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A ONTOLOGIA ESPECULATIVA DE GILLES DELEUZE: A DIFERENÇA EM SI MESMA

GILLES DELEUZE’S SPECULATIVE ONTOLOGY: DIFFERENCE IN ITSELF

RESUMO

O presente artigo pretende oferecer uma interpretação do estatuto do conceito de diferença na filosofia de Deleuze. Como é notório, o filósofo procurou pensar a diferença sem sua tradicional subordinação à identidade, procurando pensá-la em si mesma. Neste sentido, Deleuze conclui que a diferença é o próprio ser na célebre tese da univocidade. Qual seria o estatuto desta afirmação? Que elementos tornam possível uma afirmação ontológica desta envergadura? No presente texto, pretendemos responder a estas perguntas interpretando o conceito de diferença enquanto um conceito especulativo, argumentando que ele está no campo do pensável e não do cognoscível. Neste sentido, analisaremos o engajamento crítico de Deleuze com Kant, a fim de demonstrar que se trata, no caso deleuziano, de uma ontologia pós-crítica e, assim, no campo do pensável e não do cognoscível.

Palavras-chave:
Deleuze; Ontologias pós-críticas; Diferença; Filosofia contemporânea

ABSTRACT

This paper offers an interpretation of Deleuze’s concept of difference. Deleuze has sought to think difference without its traditional subordination to identity, trying to think difference for itself. In this regard, Deleuze concludes that difference is being itself in the famous thesis of the univocity of being. What would be the status of this claim? What elements make possible such a sounding ontological statement? In this paper, we shall answer these questions by interpretating the concept of difference as a speculative one, arguing that difference is only thinkable, but not cognoscible. In order to do so, we analyze Deleuze’s critical engagement with Kant to demonstrate that there is a post-critical ontology in Deleuze’s thinking.

Keywords:
Deleuze; Post-critical ontologies; Difference; Contemporary philosophy

1. Introdução

O presente artigo visa interpretar o estatuto da diferença no pensamento de Gilles Deleuze, sobretudo, em “Diferença e Repetição” (1968/2000) e “Lógica do Sentido” (1969/2011) como sendo um conceito especulativo. A filosofia de Deleuze é, de forma clara, orientada ao problema da diferença e grande parte da sua obra se dá a partir do projeto de elaboração de um conceito de diferença que, em contraste com a tradição filosófica, não tome a diferença em relação à identidade, enquanto identidade degradada ou corrompida, mas em si mesma. Este projeto tem sua expressão mais elaborada em “Diferença e Repetição”, obra na qual o desenvolvimento conceitual de uma filosofia da diferença é levado a seu termo.

No presente texto, apresentaremos o conceito de diferença em Deleuze e, diante dele, colocaremos a seguinte pergunta: qual o estatuto epistemológico do conceito de diferença na obra de Deleuze? O lugar concedido à diferença na ontologia de Deleuze é central. A tese da univocidade do ser, presente tanto em “Lógica do Sentido” quanto em “Diferença e Repetição”, afirma que a diferença é o próprio ser. Neste sentido, vale se indagar qual a fundamentação teórica e o estatuto epistemológico desta afirmação. Quais as bases de justificação filosófica que permitem a Deleuze afirmar que a diferença é o próprio ser?

Procuraremos responder a esta pergunta, a partir do engajamento de Deleuze com a filosofia crítica de Kant. O conceito de diferença em Deleuze é um conceito especulativo na medida em que está para além do cognoscível, no domínio do pensável. A diferença não pode ser conhecida, mas apenas pensada e mesmo no pensamento ela jamais se deixa apreender de forma translúcida e imediata. É diante desta distinção de matriz kantiana, entre o pensável e cognoscível, que situaremos o conceito de diferença em Deleuze.

Este movimento interpretativo justifica-se pelo fato de que Deleuze demonstra uma preocupação crítica em todo desenvolvimento da sua filosofia da diferença – a ponto de comentadores como Levy Bryant (2009)BRYANT, L. “Deleuze’s transcendental empirism Notes Towards a TranscendentaMaterialism”. In: WILLAT, E,. LEE, M. (eds.), 2009, pp. 28-49 e Daniel Smith (2012)SMITH, D. “Essays on Deleuze.” Edimburgo: Edinburgh University Press, 2012. afirmarem que “Diferença e Repetição” é uma reescrita da “Crítica da Razão Pura” de Kant. Como pretendemos demonstrar, Deleuze coloca a diferença no lugar das célebres Ideias especulativas de Kant, revertendo a crítica em um movimento crítico que parte do pensável para o cognoscível. Mais ainda, a justificativa para esta interpretação se dá no peso crescente da especulação filosófica no pensamento contemporâneo. A partir do que se convencionou chamar de ‘Virada Especulativa’ (Bryant; Srnicek; Harman, 2011BRYANT, L., SRNICEK, N., HARMAN, G. “Towards a Speculative Philosophy”. In: BRYANT, L., SRNICEK, N.; HARMAN, G. (ed.). The Speculative Turn. 2011. Disponível em: www.re-press.org (Acessado em 03 de janeiro de 2016.
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), a filosofia contemporânea se voltou ao pensamento do mundo para além da circunscrição ao sujeito, à história, à consciência, entre outros elementos em maior ou menor grau passíveis de serem lidos como “correlacionistas”, conforme colocado por Quentin Meillassoux (2006)MEILLASSOUX, Q. “Aprés la Finitude: Essai sur la necessité de la contingence.” Éditions du Seuil: Paris, 2006..1 1 O termo ‘correlacionismo’ é cunhado por Meillassoux para descrever todas as filosofias que se preocupam apenas com “a correlação entre ser e pensar e nunca a um dos termos tomados isoladamente” (Meillassoux, 2012, p. 2). Para Meillassoux haveria uma orientação fundamentalmente kantiana na filosofia dos últimos dois séculos, na qual o materialismo teria sido abandonado em prol de uma postura que nega o acesso à realidade em si mesma, voltando-se apenas a sua manifestação para nós. Neste sentido, encontramos em comentários de língua inglesa a interpretação da filosofia de Deleuze enquanto especulativa (Smith, 2012SMITH, D. “Essays on Deleuze.” Edimburgo: Edinburgh University Press, 2012.; Bryant, 2008BRYANT, L. “Difference and giveness: Deleuze’s Transcendental Empirism and Ontology of Immanence.” Evanston: Northwestren University Press, 2008.), com ou sem relação com a virada especulativa. Este tipo de interpretação – que, em geral, tende a focar nos aspectos clássicos do pensamento de Deleuze – ainda é incipiente no Brasil.

2. O sentido pós-crítico da ontologia de Deleuze

Rodrigo Nunes (2018)NUNES, R. “O que são ontologias pós-críticas?”. Revista Eco Pós, Rio de Janeiro, Vol. 21, Nr. 2, 2018, pp. 111-142., em texto dedicado à especulação filosófica contemporânea, argumenta que o termo ‘pós-crítico’ refere-se a filosofias que tomam a si mesmas como direcionadas ao pensável e não ao cognoscível. Nunes, tomando Meillassoux como única exceção, identifica no movimento especulativo contemporâneo (como na ‘Ontologia Orientada a objetos’ de Harman) uma especulação pós-crítica no sentido de não incorrer em um dogmatismo pré-kantiano, no qual se afirmaria o conhecimento necessário de uma realidade última descrita pela razão, tomada como capaz de acessar o mundo em si. Trata-se de especulação pós-crítica por ser uma construção filosófica visando àquilo que pode ser pensado, mas não conhecido sob a forma segura de uma intuição empírica ou um sistema supostamente elaborado sobre verdades a priori (Nunes, 2018NUNES, R. “O que são ontologias pós-críticas?”. Revista Eco Pós, Rio de Janeiro, Vol. 21, Nr. 2, 2018, pp. 111-142.). Apesar de uma tônica eminentemente antikantiana, a filosofia especulativa contemporânea ainda se encontraria sob a distinção crítica entre pensável e cognoscível. Para Kant, com efeito, a razão se aventura para além do conhecimento seguro, para além dos objetos da experiência; e é esta aventura da razão e do pensamento para além do cognoscível que identificamos no conceito de diferença em Deleuze.

É bastante notório o engajamento de Deleuze com filósofos do passado. O seu pensamento, segundo a perspectiva desenvolvida com Guattari em “O que é a filosofia?”(1991/2010) é construído a partir da contribuição de outros pensadores, por meio de uma apropriação criativa de seus conceitos. Neste campo, temos Bergson, Spinoza e Hume como os principais pensadores apropriados por sua filosofia. Kant, por sua vez, figura como um antagonista, sendo descrito como um “inimigo” (Deleuze, 1990/2013, p. 14DELEUZE, G. (1990). “Conversações”. Trad. P. P. Perlbart. São Paulo: Editora 34, 2013.). Não obstante, temos na obra de Deleuze um engajamento bastante nítido com Kant, o que faz com que a sua filosofia seja antes pós-crítica do que dogmática.

A formulação da filosofia da diferença de Deleuze está inscrita dentro de um horizonte kantiano a que ela visa subverter. Esta reversão se dá, segundo nossa interpretação, em direção a uma radicalização da crítica. Deleuze não se opõe de forma alguma ao movimento crítico e seu problema com Kant é que este não haveria levado a crítica ao seu termo. Em um trecho marcante de “Nietzsche e a Filosofia”, temos a seguinte passagem:

[...] será que o leitor realmente acredita seriamente que, na Crítica da Razão Pura, a vitória de Kant contra a dogmática dos teólogos (Deus, alma, imortalidade) tenha atacado o ideal correspondente, e será que pode se acreditar mesmo que Kant tenha tido a intenção de atacá-los? Quanto à Crítica da Razão Prática, Kant não confessa logo nas primeiras páginas que não se trata absolutamente de uma crítica? Parece que Kant confundiu a positividade da crítica com um humilde reconhecimento dos direitos do criticado. Nunca se viu crítica total mais conciliatória, nem crítico mais respeitoso (Deleuze, 1963/2019, p. 116DELEUZE, G. (1963). “Nietzsche e a filosofia” Trad. M. T. Barbosa e O. Abreu Filho. São Paulo: n-1 ediçoes, 2018.)

Nesta passagem, podemos ver como, para Deleuze, Kant não haveria levado a crítica a seu termo. Neste sentido Deleuze argumenta que Kant haveria descoberto o prodigioso continente do transcendental, mas este ainda se basearia no domínio empírico em um decalque ou duplicação. Este decalque se dá a partir da preservação da identidade como fio condutor do transcendental (Deleuze, 1968/2000DELEUZE, G. (1968). “Diferença e Repetição”. Trad. L. Orlandi e R. M. Lisboa: Relógio D’água, 2000.). Para Deleuze, o transcendental kantiano não leva a termo o movimento crítico precisamente por conta da centralidade da identidade. Esta centralidade é visível em diversos elementos da filosofia kantiana. Não poderíamos nos deter detalhadamente em todos os pontos identificados por Deleuze neste aspecto. No entanto, sumariamente, Deleuze (1968/2000)DELEUZE, G. (1968). “Diferença e Repetição”. Trad. L. Orlandi e R. M. Lisboa: Relógio D’água, 2000. identifica o primado da identidade nas três sínteses da apercepção da primeira edição da “Crítica da Razão Pura”, criticadas em “Diferença e Repetição” no capítulo que versa sobre a imagem moral do pensamento,2 2 O conceito de “imagem moral do pensamento” expressa uma doxa filosófica. Para Deleuze, o primado da identidade consiste em um pressuposto do senso comum ilegitimamente tomado como a figura própria do que é pensar. Assim, no seio da imagem moral, o pensamento seria pautado pela identidade. precisamente pelo direcionamento da multiplicidade à identidade. Neste mesmo capítulo, Deleuze igualmente critica o bom senso e o senso comum em sua versão kantiana, alegando que a identidade, sob a forma de um acordo suposto entre as faculdades, figura como pressuposto no projeto crítico. Ainda, como era de se esperar, o sujeito transcendental enquanto fonte das operações sintéticas de unificação do múltiplo é objeto de crítica. Por fim, as três Ideias da razão, descritas por Kant como “[...] totalidade das condições para um condicionado dado” em resposta à necessidade de se pensar (especulativamente) a gênese do próprio condicionado, “visto que unicamente o incondicionado torna possível a totalidade das condições” (Kant, 1781/1787, 2001, p. 340/A 323/B 379KANT, I. (1781/1787) “Crítica da Razão Pura.” Trad. M. P. Santos e A. Mourão. Lisboa:Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.) são particularmente exemplares da necessidade, pressupostas no edifício crítico, de submeter a multiplicidade à identidade. Este incondicionado na Ideia é da ordem de uma máxima unidade e, em última instância, de uma identidade superior pressuposta como condição crítica para a concepção do condicionamento dos fenômenos.

Ainda neste aspecto, a identidade é reportada por Deleuze como sendo um fator meramente empírico e, por conta disso, o transcendental kantiano seria um decalque do empírico no transcendental (Deleuze, 1968/2000, p. 138DELEUZE, G. (1968). “Diferença e Repetição”. Trad. L. Orlandi e R. M. Lisboa: Relógio D’água, 2000.). No campo do empírico temos identidades e a recognição – ‘isto é isto’ – sem que, para Deleuze, haja qualquer razão satisfatória para concluir que o transcendental deveria proceder de igual modo. Neste ponto, Kant teria realizado uma crítica da verdade, conforme presente na filosofia dita dogmática; no entanto, ao perseverar na identidade, não haveria criticado a forma da verdade, o que alija a crítica de seu verdadeiro potencial. Esta forma da verdade é precisamente o primado da identidade, tal como caracterizado por Deleuze (1968/2000)DELEUZE, G. (1968). “Diferença e Repetição”. Trad. L. Orlandi e R. M. Lisboa: Relógio D’água, 2000. sob o conceito de imagem moral do pensamento. O pensamento perde a sua potência conforme se fixa apenas naquilo que se manifesta empiricamente na forma do reconhecido ou reconhecível. No nível do transcendental, a filosofia kantiana haveria elevado este princípio a um novo estatuto: as categorias operariam uma unificação do múltiplo sobre a forma da identidade, o que, para Deleuze, consiste justamente no decalque do transcendental sobre o empírico. Se o empírico é da ordem da identidade e da recognição, as categorias e a unidade originária da apercepção, por sua vez, nada mais fariam do que reproduzir este primado identitário no nível transcendental. É neste ponto que Kant não haveria levado a crítica longe o suficiente: haveria ainda mantido a identidade como norte do seu projeto crítico. No movimento em que funda sua filosofia transcendental, Kant procede criticando a pretensão dogmática do conhecimento, nos mostrando o abismo que há entre o pensamento e as coisas em si mesmas; contudo, como argumenta Deleuze, ele ainda haveria retido a imagem da dogmática do pensamento que ele mesmo visava criticar: a recognição como princípio, a identidade como fim.

A reversão do projeto crítico de Deleuze incide sobre este ponto. Tendo identificado a manutenção da identidade como horizonte a limitar o projeto crítico. Deleuze faz a aposta inversa: começar a crítica pela diferença, pela própria forma da verdade. Deleuze, assim, visa pensar a determinação dos fenômenos não a partir de um movimento sintético de unificação a partir da identidade, mas a partir de um processo imanente à diferença enquanto tal. Trata-se de começar a crítica de ‘ponta-cabeça’, em uma inversão do movimento kantiano.

Este movimento apresenta algumas justificativas. Em primeiro lugar, o pensamento da identidade — que Deleuze traça desde a Antiguidade, possivelmente ecoando Heidegger em sua crítica à metafísica3 3 Para uma discussão aprofundada da relação entre Deleuze e Heidegger, cf. Rae, 2004. — nunca logrou êxito em estabelecer a identidade última capaz de fundar, por meio de sua autoidentidade, a diversidade e a multiplicidade do mundo sensível. O fundamento não funda efetivamente. A procura pelas essências, substâncias, foi arduamente criticado ao longo do século XX, e Deleuze, a partir de Nietzsche, se insere nesse projeto, apesar de, diferentemente de Derrida e Foucault, por exemplo, não rejeitar a metafísica, mas procurar reformulá-la sobre novas bases.4 4 Deleuze (1999/1999, p. 130) afirma que é “um puro metafísico” em entrevista concedida a Villani. Neste ponto, torna-se claro que, apesar da proximidade do seu projeto com filosofias fortemente críticas à metafísica, como a de Derrida, Deleuze não pretende romper com a metafísica, mas propor uma nova metafísica em bases outras que não a identidade. De todo modo, é sobre a esteira das críticas à metafísica ou ontoteologia que Deleuze identifica na operação do fundamento um entrave central: em toda filosofia que visou ao princípio último, ao fundamento em seu absoluto, a insuficiência deste fundamento se mostra patente. A identidade, para Deleuze, não dá conta da generalidade requerida pela própria operação de fundar. A diferença permanece sempre, mesmo que se procure submetê-la enquanto forma degradada do Mesmo e do Semelhante. É a partir desta insuficiência que Deleuze se entrega ao projeto de pensar a insuficiência mesma como fundamento; a diferença, que nunca conseguiu ser reduzida à essência, substância e conceito, seria o a-fundamento. Deleuze evoca, naturalmente, o abgrund de Heidegger e apesar de o contexto diferir entre eles, Deleuze pretender dar um estatuto positivo ao conceito heideggeriano. O sem-fundo enquanto aquilo que pode ocupar o lugar tradicional do fundamento; a impossibilidade de fundar como condição de todo fundamento.

Em segundo lugar, temos um caráter experimental na filosofia da diferença de Deleuze. Não podemos ler uma obra como “Diferença e Repetição”, apesar da evocação de temas clássicos da filosofia, como se tratando de um tratado filosófico tradicional. Há uma experimentação estilística e também conceitual — antecipando a formulação posterior, realizada com Guattari, de que a “filosofia é a arte de criar conceitos” (Deleuze; Guattari, 1991/2010, p. 8). Podemos ler “Diferença e Repetição” como um experimento filosófico partindo da seguinte pergunta: “e se resolvêssemos colocar a diferença no lugar tradicionalmente ocupado pelo ser? Onde este pensamento nos levaria?” Ilustrativo neste aspecto é o prólogo do livro, onde Deleuze afirma que só escrevemos nos limites do nosso próprio saber. O que Deleuze propõe, em sua filosofia, é precisamente isso: que sigamos a diferença até o limite do nosso próprio pensamento.

Em terceiro lugar, há um direcionamento político na hipótese da diferença. A imagem a ser criticada é denominada de imagem moral — neste sentido, já demonstrando um componente político claro. Não podemos, por limitação de espaço, detalhar essa dimensão. Traremos apenas alguns elementos centrais. Primeiramente, a imagem moral é colocada enquanto conservadora. Conservadora no sentido de reduzir a potência criativa do pensamento em prol de um ideal de estabilidade associado sempre a uma forma de identidade — como em Kant, cuja potência crítica teria sido limitada pela identidade. Este ideal de estabilidade tem o componente político de descrédito e subordinação daquilo que difere em detrimento de um padrão, norma ou referência; o que, junto de Guattari, Deleuze (1980/2012a, p. 186)DELEUZE, G., GUATTARI, F. (1980). “Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia 2., Vol. 4”. Trad. S. Rolnik. São Paulo: Editora 34, 2012a. denomina Majoritário. Neste sentido, a imagem moral é considerada uma internalização do Estado no pensamento. O Estado, conforme concebido por Deleuze em sua obra com Guattari, apresenta uma dimensão noológica que pode facilmente ser identificada à priorização da Identidade. O aparelho estatal seria da ordem de um modelo que opera uma distribuição a partir dele; esta distribuição estabelece critérios comparativos e quantificáveis em uma escala hierárquica (Deleuze; Guattari, 1980/2012bDELEUZE, G., GUATTARI, F. (1980). “Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia 2., Vol. 5.” Trad. P. P. Pelbarte J. Caiafa. São Paulo: Editora 34, 2012b.). Neste sentido, a imagem moral pode ser lida como a interiorização deste mecanismo no pensamento; o próprio pensamento passa a ver a si mesmo sob a imagem do Estado.

Contra a imagem moral do pensamento, Deleuze propõe outra imagem. Há certa dificuldade interpretativa neste aspecto e fica a questão se Deleuze estaria visando romper com toda e qualquer imagem do pensamento ou apenas propondo outra. Em consonância com Toscano (2007)TOSCANO, A. “Everybody Knows: Deleuze’s Descartes.” Deleuze and Rationalism conference, Centre for Research in Modern European Philosophy, Middlesex University, 2007. nos parece que Deleuze quer efetivamente produzir uma nova imagem do pensamento — e esta imagem é a de um pensamento sem imagem. Romper com todos os elementos da imagem moral tornaria impossível qualquer pensamento; sem identidade, não haveria a possibilidade mesma de uma exposição filosófica, ou a produção de um conceito como o de diferença. Neste ponto, temos a seguinte passagem, bastante ilustrativa: em oposição “à imagem dogmática [moral] do pensamento, não se trata de opor uma outra imagem, tomada, por exemplo, da esquizofrenia” (Deleuze, 1968/2000, p. 252DELEUZE, G. (1968). “Diferença e Repetição”. Trad. L. Orlandi e R. M. Lisboa: Relógio D’água, 2000., colchetes nossos).

Quanto a isso, duas considerações são relevantes. Em primeiro lugar, Deleuze não se opõe à identidade per se; a sua crítica é direcionada à reificação da identidade enquanto valor e norte do pensamento. Não se trata de abandonar toda identidade em um caos amorfo ou no silêncio, mas de combater a reificação da identidade. Em segundo lugar, esta outra imagem será de um pensamento sem imagem, o que significa que Deleuze procura uma imagem da diferença em si mesma — esta imagem, não obstante, não pode ser da ordem do conhecimento ou da cognição, dado que ultrapassa, enquanto diferença, a identidade do conceito. Assim esta imagem só poderá ser especulativa – da ordem da ficção ou da potência do falso. Neste ponto, há uma assimetria entre a diferença enquanto conceito no corpus deleuziano e a diferença à qual este conceito se refere; o conceito de diferença não pode esgotar o ser da diferença, dado que ela é, por si mesma, excessiva em relação a toda identidade, mesmo a do conceito de diferença.

Por estas três razões, já podemos ver como a filosofia da diferença de Deleuze é francamente especulativa. E, enquanto tal, é uma ontologia pós-crítica. ‘Pós-crítica’, pois parte da crítica kantiana, mantendo a diferença entre o cognoscível e o pensável. O cognoscível corresponde ao conhecimento seguro que podemos ter do mundo, o que na filosofia kantiana se refere ao mundo dos fenômenos conquanto regido pelas categorias puras do entendimento; o pensável remete àquilo que ultrapassa o mero entendimento e a função de conhecimento seguro. Deleuze, assim, parte do pensável e lá situa a diferença. Ela é, assim, um conceito especulativo, sem pretensão de afirmar a realidade em si mesma, de modo que o pensamento de Deleuze não é, de forma alguma, dogmático ou pré-crítico.

Veremos, agora, no que consiste a diferença em si mesma.

3. O conceito de diferença em si

A diferença, para Deleuze, é transcendental. Transcendental no sentido de ser condição da manifestação dos fenômenos, ocupando o lugar do sujeito na filosofia kantiana. Neste sentido, Deleuze fala de um campo transcendental purgado de toda forma de consciência, impessoal e a-subjetivo (Deleuze, 1969/2011DELEUZE, G. (1969). “Lógica do Sentido”. Trad. Luiz R. S. Fortes. São Paulo: Perspectiva, 2011.). Este campo, a imanência, é a diferença. No lugar de uma unidade originária, capaz de unificar, por meio das categorias, a diversidade sensível na forma de uma realidade cognoscível, temos a diferença como sendo dotada de um movimento imanente que produz, da indeterminação à determinação completa, os entes da experiência (Deleuze, 1968/2000DELEUZE, G. (1968). “Diferença e Repetição”. Trad. L. Orlandi e R. M. Lisboa: Relógio D’água, 2000.). A diferença, assim, é transcendental na medida em que é condição dos fenômenos. Contudo, esta condição deve, para Deleuze, estar junto do condicionado, sem transcendência ou eminência. A “síntese ideal da diferença”, em “Diferença e Repetição”, dedica-se, a partir da teoria da individuação de Simondon, do cálculo diferencial, entre outros recursos, a pensar como a diferença se desdobra na identidade, como ela produz os entes reconhecíveis e assinaláveis.

Neste ponto, é muito relevante a distinção entre diferença e diversidade. Para Deleuze, a diversidade corresponde aos fenômenos empíricos ao passo que “a diferença não é o diverso. O diverso é dado. Mas a diferença é aquilo pelo qual o dado é dado. É aquilo pelo qual o dado é dado como diverso” (Deleuze, 1968/2000, p. 361DELEUZE, G. (1968). “Diferença e Repetição”. Trad. L. Orlandi e R. M. Lisboa: Relógio D’água, 2000.). A diversidade corresponde à diferença entre uma cadeira e uma pedra, por exemplo. Está no campo do condicionado, dos entes individuados. A diferença em si mesma, por sua vez, é mais profunda. Ela não se reporta aos entes diversos em sua figuração empírica e atual, mas é a condição subjacente à própria individuação dos fenômenos e, enquanto tal, não é objeto de manifestação empírica. É neste sentido que podemos entender a afirmação de que a diferença é o “númeno mais próximo do fenômeno” (Deleuze, 1968/2000, p. 361DELEUZE, G. (1968). “Diferença e Repetição”. Trad. L. Orlandi e R. M. Lisboa: Relógio D’água, 2000.). Ela é “númeno” no sentido de não ser empírica; e “próxima do fenômeno” no sentido de ser a condição subjacente à manifestação empírica enquanto tal.5 5 Neste sentido, a distinção virtual e atual visa precisamente expressar esta proximidade. Descrito como as duas metades de um objeto, o virtual e o atual são, respectivamente, as coordenadas de individuação (condição) e o objeto condicionado e individuado. A descrição enquanto duas metades opera precisamente por afirmar a indissociabilidade de um e outro, a não eminência, a não transcendência, do virtual em relação ao atual (Deleuze, 1968/2000). Neste ponto, também são instrutivos os comentários de Bryant, que situam esta distinção no seio do problema de resolver a disjunção hilemórfica kantiana entre experiência possível e experiência concreta (cf. Bryant, 2008/2009). Esta caracterização significa que a diferença é o em si tomado especulativamente para além de toda correlação e para além da disjunção entre sujeito e objeto. O conceito de númeno em Kant já é em si mesmo especulativo: não é uma categoria do entendimento capaz de oferecer conhecimento empírico, mas, não sendo passível de ser conhecido, ainda assim deve ser pensado (Allison, 2004, p. 56ALLISON, H. “Kant’s Transcendental Idealism: an interpretation and defense.” New Have/Londres: Yale University Press, 2004.). O mesmo vale, deste modo, para o conceito de diferença de Deleuze.

Este ponto é importante na caracterização proposta da diferença enquanto conceito especulativo. O seu caráter não empírico e, simultaneamente, não transcendente, indica que ela não pode ser conhecida. Não pode ser objeto de nenhum pensamento ou conceito determinado, tampouco de apresentação sensível. O que se manifesta é a diversidade, aquilo que podemos dizer “isto é diferente daquilo”, identidades constituídas, individuadas. Adiferença, enquanto númeno, é pensável apenas enquanto algo inapreensível conceitualmente ou sensivelmente. No entanto, como vimos, ela se dá imanentemente aos fenômenos e é a sua razão imediata. Em que sentido podemos compreender este ponto?

A diferença é aquilo que, não podendo ser sentida, na verdade e ao mesmo tempo, só pode ser sentida (Deleuze, 1968/2000, p. 382DELEUZE, G. (1968). “Diferença e Repetição”. Trad. L. Orlandi e R. M. Lisboa: Relógio D’água, 2000.) e que, não podendo ser pensada, só pode ser pensada. Essa caracterização paradoxal se explica pela função genética da diferença em relação à identidade. O que não pode ser pensado é precisamente o caráter não representacional, não cognoscível da diferença. O que não pode ser sentido é a intensidade enquanto razão suficiente do campo empírico. A violência de um encontro é a inscrição da diferença que força um movimento de individuação que constitui tanto o pensamento quanto a sensibilidade. As afirmações “só pode ser pensado” e “só pode ser sentido” exprimem o movimento da diferença à individualidade. Essa expressão significa, antes de mais nada, o caráter genético que faz da diferença produtora do pensável e do sensível. O “só pode” expressa o movimento que produz, no inapreensível, toda apreensão singular e específica. A sensibilidade e o pensamento, para Deleuze, são produzidos pela diferença enquanto númeno; se inapreensível em si mesma, ela, não obstante, produz toda apreensão, sensível, intelectual ou especulativa. A diferença ocupa, em razão desta caracterização, o lugar do transcendental enquanto condição genética.

Neste aspecto, a diferença se opõe mais uma vez à diversidade; a diversidade é uma diferença externa entre indivíduos, ao passo que a diferença a que visa Deleuze é interna; interna não no sentido de ser um atributo de um sujeito, mas no sentido de ser a individuação coextensiva ao ente individuado. Como coloca Toscano (2006, p. 160)TOSCANO, A. “The Theatre of Production: Philosophy and Individuation between Kant and Deleuze.” Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2006., “o objetivo de se ater à diferença interna de uma coisa significa que a filosofia da diferença é inseparável de uma outra concepção do problema da individuação”. Tal concepção visa se afastar do hilemorfismo aristotélico, mantendo-se fiel à crítica de Simondon ao seu primado na tradição filosófica.6 6 Para Simondon (2013), a tradição filosófica pensaria a individuação a partir de um princípio abstraído dos entes individuados e não em si mesma. Esta postura, naturalmente, ressoa no projeto de Deleuze que não nega a influência de Simondon. Tanto para Deleuze, quanto para Simondon, a individuação se dá a partir da diferença. Neste ponto, a diferença pode ser dita imanente aos indivíduos identificáveis enquanto sua condição genética; uma individuação em ato ou performativa.

Nesse sentido, o conceito de diferença pretende pensar a gênese da experiência concreta e não meramente possível (um dos pontos centrais da crítica de Deleuze a Kant):7 7 Para Deleuze, ao se focar apenas na experiência possível haveria perdido de vista a compreensão da experiência concreta, o que se manifestaria, por exemplo, nas dificuldades assaz discutidas pelos comentadores sobre o esquematismo. Quanto a isso, Deleuze (1968/2000, p. 138) escreve que: “[...] os conceitos elementares da representação são as categorias definidas como condições da experiência possível. Mas estas são muito gerais, muito amplas para o real. A rede é tão frouxa que os maiores peixes passam através dela”. antes de um ente ter sua individualidade dada por uma participação em uma essência ou em uma posição determinada em um todo e por ele limitado, a diferença interna expressa o seu dinamismo intrínseco como razão suficiente. Como isso opera? A teoria da individuação em Deleuze é complexa mas pode ser compreendida a partir do conceito de acontecimento.

Contra uma pressuposição substancialista que pensa em termos de sujeitos e predicados, substâncias e atributos, Deleuze, em “Lógica do sentido”, traz o conceito de acontecimento e uma teoria da individuação a partir deste conceito. Um exemplo simplificado pode ser instrutivo neste aspecto. Imaginemos um animal tal como um javali. A posição que Deleuze quer contrastar seria aquela que pensa o “javali” em termos de sujeito e predicados; o javali como dotado de um substrato no qual se escrevem predicados/atributos tais como “ser mamífero”, “dentes grandes” etc. Para Deleuze, o javali é a condensação de uma série de acontecimentos e a sua existência é esta condensação em ato, sem nada para além, substância ou substrato. Estes acontecimentos seriam processos que instanciam, concretamente, o javali enquanto ente: processos biológicos (as sínteses celulares no seu corpo); processos “históricos” (a vida do javali); processos ecológicos (a relação do corpo-javali com o meio) etc. Não haveria um sujeito ou objeto anterior a estes processos; indivíduos se constituem apenas como um certo limiar na concatenação destes processos mesmos. Assim, o indivíduo é uma escala ou limiar de variações, como uma cor na escala cromática – certo ponto, dado entre um limite, através do qual podemos dizer, ver e reconhecer uma cor como sendo vermelho ou amarelo, por exemplo.8 8 Neste ponto, é bastante interessante a reconstrução interpretativa que Manuel Delanda (2005) realiza em “Intensive Science and Virtual Philosophy” da obra de Deleuze, mostrando, por diversos exemplos das ciências empíricas, a pertinência de se pensar os fenômenos a partir de processos. O virtual, na filosofia de Deleuze, corresponde a esta dimensão acontecimental que se dá imanentemente ao atual que, por sua vez, corresponde à dimensão empírica e individuada.

A relação entre diferença e acontecimento pode ser compreendida a partir da tese da univocidade da diferença e da diferença interna. Por um lado, cada objeto, em sua metade virtual, figura como um processo diferencial. A metade processual é da ordem de uma diferença interna, analiticamente responsável pela gênese em ato do objeto. Um exemplo, trazido de Simondon, ajuda a clarificar esta dimensão. A imagem visual que temos do mundo é produzida a partir da diferença entre a imagem aportada por cada olho em específico, sendo resultante da diferença entre elas. Processo análogo se passa nas células que têm sua individualidade dada pela diferença entre o mundo externo e o meio de interioridade construído por uma seleção ativa no nível da membrana (Simondon, 2013SIMONDON, G. “L’individuation à la lumiére des notion de forme e information.”Grenoble: Editions Jerôme Millon, 2013.). Assim, o regime individuante, coextensivo ao indivíduo constituído, corresponde à diferença interna.

Quanto à univocidade, trata-se de uma postulação especulativa visando levar a diferença interna a um patamar ontológico – em um movimento que, certamente, ecoa de forma reversa a passagem da “Analítica Transcendental” kantiana para a “Dialética Transcendental”. Dado que a individuação é da ordem da diferença, a tese da univocidade pretende pensar a própria diferença enquanto ser. Para além do caráter individuante “localizado”, referente à individuação objetal, trata-se de pensar a “diferença pura”, a “pura virtualidade”, em uma dimensão independente dos indivíduos em específico – sendo que esta “independência” deve ser compreendida apenas em sentido conceitual, dado que a diferença pura, na sua pureza mesma, não deixa de ser imanente aos indivíduos engendrados.

O conceito de univocidade é, neste sentido, a figura da diferença pensada em sua feição ontológico-especulativa. Trata-se de um conceito construído a partir da univocidade de Duns Scotus e da filosofia spinozista acrescida de uma interpretação heterodoxa do eterno retorno em Nietzsche. Deleuze assim descreve a univocidade:

[…] o essencial da univocidade não é que o Ser se diga num e mesmo sentido. É que ele se diga num único sentido de todas as suas diferenças individuantes ou modalidades intrínsecas. O Ser é o mesmo para todas estas modalidades, mas as modalidades não são as mesmas. Ele é ‘igual’ para todas, mas estas modalidades não são as mesmas [...] O Ser se diz em um e mesmo sentido de tudo aquilo que ele se diz, mas aquilo que ele se diz difere: ele diz-se da própria diferença. (Deleuze, 1968/2000, p. 93DELEUZE, G. (1968). “Diferença e Repetição”. Trad. L. Orlandi e R. M. Lisboa: Relógio D’água, 2000.)

De forma semelhante, na “Lógica do Sentido”, Deleuze escreve:

A univocidade do ser não significa que haja um só e mesmo ser: ao contrário, os existentes são múltiplos e diferentes, sempre produzidos por uma síntese disjuntiva, eles próprios disjuntos e divergentes, membra disjuncta. A univocidade do ser significa que o ser é Voz, que ele se diz em um só e mesmo ‘sentido’ de tudo aquilo que ele se diz. Aquilo que ele se diz não é, em absoluto, o mesmo. Mas ele é o mesmo para tudo que se diz (Deleuze, 1969/2011, p. 185DELEUZE, G. (1969). “Lógica do Sentido”. Trad. Luiz R. S. Fortes. São Paulo: Perspectiva, 2011.)

A diferença é a unidade disjuntiva daquilo que difere. É ela o desigual que permanece no igual e é a igualdade pela desigualdade. Se não podemos reunir todos os entes em uma identidade derradeira que os subscreveria ao modo de uma Ideia platônica, temos a diferença como aquilo que permite a reunião especulativa de todos os entes em um comum que não os reduz em sua singularidade. Tudo é o mesmo pois tudo difere: de si mesmo como diferença interna e dos outros entes em sua diferença externa. A diferença permeia todos os entes, mas os permeia enquanto entes diversos: não é unidade subjacente, mas a impossibilidade de unidade transcendente como a-fundamento. Esta consideração se justifica pelo caráter pré-individual da diferença. Se, como vimos, a diferença é analiticamente “anterior” aos indivíduos – no sentido de não ser redutível a qualquer identidade –, ela não apresenta bordas ou contornos determinados de forma que, na sua indeterminação mesma, ela se revela unívoca em relação a todas as manifestações empíricas de indivíduos constituídos.

Em “Mil Platôs”, Deleuze e Guattari escrevem que, durante sua obra conjunta, procuraram chegar “à fórmula mágica que buscamos todos: PLURALISMO = MONISMO” (Deleuze; Guattari, 1980/2011, p. 42DELEUZE, G., GUATTARI, F. (1980). “Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia 2., Vol. 4”. Trad. S. Rolnik. São Paulo: Editora 34, 2012a.). A fórmula mágica em questão é a própria univocidade da diferença: um pluralismo que se identifica ao monismo conforme toda substancialidade transcendente é alijada em um puro movimento de devir e diferença. O monismo expressa a diferença, e o pluralismo a diferenciação da diferença em seus infinitos modos. O primeiro expressa a permanência da diferença em tudo que difere, e o segundo, a imanência da diferença aos entes que diferem. A diferença só existe naquilo que difere, mas é unívoca à pluralidade infinita do que é diferido.

A tese da univocidade também se apresenta sob a figura do eterno retorno. Em primeiro lugar, trata-se de uma apropriação heterodoxa do conceito em Nietzsche,9 9 Deleuze justifica a sua leitura de Nietzsche a partir dos seguintes argumentos. Em primeiro lugar, Nietzsche apresenta o eterno retorno como algo novo, diferente, de modo que não pode se tratar do eterno retorno do Mesmo conforme a filosofia da Antiguidade. Em segundo lugar, Deleuze identifica em Nietzsche uma crítica pervasiva à centralidade da identidade, o que tornaria contraditório supor que o eterno retorno seria da ordem do Mesmo (Deleuze, 1967/2019, pp. 161-163). que, apesar de seu remetimento ao filósofo, é uma contribuição plenamente original de Deleuze. A diferença, assim, é pensada em uma relação direta com o tempo – movimento cuja justificativa conceitual também remete a Kant.

Na interpretação de Deleuze, o sujeito kantiano seria um desenvolvimento do cogito cartesiano, mas com uma importante inovação: a forma da determinação enquanto o próprio tempo. Para Deleuze, em Descartes, temos na fórmula “penso, logo existo” uma indeterminação – “eu sou” – sendo determinada pela forma do “eu penso”.10 10 “Tudo se passa como se o cogito de Descartes operasse com dois valores lógicos: a determinação e a existência indeterminada. A determinação (eu penso) implica uma existência indeterminada (eu sou, pois ‘para pensar é preciso ser’) – e a determina, precisamente, como a existência de um ser pensante: penso, logo sou, sou uma coisa que pensa.” (Deleuze, 1968/2000, p. 164). A inovação de Kant é indagar como se dá essa determinação: qual é a forma da determinabilidade do “eu penso” em relação ao “eu sou”? Para Kant, é a forma do tempo: é através do tempo que o sujeito se determina a si mesmo. Para Descartes, haveria uma determinação imediata da existência indeterminada passando-se sem explicação. Trata-se do pressuposto da espontaneidade subjetiva, unidade do sujeito como simplesmente dado e incontestável: “todos sabem que”, “ninguém pode negar”... Se para Kant, de fato, ainda se faz necessária a pressuposição da unidade do sujeito, o seu avanço está em colocá-la explicitamente como um pressuposto lógico consciente e não mais imediatamente dado. Aqui temos uma “cesura” na autoconfiança do cogito cartesiano, pois a determinação só pode ser dada por uma alteridade intrínseca, a do tempo mesmo, que cinde o sujeito entre empírico e transcendental. Se o tempo está inserido no interior do sujeito, enquanto condição estética do próprio sentido íntimo, não obstante, a determinação do sujeito empírico com estados mentais e afetivos se dá no interior do tempo: o eu empírico, diferentemente do sujeito, só pode existir enquanto fenômeno temporal. Kant, deste modo, haveria introduzido uma diferença interna, uma alteridade intrínseca11 11 “O Eu então é cindido em uma dupla forma: ‘eu (moi)’ passivo, determinado, e Eu (je) determinante. O eu penso como determinante no tempo e o eu passivo determinado enquanto determinação no tempo: a forma do determinável faz com que o Eu determinado represente para si a determinação como Outro. É como um duplo afastamento do Eu e do Eu no tempo, que os reporta um ao outro, cose-se um no outro. É o fio do tempo” (Deleuze, 1993/2011, p. 44). no seio do cogito, de forma que

As consequências disto são extremas: minha existência indeterminada só pode ser determinada no tempo, como a existência de um fenômeno, de um sujeito fenomênico, passivo ou receptivo, aparecendo no tempo. Deste modo, a espontaneidade, da qual tenho consciência no Eu penso, não pode ser compreendida como o atributo de um ser substancial e espontâneo, mas somente como a afecção de um eu passivo que sente seu próprio pensamento, sua própria inteligência, aquilo pelo qual ele diz EU, exercer-se nele e sobre ele, mas não por ele. Começa, então, uma longa história, inesgotável: EU é um outro ou o paradoxo do sentido íntimo. (Deleuze, 1968/2000, pp. 164-165DELEUZE, G. (1968). “Diferença e Repetição”. Trad. L. Orlandi e R. M. Lisboa: Relógio D’água, 2000.)

Por esta razão, a subversão da filosofia kantiana realizada por Deleuze coloca grande ênfase no tempo. O tempo é a forma da alteridade que cinde o sujeito; é aquilo que escapa a sua identidade. Se é o tempo que cinde o sujeito entre transcendental e empírico, é a partir do tempo que se pode alargar esta cesura em direção a um campo impessoal, a-subjetivo. Este campo é o da própria diferença que, portanto, é o próprio tempo em sua feição “pura”.

De maneira simplificada, o eterno retorno é a pura forma da mudança ou o devir. Deleuze (1968/2000, p. 219)DELEUZE, G. (1968). “Diferença e Repetição”. Trad. L. Orlandi e R. M. Lisboa: Relógio D’água, 2000. escreve que “o eterno retorno não faz retornar o mesmo ou o semelhante, mas ele próprio deriva de um mundo da pura diferença”. É a perpétua reinscrição da novidade, a inesgotabilidade da individuação em relação a todos os entes individuados. A postulação especulativa da diferença em si requer, neste sentido, que haja um primado da criação sobre aquilo que é criado. Este primado, no entanto, não é axiológico. Antes, expressa o fato de que, se toda a criação fosse passível de redução a indivíduos, em última instância, a uma plena individualidade morta, como narra a hipótese da morte térmica do universo, haveria, pois, uma tendência da diferença a anular-se completamente na identidade. O tempo terminaria e, com ele, chegaríamos a uma determinação última.

Neste sentido, Deleuze argumenta que a abertura do tempo é fundamental para compreendê-lo em si mesmo. As três sínteses do tempo de “Diferença e Repetição”, arrematadas pela última (o eterno retorno), visam demonstrar como a individuação de temporalidades específicas (hábito no presente vivido e memória como encaixe dos presentes) requer o prolongamento em uma pura forma do tempo, o eterno retorno. Esquematicamente, pode-se interpretar este argumento como afirmando que, para que se evite a cristalização do tempo em um presente eterno (e, assim, autoidêntico) ou em um passado absoluto como totalidade do tempo (e, assim, igualmente, autoidêntico), é necessário supor uma reinscrição perpétua da diferença como aquilo que impede, em um devir sempre renovado, que o tempo se sedimente na presença última de uma eternidade qualquer. Assim, o eterno retorno é condição para que o tempo passe, para que tenhamos, enquanto temporalidades individuadas, tanto presente, quanto passado e futuro.

Por fim, o eterno retorno é descrito como “acontecimento único formidável” ou eventum tantum, comunicação de todos os acontecimentos (Deleuze, 1969/2011, p. 185DELEUZE, G. (1969). “Lógica do Sentido”. Trad. Luiz R. S. Fortes. São Paulo: Perspectiva, 2011.). O eterno retorno seria nada além da mais alta afirmação da síntese disjuntiva, o seu ponto máximo especulativamente suposto. A síntese disjuntiva é a possibilidade imanente de gênese a partir de uma comunicação pela diferença: processo de determinação individuante a partir da relação entre processos. Remetido ao acontecimento, ela expressa o estado máximo de “complicação” de todos os acontecimentos: dado que um acontecimento não tem unidade (se não como intervalo entre variações), expressando antes uma tendência virtual, faz-se necessário supor um campo onde todos os acontecimentos se comunicam, uma vez que não há bordas ou limites separando um acontecimento de outro senão na medida em que esses limites se dão em um estado de coisas atual (individuado).

Tal comunicação é dada no nível pré-individual: assim, não é passível de contradição lógica ou incompatibilidade material. Mais ainda, a univocidade, a fim de manter disjunto aquilo que reúne, só assim pode se afastar de uma totalidade enquanto identidade perfeita. A compossibilidade e incompossibilidade que Deleuze retira de Leibniz são aqui reunidas: a comunicação de todos os acontecimentos na univocidade do eterno retorno seria uma compossibilidade última dada pela compossibilidade mesma dos incompossíveis (Deleuze, 1969/2011, p. 115DELEUZE, G. (1969). “Lógica do Sentido”. Trad. Luiz R. S. Fortes. São Paulo: Perspectiva, 2011.). A exigência “teológica” de um Deus que calcularia o melhor dos mundos é substituída pela complicação infinita de todos os mundos sobre os outros mundos. Para além do indivíduo, no campo das singularidades pré-individuais, não há fronteiras nem interdições lógicas e materiais, de forma que o campo dos acontecimentos só pode ser unívoco.

Neste ponto, temos o mesmo movimento que vimos há pouco. A diferença interna enquanto coordenada individuante se prolonga em uma defesa da diferença em si mesma enquanto norte último, especulativamente suposto, de toda manifestação fenomênica – campo transcendental sem sujeito. No lugar do sujeito transcendental, o puro devir; no lugar do ser como presença, a pura diferença enquanto tempo. Cada acontecimento já está envolvido e envolve os demais acontecimentos, se reunindo, em última instância, na univocidade do ser.

O caráter ontológico da univocidade deve, por fim, ser frisado. Deleuze (1968/2000, p. 97)DELEUZE, G. (1968). “Diferença e Repetição”. Trad. L. Orlandi e R. M. Lisboa: Relógio D’água, 2000. afirma, em “Diferença e Repetição”, que “o ser é que é Diferença, no sentido de que ele se diz da diferença”. Em outros momentos, Deleuze equaciona ser e devir, de forma que podemos conceber que a diferença é o devir que é o próprio ser: “não há ser além do devir” e “a própria afirmação do devir é o ser” (Deleuze, 1963/2018, p. 36DELEUZE, G. (1963). “Nietzsche e a filosofia” Trad. M. T. Barbosa e O. Abreu Filho. São Paulo: n-1 ediçoes, 2018.). Nesse mesmo sentido, em “Lógica do Sentido”, Deleuze escreve que “a filosofia se confunde com a ontologia, mas a ontologia se confunde com a univocidade do ser” (Deleuze, 1969/2011, p. 185DELEUZE, G. (1969). “Lógica do Sentido”. Trad. Luiz R. S. Fortes. São Paulo: Perspectiva, 2011.). Há, portanto, um equacionamento entre diferença, univocidade, ser e devir. Ele expressa, deste modo, que o ser é diferença e a diferença é o devir e o devir é unívoco em relação a tudo que devém.

Por conta destas passagens, nos parece pouco justificável a afirmação de Zourabichvili (2016, pp. 26-27)ZOURABICHIVILI, F. “Deleuze: uma filosofia do acontecimento”. Trad. L. B. L. Orlandi. São Paulo: Editora 34, 2016. quando escreve que “não há ontologia de Deleuze” e que, “[...] se a filosofia de Deleuze tem uma orientação, ela só pode ser esta: extinção do nome do ser e portanto, da ontologia”. O argumento de Zourabichvili pretende associar Deleuze à rejeição da metafísica e da ontologia, em voga na sua época, reforçando o caráter radicalmente crítico (em sentido kantiano) da sua obra como prova de um afastamento central em relação à temática ontológica. Em certos momentos, de fato, Deleuze se posiciona contra a metafísica e contra a ontologia, mas não contra ontologia por si mesma, e sim contra a ontologia como inscrita na tradição filosófica. Deleuze critica o conteúdo antes do que a forma, certas “ontologias” antes do que a ontologia. Identificar ser e devir, ser e diferença, é o movimento de criação de uma nova ontologia que não cai naquilo que, ao longo do século passado, foi colocado contra a sua possibilidade e desejabilidade.12 12 Ao colocar a diferença como ser, Deleuze, assim, dificilmente pode ser acusado de estar incorrendo em uma “metafísica da presença”, como colocaria Derrida. Não se trata, neste aspecto, de afirmar o ser ao modo dos entes ou de tomá-lo como algo dado e presente a si mesmo; é precisamente o inverso. Não temos em Deleuze, por exemplo, uma dualidade dos mundos: não se trata, de fato, de definir “o que é a realidade em última instância”, como coloca Zourabichvili, mas, sim, de um modelo especulativo de descrição geral da realidade.13 13 Aqui, vale remeter a “The evolution of modern metaphysics”, de Adrian Moore (2012, p. 2), onde o autor define a metafísica como a “tentativa mais geral de dar sentido/compreender as coisas”. Moore caracteriza a filosofia de Deleuze sob esta rubrica em uma argumentação convincente de que a preocupação central do filósofo é a produção de conceitos a fim de descrever a realidade em sua máxima generalidade. Se o comentador argumenta que temos duas exigências aparentemente contraditórias em Deleuze – “transcendental e ontológica” –, tal contradição se resolve justamente no pensamento de uma ontologia especulativa. Conceber o ser não como algo a ser conhecido, mas como algo que deve ser pensado. Apenas o aspecto de generalidade descritiva faz da filosofia de Deleuze uma ontologia e uma metafísica, e o seu caráter especulativo faz dela plenamente capaz de reunir o transcendental e o ontológico. O ser é transcendental (e imanente), mas só pode ser pensado e nunca representado de modo translúcido.

Por ser pensável e não cognoscível, a diferença em si ocupa o lugar das Ideias kantianas na reversão crítica de Deleuze. A utilização do termo Ideia em “Diferença e Repetição” demonstra este ponto claramente. As Ideias para Kant são identidade hipostasiadas, como vimos; as Ideias em Deleuze são os coeficientes locais de individuação virtuais, regiões da diferença que, imanentemente, produzem os indivíduos. Neste sentido, Ideias são acontecimentos (Deleuze, 1968/2000, p. 443DELEUZE, G. (1968). “Diferença e Repetição”. Trad. L. Orlandi e R. M. Lisboa: Relógio D’água, 2000.), e, enquanto tais, correspondem à individuação dos entes experienciáveis. Neste mesmo sentido, Deleuze situa as Ideias no campo do virtual e afirma que há um desdobramento (complicação) das Ideias, o que permite a passagem da Ideia à univocidade.

Com base no que vimos até aqui, a diferença retém uma assimetria em relação aos entes de forma que nosso pensamento não pode captá-la de modo transparente. Toda elaboração conceitual, mesmo a que pretende pensar a diferença em si mesma, acaba por introduzir a identidade, de forma que a diferença em si mesma se torna insondável e refratária à sua apreensão discursiva, lógica ou conceitual. Como vimos, ela não pode ser sentida, não pode ser pensada, ao mesmo tempo que figura como condição imanente do pensamento e sensibilidade. Por conta disso, a ontologia da diferença de Deleuze não pode ser nada senão especulativa. A diferença não pode ser conhecida, mas pode ser pensada. E, mesmo que ainda possa ser pensada, nenhum pensamento pode capturá-la de forma última, de uma vez por todas. Não só, por um lado, porque o pensamento sempre recai na identidade de um modo ou de outro, como também, por outro lado, a própria diferença não para de diferir, de modo que a sua captura definitiva em um conceito qualquer é impossível. Novamente, mesmo o pensamento da diferença de Deleuze, em sua imagem especulativa de um pensamento sem imagem, não pode, sob pena de contradição lógica e conceitual, expressar a diferença mesma em uma pretensa translucidez ao conceito. Nesse mesmo sentido, não se trata de incursão em um modo filosófico pré-crítico, uma vez que a distinção mesma entre pensável e cognoscível já está imediatamente dada na formulação da diferença em si mesma.

4. Conclusão

Vimos, ao longo do texto, como o conceito de diferença no pensamento de Deleuze se apresenta enquanto especulativo. A partir do engajamento da Deleuze com a crítica kantiana, vimos como a sua filosofa visa a uma reversão da crítica que, neste movimento, pretende substituir a identidade enquanto fio condutor da crítica pela diferença. Deleuze, deste modo, postula a diferença enquanto em si do mundo em um experimento de pensamento. O transcendental, a partir desta reorientação, assume a figura de um campo impessoal e a-subjetivo, coextensivo aos indivíduos empíricos enquanto sua condição genética.

A diferença não é um dado apreensível, uma presença ou mesmo fundamento derradeiro da realidade. Trata-se de uma suposição – um “como se” – em um experimento de pensamento. Neste aspecto, o caráter pós-crítico da filosofia de Deleuze se manifesta de forma nítida. A diferença em si mesma está no campo do pensável e não do cognoscível, não pode ser pensada, não pode ser sentida, escapa a toda apreensão possível. Deste modo, mesmo a filosofia de Deleuze não pode capturar a diferença sob o conceito. O conceito de diferença em si e de univocidade do ser, assim, são gestos em direção à diferença e gestos apenas. Não pretendem esgotá-la ou cristalizá-la sob uma forma derradeira e imutável.

Por fim, a postulação especulativa da diferença tem uma interessante consequência filosófica. Dado que a diferença excede todo conceito e que a própria filosofia deleuziana não pode dar conta deste excesso, a filosofia da diferença desenvolvida em “Diferença e Repetição” permanece aberta. Neste sentido, dado o excesso da diferença em relação a sua apreensão conceitual, o pensamento de Deleuze nos convida a repetir o seu gesto e a pensar a diferença em formas novas, elas mesmas diferentes. Se, naturalmente, uma leitura exegética da obra de Deleuze é necessária, a conclusão a ser tirada é de que podemos, para além da exegese, nos aventurar em experimentações visando, igualmente, manifestar conceitualmente a diferença.

Parece-nos que, neste aspecto, o projeto construtivista expresso em “O que é a filosofia?” está em profunda consonância com a filosofia da diferença formulada por Deleuze em “Diferença e Repetição”. A concepção da filosofia, enquanto arte de criar conceitos, é um desenvolvimento pertinente da postulação da diferença enquanto movimento de perpétua reinscrição da novidade. A atividade filosófica se reorienta da circunscrição estrita ao comentário e, igualmente, se livra da pretensão de descoberta de fundamentos últimos. Torna-se uma atividade criativa, experimental, procurando, por meio do próprio gesto de criar, seguir o movimento do ser enquanto criação. Pensar a diferença envolve pensar diferente.

  • 1
    O termo ‘correlacionismo’ é cunhado por Meillassoux para descrever todas as filosofias que se preocupam apenas com “a correlação entre ser e pensar e nunca a um dos termos tomados isoladamente” (Meillassoux, 2012, p. 2MEILLASSOUX, Q. “The Contingency of the Laws of Nature”. Environment and Planning D: Society and Space, Vol. 30, 2012, pp. 322-34.). Para Meillassoux haveria uma orientação fundamentalmente kantiana na filosofia dos últimos dois séculos, na qual o materialismo teria sido abandonado em prol de uma postura que nega o acesso à realidade em si mesma, voltando-se apenas a sua manifestação para nós.
  • 2
    O conceito de “imagem moral do pensamento” expressa uma doxa filosófica. Para Deleuze, o primado da identidade consiste em um pressuposto do senso comum ilegitimamente tomado como a figura própria do que é pensar. Assim, no seio da imagem moral, o pensamento seria pautado pela identidade.
  • 3
    Para uma discussão aprofundada da relação entre Deleuze e Heidegger, cf. Rae, 2004RAE, G. “Ontology in Heidegger and Deleuze: A Comparative Analysis”. Nova York: Palgrave Macmillan, 2014..
  • 4
    Deleuze (1999/1999, p. 130) afirma que é “um puro metafísico” em entrevista concedida a Villani. Neste ponto, torna-se claro que, apesar da proximidade do seu projeto com filosofias fortemente críticas à metafísica, como a de Derrida, Deleuze não pretende romper com a metafísica, mas propor uma nova metafísica em bases outras que não a identidade.
  • 5
    Neste sentido, a distinção virtual e atual visa precisamente expressar esta proximidade. Descrito como as duas metades de um objeto, o virtual e o atual são, respectivamente, as coordenadas de individuação (condição) e o objeto condicionado e individuado. A descrição enquanto duas metades opera precisamente por afirmar a indissociabilidade de um e outro, a não eminência, a não transcendência, do virtual em relação ao atual (Deleuze, 1968/2000DELEUZE, G. (1968). “Diferença e Repetição”. Trad. L. Orlandi e R. M. Lisboa: Relógio D’água, 2000.). Neste ponto, também são instrutivos os comentários de Bryant, que situam esta distinção no seio do problema de resolver a disjunção hilemórfica kantiana entre experiência possível e experiência concreta (cf. Bryant, 2008BRYANT, L. “Difference and giveness: Deleuze’s Transcendental Empirism and Ontology of Immanence.” Evanston: Northwestren University Press, 2008./2009BRYANT, L. “Deleuze’s transcendental empirism Notes Towards a TranscendentaMaterialism”. In: WILLAT, E,. LEE, M. (eds.), 2009, pp. 28-49).
  • 6
    Para Simondon (2013)SIMONDON, G. “L’individuation à la lumiére des notion de forme e information.”Grenoble: Editions Jerôme Millon, 2013., a tradição filosófica pensaria a individuação a partir de um princípio abstraído dos entes individuados e não em si mesma. Esta postura, naturalmente, ressoa no projeto de Deleuze que não nega a influência de Simondon. Tanto para Deleuze, quanto para Simondon, a individuação se dá a partir da diferença.
  • 7
    Para Deleuze, ao se focar apenas na experiência possível haveria perdido de vista a compreensão da experiência concreta, o que se manifestaria, por exemplo, nas dificuldades assaz discutidas pelos comentadores sobre o esquematismo. Quanto a isso, Deleuze (1968/2000, p. 138)DELEUZE, G. (1968). “Diferença e Repetição”. Trad. L. Orlandi e R. M. Lisboa: Relógio D’água, 2000. escreve que: “[...] os conceitos elementares da representação são as categorias definidas como condições da experiência possível. Mas estas são muito gerais, muito amplas para o real. A rede é tão frouxa que os maiores peixes passam através dela”.
  • 8
    Neste ponto, é bastante interessante a reconstrução interpretativa que Manuel Delanda (2005)DELANDA, M. “Intensive Science and Virtual Philosophy”. Londres: BloomsburyPublishing, 2005. realiza em “Intensive Science and Virtual Philosophy” da obra de Deleuze, mostrando, por diversos exemplos das ciências empíricas, a pertinência de se pensar os fenômenos a partir de processos.
  • 9
    Deleuze justifica a sua leitura de Nietzsche a partir dos seguintes argumentos. Em primeiro lugar, Nietzsche apresenta o eterno retorno como algo novo, diferente, de modo que não pode se tratar do eterno retorno do Mesmo conforme a filosofia da Antiguidade. Em segundo lugar, Deleuze identifica em Nietzsche uma crítica pervasiva à centralidade da identidade, o que tornaria contraditório supor que o eterno retorno seria da ordem do Mesmo (Deleuze, 1967/2019, pp. 161-163DELEUZE, G. (1967). “Conclusões sobre a vontade de potência e eterno retorno.” In: A ilha deserta e outros textos: textos e entrevistas (1953-1974). Trad. L. B. L. Orlandi. São Paulo: Ed. Iluminuras, 2019.).
  • 10
    “Tudo se passa como se o cogito de Descartes operasse com dois valores lógicos: a determinação e a existência indeterminada. A determinação (eu penso) implica uma existência indeterminada (eu sou, pois ‘para pensar é preciso ser’) – e a determina, precisamente, como a existência de um ser pensante: penso, logo sou, sou uma coisa que pensa.” (Deleuze, 1968/2000, p. 164DELEUZE, G. (1968). “Diferença e Repetição”. Trad. L. Orlandi e R. M. Lisboa: Relógio D’água, 2000.).
  • 11
    “O Eu então é cindido em uma dupla forma: ‘eu (moi)’ passivo, determinado, e Eu (je) determinante. O eu penso como determinante no tempo e o eu passivo determinado enquanto determinação no tempo: a forma do determinável faz com que o Eu determinado represente para si a determinação como Outro. É como um duplo afastamento do Eu e do Eu no tempo, que os reporta um ao outro, cose-se um no outro. É o fio do tempo” (Deleuze, 1993/2011, p. 44DELEUZE, G. (1993). “Crítica e Clínica”. Trad. P. P. Pelbart. São Paulo: Editora 34, 2011a. pp. 40-51.).
  • 12
    Ao colocar a diferença como ser, Deleuze, assim, dificilmente pode ser acusado de estar incorrendo em uma “metafísica da presença”, como colocaria Derrida. Não se trata, neste aspecto, de afirmar o ser ao modo dos entes ou de tomá-lo como algo dado e presente a si mesmo; é precisamente o inverso.
  • 13
    Aqui, vale remeter a “The evolution of modern metaphysics”, de Adrian Moore (2012, p. 2)MOORE, A. “The evolution of modern metaphysics: making sense of things.” Nova York: Cambridge University Press, 2012., onde o autor define a metafísica como a “tentativa mais geral de dar sentido/compreender as coisas”. Moore caracteriza a filosofia de Deleuze sob esta rubrica em uma argumentação convincente de que a preocupação central do filósofo é a produção de conceitos a fim de descrever a realidade em sua máxima generalidade.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    Ago 2023

Histórico

  • Recebido
    28 Set 2021
  • Aceito
    02 Jan 2023
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