “em nossas vidas” (p. 104). De modo que é provavelmente para dar conta dessa outra liberdade, essa nossa liberdade “em nossas vidas”, que Ameriks identifica em Kant uma segunda autodeterminação, que ele chama de “eficiente”.

A autodeterminação eficiente é então caracterizada como “muito mais concreta” (p. 103) do que a formal; é aquele tipo de autonomia em que a vontade, apenas aqui entendida como um “poder livre” (p. 104), “verdadeiramente se autodetermina” (p. 103), porquanto é, aqui, uma “causa absolutamente livre” (p. 103); finalmente, é dita uma autodeterminação que, somente ela, exige do indivíduo agente que ele seja “literalmente uma causa não causada” (p. 103). E Ameriks conclui afirmando que essa autonomia só pode ser bem compreendida sob a ideia da exigência de uma “liberdade absoluta de escolha” (p. 104), o que aparentemente não se aplica à autonomia formal.

Essas distinções vão se mostrando então como o background da adesão de Ameriks à hermenêutica do fracasso: à leitura amplamente difundida de que a Fundamentação fracassa no estabelecimento da liberdade e da moralidade; de que Kant implicitamente admite esse fracasso quando parte para o argumento do “facto da razão” na Crítica da Razão Prática e, finalmente, que esse fracasso se deve à constatação de que é possível “saber” ou ter consciência de qual é a lei suprema da racionalidade prática — bem como de “saber” que nós temos o dever de agir por ela — (autonomia formal) e, apesar desses dois modos de consciência, ainda nos faltar uma motivação para agir segundo sua orientação (autonomia eficiente).15 15 Schönecker é particularmente afinado com Ameriks nesse ponto, ao defender que “o imperativo categórico tem um conteúdo (mais ou menos formal), qual seja, a ideia de universalização; esse conteúdo que nós apreendemos não por sentimento, mas pela razão. Entretanto, o imperativo categórico é também um comando. Que ele realmente seja um comando de que nós devemos agir apenas segundo máximas que podemos pensar e querer como leis gerais, eis o elemento do imperativo categórico que só podemos conhecer (cognize) pelo sentimento de respeito” (Schönecker, 2013, p. 4). Tudo indica que a autonomia formal de Ameriks é o “conteúdo racionalmente apreensível” de Schönecker, e que a autonomia eficiente de Ameriks, produto e objeto indedutível de um “facto”, corresponde ao comando moral de Schönecker, apreensível apenas pelo sentimento. A diferença relevante entre ambos está na profunda confiança de Schönecker no poder justificacional do argumento do facto da razão. Para ele, que a nossa vontade, ainda que apenas imperfeitamente racional, deva agir moralmente, fica suficientemente justificado pelo argumento de que nós facticamente sentimos sua subordinação à lei moral na sua forma imperativa. Schönecker, no entanto, não explica a necessidade apriorística de um sentimento para o qual se pretende todo esse poder justificacional. O desafio é antigo e conhecido: se, de um lado, como parece defender Kant, o respeito é um efeito prático da consciência racional da lei moral, em última instância, ao apreendermos o comando moral, o que justifica nossa subordinação é a razão, e não o sentimento. De outro, se o respeito é um fundamento justificacional apartado da razão — pela qual apenas conheceríamos o conteúdo abstrato da moralidade — então a subordinação real da vontade de cada sujeito agente à moralidade parece depender da contingência de um sentimento pessoal. E é possível esse descompasso entre o saber o que se deve fazer e o querer fazer o que se sabe que se deve fazer porque a vontade humana teria essa peculiaridade de ser afetada (affiziert) por impulsos sensíveis (sinnliche Antriebe),16 16 CRP, A534/B562. diferentemente do que ocorre com uma vontade puramente racional ou santa. A imperfeição da vontade humana — para Ameriks, “nosso lugar no mundo sensível” — seria, assim, o passaporte do deslocamento do texto kantiano de uma dedução da liberdade na Fundamentação III para o argumento de que nossa liberdade (“eficiente”) deveria ser estabelecida pelo “facto” de que nós, ainda que finitos e sobretudo porque finitos, devemos agir moralmente; e apenas devemos (isto é, não necessariamente o fazemos) agir moralmente, para Ameriks, na medida em que somos livres para escolher abraçar ou recusar o que esse dever comanda, isto é, na medida em que somos livres para escolher entre agir moralmente e agir imoralmente; numa frase, na medida em que somos “eficientemente autônomos”.

Tendo especificado conceitualmente nesses termos os dois movimentos de autodeterminação da vontade de que a filosofia prática de Kant precisa dar conta, Ameriks defende explicitamente duas teses.

A primeira é a de que o argumento do facto da razão na Crítica da Razão Prática, bem-sucedido ou não, é apresentado por Kant como uma tentativa de estabelecer a autonomia eficiente, visto que a autonomia formal já havia sido bem fundada antes do chamado “Faktum Text”, notadamente, na Fundamentação III.

A segunda tese de Ameriks é mais interessante e mais grave. Trata-se da tese de que se Kant fosse o que ele, Ameriks, e filósofos contemporâneos chamam de “compatibilista”, o Faktum Text, entendido como estabelecimento da autonomia eficiente, seria desnecessário. Eu gostaria de chamar uma atenção especial para esse ponto. Para o comentador, isso é o mesmo que dizer o seguinte: que é apenas a suposta insistência de Kant na ideia de uma autonomia eficiente que faria dele um anticompatibilista, portanto um libertarianista, que exigiria, para o devido estabelecimento de seu conceito de liberdade da vontade, mais do que uma consciência “meramente racional” da nossa subordinação à moralidade. Ora, como para Ameriks o que existe no projeto fundacional da liberdade na filosofia prática de Kant antes do chamado Faktum Text é essencialmente a “dedução do conceito de liberdade” na Fundamentação III, ao defender que a Fundamentação III fornece uma dedução “compatibilista” da liberdade, o que Ameriks está defendendo é que o argumento da Fundamentação III — a saber, o de que nossa consciência numênica de nós mesmos como sujeitos agentes nos inscreve no “mundo inteligível”17 17 Nos termos de Ameriks, “um argumento pela liberdade [...] a partir da mera consideração da ‘inteligência’” (Ameriks, 2002, pp. 104-105). — dá conta apenas da chamada autonomia formal (e não de nossa “autonomia eficiente”), e assim sendo, não dá conta ao fim e ao cabo da nossa “verdadeira autodeterminação” como “causas absolutamente livres”. Mas o que significa dizer que ao nos tomarmos numenicamente como agentes racionais não estamos nos tomando como “verdadeiramente” e “absolutamente” livres? Em termos kantianos, isso significa dizer, temerariamente, que a consciência numênica que nós temos de nós mesmos como sujeitos agentes racionais nos revela a nós mesmos como dotados de uma liberdade que não precisa ser transcendental, portanto, uma liberdade que pode ser ao mesmo tempo determinismo em sentido kantiano. Segundo essa leitura, portanto, a terceira seção da Fundamentação admitiria que a liberdade que caracteriza a operação racional-judicativa da nossa vontade na determinação de fins como preferíveis pode ser uma causalidade mecânica; portanto, que a razão prática, que é a definição mesma de nossa vontade, pode ser governada causalmente nas suas operações pelo determinismo da natureza. É isso precisamente o que significa ser o texto da Fundamentação III um argumento compatibilista pela liberdade, posição defendida por Ameriks.18 18 É importante aqui evitar um possível mal-entendido acerca do lugar do kantismo no que veio a ser designado contemporaneamente como a “controvérsia do compatibilismo”, ainda que o anacronismo da discussão seja fonte inesgotável de ambiguidades, e que este ensaio se permita passar ao largo da questão. A posição de Ameriks é a de que Kant seria um libertarianista incompatibilista, mas somente graças ao suposto projeto de enfrentamento da autonomia eficiente com a doutrina do facto da razão. Não há dúvidas de que o sistema filosófico do idealismo transcendental kantiano fornece espaço conceitual tanto para a liberdade (em sentido transcendental), quanto para o determinismo da natureza, e que por isso não é ilegítimo ver aqui a expressão de um certo “compatibilismo” kantiano entre liberdade e determinismo. Mas essa convivência só é possível sobre a base de uma clara distinção de “modos de consideração” (Vorstellungsarten) (KrV, BXVIII) ou “pontos de vista” (Gesichtspünkte) (KrV, BXIXn) segundo os quais o arbítrio vier a ser considerado; ou bem fenomenicamente, ou bem numenicamente. O que aqui importa particularmente é que, adotado um desses pontos de vista, o alternativo se acha peremptoriamente excluído da consideração. Nos termos do Prefácio B da Crítica da Razão Pura, na medida em que a vontade humana ou a “alma” está sendo considerada fenomenicamente, ela está sendo posta sob a regulação da causalidade natural que não comporta (isto é, não é “compatível” com) a espontaneidade de uma causa livre. Inversamente — e foi o que pretendi enfatizar acima — a consciência numênica que nós temos de nós mesmos como sujeitos agentes racionais (isto é, o ponto de vista numênico de consideração da nossa vontade) nos revela a nós mesmos como dotados de liberdade transcendental, que, como tal, não admite (isto é, não é “compatível” com) a co-incidência daregulação por causalidade mecânica. É nesse ponto que divirjo da posição de Ameriks segundo a qual essa mesma consciência numênica que nós temos de nós mesmos como sujeitos agentes racionais, elemento essencial na dedução da liberdade na Fundamentação, pode nos revelar a nós mesmos como dotados de uma liberdade que não precisa ser transcendental. Não se trata, portanto, de ignorar que no kantismo há tanto liberdade transcendental quanto determinismo natural. Trata-se de defender que, na medida em que estamos nos considerando do “ponto de vista” numênico como sujeitos agentes dotados de racionalidade, não podemos estar nos considerando ao mesmo tempo do ponto de vista fenomênico como dotados de um arbítrio governado pelo mecanismo da natureza; e é apenas nesse sentido que defendo, contra Ameriks, que para Kant a liberdade transcendental é “incompatível” com o determinismo em nosso processo deliberativo. Numa frase, trata-se de uma incompatibilidade entre liberdade transcendental e determinismo no interior do ponto de vista numênico de consideração de nós mesmos como sujeitos agentes, que é aquele a partir do qual gira toda a reflexão fundacional da liberdade na Fundamentação III. Tudo isso torna evidentemente problemática a inscrição de Kant naquela controvérsia anacrônica, e particularmente interessante o diagnóstico de Allen Wood sobre o tema: “When we consider all Kant’s views together, it is tempting to say that Kant wants to show not only the compatibility of freedom and determinism, but also the compatibility of compatibilism and incompatibilism” (Wood, 1984, p. 74).

O que essa leitura, a meu ver claramente desencaminhada, parece revelar é que Ameriks, ao contrário de Kant, não concebe a liberdade que caracteriza os atos racionais de determinação de fins como uma liberdade transcendental. Com isso, ele se alinha a leituras que remontam à objeção originária de Ulrich a Kant, segundo a qual a liberdade, tal como Kant a caracteriza como uma “causalidade segundo leis inteligíveis”, se reduz a um “fatalismo inteligível”, portanto a um tipo de determinismo que precisaria ser recusado como antikantiano.19 19 Cf. Ulrich, 1788, pp. 24-25, 33-34. Paul Guyer sumariza o argumento da Eleuteriologia afirmando que, para Ulrich, “o esforço de Kant por salvar a liberdade da vontade do determinismo absoluto do mundo físico através da sua distinção entre o fenomênico e o numênico, ou entre o sensível e o inteligível, foi um fracasso, porque ainda que o ‘caráter inteligível’ ‘não esteja sujeito à lei de toda determinação temporal, de que tudo o que é alterável, isto é, tudo o que acontece no fenômeno [...] tem a sua causa’, segundo o próprio Kant o caráter inteligível de um agente é ‘original e inalterável’, de modo que um agente não escolhe agir de acordo com a lei moral mais livremente do que ele escolhe violar essa lei, e portanto Kant não deixa qualquer espaço para imputação de responsabilidade tanto no mundo fenomênico quanto no numênico” (Guyer, 2017, p. 122).

Ora, parece claro que, para Kant, o fato de a nossa vontade, que ele inúmeras vezes define como razão prática,20 20 Cf. por exemplo GMS AA 04: 412: “Toda coisa na natureza atua segundo leis. Só um ser racional tem a faculdade de agir segundo a representação de leis, isto é, segundo princípios, ou uma vontade (Wille). Visto que se exige a razão para se derivar de leis as ações, a vontade nada mais é do que razão prática” (meu grifo). proceder sempre racionalmente, não torna essa vontade uma instância governada pelo “determinismo da racionalidade”, precisamente o que Ulrich quis dizer com a expressão “fatalismo inteligível” e que Ameriks assimila à sua autonomia meramente formal. Para o Kant das obras fundacionais da moralidade, a vontade humana é, com efeito, inteiramente “determinada”; mas pelas suas próprias leis práticas, que fundam uma legalidade que é, no kantismo, o antípoda do determinismo — entendido kantianamente, a saber, sempre como o outro da liberdade. Recusar isso equivale a acusar a dedução da liberdade e da moralidade na Fundamentação III — que consiste numa prova de que o sujeito racional, ao se tomar como agente, se inscreve numenicamente no domínio inteligível da necessária racionalidade prática — de uma prova da escravidão desse sujeito, e não de sua liberdade. Se para Kant é tão importante conquistar em 1785 o conceito de “autonomia” como caracterização positiva da liberdade da nossa razão prática, é precisamente para estabelecer que a legalidade que determina de modo necessário o comportamento decisório da razão prática é uma legalidade proveniente da razão prática ela mesma e a ela mesma dirigida, e não a legalidade necessária do “determinismo” (para Kant, sempre da natureza), sob o qual todo evento é causalmente determinado, (evidentemente também de modo necessário) mas por algo que lhe é estranho e externo.

Alinhando-se, ao menos nesse ponto, aos pressupostos de Ulrich e Ameriks, Timmermann formula o seguinte desafio para Kant: “se aceitamos a tese kantiana de que as leis morais são leis da razão prática, por que elas também são tidas como leis da liberdade?” (Timmermann, 2007, p. 164SIDGWICK, H. “The Methods of Ethics”. Palgrave Macmillan, 1962.) Afinal, poder-se-ia completar, deveria ser evidente que a liberdade não tem leis, que ela não é uma forma de causalidade legal, porque uma “liberdade legal” seria uma contraditio in adjecto e todo agente livre é, justamente, livre de regras, quaisquer que elas sejam...

Poderíamos multiplicar aqui os testemunhos de comentários inconformados com a assimilação kantiana entre liberdade e causalidade racional, como se o coração do argumento da Fundamentação III pudesse ser algo diferente de uma dedução — isto é, uma prova da “validade objetiva prática” ou da “possibilidade real”21 21 Portanto, para além da prova da possibilidade lógica da liberdade operada na solução da Terceira Antinomia da primeira Crítica. — da liberdade como liberdade das operações judicativas e representacionais da razão prática;22 22 É importante aqui ter clara a distinção entre uma prova da “possibilidade lógica da liberdade” e uma dedução da “liberdade das operações judicativas da razão prática”. O projeto kantiano de uma dedução da liberdade da vontade humana equivale ao projeto de uma prova da validade objetiva prática dessa liberdade (que Kant também chama de uma prova da “possibilidade real” da liberdade, que vai além da prova de sua “possibilidade lógica”), e não é desenvolvido na Crítica da Razão Pura, mas sim somente a partir da Fundamentação. O que se chama uma prova da possibilidade lógica da liberdade na Crítica da Razão Pura é apenas uma prova de que é possível pensar sem contradição uma vontade livre atuando no mundo fenomênico, e não uma dedução da liberdade, como a que Kant pretende ter fornecido na Fundamentação III, como uma prova da liberdade das operações judicativas e representacionais da nossa razão prática, isto é, da nossa vontade humana. nos termos da Fundamentação, de uma “dedução do conceito de liberdade a partir da razão prática pura” (GMS AA 04: 447, meu grifo). Tratar-se-ia, como quer por exemplo Thomas Hill, apenas de uma “aparente identidade entre vontade livre e vontade moral na Fundamentação” (Hill, 2008, p. 211), ou de um “problema aparente que só pode repousar sobre um sério mal-entendido”, porque, afinal, isso leva a um “resultado intuitivamente absurdo” (p. 225). De modo que se a Fundamentação comete esse erro, ela ou bem contém uma dedução fracassada, ou bem precisa ser complementada por um outro argumento que, esse sim, justifique a “nossa” liberdade “em nossas vidas”.

E a partir de então inicia-se uma busca obstinada no texto kantiano por uma prova da liberdade da vontade como um poder, inclusive, de recusar exatamente aquilo que é, no agente, a única garantia de sua liberdade, a saber, a racionalidade e sua lei prática, a lei moral. Para muitos, além de Ameriks, o “facto da razão” aparece como o (também fracassado, assim como a dedução da Fundamentação) recurso de um Kant desesperado, que não saberia como provar o que é em última instância o mais ou o único digno de prova — sob pena de o sistema de sua filosofia prática, esgotado na Fundamentação III, parar na dedução da lei prática de uma vontade santa que, escrava da racionalidade, nada escolhe “por si mesma”.

Kant parece resistir à acusação de “determinismo da racionalidade”, ou de um “fatalismo inteligível” em todos os momentos importantes, porque fundacionais, de seu projeto no domínio da filosofia prática. Mas vou me permitir citar aqui, por economia, concisão e eloquência, uma reflexão provavelmente pré-crítica e uma nota de Collins.

A Reflexão 3856, datada aproximadamente de 1769, afirma que

no caso da liberdade, ser determinado não significa ser passivo, nem pelo modo como objetos afetam, nem por uma causa produtora superior. Posso dizer: neste momento sou livre (libera ut devinctus) (não constrangido) para fazer o que eu prefiro; e no entanto, é inevitavelmente necessário que eu aja desse modo. É uma lei da auto-atividade o que torna impossível o oposto (R3856, AA 17: 314).

Na mesma direção, Kant parecia afirmar em seus cursos que “ações podem ser [racionalmente] necessárias sem conflitar com a liberdade” (V-Mo/Collins, AA 27: 267).

Recusando qualquer racionalidade nessa posição kantiana, Ulrich, Ameriks, Timmermann, Hill e tantos outros, a pretexto de querer livrar a vontade (razão prática) do “determinismo”... de sua própria natureza racional (!), acabam produzindo uma reconstrução do kantismo que precisa transformar a vontade humana em outra coisa que não razão prática. Na origem, sempre esteve o anátema de Reinhold: a “confusão entre nada mais do que a livre ação da razão prática [...] e a ação da vontade...” (Reinhold, 1792, p. 268KANT, I. “Gesammelte Schriften”. Hrsg.: Bd. 1-22: Preussische Akademie derWissenschaften, Bd 23: Deutsche Akademie der Wissenschaften zu Berlin, ab Bd. 24: Akademie der Wissenschaften zu Göttingen. Berlin: 1900ff.).23 23 Tentando salvar a filosofia prática de Kant do que ele chamara em 2009 de um problema irresolvido pelo kantismo, Paul Guyer decide em 2017 sacrificar “o inteiro argumento da primeira parte da Fundamentação III” (Guyer, 2017, p. 133) (a saber, GMS AA 04: de 451 a 453), que corresponde a nada menos do que à “dedução do conceito de liberdade”, chamando-o de um “argumento anômalo” (loc. cit.) e, na mesma página da “confusão” de Reinhold, sentencia: “razão prática e vontade não são idênticas em seres humanos” (Guyer, 2017, p. 127). Não é de surpreender que, para sustentar essa negativa, o comentador tenha precisado jogar fora a inteira dedução da Fundamentação, já que Kant a designa como uma “dedução do conceito da liberdade [humana, evidentemente, e não da liberdade dos santos ou de Deus] a partir da razão prática pura” (GMS AA 04: 447, meu grifo).

Na mesma toada, Ameriks, com a sua ideia de uma autonomia eficiente distinta da autonomia formal, exige de Kant a contradição de provar uma liberdade que seja ao mesmo tempo uma liberdade pertencente à vontade e uma liberdade em relação à vontade (razão prática). Ao fim e ao cabo, o que Ameriks chama de liberdade transcendental, de “verdadeira” liberdade, de liberdade “concreta”, de “causa absolutamente livre” e, finalmente, de “absoluta liberdade de escolha” não é outra coisa senão um poder de escolher que não opera racionalmente, sob o risco de transigir com o compatibilismo e ser “deterministicamente” condicionado... pela própria razão. O que Ameriks chama de absoluta liberdade de escolha só pode ser um poder de escolha racionalmente neutro, vale dizer, pré-racional, que apenas como tal poderia escolher, com mérito, a favor da lei racional da moralidade, mas também, com demérito, contra ela.

Sabe-se bem que Kant recusa categoricamente essa suposta liberdade na Metafísica dos Costumes como sendo uma “liberdade de indiferença”, e sentencia de modo aparentemente muito convicto que, justamente, “a liberdade não pode ser definida como um poder de escolher a favor ou contra a moralidade, como muitos tentaram fazer”24 24 “Die Freiheit der Willkür aber kann nicht durch das Vermögen der Wahl, für oder wider das Gesetz zu handeln, (libertas indifferentiae) definirt werden — wie es wohl einige versucht haben...“ (MS AA 06: 226-7). (meu grifo) — “muitos”, leia-se: Reinhold, Ulrich e, avant la lettre, Ameriks.25 25 Thomas Hill, que comumente cita a Metafísica dos Costumes para sustentar suas interpretações — notadamente as passagens sobre distinção entre vontade (Wille) e arbítrio (Willkür) —, insiste em trabalhar com um conceito de liberdade que Kant tão categoricamente recusa nessa mesma obra. Para Hill, a única maneira de desfazer o mal-entendido das obras fundacionais de Kant sobre liberdade e moralidade é assumir que “nós temos a liberdade da vontade (the freedom of the will) para escolher satisfazer o desejo ou seguir a razão” (Hill, 2008, p. 225); que “agentes morais têm inclinações naturais, razão e o poder de escolher qual dos dois seguir quando inclinação e razão entram em conflito”; que, de novo, “nós também temos o poder (free will) de escolher a inclinação ou a razão quando elas conflitam. Pelo menos isso é o que devemos pressupor do ponto de vista prático de um agente deliberando sobre o que fazer” (p. 216); e finalmente que “nós adotamos nossas máximas como seres humanos sujeitos à influência tanto de nossas inclinações sensíveis, quanto de nossa razão prática (Wille) moralmente legisladora. Todas as nossas máximas, no entanto, são presumivelmente resultado do exercício do nosso power of free choice” (p. 220, meus grifos em todas as citações de Hill, 2008). Observe-se que Hill manifesta essas convicções no contexto de sua interpretação sobre o problema da fraqueza da vontade na filosofia kantiana. Seu ônus, portanto, é duplo. Primeiro, explicar como é possível decidir livremente — isto é, segundo padrões de justificação racional — pela irracionalidade da via imoral. E segundo, explicar como é possível que essa escolha seja resultado de uma fraqueza da vontade. Hill acredita resolver o primeiro problema considerando a assimilação entre liberdade da vontade e exercício necessariamente moral da causalidade racional como um simples mal-entendido (enquanto a maioria dos intérpretes um pouco mais cuidadosos tentam compatibilizar de algum modo as duas exigências kantianas: de racionalidade eletiva e escolha por possibilidades alternativas), apostando em que, por si só, a distinção da Metafísica dos Costumes entre vontade (Wille) e arbítrio (Willkür) dispensa ulteriores esclarecimentos sobre como o arbítrio “desracionalizado” escolhe de modo responsável e imputável qualquer caminho. Quanto ao segundo problema, Hill explica a fraqueza ora como um querer o “certo de algum modo vago e relativamente inexplícito em relação às suas implicações”, ora como um querer o certo “fracamente”, isto é, “de modo oscilante” (wavering), apenas “semi-resoluto” (half-hearted) ou “sem querer os meios necessários e disponíveis” (Hill, 2008, p. 228). Sobre a primeira alternativa, vagueza e falta de clareza são fenômenos perfeitamente alinhados com uma tradição de explicação do erro moral como ignorância, agnoia, que remonta ao chamado “intelectualismo moral” do platonismo (certamente do Protágoras, do Laques, do Cármides e do Menon, mas não do Livro 4 da República), e que se não elimina, pelo menos mitiga significativamente a imputabilidade da escolha pelo mal, o que, a meu ver, vale perfeitamente para Kant. Numa frase, é absolutamente antikantiana a tese de que a imoralidade de uma decisão ou de todo um caráter seja resultado do desconhecimento (ou um conhecimento vago e obscuro) do que é o moralmente certo. Seja porque o moralmente certo é, segundo Kant, imediatamente acessível ao menos cultivado dos intelectos, seja porque erro por ignorância não é falta moral. Sobre a segunda alternativa, “querer fracamente” não é a explicação, mas justamente o que precisa ser explicado. Se é a sensibilidade que “afeta” o arbítrio humano que explica “querer fracamente” o fim moral (e, por conseguinte, a recusa de meios penosos à felicidade própria), então o erro daí decorrente é inimputável. Se não é, então um arbítrio racional capaz de resistir aos apelos do sensível simplesmente não escolhe a irracionalidade do mal moral. Assim, quer me parecer que as tentativas de Hill passam longe de uma explicação consistente, no quadro do kantismo, da escolha pelo mal não apenas por fraqueza moral, mas por qualquer razão que seja.

O fato é que, a rigor, nem precisaríamos esperar pelas afirmações expressas de Kant, proferidas apenas em 1797, cristalinamente contrárias à “intuitiva” liberdade de indiferença de Thomas Hill. Antes de ser textual, o problema é conceitual, e se encaminha conceitualmente. Kant jamais poderia entender a liberdade transcendental como uma liberdade diferente daquela independência causal que é própria das operações judicativas da razão prática. Não que esse entendimento seja isento de graves consequências, como veremos adiante. Mas o argumento a favor dele é que se não é a razão prática que é “verdadeiramente”, transcendentalmente e “absolutamente” livre, se a liberdade é o poder de escolha de uma vontade racionalmente neutra, então as escolhas produzidas por essa vontade, não sendo produzidas pela razão, evidentemente não seriam racionalmente justificáveis, o que significa que elas seriam produto ou do acaso, ou da natureza. Mas fica claro que, nesse caso, elas não seriam “escolhas” em sentido algum, isto é, decisões imputáveis a um sujeito agente que opera por razões.

É fato que existem no texto kantiano formulações que apresentam a liberdade em termos próximos do que os contemporâneos designaram como o princípio das possibilidades alternativas. Kant sempre reiterou a tese de que nossa vontade humana e finita é livre na medida em que sempre poderíamos ter decidido alternativamente.26 26 Cf. CRP A554-6/B582-4; KpV AA 05: 98, 100; MS AA 06: 226 etc. E não há dúvida de que isso precisa ser entendido como uma expressão do libertarianismo e do antideterminismo contumaz de Kant. A pergunta que se impõe aqui ao intérprete é se esse libertarianismo de Kant, como querem Ameriks e a maioria dos intérpretes, precisa colidir com a concepção ainda mais irrecusavelmente kantiana da mesma liberdade como uma causalidade segundo as leis da racionalidade prática. Ameriks entende que a liberdade de um proceder, na determinação de fins, sempre e necessariamente segundo a regra da racionalidade prática contradiz a liberdade como poder de escolha — ou talvez, como um “poder decidir alternativamente” — pelo fato de que uma vontade sempre racionalmente comprometida não seria “livre” para a alternativa que consiste em recusar a regra da racionalidade prática. Com efeito, Kant parece bloquear essa alternativa, tomando-a em diferentes momentos como “inexplicável” (MS AA 06: 321n), “inconcebível” (MS AA 06: 226), “imperscrutável” (Rel AA 06: 43), questão que abordaremos à frente. Mas não é evidente que isso desqualifique a tese das possibilidades alternativas tout court ou a torne peremptoriamente incompatível com a da liberdade moralmente comprometida.

Ainda que não seja meu objetivo aqui salvar essa compatibilidade, uma palavra a esse respeito pode abrir portas. É possível que, para Kant, afirmar que eu sou livre na medida em que eu poderia ter escolhido alternativamente seja apenas uma maneira, não de todo inequívoca, de reforçar a tese de que eu, enquanto razão prática, não estou necessitado por inclinações nas minhas escolhas últimas. Para isso, teríamos que aceitar que são apenas todas aquelas escolhas “minhas” — e as aspas aqui são a expressão do maior dos problemas, como aparecerá adiante — em que prevaleceu o princípio da felicidade que poderiam, em mim — e jamais nos seres dotados de um arbítrio bruto —, ter sido diferentes.

Uma das melhores expressões dessa interpretação — que certamente tem suas profundas dificuldades — está numa reflexão do final da década de 1770. Segundo ela, não podemos “dizer que a alternativa de todas as nossas ações tem que ser subjetivamente possível a fim de que nós sejamos livres [...], mas apenas a alternativa daquelas que vêm da sensibilidade” (R5619, AA 18: 258, meus grifos).27 27 Timmermann tenta explicar isso como “uma capacidade assimétrica de, quando convocados, deixarmos de fazer o errado e fazermos o certo” (Timmermann, 2007, p. 165). Talvez a explicação do que essa reflexão propõe seja que eu, como sujeito agente, sou uma razão prática que, como tal, posso a qualquer momento fazer valer a lei desse meu próprio ser agente, que é, no limite, a lei moral. Se quisermos tentar formular esse princípio de modo ainda mais restrito: o princípio kantiano das possibilidades alternativas diria apenas que a razão prática que eu sou, como sujeito agente, sempre e a qualquer momento “pode” — ainda que eu não necessariamente tenha controle sobre esse poder — despertar28 28 Timmermann explora essa linha de leitura, sugere que a afecção sensível a que se acha exposta nossa vontade estaria na base de uma instabilidade do comando eletivo da nossa racionalidade, e ao fim e ao cabo confessa o embaraço: “We do not understand how the elective will, which after all is not subject to the causal laws of nature, can be ‘affected’ by sensibility at all. Sometimes, reason mysteriously fails to be active, or as active as it ought to be…” (Timmermann, 2007, p. 166). e assumir o comando das minhas deliberações. Ou ainda: a razão prática que eu sou, como sujeito agente, sempre pode deixar o estado de potência e se atualizar, o que sempre acontecerá na forma da ocorrência de uma decisão livre, porque racional.

É importante notar que isso é essencialmente distinto de afirmar, como quer Ameriks, que a minha liberdade (“eficiente”), como sujeito agente, me permite escolher alternativamente entre a racionalidade moral e a irracionalidade dos impulsos sensíveis, como se “eu” fosse uma instância deliberativa anterior e independente da razão prática, capaz de escolher ela ou o oponente dela. Se partirmos do pressuposto de que é isso que Kant quer dizer quando afirma o seu libertarianismo antideterminista, de novo, estaremos atribuindo a ele um tipo de liberdade que torna inimputável qualquer escolha, e contraditória sua própria designação como “escolha”: um eu pré-racional não escolhe nem responde por decisões, nem por aquelas a favor, nem por aquelas contrárias à racionalidade moral.

Ocorre que, como essa leitura, a meu ver equivocada, não consegue apagar as incontestáveis evidências textuais e conceituais de um conceito kantiano de liberdade como causalidade racional numênica,29 29 Para as “textuais”, cf. nota 6. Ameriks opta por duplicar a única liberdade kantiana numa liberdade formal e noutra eficiente — que é, esta última, a rigor, uma liberdade de indiferença disfarçada de “absoluto poder de escolha” a favor ou contra a moralidade —, tentando crer que os dois conceitos ou “aspectos” podem conviver harmonicamente dentro do projeto fundacional do filósofo. Para isso, bastaria fazer da “liberdade formal” o objeto da Fundamentação III, e da “liberdade eficiente” o foco do “facto da razão” na Crítica da Razão Prática.

Mas o desfecho dessa estratégia é, para Kant, profundamente ingrato. A Fundamentação seria bem-sucedida na sua dedução de uma liberdade que, apesar de deduzida, pode permanecer uma liberdade “psicológica ou avaliativa”, “nada mais do que uma quimera em nossas vidas”. Quanto à Crítica da Razão Prática, a conclusão de Ameriks parece inevitável: “não fica claro o que o Faktum Text pode fornecer como suporte para a reivindicação de nossa robusta autonomia com respeito ao seu controverso componente eficiente (isto é, absolutamente livre)” (Ameriks, 2002, p. 105AMERIKS, K. “Pure reason of itself alone suffices to determine the will”. In: HÖFFE, Otfried (Hrgb). Kritik der Praktischen Vernunft. Akademieverlag, Berlin, pp. 99-114, 2002.). Talvez devêssemos dizer: fica bastante claro que o Faktum Text não pode fornecer esse suporte que Ameriks exige dele, e que o próprio Kant não parece reconhecer como dotado de algum sentido.

Tudo isso posto, resta um registro da maior importância. É indispensável reconhecer um móbil muito mais forte para a decisão de tantos comentadores pela duplicação da liberdade kantiana e/ou pela adesão à liberdade de indiferença disfarçada de “autonomia eficiente” — e inspirada pela defesa kantiana de algo próximo ao princípio das possibilidades alternativas. Quem recusa a liberdade da vontade deduzida na Fundamentação III como liberdade das operações próprias da racionalidade na determinação de fins, recusa mais do que o inconveniente prima facie de um “determinismo racional” ou de um “fatalismo inteligível”. O problema real não é que a vontade, operando segundo as leis racionais de sua própria autonomia, decide pela ação moral sob a “determinação” de uma lei que lhe é irrecusável; o problema é que ela não decide contra essa lei.

Numa frase: dado que a liberdade da vontade consiste no seu proceder racional que é, por análise, sempre o caminho da moralidade, uma decisão imoral, porque irracional por análise, não poderia ser dita livre. Portanto, o que subjaz, na origem, projetando a hermenêutica do fracasso na direção da liberdade de indiferença, sempre foi um inconformismo em relação ao que talvez de fato seja uma consequência necessária de uma liberdade da razão prática: a inimputabilidade das decisões imorais. Por outras, o que despertou a aversão pelo fatalismo das boas escolhas foi a evidência mais grave de que as más não poderiam ser livres.

O choque original veio de Reinhold, na oitava de suas Briefe über die Kantische Philosophie, de 1792:

Da confusão entre nada mais do que a livre ação da razão prática, a qual é, com efeito, espontânea, mas não faz nada além de fornecer a lei, com a ação da vontade, a qual somente age como vontade pura na medida em que livremente adota essa lei, dessa confusão resulta nada menos do que a impossibilidade da liberdade para ações imorais. Tão logo se aceita que a liberdade da pura vontade consiste meramente na espontaneidade da razão prática, deve-se também admitir que a vontade impura, que não é determinada causalmente pela razão prática, simplesmente não é de modo algum livre (Reinhold, 1792, p. 268KANT, I. “Gesammelte Schriften”. Hrsg.: Bd. 1-22: Preussische Akademie derWissenschaften, Bd 23: Deutsche Akademie der Wissenschaften zu Berlin, ab Bd. 24: Akademie der Wissenschaften zu Göttingen. Berlin: 1900ff.).30 30 A versão de Timmermann para o mesmo inconformismo: “É um lugar-comum filosófico que a liberdade é condição necessária e suficiente da responsabilidade moral. Se atos moralmente maus não são expressão de liberdade, será que realmente merecemos ser condenados por eles? Eles parecem ser determinados por leis da natureza e, como tais, não ser de forma alguma livres; seres humanos poderiam ser responsáveis apenas por ações moralmente boas” (Timmermann, 2007, p. 164).

De Reinhold até nossos dias, passando por Henry Sidgwick, John Silber, Gerold Prauss, Thomas Hill, Robert Paul Wollf, Henry Allison, Paul Guyer e Jens Timmermann, a evidência da imputabilidade do mal, ratificada por Kant não apenas na Religião — obra paradigmática sobre o tema da conversão imputável — mas ao longo de toda a sua obra, vem sendo usada pelos intérpretes como uma credencial inabalável para consertar o kantismo ou lhe cobrar explicações. E a maioria deles acreditou que seria possível e preferível mitigar os prejuízos de uma liberdade de indiferença camuflada do que buscar o caminho, no quadro conceitual do kantismo, de uma desafiadora responsabilização da razão prática por escolhas que não foram propriamente suas.

Essa preferência exigiu que se ignorasse, para além das inconsistências conceituais já assinaladas, o fato de que Kant, por mais que tenha afirmado a imputabilidade e a liberdade das escolhas imorais, jamais as explicou satisfatoriamente, ou mesmo as considerou explicáveis. Na mesma passagem da Metafísica dos Costumes em que recusa explicitamente a liberdade de Reinhold como um poder de escolher a favor ou contra a moralidade, Kant afirma que “não somos capazes de dar conta da possibilidade (wir doch die Möglichkeit nicht begreifen können) de o sujeito racional [...] adotar uma escolha conflitante com sua razão (legislante)” (MS AA 06: 226). Adiante, numa famosa nota da primeira subseção (A) da Observação Geral ao §49 da obra, Kant afirma:

Qualquer transgressão da lei não pode ser explicada de outro modo, se não que ela provém de uma máxima do criminoso (a máxima fazer desse crime uma regra para si). Porque se derivássemos essa transgressão de um impulso sensível, ela não teria sido cometida pelo sujeito como um ser livre, e portanto não lhe poderia ser imputada. Mas como é possível para o sujeito adotar uma tal máxima contrária à clara interdição da razão legislante, é simplesmente inexplicável (lässt sich schlerchterdings nicht erklären)31 31 Kant fornece na mesma passagem uma explicação para essa “inexplicabilidade” que poderia vir a ser usada para mitigar a gravidade do problema que este artigo quer destacar. A afirmação subsequente de que “somente os acontecimentos segundo o mecanismo da natureza são passíveis de explicação” sugeriria, segundo essa linha, uma mera incompatibilidade técnica entre o procedimento da “Erklärung” e os objetos da filosofia prática. Discordo dessa mitigação. Em primeiro lugar, porque isso que a nota da p. 321 chama de “inexplicável” — a saber, “como é possível para o sujeito adotar uma tal máxima contrária à clara interdição da razão legislante” — parece ser exatamente o que o corpo do texto da p. 226 também recusa, mas agora chamando não de “inexplicável”, e sim de “inconcebível” (wir doch die Möglichkeit nicht begreifen können), a saber, “a possibilidade de o sujeito racional [...] adotar uma escolha conflitante com sua razão (legislante)”. Portanto, das duas uma: ou bem Kant está falando de coisas inteiramente diferentes (uma inexplicável, outra inconcebível) quando se refere (i) à possibilidade “para o sujeito adotar uma tal máxima contrária à clara interdição da razão legislante” e quando se refere (ii) à “possibilidade de o sujeito racional [...] adotar uma escolha conflitante com sua razão (legislante)” — hipótese extremamente improvável; ou bem a referida limitação técnica do verbo “erklären” teria que recair também sobre o verbo “begreifen”, e nesse caso, também profundamente improvável, Kant estaria praticamente esgotando seus recursos linguísticos para garantir que não haveria qualquer problema mais sério com a possibilidade da livre escolha do mal moral, apesar de “inexplicável” e “inconcebível”. Em segundo lugar, se quisermos sair da Metafísica dos Costumes mas permanecer na década de 90, Kant emprega ainda outro vocabulário que não o de “erklären” e “begreifen” para designar esse seu mesmo constrangimento para dar conta da “origem racional” do que é agora caracterizado como “Verstimmung do nosso arbítrio”, que o faz “elevar incentivos subordinados (inferiores) ao posto de comando de suas máximas” e, assim, escolher livremente a “corrupção” e o mal moral. Na Religião, chama isso de “unerforschlich” (Rel AA 6: 43). Assim, parece cada vez mais improvável que a livre escolha pela imoralidade, que não pode ser “explicada”, que é “inconcebível” e que é “imperscrutável”, esteja de algum modo bem resolvida para Kant. Finalmente, a permanecer na “Erklärung” da nota à p. 321 da Metafísica dos Costumes, pode ser verdade que o procedimento racional explicativo que adotamos para dar conta do mecanismo da natureza não funcione para dar conta do problema de como, na condição de sujeitos racionais, somos capazes de racionalmente adotar uma máxima antirracional. Mas a constatação dessa inadequação só torna mais dramático o problema de como isso (a livre escolha pelo mal) é possível, ou “concebível”, no quadro conceitual das obras fundacionais da moralidade no kantismo — sobretudo porque tampouco aqui, na Metafísica dos Costumes, Kant sequer sugere algum outro instrumento além da fracassada ou imprópria Erklärung para solucionar a dificuldade de que o artigo trata. Diante do evidente embaraço de a livre imoralidade “apenas poder e dever ser explicada de um modo” (kann und muss nicht anders als so erklärt werden...), e no entanto “não poder ser explicada” (lässt sich schlechterdings nicht erklären) desse modo, ao leitor resta a simples e claramente insuficiente afirmação de que “um sistema da moral não a deve excluir” (MS AA 06: 322n). (MS AA 06: 321n, meu grifo).

E finalmente, encontramos no mesmo texto a caracterização da escolha racional e livre pelo mal moral como uma “maldade formal, totalmente sem sentido (förmliche <ganz nutzlose> Bosheit)”. Dela, Kant afirma que “até onde percebemos (so viel wir einsehen), um crime dessa natureza [...] é impossível (unmöglich) a um humano de cometer” (MS AA 06: 321n, 34 - 322n, 21).32 32 Essas afirmações de Kant merecem um comentário. Na nota da p. 321 da Metafísica dos Costumes em que Kant afirma que “é simplesmente inexplicável como é possível para o sujeito adotar uma tal máxima contrária à clara interdição da razão legislante”, encontramos um esforço de distinção entre duas maneiras de proceder à imoralidade: uma, em que “o criminoso apenas se desvia da lei” “sem recusar formalmente obediência” a ela; e outra em que “ele rejeita a autoridade da própria lei, da qual, apesar disso, ele não pode, diante de sua razão, negar a validade” (321:34-42 a 322:17-21). Aparentemente, é a propósito apenas do segundo tipo que Kant afirma que “até onde percebemos, um crime dessa natureza [...] é impossível a um humano de cometer”. Essa restrição, entretanto, é problemática pelos seguintes motivos. Em primeiro lugar, no trecho inicial da nota (linhas 27-34), Kant está asserindo a inexplicabilidade de “qualquer transgressão da lei” (eine jede Übertretung des Gesetzes) e não de um tipo específico; e, no segundo, a expressão “so viel wir einsehen” está próxima demais do “lässt sich schlerchterdings nicht erklären” para, no mínimo, deixar aberta a possibilidade interpretativa de que Kant estaria aí se referindo ao mesmo inexplicável nos dois casos, a saber, o primeiro apresentado: “eine jede Übertretung...”. Ademais, Kant já afirmara, na mesma obra, a mesma impossibilidade de se conceber a livre escolha pela imoralidade — a saber, no parágrafo em que recusava a definição da liberdade como poder de escolher entre o bem e o mal moral (MS AA 06: 226) — sem propor qualquer distinção de graus de imoralidade. O segundo motivo, que, a meu ver, confirma a prioridade que confiro ao primeiro trecho na identificação do objeto “inexplicável” e “impossível [...] segundo nossa perspiciência” (unmöglich... so viel wir einsehen) — a saber, “qualquer transgressão da lei” —, é um motivo conceitual, e não apenas exegético. Não há, na articulação conceitual das obras fundacionais de Kant sobre liberdade e moralidade, notadamente a Fundamentação e a Crítica da Razão Prática, uma distinção relevante entre graus de radicalidade nas escolhas imorais. Pelo menos nessas obras, que, a meu ver, sempre devem ser usadas como referência para o debate conceitual, só existe um único fundamento para qualquer caso de imoralidade: em situações de conflito moral, a incorporação na máxima da conduta do princípio da satisfação das inclinações em vez de a incorporação da lei moral. Assim, por mais que Kant pareça, na referida nota da p. 321, atenuar a imoralidade por “desvio”, em qualquer caso, o ato de escolha de uma máxima imoral precisa ser um ato realizado pela razão prática para ser considerado como livre e imputável (“denn wenn man sie von einem sinnlichen Antrieb ableitete, so wäre sie nicht von ihm, als einem freien Wesen, begangen, und könnte ihm nicht zugerechnet werden”). Isso significa que, para qualquer ato de escolha imoral, mesmo a transgressão “desviante” (abweichen), vale o essencial que marca a imoralidade (“inexplicável”) da “infração” (abbrechen): o reconhecimento racional da validade da lei (“dessen Gültigkeit er sich doch vor seiner Vernunft nicht abläugnen kann”) e a recusa racional de sua autoridade (“...verwirft er die Autorität des Gesetzes...”). Se o desvio da lei, ainda que como autodispensa ocasional (“sich gelegentlich...dispensieren”), é dito “deliberado” (“vorsetzlich”), não há outra maneira de compreender isso senão que o agente lúcida e racionalmente identificou a escolha imoral como imoral, e ainda assim optou por ela, rejeitando o caminho da moralidade, que ele também precisa ter identificado racionalmente como o certo. Desse modo, por mais que haja uma diferença entre, de um lado, “desejar contornar a lei sem recusar formalmente obediência a ela” e, de outro, “fazer para si mesmo a regra de atuar contra a lei”, em ambos os casos se faz ver o essencial do “inexplicável” na imoralidade: que o sujeito agente reconheça a validade da lei por sua própria razão e ainda assim rejeite sua autoridade — pouco importando se apenas “ocasionalmente”. Meu uso da citação é governado pela hipótese interpretativa declarada do artigo, segundo a qual o grave, relevante e discutível do caso da imoralidade por infração não é a hostilidade à lei: é a capacidade de perceber racionalmente qual é o caminho do bem e escolher também racionalmente o caminho do mal, uma capacidade que supostamente já se atualiza, “inexplicavelmente”, na imoralidade por desvio.

É verdade que os que aceitaram a “dedução” do imperativo categórico na Fundamentação e a liberdade da vontade como causalidade numênica precisam enfrentar a indigesta inexplicabilidade, honestamente confessada por Kant,33 33 Sobre o que, lamenta Timmermann “Unfortunately, while a frank admission of failure makes its author more likeable it does not save his theory” (Timmermann, 2007, p. 167). da escolha livre pelo mal moral, que equivale a uma decisão lucidamente racional pela irracionalidade do erro e pelo privilégio das inclinações.34 34 Timmermann diagnostica esse fracasso após recusar a definição reinholdiana de liberdade e se esforçar por inscrever a possibilidade da livre escolha pelo mal no escopo de sua própria interpretação geral da liberdade humana em Kant como “mera capacidade assimétrica”. Sua hipótese inicial é a de que, para Kant, a vontade humana seria livre na medida em que poderia escolher alternativamente apenas à imoralidade, e jamais escolher a imoralidade como alternativa ao bem moral. Mas mesmo abraçando uma liberdade voluntarista assim limitada, constata o embaraço de qualquer versão da liberdade como “mera capacidade”: “If freedom is a mere capacity, we cannot account for moral failure, which amounts to the free renunciation of freedom […]. To rephrase the objection in more Kantian terms: moral failure cannot just be an effect of natural causation, as the agent is negatively free from that; but it cannot entirely be due to rational causation either, as after all immoral actions are not rational. We do not understand how the elective will, which after all is not subject to the causal laws of nature, can be ‘affected’ by sensibility at all. Sometimes, reason mysteriously fails to be active, or as active as it ought to be…” (Timmermann, 2007, p. 166). O que eu pretendi registrar neste artigo é que o preço de um empenho desmedido para evitar essa dificuldade pode ser alto demais. A história da hermenêutica do kantismo mostrou que os que abandonaram a liberdade como causalidade numênica a favor de uma “autonomia eficiente”, que se mostrou uma libertas indifferentiae, a fim de evitar o “fatalismo inteligível” de Ulrich e a inimputabilidade do mal de Reinhold, não produziram apenas malabarismos improváveis para mitigar a recusa categórica da liberdade de indiferença por Kant na Metafísica dos Costumes. Além disso, e mais grave que isso, produziram uma vontade racionalmente neutra que não pode ser imputada nem em escolhas morais, porque já não seriam escolhas racionalmente justificáveis.

  • 1
    Como referência para as citações de todas as obras de Kant, exceto a Crítica da Razão Pura, utilizo a Edição da Academia (doravante AA): KANT, I. Gesammelte Schriften. Hrsg.: Bd. 1-22: Preussische Akademie der Wissenschaften, Bd 23: Deutsche Akademie der Wissenschaften zu Berlin, ab Bd. 24: Akademie der Wissenschaften zu Göttingen. Berlin: 1900ff, assumindo a responsabilidade pelas traduções e adotando o modelo de citação recomendado pela AA. Para a Crítica da Razão Pura, utilizo a edição da Felix Meiner: Kritik der Reinen Venunft, Hamburg, 1990, seguindo, na maior parte das vezes, a tradução de Santos e Morujão (Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2008). Como é praxe, indico no corpo do texto apenas a paginação das edições originais de 1781 e 1787, A e B respectivamente. Para a Fundamentação da Metafísica dos Costumes, sigo a tradução de Guido Almeida (São Paulo: Discurso Editorial, 2009) e, para a Crítica da Razão Prática, a de Valério Rohden, na maioria das vezes (São Paulo: Martins Fontes, 2002).
  • 2
    Cf. GMS AA 04: 392.
  • 3
    Cf. KpV AA 05: 8.
  • 4
    Cf. KpV AA 05: 46-7.
  • 5
    Cf. KpV AA 05: 99-100; KrV A555/B583; MS AA 06: 226 etc.
  • 6
    Passagens importantes do texto kantiano apontam muito resolutamente para a assimilação entre liberdade e efetivo exercício da moralidade. Permito-me aqui citar algumas delas, porque a hermenêutica do fracasso que aqui questiono tende a mitigá-las para além do limite do razoável. Cf. as teses kantianas de que “liberdade e lei prática incondicional referem-se reciprocamente (weisen also wechselweise auf einander zurück)” (KpV AA 05: 29); de que “liberdade e legislação própria da vontade [isto é, lei moral] são ambas autonomia e, portanto, Wechselbegriffe” (GMS AA 04: 450); de que “uma vontade livre e uma vontade sob leis morais é uma e mesma coisa” (GMS AA 04: 447); de que “a liberdade [...] tem que ser uma causalidade segundo leis imutáveis, porém de espécie peculiar” (GMS AA 04: 446); a caracterização da “liberdade enquanto uma causalidade da razão pura” (KrV AA 05: 48, meu grifo), que não pode ser outra senão a legalidade moral, e enquanto uma “causalidade que é determinável unicamente pela lei [moral]” (KpV AA 05: 78); a identificação da vontade livre com uma vontade dependente da lei moral: “...dass man das praktische Freiheit auch durch Unabhängigkeit des Willens von jedem anderen ausser allein dem moralischen Gesetze definieren könnte” (KpV AA 05: 94); a identificação do justifica a moralidade de uma ação como o mesmo que justifica sua liberdade: “independência de toda matéria de lei” e “determinação do arbítrio pela simples forma legislativa universal” (KpV AA 05: 33) (“In der Unabhängigkeit nämlich von aller Materie des Gesetzes [...] und zugleich doch Bestimmung der Willkür durch die blosse allgemeine gesetzgebende Form, deren eine Maxime fähig sein muss, besteht das alleinige Prinzip der Sittlichkeit. Jene Unabhängigkeit aber ist Freiheit im negativen, diese eigene Gesetzgebung aber der reinen, und, als solche, praktischen Vernunft ist Freiheit im positiven Verstande“ (meu negrito). Cf. ademais GMS AA 04: 453, 457; KpV AA 05: 47 etc.
  • 7
    É com base nessa equivocidade que Eric Weil, a propósito da filosofia prática de Kant, se permitiu produzir um comentário que parece tornar filosoficamente elevado o que antes de mais nada precisa ser filosoficamente explicado: “o ser humano não escuta [por vezes] a voz da razão e a voz da liberdade precisamente porque ele é livre” (Weil, 1990, p. 13ULRICH, J. A. H. “Eleutheriologie, oder über Freyheit und Notwendigkeit”. Jena:Cröker, 1788.). “Ser livre para recusar ser livre” é uma fórmula que tira seu único sentido possível da ambiguidade entre liberdade como causalidade racional e liberdade como voluntarismo eletivo racionalmente neutro, como veremos no que segue.
  • 8
    Sidgwick define cada uma das duas liberdades kantianas nos seguintes termos: de um lado, “a liberdade que nós realizamos ou manifestamos na medida em que fazemos o certo”, que ele batiza de “liberdade racional”; de outro, “a liberdade que é realizada ou manifestada igualmente quando escolhemos ou bem o certo, ou bem o errado”, que ele propõe chamar de “liberdade neutra”, ou “liberdade moral” (essa última expressão, que considero pouco oportuna, só podendo significar “liberdade em relação à moralidade”) (Sidgwick, 1962, pp. 511-16SCHÖNECKER, D. “Kant`s Moral Intuitionism: The Fact of Reason and Moral Predispositions”. Kant Studies Onlinhe, 2013.). Timmermann observa que, ao adotar a “liberdade neutra”, Sidgwick “grabs the wrong horn of the dilema” (Timmermann, 2007, p. 164SIDGWICK, H. “The Methods of Ethics”. Palgrave Macmillan, 1962.). Sidgwick justifica sua escolha afirmando que adoção da “liberdade racional” envolveria uma “excisão mais séria” na filosofia prática de Kant (provavelmente a imediata excisão da imputabilidade do mal moral, sob a evidência de que a razão não escolhe a desrazão, como veremos adiante no artigo). Mas o “erro” de Sidgwick, a meu ver, é anterior à sua escolha por um dos polos do dilema (o da “liberdade neutra”, que, ao fim e ao cabo, tampouco garante a livre escolha pelo mal). Ele nasce na própria concepção de uma liberdade de escolha como escolha a favor ou contra o moralmente certo. Veremos no decorrer deste trabalho por que essa formulação não pode corresponder a nenhum conceito propriamente kantiano de liberdade, embora o texto kantiano pareça frequentemente flertar com ele.
  • 9
    Assumo nesta última formulação todo o risco do anacronismo porque, a meu ver, ele é preferível a caracterizar e entender de antemão, nos termos de Sidgwick e Reinhold, uma eventual “liberdade de escolha” no kantismo como escolha a favor ou contra “a razão” ou “a moralidade”, definição que Kant repudiou explicitamente, como também aparecerá adiante neste ensaio.
  • 10
    A referência para todas as citações do trabalho de Ameriks nos próximos cinco parágrafos é Ameriks, 2002, pp. 102-104AMERIKS, K. “Pure reason of itself alone suffices to determine the will”. In: HÖFFE, Otfried (Hrgb). Kritik der Praktischen Vernunft. Akademieverlag, Berlin, pp. 99-114, 2002.. Por praticidade e economia textual, no corpo do texto aparecerá apenas a paginação.
  • 11
    Cf. GMS AA 04: 446-7, KpV AA 05: 33.
  • 12
    “O agente individual opera racionalmente em algum sentido psicológico ou avaliativo” (p. 103).
  • 13
    “O conteúdo puro que é reconhecido (cognized) pela nossa razão prática” (loc. cit).
  • 14
    “O puro ato de cognição que realizamos ao reconhecer (cognize) esse conteúdo” (loc. cit).
  • 15
    Schönecker é particularmente afinado com Ameriks nesse ponto, ao defender que “o imperativo categórico tem um conteúdo (mais ou menos formal), qual seja, a ideia de universalização; esse conteúdo que nós apreendemos não por sentimento, mas pela razão. Entretanto, o imperativo categórico é também um comando. Que ele realmente seja um comando de que nós devemos agir apenas segundo máximas que podemos pensar e querer como leis gerais, eis o elemento do imperativo categórico que só podemos conhecer (cognize) pelo sentimento de respeito” (Schönecker, 2013, p. 4REINHOLD. C. L. “Briefe über die Kantische Philosophie”. Vol. 2. Leipzig: Göschen 1792). Tudo indica que a autonomia formal de Ameriks é o “conteúdo racionalmente apreensível” de Schönecker, e que a autonomia eficiente de Ameriks, produto e objeto indedutível de um “facto”, corresponde ao comando moral de Schönecker, apreensível apenas pelo sentimento. A diferença relevante entre ambos está na profunda confiança de Schönecker no poder justificacional do argumento do facto da razão. Para ele, que a nossa vontade, ainda que apenas imperfeitamente racional, deva agir moralmente, fica suficientemente justificado pelo argumento de que nós facticamente sentimos sua subordinação à lei moral na sua forma imperativa. Schönecker, no entanto, não explica a necessidade apriorística de um sentimento para o qual se pretende todo esse poder justificacional. O desafio é antigo e conhecido: se, de um lado, como parece defender Kant, o respeito é um efeito prático da consciência racional da lei moral, em última instância, ao apreendermos o comando moral, o que justifica nossa subordinação é a razão, e não o sentimento. De outro, se o respeito é um fundamento justificacional apartado da razão — pela qual apenas conheceríamos o conteúdo abstrato da moralidade — então a subordinação real da vontade de cada sujeito agente à moralidade parece depender da contingência de um sentimento pessoal.
  • 16
    CRP, A534/B562.
  • 17
    Nos termos de Ameriks, “um argumento pela liberdade [...] a partir da mera consideração da ‘inteligência’” (Ameriks, 2002, pp. 104-105AMERIKS, K. “Pure reason of itself alone suffices to determine the will”. In: HÖFFE, Otfried (Hrgb). Kritik der Praktischen Vernunft. Akademieverlag, Berlin, pp. 99-114, 2002.).
  • 18
    É importante aqui evitar um possível mal-entendido acerca do lugar do kantismo no que veio a ser designado contemporaneamente como a “controvérsia do compatibilismo”, ainda que o anacronismo da discussão seja fonte inesgotável de ambiguidades, e que este ensaio se permita passar ao largo da questão. A posição de Ameriks é a de que Kant seria um libertarianista incompatibilista, mas somente graças ao suposto projeto de enfrentamento da autonomia eficiente com a doutrina do facto da razão. Não há dúvidas de que o sistema filosófico do idealismo transcendental kantiano fornece espaço conceitual tanto para a liberdade (em sentido transcendental), quanto para o determinismo da natureza, e que por isso não é ilegítimo ver aqui a expressão de um certo “compatibilismo” kantiano entre liberdade e determinismo. Mas essa convivência só é possível sobre a base de uma clara distinção de “modos de consideração” (Vorstellungsarten) (KrV, BXVIII) ou “pontos de vista” (Gesichtspünkte) (KrV, BXIXn) segundo os quais o arbítrio vier a ser considerado; ou bem fenomenicamente, ou bem numenicamente. O que aqui importa particularmente é que, adotado um desses pontos de vista, o alternativo se acha peremptoriamente excluído da consideração. Nos termos do Prefácio B da Crítica da Razão Pura, na medida em que a vontade humana ou a “alma” está sendo considerada fenomenicamente, ela está sendo posta sob a regulação da causalidade natural que não comporta (isto é, não é “compatível” com) a espontaneidade de uma causa livre. Inversamente — e foi o que pretendi enfatizar acima — a consciência numênica que nós temos de nós mesmos como sujeitos agentes racionais (isto é, o ponto de vista numênico de consideração da nossa vontade) nos revela a nós mesmos como dotados de liberdade transcendental, que, como tal, não admite (isto é, não é “compatível” com) a co-incidência daregulação por causalidade mecânica. É nesse ponto que divirjo da posição de Ameriks segundo a qual essa mesma consciência numênica que nós temos de nós mesmos como sujeitos agentes racionais, elemento essencial na dedução da liberdade na Fundamentação, pode nos revelar a nós mesmos como dotados de uma liberdade que não precisa ser transcendental. Não se trata, portanto, de ignorar que no kantismo há tanto liberdade transcendental quanto determinismo natural. Trata-se de defender que, na medida em que estamos nos considerando do “ponto de vista” numênico como sujeitos agentes dotados de racionalidade, não podemos estar nos considerando ao mesmo tempo do ponto de vista fenomênico como dotados de um arbítrio governado pelo mecanismo da natureza; e é apenas nesse sentido que defendo, contra Ameriks, que para Kant a liberdade transcendental é “incompatível” com o determinismo em nosso processo deliberativo. Numa frase, trata-se de uma incompatibilidade entre liberdade transcendental e determinismo no interior do ponto de vista numênico de consideração de nós mesmos como sujeitos agentes, que é aquele a partir do qual gira toda a reflexão fundacional da liberdade na Fundamentação III. Tudo isso torna evidentemente problemática a inscrição de Kant naquela controvérsia anacrônica, e particularmente interessante o diagnóstico de Allen Wood sobre o tema: “When we consider all Kant’s views together, it is tempting to say that Kant wants to show not only the compatibility of freedom and determinism, but also the compatibility of compatibilism and incompatibilism” (Wood, 1984, p. 74WEIL, E. “Problèmes Kantiens”. Paris: J. Vrin, 1990.).
  • 19
    Cf. Ulrich, 1788, pp. 24-25, 33-34TIMMERMANN, J. “Freedom and moral failure: Reinhold and Sidgwick”. In: Kant`s Groundwork of Metaphysics of Morals: a Commentary. New York: Cambridge University Press, 2007.. Paul Guyer sumariza o argumento da Eleuteriologia afirmando que, para Ulrich, “o esforço de Kant por salvar a liberdade da vontade do determinismo absoluto do mundo físico através da sua distinção entre o fenomênico e o numênico, ou entre o sensível e o inteligível, foi um fracasso, porque ainda que o ‘caráter inteligível’ ‘não esteja sujeito à lei de toda determinação temporal, de que tudo o que é alterável, isto é, tudo o que acontece no fenômeno [...] tem a sua causa’, segundo o próprio Kant o caráter inteligível de um agente é ‘original e inalterável’, de modo que um agente não escolhe agir de acordo com a lei moral mais livremente do que ele escolhe violar essa lei, e portanto Kant não deixa qualquer espaço para imputação de responsabilidade tanto no mundo fenomênico quanto no numênico” (Guyer, 2017, p. 122GUYER, P. “The Struggle for Freedom: Freedom of the Will in Kant and Reinhold”. In: WATKINS, E. Kant on Persons and Agency. Cambridge University Press, 2017.).
  • 20
    Cf. por exemplo GMS AA 04: 412: “Toda coisa na natureza atua segundo leis. Só um ser racional tem a faculdade de agir segundo a representação de leis, isto é, segundo princípios, ou uma vontade (Wille). Visto que se exige a razão para se derivar de leis as ações, a vontade nada mais é do que razão prática” (meu grifo).
  • 21
    Portanto, para além da prova da possibilidade lógica da liberdade operada na solução da Terceira Antinomia da primeira Crítica.
  • 22
    É importante aqui ter clara a distinção entre uma prova da “possibilidade lógica da liberdade” e uma dedução da “liberdade das operações judicativas da razão prática”. O projeto kantiano de uma dedução da liberdade da vontade humana equivale ao projeto de uma prova da validade objetiva prática dessa liberdade (que Kant também chama de uma prova da “possibilidade real” da liberdade, que vai além da prova de sua “possibilidade lógica”), e não é desenvolvido na Crítica da Razão Pura, mas sim somente a partir da Fundamentação. O que se chama uma prova da possibilidade lógica da liberdade na Crítica da Razão Pura é apenas uma prova de que é possível pensar sem contradição uma vontade livre atuando no mundo fenomênico, e não uma dedução da liberdade, como a que Kant pretende ter fornecido na Fundamentação III, como uma prova da liberdade das operações judicativas e representacionais da nossa razão prática, isto é, da nossa vontade humana.
  • 23
    Tentando salvar a filosofia prática de Kant do que ele chamara em 2009 de um problema irresolvido pelo kantismo, Paul Guyer decide em 2017 sacrificar “o inteiro argumento da primeira parte da Fundamentação III” (Guyer, 2017, p. 133GUYER, P. “The Struggle for Freedom: Freedom of the Will in Kant and Reinhold”. In: WATKINS, E. Kant on Persons and Agency. Cambridge University Press, 2017.) (a saber, GMS AA 04: de 451 a 453), que corresponde a nada menos do que à “dedução do conceito de liberdade”, chamando-o de um “argumento anômalo” (loc. cit.) e, na mesma página da “confusão” de Reinhold, sentencia: “razão prática e vontade não são idênticas em seres humanos” (Guyer, 2017, p. 127GUYER, P. “The Struggle for Freedom: Freedom of the Will in Kant and Reinhold”. In: WATKINS, E. Kant on Persons and Agency. Cambridge University Press, 2017.). Não é de surpreender que, para sustentar essa negativa, o comentador tenha precisado jogar fora a inteira dedução da Fundamentação, já que Kant a designa como uma “dedução do conceito da liberdade [humana, evidentemente, e não da liberdade dos santos ou de Deus] a partir da razão prática pura” (GMS AA 04: 447, meu grifo).
  • 24
    Die Freiheit der Willkür aber kann nicht durch das Vermögen der Wahl, für oder wider das Gesetz zu handeln, (libertas indifferentiae) definirt werden — wie es wohl einige versucht haben...“ (MS AA 06: 226-7).
  • 25
    Thomas Hill, que comumente cita a Metafísica dos Costumes para sustentar suas interpretações — notadamente as passagens sobre distinção entre vontade (Wille) e arbítrio (Willkür) —, insiste em trabalhar com um conceito de liberdade que Kant tão categoricamente recusa nessa mesma obra. Para Hill, a única maneira de desfazer o mal-entendido das obras fundacionais de Kant sobre liberdade e moralidade é assumir que “nós temos a liberdade da vontade (the freedom of the will) para escolher satisfazer o desejo ou seguir a razão” (Hill, 2008, p. 225); que “agentes morais têm inclinações naturais, razão e o poder de escolher qual dos dois seguir quando inclinação e razão entram em conflito”; que, de novo, “nós também temos o poder (free will) de escolher a inclinação ou a razão quando elas conflitam. Pelo menos isso é o que devemos pressupor do ponto de vista prático de um agente deliberando sobre o que fazer” (p. 216); e finalmente que “nós adotamos nossas máximas como seres humanos sujeitos à influência tanto de nossas inclinações sensíveis, quanto de nossa razão prática (Wille) moralmente legisladora. Todas as nossas máximas, no entanto, são presumivelmente resultado do exercício do nosso power of free choice” (p. 220, meus grifos em todas as citações de Hill, 2008). Observe-se que Hill manifesta essas convicções no contexto de sua interpretação sobre o problema da fraqueza da vontade na filosofia kantiana. Seu ônus, portanto, é duplo. Primeiro, explicar como é possível decidir livremente — isto é, segundo padrões de justificação racional — pela irracionalidade da via imoral. E segundo, explicar como é possível que essa escolha seja resultado de uma fraqueza da vontade. Hill acredita resolver o primeiro problema considerando a assimilação entre liberdade da vontade e exercício necessariamente moral da causalidade racional como um simples mal-entendido (enquanto a maioria dos intérpretes um pouco mais cuidadosos tentam compatibilizar de algum modo as duas exigências kantianas: de racionalidade eletiva e escolha por possibilidades alternativas), apostando em que, por si só, a distinção da Metafísica dos Costumes entre vontade (Wille) e arbítrio (Willkür) dispensa ulteriores esclarecimentos sobre como o arbítrio “desracionalizado” escolhe de modo responsável e imputável qualquer caminho. Quanto ao segundo problema, Hill explica a fraqueza ora como um querer o “certo de algum modo vago e relativamente inexplícito em relação às suas implicações”, ora como um querer o certo “fracamente”, isto é, “de modo oscilante” (wavering), apenas “semi-resoluto” (half-hearted) ou “sem querer os meios necessários e disponíveis” (Hill, 2008, p. 228). Sobre a primeira alternativa, vagueza e falta de clareza são fenômenos perfeitamente alinhados com uma tradição de explicação do erro moral como ignorância, agnoia, que remonta ao chamado “intelectualismo moral” do platonismo (certamente do Protágoras, do Laques, do Cármides e do Menon, mas não do Livro 4 da República), e que se não elimina, pelo menos mitiga significativamente a imputabilidade da escolha pelo mal, o que, a meu ver, vale perfeitamente para Kant. Numa frase, é absolutamente antikantiana a tese de que a imoralidade de uma decisão ou de todo um caráter seja resultado do desconhecimento (ou um conhecimento vago e obscuro) do que é o moralmente certo. Seja porque o moralmente certo é, segundo Kant, imediatamente acessível ao menos cultivado dos intelectos, seja porque erro por ignorância não é falta moral. Sobre a segunda alternativa, “querer fracamente” não é a explicação, mas justamente o que precisa ser explicado. Se é a sensibilidade que “afeta” o arbítrio humano que explica “querer fracamente” o fim moral (e, por conseguinte, a recusa de meios penosos à felicidade própria), então o erro daí decorrente é inimputável. Se não é, então um arbítrio racional capaz de resistir aos apelos do sensível simplesmente não escolhe a irracionalidade do mal moral. Assim, quer me parecer que as tentativas de Hill passam longe de uma explicação consistente, no quadro do kantismo, da escolha pelo mal não apenas por fraqueza moral, mas por qualquer razão que seja.
  • 26
    Cf. CRP A554-6/B582-4; KpV AA 05: 98, 100; MS AA 06: 226 etc.
  • 27
    Timmermann tenta explicar isso como “uma capacidade assimétrica de, quando convocados, deixarmos de fazer o errado e fazermos o certo” (Timmermann, 2007, p. 165SIDGWICK, H. “The Methods of Ethics”. Palgrave Macmillan, 1962.).
  • 28
    Timmermann explora essa linha de leitura, sugere que a afecção sensível a que se acha exposta nossa vontade estaria na base de uma instabilidade do comando eletivo da nossa racionalidade, e ao fim e ao cabo confessa o embaraço: “We do not understand how the elective will, which after all is not subject to the causal laws of nature, can be ‘affected’ by sensibility at all. Sometimes, reason mysteriously fails to be active, or as active as it ought to be…” (Timmermann, 2007, p. 166SIDGWICK, H. “The Methods of Ethics”. Palgrave Macmillan, 1962.).
  • 29
    Para as “textuais”, cf. nota 6.
  • 30
    A versão de Timmermann para o mesmo inconformismo: “É um lugar-comum filosófico que a liberdade é condição necessária e suficiente da responsabilidade moral. Se atos moralmente maus não são expressão de liberdade, será que realmente merecemos ser condenados por eles? Eles parecem ser determinados por leis da natureza e, como tais, não ser de forma alguma livres; seres humanos poderiam ser responsáveis apenas por ações moralmente boas” (Timmermann, 2007, p. 164SIDGWICK, H. “The Methods of Ethics”. Palgrave Macmillan, 1962.).
  • 31
    Kant fornece na mesma passagem uma explicação para essa “inexplicabilidade” que poderia vir a ser usada para mitigar a gravidade do problema que este artigo quer destacar. A afirmação subsequente de que “somente os acontecimentos segundo o mecanismo da natureza são passíveis de explicação” sugeriria, segundo essa linha, uma mera incompatibilidade técnica entre o procedimento da “Erklärung” e os objetos da filosofia prática. Discordo dessa mitigação. Em primeiro lugar, porque isso que a nota da p. 321 chama de “inexplicável” — a saber, “como é possível para o sujeito adotar uma tal máxima contrária à clara interdição da razão legislante” — parece ser exatamente o que o corpo do texto da p. 226 também recusa, mas agora chamando não de “inexplicável”, e sim de “inconcebível” (wir doch die Möglichkeit nicht begreifen können), a saber, “a possibilidade de o sujeito racional [...] adotar uma escolha conflitante com sua razão (legislante)”. Portanto, das duas uma: ou bem Kant está falando de coisas inteiramente diferentes (uma inexplicável, outra inconcebível) quando se refere (i) à possibilidade “para o sujeito adotar uma tal máxima contrária à clara interdição da razão legislante” e quando se refere (ii) à “possibilidade de o sujeito racional [...] adotar uma escolha conflitante com sua razão (legislante)” — hipótese extremamente improvável; ou bem a referida limitação técnica do verbo “erklären” teria que recair também sobre o verbo “begreifen”, e nesse caso, também profundamente improvável, Kant estaria praticamente esgotando seus recursos linguísticos para garantir que não haveria qualquer problema mais sério com a possibilidade da livre escolha do mal moral, apesar de “inexplicável” e “inconcebível”. Em segundo lugar, se quisermos sair da Metafísica dos Costumes mas permanecer na década de 90, Kant emprega ainda outro vocabulário que não o de “erklären” e “begreifen” para designar esse seu mesmo constrangimento para dar conta da “origem racional” do que é agora caracterizado como “Verstimmung do nosso arbítrio”, que o faz “elevar incentivos subordinados (inferiores) ao posto de comando de suas máximas” e, assim, escolher livremente a “corrupção” e o mal moral. Na Religião, chama isso de “unerforschlich” (Rel AA 6: 43). Assim, parece cada vez mais improvável que a livre escolha pela imoralidade, que não pode ser “explicada”, que é “inconcebível” e que é “imperscrutável”, esteja de algum modo bem resolvida para Kant. Finalmente, a permanecer na “Erklärung” da nota à p. 321 da Metafísica dos Costumes, pode ser verdade que o procedimento racional explicativo que adotamos para dar conta do mecanismo da natureza não funcione para dar conta do problema de como, na condição de sujeitos racionais, somos capazes de racionalmente adotar uma máxima antirracional. Mas a constatação dessa inadequação só torna mais dramático o problema de como isso (a livre escolha pelo mal) é possível, ou “concebível”, no quadro conceitual das obras fundacionais da moralidade no kantismo — sobretudo porque tampouco aqui, na Metafísica dos Costumes, Kant sequer sugere algum outro instrumento além da fracassada ou imprópria Erklärung para solucionar a dificuldade de que o artigo trata. Diante do evidente embaraço de a livre imoralidade “apenas poder e dever ser explicada de um modo” (kann und muss nicht anders als so erklärt werden...), e no entanto “não poder ser explicada” (lässt sich schlechterdings nicht erklären) desse modo, ao leitor resta a simples e claramente insuficiente afirmação de que “um sistema da moral não a deve excluir” (MS AA 06: 322n).
  • 32
    Essas afirmações de Kant merecem um comentário. Na nota da p. 321 da Metafísica dos Costumes em que Kant afirma que “é simplesmente inexplicável como é possível para o sujeito adotar uma tal máxima contrária à clara interdição da razão legislante”, encontramos um esforço de distinção entre duas maneiras de proceder à imoralidade: uma, em que “o criminoso apenas se desvia da lei” “sem recusar formalmente obediência” a ela; e outra em que “ele rejeita a autoridade da própria lei, da qual, apesar disso, ele não pode, diante de sua razão, negar a validade” (321:34-42 a 322:17-21). Aparentemente, é a propósito apenas do segundo tipo que Kant afirma que “até onde percebemos, um crime dessa natureza [...] é impossível a um humano de cometer”. Essa restrição, entretanto, é problemática pelos seguintes motivos. Em primeiro lugar, no trecho inicial da nota (linhas 27-34), Kant está asserindo a inexplicabilidade de “qualquer transgressão da lei” (eine jede Übertretung des Gesetzes) e não de um tipo específico; e, no segundo, a expressão “so viel wir einsehen” está próxima demais do “lässt sich schlerchterdings nicht erklären” para, no mínimo, deixar aberta a possibilidade interpretativa de que Kant estaria aí se referindo ao mesmo inexplicável nos dois casos, a saber, o primeiro apresentado: “eine jede Übertretung...”. Ademais, Kant já afirmara, na mesma obra, a mesma impossibilidade de se conceber a livre escolha pela imoralidade — a saber, no parágrafo em que recusava a definição da liberdade como poder de escolher entre o bem e o mal moral (MS AA 06: 226) — sem propor qualquer distinção de graus de imoralidade. O segundo motivo, que, a meu ver, confirma a prioridade que confiro ao primeiro trecho na identificação do objeto “inexplicável” e “impossível [...] segundo nossa perspiciência” (unmöglich... so viel wir einsehen) — a saber, “qualquer transgressão da lei” —, é um motivo conceitual, e não apenas exegético. Não há, na articulação conceitual das obras fundacionais de Kant sobre liberdade e moralidade, notadamente a Fundamentação e a Crítica da Razão Prática, uma distinção relevante entre graus de radicalidade nas escolhas imorais. Pelo menos nessas obras, que, a meu ver, sempre devem ser usadas como referência para o debate conceitual, só existe um único fundamento para qualquer caso de imoralidade: em situações de conflito moral, a incorporação na máxima da conduta do princípio da satisfação das inclinações em vez de a incorporação da lei moral. Assim, por mais que Kant pareça, na referida nota da p. 321, atenuar a imoralidade por “desvio”, em qualquer caso, o ato de escolha de uma máxima imoral precisa ser um ato realizado pela razão prática para ser considerado como livre e imputável (“denn wenn man sie von einem sinnlichen Antrieb ableitete, so wäre sie nicht von ihm, als einem freien Wesen, begangen, und könnte ihm nicht zugerechnet werden”). Isso significa que, para qualquer ato de escolha imoral, mesmo a transgressão “desviante” (abweichen), vale o essencial que marca a imoralidade (“inexplicável”) da “infração” (abbrechen): o reconhecimento racional da validade da lei (“dessen Gültigkeit er sich doch vor seiner Vernunft nicht abläugnen kann”) e a recusa racional de sua autoridade (“...verwirft er die Autorität des Gesetzes...”). Se o desvio da lei, ainda que como autodispensa ocasional (“sich gelegentlich...dispensieren”), é dito “deliberado” (“vorsetzlich”), não há outra maneira de compreender isso senão que o agente lúcida e racionalmente identificou a escolha imoral como imoral, e ainda assim optou por ela, rejeitando o caminho da moralidade, que ele também precisa ter identificado racionalmente como o certo. Desse modo, por mais que haja uma diferença entre, de um lado, “desejar contornar a lei sem recusar formalmente obediência a ela” e, de outro, “fazer para si mesmo a regra de atuar contra a lei”, em ambos os casos se faz ver o essencial do “inexplicável” na imoralidade: que o sujeito agente reconheça a validade da lei por sua própria razão e ainda assim rejeite sua autoridade pouco importando se apenas “ocasionalmente”. Meu uso da citação é governado pela hipótese interpretativa declarada do artigo, segundo a qual o grave, relevante e discutível do caso da imoralidade por infração não é a hostilidade à lei: é a capacidade de perceber racionalmente qual é o caminho do bem e escolher também racionalmente o caminho do mal, uma capacidade que supostamente já se atualiza, “inexplicavelmente”, na imoralidade por desvio.
  • 33
    Sobre o que, lamenta Timmermann “Unfortunately, while a frank admission of failure makes its author more likeable it does not save his theory” (Timmermann, 2007, p. 167SIDGWICK, H. “The Methods of Ethics”. Palgrave Macmillan, 1962.).
  • 34
    Timmermann diagnostica esse fracasso após recusar a definição reinholdiana de liberdade e se esforçar por inscrever a possibilidade da livre escolha pelo mal no escopo de sua própria interpretação geral da liberdade humana em Kant como “mera capacidade assimétrica”. Sua hipótese inicial é a de que, para Kant, a vontade humana seria livre na medida em que poderia escolher alternativamente apenas à imoralidade, e jamais escolher a imoralidade como alternativa ao bem moral. Mas mesmo abraçando uma liberdade voluntarista assim limitada, constata o embaraço de qualquer versão da liberdade como “mera capacidade”: “If freedom is a mere capacity, we cannot account for moral failure, which amounts to the free renunciation of freedom […]. To rephrase the objection in more Kantian terms: moral failure cannot just be an effect of natural causation, as the agent is negatively free from that; but it cannot entirely be due to rational causation either, as after all immoral actions are not rational. We do not understand how the elective will, which after all is not subject to the causal laws of nature, can be ‘affected’ by sensibility at all. Sometimes, reason mysteriously fails to be active, or as active as it ought to be…” (Timmermann, 2007, p. 166SIDGWICK, H. “The Methods of Ethics”. Palgrave Macmillan, 1962.).

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    Ago 2023

Histórico

  • Recebido
    26 Set 2022
  • Aceito
    22 Fev 2023
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