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Sobre os danos causados pela ferrugem asiática da soja

Os produtores e os especialistas em proteção de plantas necessitam de informações precisas sobre os danos e perdas (sensu Nutter et al., 19937 Nutter, F.W.; Teng, S.P.; Royer, M.H. Terms and concepts for yield, crop, and disease threshold. Plant Disease, Saint Paul, v.77, p.211- 215, 1993) causados pelas doenças para quantificar os limiares de decisão e determinar quando devem ser implementadas medidas de controle rentáveis

Não será discutido aqui a importância da quantificação de danos causados pelas doenças de plantas, mas sim a necessidade de ser corretamente expressa em números.

A fitopatologia como ciência trata de fenômenos biológicos cujos prejuízos causados pelas doenças podem ser expressos em números. Nesse sentido, é clássica a citação do Lord Kelvin (Thomson, 202111 William Thomson. In: Wikipédia: a enciclopédia livre. [São Francisco: Wikimedia Foundation, 2021]. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/William_Thomson>. Acesso em: 20 jan. 2021.
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) de que ‘se você medir aquilo de que está falando e expressar em números, você conhece alguma coisa sobre o assunto; mas, quando você não o pode exprimir em números, seu conhecimento é pobre e insatisfatório’. Behe (1977)1 Behe, M. A caixa preta de Darwin. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora Ltda., 1997. 300p., em outras palavras, enfatiza que ‘a ciência sem números não tem valor, ou sem números não há ciência’ e que os números sem estatísticas são difíceis de serem interpretados’.

Em muitos artigos científicos, sem se citar os autores, o montante de dano causado pela ferrugem asiática da soja (FAS) tem sido expresso em adjetivos servindo exemplos: alto, muito alto, severo, dano econômico, doença altamente destrutiva, doença de grande importância, uma das doenças mais severas, acarreta grandes perdas de rendimento, apresenta elevado potencial de dano, epidemia severa, ocasiona sérios prejuízos, afeta significativamente o rendimento dos grãos e etc. Com esses adjetivos cada leitor imagina um diferente montante de dano!

O objetivo desse texto é mostrar que o uso de adjetivos em fitopatologia para explicar danos e perdas deve e pode ser evitado. A importância da quantificação de danos em fitopatologia somente terá valor se expressa em números.

Também, nos artigos científicos publicados tem sido usado como sinônimos dano e perda o que deve ser revisado (Nutter et al., 19937 Nutter, F.W.; Teng, S.P.; Royer, M.H. Terms and concepts for yield, crop, and disease threshold. Plant Disease, Saint Paul, v.77, p.211- 215, 1993).

Em fitopatologia, dano é qualquer redução na qualidade ou na quantidade da produção devido ao ataque de um organismo nocivo numa lavoura (Nutter et al., 1993). Dano, portanto, corresponde à redução no rendimento de grãos da soja devido à ferrugem. O dano econômico depende da quantidade e não da simples presença da ferrugem numa lavoura.

Perda (R$), é a redução no retorno financeiro por unidade de área devido ao dano causado pela ferrugem (Nutter et al., 19937 Nutter, F.W.; Teng, S.P.; Royer, M.H. Terms and concepts for yield, crop, and disease threshold. Plant Disease, Saint Paul, v.77, p.211- 215, 1993). Portanto, é o dano expresso em unidade monetária (R$).

Outro fato comum encontrado na literatura é o de que um autor cita pela primeira em seu artigo ‘x’ de dano (com número), porém, sem descrever ou citar a metodologia de sua quantificação, e após, em sequência outros autores o citam perenizando a falsa informação. O primeiro autor deveria citar a metodologia se foi uma estimativa visual da lavoura, ou de parcelas experimentais, ou por regressão entre o rendimento de grãos e a intensidade da doença.

O que motivou os autores a colocar esse tema em discussão é também a não citação da metodologia usada na determinação do dano. Embora contendo números, tem sido encontradas referências tais como: a perda estimada foi de 15-40%; até 70-80% em lavouras; em experimentos de 18-57%; 100% em cultivares suscetíveis e 0 – 38% em cultivares tolerantes; em epidemias severas de 60-70%; dano de 10-40% e etc. Portanto, qual foi a metodologia usada na quantificação do dano agora expresso em números? Esses trabalhos podem ser repetidos?

Um exemplo concreto: tomou-se para base de cálculo os dados publicados (internet) do Consórcio antiferrugem de 2006/07 a 2020/21 totalizando 14 safras de soja. Considerou-se a produção máxima obtida como dano ‘zero’ e comparado com o rendimento no tratamento sem controle, o dano máximo. O menor dano foi de 45,61 e o maior de 76,9 % e com média de 63,96%.

Um dos objetivos dessa carta é lembrar que o dano pode ser determinado cientificamente. Na quantificação do dano causado por uma ou mais doenças, usualmente, analisam-se as relações entre intensidade da doença e dano, utilizando modelos matemáticos como o de ponto crítico, múltiplos pontos, integrais, de superfície de resposta e modelos sinecológicos.

Um método muito difundido para gerar o gradiente do rendimento de grãos e da intensidade da doença é o uso de fungicidas (Sah & McKenzie, 19879 Sah, D.N.; Mckenzie, D.R. Methods of generating different levels of disease epidemics in loss experiments. In: Teng, P.S. (ed.). Crop loss assessment and pest management. St. Paul: American Phytopathological Society, 1987. p.90-95.).

No modelo de ponto crítico é possível identificar um determinado estádio de desenvolvimento do hospedeiro, no qual a intensidade de doença presente está correlacionada com o rendimento de grãos ou dano (Bergamim Filho & Amorim, 19962 Bergamin Filho, A.; Amorim, L. Doenças de plantas tropicais: epidemiologia e controle econômico. São Paulo: Agronômica Ceres, 1996. 289p.; Vale et al., 20046 Jesus Junior, W.C.; Vale, F.X.R.; Bergamin Filho, A. Quantificação de danos e perdas. In: Vale, F.X.R.; Jesus Junior, W.C.; Zambolim, L. Epidemiologia aplicada ao manejo de doenças de plantas. Belo Horizonte: Perfil, 2004. p.203-273.). Através de análises de regressão entre o rendimento de grãos e a intensidade das doenças, obtêm-se diferentes equações para as doenças individuais ou agrupadas, para os fungicidas utilizados, para cultivares e para estádios fenológicos dos hospedeiros.

Em geral as equações de regressão obtidas são lineares, o que facilita a normalização do rendimento para 1.000 kg, contendo o coeficiente de dano (Cd) para ser utilizado no cálculo do limiar de dano econômico. A normalização facilita a comparação do dano entre doenças e ou cultivares.

A quantidade da FAS pode ser expressa pela densidade de urédias, densidade de lesões, severidade e incidência foliolar.

Os pioneiros em publicar função de dano para a ferrugem da soja foram Hartmann et al. (1991)5 Hartmann, G.L.; Wang, T.C.; Tschanz, A.T. Soybean rust development and the qualitative relationship between rust severity and soybean yield. Plant Disease, St. Paul., v.75, p.596-600, 1991. gerando a função R = 1000 - 6,77 S (onde R é o rendimento de grãos e S a severidade foliolar; num rendimento de grãos de 1000 kg/ha, 1,0% de severidade (S) reduziu 6,77 kg/ha).

Outros exemplos: (i) para o número de lesões (L)/cm2, cultivar BRS GO 7560, R = 1.000  80,63 L; para a cultivar BRS 246 RR, R = 1.000  60,51 L; (ii) para a densidade de urédias (U)/cm2, cultivar BRS GO 7560, R = 1.000  46,35 U; para a cultivar BRS 246 RR, R = 29,74 U; (iii) para a incidência (I) foliolar cultivar BRS GO 7560, R = 1.000  5,61 I; para a cultivar BRS 246 RR, R = 1.000  6,08 (Danelli et al., 20174 Danelli, A.L.D.; Reis, E.M.; Boaretto, C. Critical-point model to estimate yield loss caused by Asian soybean rust. Summa Phytopathologica, Botucatu, v.41, n.4, p.262-269, 2015.); (iv) para a severidade foliolar, R = 1.000  4,4 S (n = 18) (Reis et al., 20218 Reis, E.M.; Zanatta, M.; Reis, A.C. Reduced Asian soybean rust control by commercial fungicides co-formulations in the 2018-2019 growing season in southern Brazil. Journal of Agricultural Science, Richmond Hill, v.13, n.4, p. 1 - 7, 2021.).

Com as equações citadas, os danos em lavouras podem ser estimados pela incidência foliolar, método mais rápido e reproduzível, ou pela severidade estimada com maior erro.

Para outras culturas como cereais de inverno, milho e feijão já há funções de dano estabelecidas servindo também para determinar o limiar de dano econômico.

Para se ter uma quantificação numérica da importância do tema sugere-se um levantamento sistemático nas revistas científicas brasileiras dos adjetivos usados e do número de trabalhos contendo citações empíricas sobre o montante de dano e paralelamente uma revisão da metodologia usada em sua quantificação. Desta forma se poderia organizar um banco de dados, avaliar a magnitude dos efeitos em cada caso e analisar a qualidade da publicação.

Finalmente, é bem-vinda a manifestação dos fitopatologistas participando da discussão dessa carta envolvendo as revistas científicas do Brasil com comitê editorial. Espera-se como resposta positiva que autores, revisores e editores possam ser motivados a contribuir para evitar a publicação de informações empíricas e a perpetuação de informações sem base científica.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Behe, M. A caixa preta de Darwin Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora Ltda., 1997. 300p.
  • 2
    Bergamin Filho, A.; Amorim, L. Doenças de plantas tropicais: epidemiologia e controle econômico. São Paulo: Agronômica Ceres, 1996. 289p.
  • 3
    CABI. Invasive species compendium: Phakopsora pachyrhizi (soyabean rust). Egham, U.K.: Disponível em: <link de acesso direto ao documento>. Acesso em: 23 novembro, 2021.
  • 4
    Danelli, A.L.D.; Reis, E.M.; Boaretto, C. Critical-point model to estimate yield loss caused by Asian soybean rust. Summa Phytopathologica, Botucatu, v.41, n.4, p.262-269, 2015.
  • 5
    Hartmann, G.L.; Wang, T.C.; Tschanz, A.T. Soybean rust development and the qualitative relationship between rust severity and soybean yield. Plant Disease, St. Paul., v.75, p.596-600, 1991.
  • 6
    Jesus Junior, W.C.; Vale, F.X.R.; Bergamin Filho, A. Quantificação de danos e perdas. In: Vale, F.X.R.; Jesus Junior, W.C.; Zambolim, L. Epidemiologia aplicada ao manejo de doenças de plantas Belo Horizonte: Perfil, 2004. p.203-273.
  • 7
    Nutter, F.W.; Teng, S.P.; Royer, M.H. Terms and concepts for yield, crop, and disease threshold. Plant Disease, Saint Paul, v.77, p.211- 215, 1993
  • 8
    Reis, E.M.; Zanatta, M.; Reis, A.C. Reduced Asian soybean rust control by commercial fungicides co-formulations in the 2018-2019 growing season in southern Brazil. Journal of Agricultural Science, Richmond Hill, v.13, n.4, p. 1 - 7, 2021.
  • 9
    Sah, D.N.; Mckenzie, D.R. Methods of generating different levels of disease epidemics in loss experiments. In: Teng, P.S. (ed.). Crop loss assessment and pest management St. Paul: American Phytopathological Society, 1987. p.90-95.
  • 10
    Sinclair, J.B.; Hartman, G.L. Soybean rust. In: Hartman, G.L.; Sinclair, J.B.; Rupe, J.C. (ed.). Compedium of soybean diseases St Paul: APS Press, 1999. p.3-4.
  • 11
    William Thomson. In: Wikipédia: a enciclopédia livre. [São Francisco: Wikimedia Foundation, 2021]. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/William_Thomson>. Acesso em: 20 jan. 2021.
    » https://pt.wikipedia.org/wiki/William_Thomson

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Set 2022
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2022

Histórico

  • Recebido
    22 Out 2019
  • Aceito
    12 Abr 2022
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