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DIFERENÇA E DISTRIBUIÇÃO NÔMADE NA FILOSOFIA POLÍTICA DE DELEUZE E GUATTARI

DIFFERENCE AND NOMADIC DISTRIBUTION IN DELEUZE AND GUATTARI'S POLITICAL PHILOSOPHY

RESUMO

O objetivo deste artigo foi desenvolver uma interpretação da ligação entre o empirismo transcendental deleuziano e a filosofia política deleuze-guattariana do “Tratado de Nomadologia”, que se centra no conceito de máquina de guerra nômade. Para compreender este conceito, é necessário ter em vista que se trata de uma Ideia transcendental ou multiplicidade virtual, correlata a um effondement (‘desfundamento’), que sustém uma diferença de direito em relação ao aparelho de Estado e à instituição militar. Com base nessa premissa, analisam-se os três aspectos da máquina de guerra nômade: um espacial-geográfico (o espaço liso), um numérico (o número numerante) e um afetivo (as armas). Por fim, conclui-se com um exame da leitura crítica que os autores fazem da noção de guerra absoluta em Clausewitz, que nos permite reforçar a interpretação do conceito de máquina de guerra nômade como Ideia transcendental.

Palavras-chave:
Fundamento; Nomadismo; Máquina de guerra; Empirismo transcendental; Ontologia da diferença; Filosofia política

ABSTRACT

The aim of this article was to develop an interpretation of the relation between Deleuzian transcendental empiricism and Deleuze-Guattarian political philosophy in the “Treatise on Nomadology,” which focuses on the concept of the nomadic war machine. To understand this concept, it is necessary to keep in mind that this is a transcendental Idea or virtual multiplicity, correlated of an effondement (‘ungrounding’), which sustains a difference by right in relation to the State apparatus and the military institution. On the basis of this premise, the three aspects of the nomadic war machine are analyzed: a spatial-geographical one (the smooth space), a numerical one (the numbering number), and an affective one (the weapons). Finally, we conclude with an examination of the authors’ critical reading of the notion of absolute war in Clausewitz, which allows us to strengthen the interpretation of the concept of nomadic war machine as transcendental Idea.

Keywords:
Grounding; Nomadism; War machine; Transcendental empiricism; Ontology of difference; Political philosophy

Introdução

O personagem conceitual do nômade e o conceito de máquina de guerra estão entre os constructos filosóficos mais centrais do trabalho conjunto de Gilles Deleuze e Félix Guattari, e aparecem de maneira mais completa e clara no “Tratado de Nomadologia: a Máquina de Guerra”, na obra “Mil Platôs” (1980). Poder-se-ia traçar uma gênese do conceito de máquina de guerra a partir de problemas teóricos que emergem no seio da obra O Anti-Édipo, que refletem ainda questões caras à obra de Guattari e seu engajamento prático, como a própria questão da organização política. O primeiro uso da expressão ‘máquina de guerra’está no prefácio de Deleuze à obra “Psicanálise e Transversalidade”, de Guattari (1972)GUATTARI, F. “Psychanalyse et transversalité: essais d’analyse institutionnelle”.Paris: François Maspero, 1972.. Mas de maneira complementar e, portanto, sem exclusão desse primeiro itinerário de pesquisa, seria ainda importante compreender de que modo a noção de nomadismo ou de distribuição nômade converge com o conceito de máquina de guerra, e para tanto deve-se retraçá-los diretamente à problemática ontológica como a encontramos no empirismo transcendental de Deleuze. O objetivo deste artigo é, nesse sentido, esboçar essa conexão e assim apontar como o conceito de máquina de guerra nômade pode oferecer uma perspectiva privilegiada sobre a ligação entre a ontologia deleuziana da diferença e as noções políticas e discussões em teoria das ciências humanas que aparecem no “Tratado de Nomadologia”.

No texto em questão é desenvolvida uma hipótese central a respeito da relação entre a guerra e o Estado: para Deleuze e Guattari, o aparelho de Estado tem um regime de violência sobretudo policial e carcerário, e não exatamente guerreiro. A violência guerreira é de outra natureza, e se pode até mesmo elencar evidências de que originariamente ela funciona contra e não em favor do Estado. O que os autores buscam investigar é precisamente como acontece a apropriação da violência guerreira pelo Estado, apropriação que não a deixa intacta, mas transforma sua natureza.

Para mobilizar esse conjunto de premissas, Deleuze e Guattari cunham o conceito de máquina de guerra. Ela teria sido uma invenção dos povos nômades das estepes eurasiáticas, como vemos por exemplo no caso dos hunos ou dos mongóis. Como observa Oneto (2010)ONETO, P. “A nomadologia de Deleuze e Guattari”. Lugar Comum, 23-24, 2010., o título desse ‘platô’ (como os autores preferem, em alternativa a ‘capítulo’) é precedido, como os outros platôs, por uma data em vez de numeração de capítulo: neste caso se trata de 1227, ano da morte de Gengis Khan. Isto já prenuncia a centralidade do estudo da vida dos nômades das estepes eurasiáticas para os conceitos construídos. Os autores apoiam-se nos dados historiográficos, etnológicos e arqueológicos mais recentes à época da escrita do livro para buscar descrições desses povos, mas deve-se levar em conta que a leitura desse material é feita de um ponto de vista filosófico, cujo desenvolvimento passa também pela descrição que Nietzsche faz das ‘aristocracias guerreiras’ na “Genealogia da Moral” (2009).

O que buscaremos mostrar é que, apesar de considerarem a máquina de guerra uma invenção nômade, Deleuze e Guattari a tratam como multiplicidade virtual no sentido próprio do empirismo transcendental deleuziano de “Diferença e Repetição” (1993). Isso significa que a máquina de guerra, tendo uma invenção historicamente assinalável na vida das sociedades nômades, se mostra, contudo, como uma Ideia, como uma questão de direito mais que uma questão de fato, e que pode assim se atualizar de diversas maneiras. Para tanto, começaremos por trazer uma brevíssima súmula da questão ontológica em Deleuze, centrada no problema do fundamento e na noção de diferença, já buscando evidenciar como ela é desde cedo atravessada pela noção de nomadismo, de distribuição nômade. Passaremos então diretamente à conexão entre essa ontologia e a problemática política do “Tratado de Nomadologia”, desdobrando então uma análise detalhada sobre os três aspectos da máquina de guerra elencados no texto – o espaço liso, o número numerante e as armas-afetos.

Deleuze e a quæstio iuris

Ao menos desde seu “Bergsonismo” (Deleuze, 2004DELEUZE, G. (1966). “Bergsonisme”. Paris: Quadrige/Presses Universitaires de France, 2004.), em especial no capítulo “A intuição como método”, Deleuze já apontava a necessidade de uma análise diferencial ou transcendental na qual fosse possível discernir o nível das misturas de fato (determinações resultantes do processo de atualização) e o nível das distinções de direito (diferenciações internas do virtual). Nas suas próprias palavras, o método bergsoniano da intuição,

Como método de divisão, guarda semelhança ainda com uma análise transcendental: se o misto representa o fato, é preciso dividi-lo em tendências ou presenças puras, que só existem de direito. Ultrapassa-se a experiência em direção às condições da experiência (mas estas não são, à maneira kantiana, condições de toda experiência possível, e sim condições da experiência real). (Deleuze, 2004, pp. 12-13DELEUZE, G. (1966). “Bergsonisme”. Paris: Quadrige/Presses Universitaires de France, 2004.).

Esse método de divisão será o norteador primordial da filosofia de Deleuze e Guattari, mas de maneira ainda mais contundente em Mil Platôs, obra na qual as análises diferenciais se multiplicam e se proliferam em um sem-número de tipologias e topologias, classificações não hierárquicas de toda sorte, enfim, em multiplicidades que se espalham lateralmente, por divisões internas às divisões, por ramificação. Assim, por exemplo, temos cinco processos maquínicos sociais, quatro diferentes regimes de violência, três aspectos da máquina de guerra, três formas de aparelho de Estado, cinco critérios de distinção entre armas e ferramentas etc. A razão disto é bem definida: trata-se de elevar-se ao nível das distinções de direito, para depois então se poder avaliar as misturas de fato. Ainda no contexto de um exemplo de análise diferencial (a distinção entre o nômade, o itinerante e o trasumante), Deleuze e Guattari enunciam claramente o sentido do método:

[...] seja quais forem as misturas de fato entre nomadismo, itinerância e transumância, o conceito primário não é o mesmo nos três casos (espaço liso, matéria-fluxo, rotação). Ora, é somente a partir do conceito distinto que se pode julgar a mistura, quando ela se produz, e a forma sob a qual se produz, e a ordem na qual se produz (Deleuze; Guattari, 1980, p. 510DELEUZE, G., GUATTARI, F. “Mille Plateaux: capitalisme et schizophrénie II”. Paris: Les Éditions deMinuit, 1980., grifos nossos).

Essa separação dos mistos tem como primeiro critério, portanto, simplesmente a observância das diferenças de natureza. Toda a questão está em saber determinar essas diferenças, buscar o conceito distinto ou distinção transcendental em meio aos fatos empíricos (e neste ponto poderíamos ainda questionar a relação entre a filosofia, que opera no nível do conceito, e as ciências, que operam predominantemente no nível dos fatos).

Num segundo momento, contudo, abre-se o campo da ontologia no qual se torna necessário selecionar ainda uma das tendências ou linhas de diferenciação encontrada no nível das diferenças de natureza. Isto é especialmente importante em Deleuze porque todo o seu pensamento desenvolve-se a partir da intuição da diferença, isto é, a partir da necessidade de talhar uma concepção da diferença em si. O filósofo não cessará de repetir que essa concepção só pode ser produto de uma análise diferencial, segundo o método: partir da análise das diferenças de natureza para chegar à natureza da diferença (Deleuze, 2002DELEUZE, G. “L’île déserte: textes et entretiens (1953-1974)”. Ed. D. Lapoujade. Paris: Les Éditions de Minuit, 2002., 2004DELEUZE, G. (1966). “Bergsonisme”. Paris: Quadrige/Presses Universitaires de France, 2004.). A análise das distinções conceituais permite encontrar posteriormente o ‘bom lado’ ou ‘boa metade’ da divisão, isto é, a tendência de direito que é ela mesma portadora da diferença, que se apresenta ela mesma como fluxo de duração, como multiplicidade aberta. Nesse contexto, poder-se-á considerar que a natureza da diferença é a própria transformação qualitativa temporal, que a duração pura é substância, definida como processo de eterna diferenciação interna de si. A ‘boa metade’ dos produtos de uma análise diferencial será, portanto, a tendência que porta o ponto de vista da duração, da mutação ou transformação pura.1

Para compreender a centralidade disso, deve-se ter em vista todo o desenvolvimento da crítica deleuziana ao fundamento desde seus primeiros escritos. A busca de Deleuze por uma concepção da diferença pura, irredutível à contradição e à diversidade, se vincula necessariamente a essa crítica, uma vez que permite traçar a noção de um ‘desfundamento’, ou ‘a-fundamento’, no qual as grandes dualidades metafísicas (o Uno e o Múltiplo, o Ser e o Nada, o Homem e a Natureza) não podem se sustentar. Ao contrário do que apregoa a tradição metafísica ocidental, é apenas a partir da desnaturação da diferença em si que surgem as formas individuadas, determinações fixas e as dicotomias ontológicas relacionadas por oposição. Em contrapartida, não se pode deixar de considerar que essa desnaturação já é parte do jogo da diferença: se a diferença pura está no âmbito do virtual, como distribuição ontológica aberta de singularidades pré-individuais e pré-pessoais, ela não está menos presente no âmbito das diferenças atuais, isto é, das determinações nas quais aparecem os indivíduos. Há uma relação intrínseca entre os recortes nas multiplicidades atuais – a diversidade, as oposições, as instâncias negativas – e as multiplicidades virtuais: o atual é sempre uma diferenciação do virtual, ou a atualização de um virtual que não desaparece nesse processo de diferenciação.

Ocorre que há um estatuto específico dessa presença. Sobretudo, é necessário ter em vista a heterogeneidade entre os dois níveis: o atual não é uma mera realização do virtual, como numa seleção de reais entre um campo de possíveis. Também não se trata de uma relação entre ato e potência, nem de uma relação entre modelo ideal e cópias sensíveis – o problema é que, em todos esses casos, articulam-se campos duplicados cuja diferença é meramente relativa ou de grau, em que se tem no sensível, no ato, ou no real simplesmente as cópias semelhantes ou idênticas ao ideal, ao potencial ou ao possível. Reverberação do platonismo em toda a tradição metafísica. Já a relação entre o atual e o virtual é de diferença pura: o virtual não se atualiza sem mudar de natureza, ele é aquilo que muda de natureza ao se atualizar, que se atualiza ao se diferenciar de si.

É nesse sentido que a concepção da diferença em si (ou diferença pura, ou diferença interna) é capaz de efetivamente colocar em xeque o fundamento, que aparece na história da filosofia sob as mais diversas formas do modelo ideal, do primeiro motor imóvel, do sujeito-substância ou do sujeito-unidade transcendental, variadas formas do Um transcendente, do Idêntico e da identidade a priori. Se há um Ser, não se trata mais do Um como critério de distribuição hierárquica dos entes, mas do ser da diferença, ser unívoco que, no entanto, se diz da diferença e não seleciona senão o diferente, que se diz “num único sentido de todas as suas diferenças individuantes ou modalidades intrínsecas” (Deleuze, 1993, p. 53DELEUZE, G. (1968). “Différence et répétition”. Paris: Presses Universitaires de France, 1993.), numa distribuição aberta e ilimitada, distribuição anárquica – uma anarquia coroada na qual a consistência se produz nos processos de diferenciação. Como afirma ainda Deleuze (1993, p. 54)DELEUZE, G. (1968). “Différence et répétition”. Paris: Presses Universitaires de France, 1993.:

Há [...] uma distribuição que é preciso chamar de nomádica, um nomos nômade, sem propriedade, sem cerca e sem medida. Aí já não há partilha de um distribuído, mas sobretudo repartição daqueles que se distribuem num espaço aberto ou ilimitado ou, pelo menos, sem limites precisos. Nada cabe ou pertence a alguém, mas todas as pessoas estão dispostas aqui e ali, de maneira a cobrir o maior espaço possível. Mesmo quando se trata da seriedade da vida, dir-se-ia haver aí um espaço de jogo, uma regra de jogo, em oposição tanto ao espaço como ao nomos sedentários. Preencher um espaço, partilhar-se nele, é muito diferente de partilhar o espaço. É uma distribuição de errância e mesmo de “delírio”, em que as coisas se desdobram em todo o extenso de um ser unívoco e não-partilhado.

Enfim, o nível das multiplicidades virtuais não é mais o campo do fundamento, mas o âmbito da instauração de desabamentos, de um effondement ou ‘desfundamento’.2 Por isso, há algo de intrinsecamente destrutivo na diferença pura, certa afinidade com o combate, certa violência própria. Como nota Lapoujade (2015)LAPOUJADE, D. “Deleuze, os movimentos aberrantes”. São Paulo: n-1 Edições, 2015., o conceito de effondement em Deleuze irá traduzir-se, em suas obras junto a Guattari, no conceito de desterritorialização. A desterritorialização absoluta, por sua vez, é concebida em entrelaçamento ao processo esquizo em “O Anti-Édipo” (1972) e, depois, em conjunção ao processo da máquina de guerra nômade em “Mil Platôs” (1980). Não à toa, contudo, Deleuze já aludia desde “Diferença e Repetição” a essa lógica e ontologia da diferença como distribuição nômade, ou anarquia coroada. Já o aparelho de Estado é a grande figura política do fundamento: a origem da violência de Estado remete sempre apenas a ela mesma, violência circular de fundação cuja origem é impossível retraçar no tempo, indo rumo a um passado imemorial, origem mítica e fantasmagórica de um direito à violência que tem como fim garantir o próprio Direito (cf. Agostinho, 2016AGOSTINHO, L. “Por uma anarquia coroada: ontologia e política em Deleuze eGuattari”. Poiesis: Revista de Filosofia, Vol. 13, Nr. 1, 2016.).

Assim, a Ideia em Deleuze é transcendental, mas já não se trata mais do campo transcendental kantiano, de uma Ideia da razão como representação para um sujeito, mas sim da Ideia como multiplicidade virtual sem sujeito e sem forma abstrata de objeto para um sujeito. Pode-se entender que para Deleuze o sujeito é ele mesmo um “resto” ou um produto a posteriori, sujeito larvar extraído da repetição – como o filósofo já enunciava em seu “Empirismo e Subjetividade” (Deleuze, 1953DELEUZE, G. “Empirisme et subjectivité”. Paris: Presses Universitaires de France, 1953.). Se Deleuze utilizava ainda a palavra estrutura para designar esse caráter da Ideia no quarto capítulo de “Diferença e Repetição” é porque encontrava nessa noção justamente os critérios para a construção de uma noção de multiplicidade sem determinação a priori de sujeito e objeto. O filósofo buscou, assim, descrever a estrutura não mais por diferenças opositivas e determinações negativas entre seus elementos, mas por diferenças puras que definiriam as formas tendenciais de relação entre o transcendental e o empírico. Explica Deleuze (1993, pp. 237-238)DELEUZE, G. (1968). “Différence et répétition”. Paris: Presses Universitaires de France, 1993.:

A Ideia se define assim como estrutura. A estrutura, a Ideia, é o “tema complexo”, uma multiplicidade interna, isto é, um sistema de ligação múltipla não localizável entre elementos diferenciais, que se encarna em relações reais e termos atuais. Não vemos, nesse sentido, nenhuma dificuldade em conciliar gênese e estrutura. [...] o “estruturalismo” nos parece mesmo o único meio pelo qual um método genético pode realizar suas ambições. Basta compreender que a gênese não vai de um termo atual, por pequeno que seja, a outro termo atual no tempo, mas vai do virtual a sua atualização, isto é, da estrutura a sua encarnação, das condições de problemas aos casos de solução, dos elementos diferenciais e suas ligações ideais aos termos atuais e às correlações reais diversas que, a cada momento, constituem a atualidade do tempo. [...] Há Ideias que correspondem às realidades e correlações matemáticas, há outras que correspondem aos fatos e leis físicas, e há outras, ainda, segundo sua ordem, que correspondem aos organismos, aos psiquismos, às linguagens, às sociedades: essas correspondências sem semelhança são estruturas-genéticas.

Mais tarde, o filósofo francês cessa de utilizar o termo ‘estrutura’ e de se colocar ao lado do estruturalismo, ainda que fosse para reconciliá-lo com um método genético. Em seus trabalhos com Guattari, há enfim a percepção de que não é possível disputar ao estruturalismo uma outra concepção da diferença, e os autores buscam então um caminho mais autônomo. Contudo, os traços essenciais do empirismo transcendental deleuziano, incluindo o par virtual-atual e a noção de multiplicidade como elementos de definição da Ideia, continuarão a compor as obras dos filósofos. Como afirma Deleuze (2003, p. 287)DELEUZE, G. “Deux régimes de fous: textes et entretiens (1975-1995)”. Ed. David Lapoujade. Paris: Les Éditions de Minuit, 2003.:

Após ter estudado Hume, Espinosa, Nietzsche, Proust, que me encheram de entusiasmo, Diferença e Repetição foi o primeiro livro onde ensaiei ‘fazer filosofia’. Tudo o que eu fiz em seguida se encadeia com esse livro, mesmo o que nós escrevemos com Guattari (falo, evidentemente, de meu ponto de vista).

O Tratado de Nomadologia é voltado inteiramente para a construção desta Ideia, desta multiplicidade virtual que é a máquina de guerra nômade. Um dos pontos fundamentais da construção de tal conceito é a sua distinção em relação ao aparelho de Estado e em relação à instituição militar. Temos agora mais material para buscar esclarecer em que sentido a máquina de guerra nômade é uma Ideia que pode ser concebida a partir de uma análise transcendental, análise que permite diferenciá-la de direito do aparelho de Estado (ou de captura): ela é o lado tendencial que porta a natureza da diferença, que se constitui como multiplicidade virtual, aberta e não hierárquica, anarquia coroada. Quando nos debruçamos sobre a questão de como a máquina de guerra se efetua, isto é, como ela se atualiza, não podemos perder de vista que passamos às misturas de fato, ao campo empírico, e que, no entanto, a distinção de direito se mantém. Deleuze e Guattari fazem a intrigante afirmação de que a máquina de guerra nômade não tem a própria guerra como objeto primário. Isto porque seus caracteres primários passam por outros lineamentos que não o da guerra em si (definida como aniquilação de um inimigo), e esta, quando surge, não é senão uma guerra contra o Estado. O que encontramos nas formas históricas da instituição militar e nas guerras efetivas que ela empreende são já misturas de fato, atualizações da máquina de guerra, apropriações que já a transformam em algo outro. A máquina de guerra sofre mutações ao se atualizar, se desnatura ao ser determinada no campo empírico.

O nomos nômade: espaço liso e número numerante

Assim, o estudo da vida nômade é um meio de investigação desse conceito, meio que oferece os melhores indícios de seu funcionamento. É apenas nesse sentido que a máquina de guerra é invenção dos nômades – eles souberam engendrar a Ideia em ato da máquina de guerra, e foram os que a executaram com maior excelência. A maneira como o capitalismo cria para si suas máquinas de guerra será ainda outra diferenciação, outra forma radicalmente diferente de a atualizar.

Os autores não constroem a sua noção de nomadismo, ou seu personagem conceitual do nômade, no vazio de uma especulação idealista. A todo momento o desenvolvimento dos conceitos se reporta aos últimos estudos historiográficos, arqueológicos e antropológicos disponíveis à época. Em “Mil Platôs”, as concepções ontológicas se conjugam finalmente com a problemática política e com uma discussão detida sobre determinadas teses em ciências humanas. Sob o risco de tratar o desenvolvimento dos conceitos como meras metáforas, não se pode reduzir a problemática política à problemática ontológica – deve-se, em vez disso, lê-las em conjunto. Este ponto é decisivo no que diz respeito à interpretação dos três aspectos da máquina de guerra: por exemplo, quando Deleuze e Guattari falam em ‘armas’ de uma máquina de guerra eles estariam se referindo a algo outro que não tais objetos técnicos? A leitura do texto nos mostra que não há metáfora, mas sim uma discussão altamente especializada sobre como as ciências humanas tratam as sociedades não estatais. Trata-se de uma crítica epistemológico-política: ciências como a antropologia e a história tomam o Estado como forma final de “civilidade”, como termo teleológico segundo o qual as sociedades são avaliadas. Por fim, o problema será o da captura, isto é, de como o mecanismo de interiorização do aparelho de Estado foi capaz de encontrar um meio de se apropriar e, com isso, desnaturar esses aspectos da máquina de guerra, subordinando-os à sua própria lógica.

É por isso, portanto, que Deleuze e Guattari irão privilegiar a investigação dos traços do modo de vida nômade e seu ethos guerreiro para a construção do conceito da máquina de guerra, elencando três desses aspectos do nomadismo propriamente dito: um espacial-geográfico, um numérico e um afetivo. Em cada um, o que está em jogo é sempre a tentativa de compreensão imanente do nomadismo, esse “movimento aberrante” (Lapoujade, 2015LAPOUJADE, D. “Deleuze, os movimentos aberrantes”. São Paulo: n-1 Edições, 2015.) da História, por meio de um afastamento da forma-Estado como chave analítica.

Sob a perspectiva espacial-geográfica, a máquina de guerra nômade constitui um espaço liso, espaço de intermezzo e deslocamento permanente, distinto da migração e da itinerância. Isto significa que o nomadismo é uma forma específica de relação com o espaço que elide as coordenadas cartesianas e seus pontos fixos de localização. É uma forma de relação com pontos ou singularidades espaciais que mudam elas mesmas de lugar o tempo todo – o que permite aos filósofos afirmar que o nômade é na verdade aquele que não se movimenta, mas que habita o próprio deslocamento, que está “parado” sobre uma velocidade de desterritorialização. O nômade é aquele que se sente em casa no deserto. Como afirmam Deleuze e Guattari (1980, p. 474)DELEUZE, G., GUATTARI, F. “Mille Plateaux: capitalisme et schizophrénie II”. Paris: Les Éditions deMinuit, 1980.:

É nos mesmos termos que se descreve o deserto de areia e o de gelo: neles, nenhuma linha separa a terra e o céu; não há distância intermediária, perspectiva, nem contorno, a visibilidade é restrita; e, no entanto, há uma topologia extraordinariamente fina, que não repousa sobre pontos ou objetos, mas sobre hecceidades, sobre conjuntos de correlações (ventos, ondulações da neve ou da areia, canto da areia ou estalidos do gelo, qualidades tácteis de ambos); é um espaço táctil, ou antes ‘háptico’, e um espaço sonoro, muito antes que visual... A variabilidade, a polivocidade das direções é um traço essencial dos espaços lisos, do tipo rizoma, e que modifica sua cartografia. O nômade, o espaço nômade, é localizado, não delimitado.

O espaço liso é aquele que se constitui como tal distribuição, aquele em que os seres se partilham sobre um espaço em vez de operar a partilha do espaço. Operar a partilha do espaço seria o equivalente a mensurá-lo, esquadrinhá-lo sob linhas cartesianas, fixar fronteiras e cercar propriedades – em outros termos, seria transformá-lo em espaço estriado, “distribuir aos homens um espaço fechado” (Deleuze; Guattari, 1980, p. 472DELEUZE, G., GUATTARI, F. “Mille Plateaux: capitalisme et schizophrénie II”. Paris: Les Éditions deMinuit, 1980.). Medir o espaço é estriá-lo, operação típica dos Estados. Um grupo que se partilha sobre o espaço, contudo, está se distribuindo de maneira fluida e mutável, ocupando o espaço sem medi-lo, pondo-se a nomadizar de modo propriamente dito. O nomadismo “distribui os homens (ou os animais) em um espaço aberto” (Deleuze; Guattari, 1980, p. 472DELEUZE, G., GUATTARI, F. “Mille Plateaux: capitalisme et schizophrénie II”. Paris: Les Éditions deMinuit, 1980.).

Esse aspecto está mais diretamente relacionado ao que anteriormente Deleuze chamava de distribuição nômade. Na verdade, a construção do conceito de distribuição nômade e a do conceito de nomadismo seguem uma direção de influência recíproca, uma vez que em “Diferença e Repetição” o filósofo já fazia referência a situações históricas concretas para construir seu conceito de distribuição ontológica nomádica ou diferencial em contraste a uma distribuição fixa:

Pode ser que a questão agrária tenha tido uma grande importância nessa organização do juízo como faculdade de distinguir partes (‘de uma parte e de outra parte’). Mesmo entre os deuses, cada um tem seu domínio, sua categoria, seus atributos, e todos distribuindo aos mortais limites e lotes conforme ao destino (Deleuze, 1993, p. 54DELEUZE, G. (1968). “Différence et répétition”. Paris: Presses Universitaires de France, 1993.).

Quanto a isso, a noção de espaço liso é aquela que mais amplamente permite recortar a distinção de direito de uma ideia mais geral de nomadismo: o que há em comum, por assim dizer, entre as mais diversas sociedades nômades é essa maneira específica de habitar o espaço. Assim, coloca-se lado a lado o modo de vida dos tuaregues do deserto e a sociedade mongol das estepes, os alakaluf dos arquipélagos sul-americanos e os hunos que assolaram Roma. É por isso que o objeto primário e positivo da máquina de guerra será o espaço liso. Seus demais traços evidenciam já uma certa sucessão do objeto primário positivo para o secundário e negativo, isto é, para a própria guerra. Esta sucessão não se observa sempre nem necessariamente, mas encontra sua expressão mais intensa e contundente na aventura dos guerreiros hunos e mongóis que forçaram os grandes impérios a se fortificarem contra suas violentas incursões, da Antiguidade até fins da Idade Média.

Assim, já na exposição do segundo aspecto da máquina de guerra nômade os exemplos e as consequências teóricas trazem majoritariamente imagens militares e problemas de diferenciação entre a instituição militar e a máquina de guerra. Trata-se do aspecto que determina a máquina de guerra como organização numérica ou algébrica. Os nômades deslocam-se em grupos cuja constituição se baseia tão somente na relação numérica, sem subdivisões, numa dispersão que apesar de aberta ainda não perde a consistência. Enquanto o Estado irá dividir seus exércitos em regimentos, batalhões, campanhas, estado-maior e patentes hierárquicas, divisões de infantaria, artilharia etc., os bandos guerreiros da máquina de guerra nômade irão se deslocar de uma maneira que poderia ser considerada anárquica, mas desde que seja entendida como uma anarquia coroada, distribuição em função do vetor de velocidade, movimento turbilhonar. A estriagem do espaço e a conversão do Número em divisões rígidas encarnadas no contingente militar disciplinado e hierárquico são operações típicas do aparelho de Estado.

Rapidamente Deleuze e Guattari afastam as objeções segundo as quais o aspecto numérico seria equivalente a um tipo de “redução das pessoas a números”. Esse esvaziamento da qualidade que se observa no tratamento numérico aparece somente quando se considera o ‘número numerado’,3 isto é, os procedimentos que os aparelhos de Estado operam quanto ao número. Tratar-se-ia então do quadro que Foucault descreve como ‘biopolítica’, do número como estatística, como coleta e tratamento de dados de uma população para fins de normalização e de gestão (Foucault, 1997FOUCAULT, M. “Il faut défendre la société »: cours au Collège de France (1976)”. Paris: Gallimard/Seuil, 1997.). Para Deleuze e Guattari, contudo, algum traço desse número numerado sempre aparece em todo aparelho de Estado sob alguma forma, até mesmo nos impérios arcaicos:

A aritmética, o número, sempre tiveram um papel decisivo no aparelho de Estado: já era o caso na burocracia imperial, com as três operações conjugadas do recenseamento, do censo e da eleição. E com mais forte razão, as formas modernas do Estado não se desenvolvem sem utilizar todos os cálculos que surgiram na fronteira entre a ciência matemática e a técnica social (todo um cálculo social como base da economia política, da demografia, da organização do trabalho etc.). (Deleuze; Guattari, 1980, pp. 483-484DELEUZE, G., GUATTARI, F. “Mille Plateaux: capitalisme et schizophrénie II”. Paris: Les Éditions deMinuit, 1980.)

Apenas a máquina de guerra nômade poderia introduzir uma organização numérica enquanto Número numerante, enquanto forma de movimento e ocupação de um espaço liso, para além de toda métrica e toda contabilidade. Tal tipo de organização numérica irá incluir não apenas pessoas, mas também animais, meios de transporte e armas que compõem unidades de agenciamento. Deve-se compreender, portanto, que se trata então de uma organização de deslocamento, de desterritorialização a partir do número como princípio. Pode-se recorrer à imagem do enxame e sua matemática própria: a coesão de um enxame se dá por relação ou articulação interna entre seus elementos, que se movimentam como conjunto coeso, mas fluido, como fluxo de partículas num espaço aberto.

A ação livre como determinante das armas

Finalmente, a máquina de guerra nômade tem um aspecto afetivo. Para os autores, é uma característica da vida nômade ter as armas de uma máquina de guerra como ‘afetos’. Retomemos a questão: as ‘armas’ aqui seriam apenas metáforas? Deleuze e Guattari afirmam ter uma “preocupação histórica” (1980, p. 527) ao discutir a nomadologia e a invenção da máquina de guerra pelos nômades. Com relação às armas, pode-se compreender que os autores efetivamente buscam uma análise do problema da técnica no sentido de Simondon, isto é, do estatuto das armas como objetos tecnológicos que se conjugam à destreza guerreira dos nômades. Se não se trata de armamento de guerra como os imaginamos num primeiro momento, é porque os nômades estão associados sobretudo à criação e utilização de armas brancas: é nesse sentido que Deleuze e Guattari dizem que na origem histórica de qualquer linhagem tecnológica de armas brancas encontra-se sempre de novo um povo nômade. E, reversamente, a descoberta da pólvora e a invenção das armas de fogo, como investimentos de Estado, teriam contribuído de maneira fundamental para o declínio histórico das grandes sociedades nômades.

Em contrapartida, é verdade que os autores também adentram a problemática afetiva associando-as às armas – nesse caso, ainda se deve compreender o “afeto” nômade pela arma sem metáfora, como agenciamento de desejo específico. A dimensão afetiva está ligada à essência dos modos no sentido de Espinosa ou à qualificação das forças no sentido de Nietzsche – afinal de contas, ambas as concepções são convergentes. Em “Nietzsche e a filosofia”, Deleuze apontava que a diferença interna de uma força qualificada como ativa ou reativa era determinada por certa manifestação da vontade de potência: “a relação de forças é determinada em cada caso na medida em que uma força é afetada por outras, inferiores ou superiores. Se segue que a vontade de potência se manifesta como um poder de ser afetado” (Deleuze, 1983, p. 70DELEUZE, G. (1962). “Nietzsche et la philosophie”. Paris: Presses Universitaires de France, 1983.). Este poder de ser afetado, por sua vez, não é uma simples possibilidade, mas o modo de existência mesmo da força que age, e por consequência o jogo de forças é também de imediato um jogo de afecções, de interações recíprocas. Deve-se recordar ainda que, para Deleuze como para o próprio Nietzsche, as forças e seu jogo não são ações de um sujeito, mas traços, tendências ontológicas pré-pessoais que compõem, elas mesmas, corpos e seus processos de individuação. Desta maneira, em última instância, pode-se compreender que o aspecto afetivo qualifica as interações concretas que compõem os corpos no mesmo sentido em que, segundo o vocabulário de “Capitalismo e esquizofrenia”, os objetos parciais são ‘maquinados’ na síntese conectiva do inconsciente, ou ainda em que singularidades, hecceidades materiais são ‘agenciadas’, ligadas no agenciamento maquínico.

Em suma, dizer que as armas são afetos da máquina de guerra é o mesmo que afirmar que a máquina de guerra se compõe com as armas, que as armas são componentes essenciais do agenciamento-máquina de guerra, ou que elas são objetos parciais que concorrem de maneira fundamental para a composição de uma máquina de guerra nômade. Como aspecto indissociável dessa composição, encontramos a moral das aristocracias guerreiras que Nietzsche (2009)NIETZSCHE, F. “Genealogia da Moral”. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. descreve – na qual a força é ativa e a vontade afirmativa, força que está descarregada ou projetada para fora, em vez de constrita e voltada para dentro constituindo a interioridade na qual cresceria o ressentimento e a má consciência.

A invenção mais importante dos guerreiros nômades é a máquina desejante composta pela tríade homem-cavalo-arco nas condições da estepe, de tal maneira que o seu elemento técnico primordial será sempre o armamento. Deleuze e Guattari acrescentam ainda a ideia de que o afeto ou o aspecto afetivo é a forma de exterioridade também das paixões, e enquanto tal ele se distingue do sentimento: haveria um modo de ser próprio das armas que seria intrinsecamente ‘afetivo’, e um modo de ser dos afetos da/na máquina de guerra que os projetaria para fora tal como ‘armas’. Como mostra Keegan (1994)KEEGAN, J. “A history of warfare”. New York: Vintage Books, 1994., os mongóis e outros nômades das estepes eram temidos pelo mundo ‘civilizado’ não apenas por sua destreza técnica como cavaleiros e arqueiros, mas pela sua crueldade e ausência dos refreios morais, como a piedade e a culpa, aos quais as sociedades sedentárias de religião monoteísta estavam familiarizadas.

Mas afinal, o que caracteriza as armas em si mesmas? A questão central colocada por Deleuze e Guattari neste ponto é exatamente esta: o que difere uma arma de uma ferramenta, qual o traço distintivo do armamento? Os autores acreditam que seja possível, inicialmente, discernir as armas por sua característica projetiva: são sobretudo projéteis, objetos a serem lançados, propulsionados, objetos balísticos. Em segundo lugar, esse aspecto projetivo é indissociável de uma relação privilegiada com a velocidade, e por isso mesmo com os motores, os propulsores ou projetores (que teriam sido, inicialmente, animais como o cavalo, antes de motores artefatuais). As ferramentas seriam, inversamente, introceptivas ou introjetivas, voltadas para vencer as resistências de uma matéria qualquer a fim de moldá-la, de talhar-lhe uma forma – estabelecendo assim um outro tipo de relação com a velocidade. Há também uma diferença no nível da expressão: as ferramentas estão em relação intrínseca com os signos e códigos, com o modelo de semiotização da escrita enquanto registro, inscrição em livro-caixa; as armas estão em relação intrínseca com as joias e a ourivesaria, toda uma arte menor no talhe dos detalhes das armas:

Pertencem ao arreio do cavalo, à bainha da espada, à vestimenta do guerreiro, ao punho da arma: elas decoram até aquilo que não servirá mais do que uma única vez, a ponta de uma flecha. [...] O ferreiro ambulante acresce a ourivesaria à arma e vice-versa (Deleuze; Guattari, 1980, p. 499DELEUZE, G., GUATTARI, F. “Mille Plateaux: capitalisme et schizophrénie II”. Paris: Les Éditions deMinuit, 1980.).

Essas distinções, no entanto, ainda são subsidiárias de outras mais centrais. Elas dependem das relações que cada objeto entretém com modelos de atividade: as armas estão relacionadas ao modelo da ação livre, enquanto as ferramentas estão relacionadas ao modelo de trabalho, conforme explicam Deleuze e Guattari (1980, p. 494)DELEUZE, G., GUATTARI, F. “Mille Plateaux: capitalisme et schizophrénie II”. Paris: Les Éditions deMinuit, 1980.:

O trabalho é uma causa motriz que se choca contra resistências, opera sobre o exterior, se consome ou se dispende no seu efeito, e que deve ser renovado de um instante a outro. A ação livre também é uma causa motora, mas que não tem resistência a vencer, só opera sobre o próprio corpo móvel, não se consome no seu efeito e se prolonga entre dois instantes. Seja qual for sua medida ou grau, a velocidade é relativa no primeiro caso, absoluta no segundo (ideia de um perpetuum mobile). [...] As armas e seu manejo parecem remeter a um modelo de ação livre, da mesma maneira que as ferramentas parecem remeter a um modelo de trabalho. O deslocamento linear, de um ponto a outro, constitui o movimento relativo da ferramenta, mas a ocupação turbilhonar de um espaço constitui o movimento absoluto da arma. Como se a arma fosse movente, auto-movente, ao passo que a ferramenta é movida.

A divisão entre essas duas “causas motrizes” é inspirada em conceitos da dinâmica leibniziana, e em específico na famosa discussão a respeito da medida da força entre Leibniz e os cartesianos. Visando avançar em relação ao postulado cartesiano da quantidade de movimento sintetizado na fórmula mv, Leibniz articula a noção de vis viva ou força viva, defendendo que, ao se considerar as descobertas experimentais de Galileu e Torricelli, a fórmula correta deveria ser mv² (Ramos; Ponczek, 2011RAMOS, P., PONCZEK, R. “A evolução histórica dos conceitos de energia e quantidade de movimento”. Caderno de Física da UEFS, Vol. 9, Nr. 1-2, 2011.). Tratava-se de uma discussão de noções pré-newtonianas que mais tarde se mostraria uma falsa polêmica,4 mas ainda assim Deleuze e Guattari resgatam termos dessa problemática histórica tomando como base os comentários de Martial Guéroult em Leibniz: dinâmica e metafísica (1967).

Nesta obra, Guéroult destaca a importância da criação do conceito de ação motriz em Leibniz, que seria complementar e consequente à necessidade de demonstração matemática da vis viva: a força viva é calculada tomando como situação-problema básica o movimento de um corpo em queda livre, portanto numa situação em que há um trabalho da força e em que a causa é consumida no seu efeito (o que Leibniz chama de efeito real ou violento); já a ação motriz é a noção mais adequada ao cálculo nos casos de movimento retilíneo horizontal em que a força se conserva no próprio movimento em vez de ser dissipada num impacto, ou seja, que a causa não é consumida no efeito (então chamado de efeito formal). Nas palavras de Guéroult:

Ao adotar o princípio de igualdade entre a causa plena e o efeito pleno, Leibniz pareceu compelido a se restringir a casos de forças vivas que, sendo consumidas em um trabalho, podem ser adequadamente medidas por ela. Quanto às forças que são expressas num efeito que não as consome, por exemplo, quando estamos lidando com o movimento uniforme de um corpo rolando em virtude de uma velocidade adquirida, sem encontrar resistência, ele não poderia, ao que parece, medi-las diretamente, mas apenas reduzindo-as por um viés aos casos em que elas são consumidas pelo trabalho. Foi necessário converter o movimento horizontal em um movimento ascendente, em suma, recorrer à experiência. Leibniz acreditava que poderia se libertar desta necessidade introduzindo a consideração do tempo. (Guéroult, 1967, pp. 119-120GUÉROULT, M. “Leibniz: dynamique et métaphysique”. Paris: Aubier-Montaigne, 1967.).

Trata-se, contudo, de dois pontos de vista sobre o mesmo problema, e resulta que a medida de ambas continua a se expressar pela mesma fórmula mv², mas obtida por métodos diferentes. Deleuze e Guattari dão um salto conceitual quando transpõem isto para uma distinção entre modelo de trabalho e ação livre: os autores introduzem uma diferenciação qualitativa entre os dois tipos de força/causa motriz e os atribuem aos dois tipos de modelos de atividade que determinariam a distinção entre ferramentas e armas de uma maneira mais central. Mas, como admitem, “seria vão emprestar às armas uma potência mágica oposta ao constrangimento das ferramentas: armas e ferramentas estão submetidas às mesmas leis que definem precisamente a esfera comum” (Deleuze; Guattari, 1980, p. 495DELEUZE, G., GUATTARI, F. “Mille Plateaux: capitalisme et schizophrénie II”. Paris: Les Éditions deMinuit, 1980.).

Ocorre então que trabalho e ação livre devem ser antes de tudo compreendidos como modelos indissociáveis de agenciamentos específicos, neste caso, o agenciamento máquina de guerra para a ação livre como determinante das armas e o agenciamento aparelho de Estado para o trabalho como determinante das ferramentas. Os agenciamentos maquínicos materializam relações sociais e políticas, estabelecem articulações entre os diversos campos e níveis do real em função de um determinado recorte ou plano de consistência. A máquina, aqui, não é apenas a máquina técnica, mas toda e qualquer articulação de objetos parciais que constitua um recorte do real como “objeto total” provisório e precário.

Enfim, os dois modelos da ação livre e do trabalho, estando imersos em dois tipos de agenciamentos maquínicos, articulam-se também a diferentes composições de desejo e regimes passionais: o modelo de trabalho mobiliza sentimentos como forma subjetiva de interioridade, enquanto o modelo da ação livre mobiliza afetos como forma de exterioridade ou de exteriorização, como uma espécie de modelo projetivo no nível do desejo, conforme expõem Deleuze e Guattari (1980, p. 79)DELEUZE, G., GUATTARI, F. “Mille Plateaux: capitalisme et schizophrénie II”. Paris: Les Éditions deMinuit, 1980.:

O regime da máquina de guerra é antes o dos afetos, que só remetam ao móvel em si mesmo, a velocidades e a composições de velocidade entre elementos. O afeto é a descarga rápida de emoção, o revide, ao passo que o sentimento é uma emoção sempre deslocada, retardada, resistente. Os afetos são projéteis, tanto quanto as armas, ao passo que os sentimentos são introceptivos como as ferramentas.

Deleuze e Guattari nomeiam equação de Pentesiléia, em referência à rainha amazona da epopeia grega, essa relação direta entre o caráter projetivo das armas e dos afetos. A mitologia das amazonas é envolta em incertezas. O mito testemunharia alguma sociedade de mulheres guerreiras realmente existente em algum momento da Antiguidade, talvez destacadas dos citas (uma das sociedades nômades da estepe)? Não há acordo claro sobre isso (Basili, 2020BASILI, M. “L’inactualité toujours actuelle du mythe: L’exemple de Penthésilée dans les réécritures de Heinrich von Kleist et Christa Wolf”. Revue Méditations Littéraires, 1, 2020.). Para além de toda controvérsia, os filósofos franceses encontram na literatura de Heinrich von Kleist uma composição válida do imaginário sobre as amazonas na forma da peça Pentesiléia, cuja personagem-título se baseia na figura mítica da rainha guerreira que antagonizou Aquiles na Guerra de Troia. A equação de Pentesiléia designa, enfim, um devir-arma associado a um devir-afeto, devires caracterizados pela tendência ao projetivo, à exteriorização. Como os autores sintetizam:

As armas são afetos, e os afetos são armas. Desse ponto de vista, a imobilidade a mais absoluta, a pura catatonia, fazem parte do vetor-velocidade, apoiam-se nesse vetor que reúne a petrificação do gesto à precipitação do movimento. O cavaleiro dorme sobre sua montaria, e parte como uma flecha. Foi Kleist quem melhor compôs essas bruscas catatonias, desfalecimentos, suspenses, com as mais altas velocidades de uma máquina de guerra: então, ele nos faz assistir a um devir-arma do elemento técnico, e, ao mesmo tempo, a um devir-afeto do elemento passional (equação de Pentesiléia). (Deleuze; Guattari, 1980, p. 498DELEUZE, G., GUATTARI, F. “Mille Plateaux: capitalisme et schizophrénie II”. Paris: Les Éditions deMinuit, 1980.).

Um elemento técnico não qualificado pode conectar-se a esse devir, pode devir-arma ao adquirir esse caráter projetivo, e o mesmo vale para o elemento passional, que devém afeto quando se torna potência de agir, potência de afetar e ser afetado. Daí a observação de que a parada não é excludente com essa potência, desde que seja parada total e absoluta, como uma força de imobilidade que deve ir até o fim, como potência que em si mesma consiste em alocar o vetor-velocidade no grau zero e passar à mobilidade com a mesma intensidade. Os autores oferecem ainda outro exemplo: “as artes marciais sempre subordinaram as armas à velocidade, primeiramente à velocidade mental (absoluta); mas, através disso, eram também as artes do suspense e da imobilidade. O afeto percorre esses extremos” (Deleuze; Guattari, 1980, p. 498DELEUZE, G., GUATTARI, F. “Mille Plateaux: capitalisme et schizophrénie II”. Paris: Les Éditions deMinuit, 1980.). O vetor-velocidade deve precisamente, portanto, ser entendido como intensidade absoluta, intensidade da imobilidade tanto quanto do movimento.

Considerações finais: os objetos da máquina de guerra

Deleuze e Guattari afirmam que, afinal de contas, a máquina de guerra não é essencialmente privilégio dos nômades, ainda que em certo sentido estes a tenham inventado: “um movimento artístico, científico, ‘ideológico’, pode ser uma máquina de guerra potencial, precisamente na medida em que traça um plano de consistência, uma linha de fuga criadora, um espaço liso de deslocamento, uma relação com um phylum” (Deleuze; Guattari, 1980, p. 527DELEUZE, G., GUATTARI, F. “Mille Plateaux: capitalisme et schizophrénie II”. Paris: Les Éditions deMinuit, 1980.). A transposição do conceito para os âmbitos do artístico, do científico etc. é, contudo, delicada, uma vez que se corre o risco de torná-lo demasiado “metaforizado, ou estetizado”, como comentam Alliez, Lazzarato e Badiou (2017)ALLIEZ, É., LAZZARATO, M., BADIOU, A. (20 de dezembro de 2017). “18 Contre-Courant Philosophons sur la guerre avec Eric Alliez et Maurizio Lazzarato”. Disponívelem: https://www.youtube.com/watch?v=bpQFTf-B1eI (Acessado em 23 de agosto de 2022.
https://www.youtube.com/watch?v=bpQFTf-B...
, e de esvaziá-lo assim de seu sentido, tornando a expressão máquina de guerra uma mera palavra de ordem. Um dos elementos importantes a se levar em conta para evitar incorrer nesse problema é a compreensão daquilo que os autores chamam de sucessão dos objetos da máquina de guerra.

Como havíamos mencionado, o objeto primário ou positivo da máquina de guerra não é a própria guerra, mas o espaço liso, a distribuição nômade propriamente dita. Mas o que se pode dizer, finalmente, sobre a relação entre a máquina de guerra e seu objeto secundário, a guerra em si mesma? Esta relação é, certamente, aquela que determina a grande polivalência e até mesmo uma certa ambiguidade do conceito. Afirmar que a máquina de guerra nômade não tem a guerra por objeto significa dizer, por um lado, que se pretende antes de tudo que o conceito seja intercambiável ao de desterritorialização, que se trate da linha de mutações em si mesma, que a máquina de guerra encarne a diferença e seja vetor de criação. O nômade e o esquizo são assim as duas figuras da desterritorialização em “Capitalismo e Esquizofrenia”. A afirmação de que a máquina de guerra não tem a guerra por objeto significa também que o nomadismo forma por si só um ethos ao qual a vida guerreira se relaciona e que, assim, o modo de vida guerreiro nômade está sobretudo baseado num certo tipo de relação com a terra, certo nomos.

Por outro prisma, o estudo da história dos povos guerreiros das estepes mostra reiteradamente que quando surge a guerra em si ela está sempre direcionada ao aniquilamento dos impérios e das cidades, aniquilamento desse modo de vida estatal tão estranho aos povos a cavalo das estepes.5 As consequências da colisão frontal entre a máquina de guerra nômade e o Estado arcaico ou imperial foram as mais diversas. Esses Estados passaram a prevenir-se contra a invasão dos cavaleiros-arqueiros nômades e enclausuraram-se ainda mais, construíram fortificações, grandes muralhas, e por vezes buscaram aculturar essas elites guerreiras integrando-as ao seu próprio modo de vida ‘civilizado’. Mas, ainda mais, Deleuze e Guattari postulam a hipótese de que o Estado não teria originariamente uma violência guerreira, que é própria da máquina de guerra, mas sim uma violência policial e carcerária. A questão seria saber, então, como o Estado adquire uma instituição de guerra para si, isto é, como surge a Instituição Militar como organização de Estado. Talvez o Estado imperial arcaico efetivamente não tivesse recursos suficientes para entrar em guerra com os povos nômades, que realizavam constantes invasões e saques ao mundo ‘civilizado’, e apenas a partir desse confronto tenha se iniciado o processo pelo qual o Estado se torna uma verdadeira burocracia fundada na força militar.

De toda maneira, a partir desse conjunto teórico Deleuze e Guattari propõem uma retomada crítica do estudo de Carl von Clausewitz (2014)CLAUSEWITZ, C. “De la guerre”. Paris: Éditions Payot et Rivage, 2014. sobre a definição conceitual da guerra. O general prussiano formula uma Ideia da guerra como conceito puro, cuja análise lógica leva a compreender a guerra como violência física irrefreada e recíproca entre duas unidades políticas soberanas que tenderia a escalar aos extremos, até se apresentar como violência de aniquilação recíproca. Clausewitz chama de guerra absoluta esse puro conceito lógico, essa Ideia da guerra. Contudo, as guerras efetivas ou reais jamais chegariam a realizar esse ideal de guerra absoluta, mas seriam mais ou menos limitadas por determinações políticas relativas aos objetivos dos Estados envolvidos no confronto. Assim, de acordo com as circunstâncias, as guerras empíricas poderiam estar mais próximas ou mais distantes da guerra absoluta. Cotejando a teoria clausewitziana com a sua própria hipótese, Deleuze e Guattari (1980, pp. 523-524)DELEUZE, G., GUATTARI, F. “Mille Plateaux: capitalisme et schizophrénie II”. Paris: Les Éditions deMinuit, 1980. afirmam:

Em primeiro lugar, essa distinção de uma guerra absoluta como Ideia e guerras reais nos parece de uma grande importância, mas com a possibilidade de um outro critério que aquele de Clausewitz. A Ideia pura não seria aquela de uma eliminação abstrata do adversário, mas aquela de uma máquina de guerra que justamente não tem a guerra por objeto, e que entretém com a guerra uma relação sintética potencial ou suplementária. Contudo, a máquina de guerra nômade não nos parece, como em Clausewitz, um caso de guerra real entre os outros, mas ao contrário o conteúdo adequado à Ideia, a invenção da Ideia, com seus objetos próprios, espaço e composição do nomos. [...] mesmo na pureza de seu conceito, a máquina de guerra nômade efetua necessariamente sua relação sintética com a guerra como suplemento, descoberta e desenvolvida contra a forma-Estado que se trata de destruir. Mas, justamente, ela não efetua esse objeto suplementário ou essa relação sintética sem que o Estado, de seu lado, encontre a ocasião de se apropriar da máquina de guerra, de fazer da guerra o objeto direto dessa máquina revertida (donde a integração do nômade ao Estado ser um vetor que atravessa o nomadismo desde o começo, desde o primeiro ato de guerra contra o Estado). A questão é então menos aquela da realização da guerra que da apropriação da máquina de guerra. É ao mesmo tempo que o aparelho de Estado se apropria da máquina de guerra, a subordina a fins “políticos”, e lhe atribui como objeto direto a guerra.

Deleuze e Guattari valorizam a teoria de Clausewitz justamente na medida em que, de certa forma, este coloca uma diferenciação entre um campo empírico e um campo transcendental no que diz respeito ao problema da guerra. Mas sob a perspectiva do empirismo transcendental deleuziano o esquema de Clausewitz se torna demasiado kantiano, encontrando apenas diferenças de grau entre um campo e outro. A releitura de Deleuze e Guattari se baseia precisamente na premissa de uma diferença de natureza, e não apenas de grau, entre a Ideia pura e as efetuações empíricas. Assim, essa Ideia transcendental não é exatamente a de uma guerra absoluta, mas a de uma máquina de guerra nômade que tem a guerra absoluta como objeto sintético ou secundário. Essa Ideia não é um fundamento ao qual as ocorrências empíricas se aproximariam por semelhança e se diferenciariam apenas em grau, mas algo como um ‘desfundamento’ que difere por natureza das efetuações empíricas e cuja distinção de direito em relação a elas permanece.

É no âmbito dessa efetuação diferencial que se deve compreender a apropriação da máquina de guerra pelo Estado como mecanismo pelo qual a Instituição Militar é engendrada (e que posteriormente, por processos ligados ao capitalismo, ainda dá lugar ao surgimento da guerra total, de máquinas fascistas e pós-fascistas, de máquinas milicianas). Ao afirmarem que apenas a partir daí a máquina de guerra se submete a fins políticos e passa a ter a guerra por objeto, Deleuze e Guattari estão fazendo uma crítica de Clausewitz ao estilo deleuziano, revertendo a teoria do general prussiano e provendo assim uma explicação genética para o tratamento instrumental da guerra pelo Estado. Trata-se de uma “heterogênese da guerra” (Sibertin-Blanc, 2005SIBERTIN-BLANC, G. “État et généalogie de la guerre: l’hypothèse de la ʽmachine de guerreʼ de Gilles Deleuze et Félix Guattari”. Astérion, 3, 2005.), ou melhor, de uma gênese do modelo da guerra convencional e da concepção instrumental a ela ligada, concepção ainda hoje dominante e que se expressa bem na célebre fórmula clausewitziana: “a guerra é a mera continuação da política por outros meios”.

Enfim, esse cotejo das hipóteses gerais do Tratado de Nomadologia com a teoria de Clausewitz tem a vantagem maior de mostrar de que maneira o empirismo transcendental deleuziano aparece como prática filosófica nas obras dos autores mesmo na distância que separa Diferença e Repetição e Mil Platôs. Ademais, a leitura detida do Tratado sob esse prisma compõe um aporte central para se compreender a relação entre ontologia e política na obra dos filósofos franceses.

  • 1
    ‘Bom’ aqui não tem nenhuma conotação moral, antes se tratando apenas de encontrar aquilo que estava sendo investigado, de chegar ao objetivo da reflexão. Mais profundamente, Deleuze desenvolverá a ideia de que esta metade tem primazia ontológica e que, afinal de contas, o outro lado da divisão (isto é, o lado da experiência no qual são inescapáveis as concepções derivadas da espacialização e em que aparecem o negativo, a contradição, a identidade etc.) é meramente um produto do seu funcionamento.
  • 2
    Em “Platão e o Simulacro”, texto-apêndice de “Lógica do Sentido”, Deleuze faz um jogo com os termos fondement (fundamento), effondrement (desabamento, colapso) e effondement (neologismo deleuziano traduzido por vezes como a-fundamento e outras vezes como desfundamento): “En montant à la suface, le simulacre fait tomber sous la puissance du faux (phantasme) le Même et le Semblable, le modèle et la copie. [...] Il instaure le monde des distributions nomades et des anarchies couronnées. Loin d’être un nouveau fondement, il engloutit tout fondement, il assure un universel effondrement, mais comme événement positif et joyeux, comme effondement” (Deleuze, 1969, p. 303DELEUZE, G. “Logique du sens”. Paris: Les Éditions de Minuit, 1969.). Uma tradução possível seria: “Ao subir à superfície, o simulacro faz cair sob a potência do falso (fantasma) o Mesmo e o Semelhante, o modelo e a cópia. [...] Ele instaura o mundo das distribuições nômades e das anarquias coroadas. Longe de ser um novo fundamento, engole todo fundamento, assegura um universal desabamento, mas como acontecimento positivo e alegre, como desfundamento”.
  • 3
    A distinção número numerado/número numerante em Deleuze e Guattari espelha a distinção natureza naturante/natureza naturada em Espinosa.
  • 4
    Em termos atuais, a fórmula cartesiana equivale à notação da quantidade de movimento ou momento linear (Q=mv), enquanto o postulado leibniziano foi precursor do que hoje se entende como energia cinética (Ec=mv²/2). Desta forma, a polêmica mostrou-se um falso problema porque as contribuições dos dois filósofos foram incorporadas. Ao mesmo tempo, ambas diferem da fórmula básica que acabou sendo efetivamente estabelecida como equação da força na mecânica clássica, segundo a qual F=ma (Ramos; Ponczek, 2011RAMOS, P., PONCZEK, R. “A evolução histórica dos conceitos de energia e quantidade de movimento”. Caderno de Física da UEFS, Vol. 9, Nr. 1-2, 2011.).
  • 5
    A expressão ‘povos a cavalo’ é uma tradução livre da expressão horse peoples, de John Keegan em “A history of warfare” (1994)KEEGAN, J. “A history of warfare”. New York: Vintage Books, 1994., e faz referência à centralidade da domesticação do cavalo e do domínio da montaria para os nômades eurasiáticos – há evidências de que os nômades foram os primeiros a fazer seleções genéticas de cavalos selvagens para que fosse possível utilizá-los como ‘veículos’ de guerra. A técnica de atirar com o arco composto sobre o cavalo em movimento era igualmente uma habilidade tipicamente nômade, desconhecida dos povos ‘civilizados’ da Antiguidade. É essa mesma a imagem da “máquina homem-cavalo-arco” evocada por Deleuze e Guattari desde “O Anti-Édipo”. A obra de Keegan oferece um panorama geral que corrobora grande parte das teses dos filósofos franceses. Contudo, a historiografia de Keegan é ainda demasiado estatista, além de basear-se numa ideia vaga de ‘cultura’ para desenvolver a base explicativa de sua história das guerras. Nesse sentido, acreditamos que a filosofia de Deleuze e Guattari oferece um aporte teórico mais completo e produtivo para a compreensão imanente do que os autores chamam de processo maquínico dos ‘povos a cavalo’.

Referências

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    » https://www.youtube.com/watch?v=bpQFTf-B1eI
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    Ago 2023

Histórico

  • Recebido
    23 Ago 2022
  • Aceito
    30 Mar 2023
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