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O Feitiço das Reformas Curriculares no Ensino Médico

“O novo homem e a nova mulher não se constituem na cabeça dos educadores, mas na nova prática social que substitui a velha, incapaz de criá-los.” (Paulo Freire - Cartas à Guiné-Bissau. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977. p. 166).

1. Tendências das reformas curriculares

Para o educador médico quase se torna tedioso discutir as vantagens e precariedades das experiências de coordenação ou integração de Disciplinas, o ensino por blocos ou sistemas orgânicos, os rodízios, as cargas horárias, a não-duplicação de conteúdos. A vivência do docente que, em algum momento, participou de comissões de reforma curricular é, em geral, frustrante, decepcionante e vazia.

As tentativas de reforma curricular, nas Américas, têm um marco histórico: o Relatório Flexner, de 1910, nos Estados Unidos.11. FLEXNER, A. - Medical education in the United States and Canada. The Carnegie Foundation for the Advancement of Teaching, New York, 1910. Uma comissão criada para estudar as causas da baixa qualidade da prática médica apontou como elemento decisivo a escassa ou nenhuma científicidade do ensino médico. Tratava-se de um momento de crise na Medicina norte-americana, marcado pela proliferação das “práticas livres” e do “charlatanismo” em confronto com a reação da “medicina oficial” representada pela American Medical Association.

A resposta da cientificidade e do saber “legitimo” foi aprimorar o ensino das Disciplinas Básicas. A partir da Química, Física, Morfologia e Biologia seria construido o “verdadeiro” conhecimento médico. Como conseqüência, estabeleceu-se definitivamente a dicotomia entre ensino básico e profissionalizante que viria a ser difundida em toda a América Latina, ainda que em ritmos, períodos e intensidades diferentes.22. ROCHA, H. - Correlações entre o ciclo básico e o ciclo profissional. Rev. Assoe. méd. bras ., 17 (10): 333-339, out. 1971.),(33. GARCIA, J. C. - La educación médica en la América Latina. Organización Panamericana de la Salud, Washington, 1972. 413 p. (Publ. Cient. n° 255).

Outro momento particular nas tendências do ensino médico foi gerado a partir de uma crítica parcial aos postulados da reforma de Flexner. A escola médica da “Western Reserve”, reconhecendo deficiências no contato tardio do estudante com a prática concreta, propôs um programa de cuidado à família de clientes (gestantes, recém-natos, pacientes após a alta) a cargo de estudantes desde o início do curso médico. Pretendia-se motivar o estudante atribuindo certas responsabilidades sociais e expondo-o mais precocemente a situações clínicas reais.33. GARCIA, J. C. - La educación médica en la América Latina. Organización Panamericana de la Salud, Washington, 1972. 413 p. (Publ. Cient. n° 255).

Guardando semelhanças com a reforma de Flexner, as escolas médicas da América Latina buscaram novas orientações. Desenvolveram-se programas de Medicina Preventiva e Familiar, atividades de cuidado domiciliar, algumas vezes com tonalidades de ingênua contestação: era necessário “colocar o estudante em contato com a realidade”.

Aos dois movimentos aqui tomados como símbolos das reformas no ensino médico somaram-se outros tantos, como o da revisão do ensino dos aspectos sociais e preventivos da Medicina33. GARCIA, J. C. - La educación médica en la América Latina. Organización Panamericana de la Salud, Washington, 1972. 413 p. (Publ. Cient. n° 255).),(44. ORGANIZACIÓN PANAMERICANA DE LA SALUD - Ensenãnza de la medicina preventiva y social: 20 anos de experiencia latino-americana. Washington, 1976. 63 p. (Publ. Cient. n° 324)., Medicina Comunitária55. PAIM, J. S. - Medicina Comunitária: introdução a uma análise crítica. Saúde em Debate, 1 (1): 9-12. out./dez. 1976.),(66. VIDAL, C. - Medicina Comunitária: nuevo enfoque de la medicina. Educ. méd. y Salud, 9 (1): 11-46, 1975. e, mais recentemente, os denominados projetos de integração docente-assistencial.77. BRAGA, E. - Planejamento de saúde e integração docente-assistencial: algumas considerações. R. Adm. públ., 11 (3): 57-68, jul./set. 1977.

Em acréscimo a estas tendências, surgiu, em momentos diversos, particularmente na década de 60, concordante com a revisão da legislação e o movimento político em torno da educação, o diagnóstico das insuficiências pedagógicas do pessoal docente, o que foi considerado como fator importante das deficiências qualitativas da educação médica.

Surgiram estudos e seminários, com ampla difusão, sobre as técnicas de definição de objetivos curriculares88. BLOOM, B. S. (Ed.) - Taxonomy of educational objectives. David MacKay Co. Inc., New York, 1956., de avaliação99. Me GUIRE, C. - A avaliação científica: um instrumento indispensável para a tomada de decisões. In: REUNIÃO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ESCOLAS MÉDICAS. 8., Brasília, 1970. Anais. Rio de Janeiro, 1971. p. 65-90., os laboratórios de relações humanas1010. BRIDGE, E. M. - Pedagogía médica. Organización Panamericana de la Salud, Washington, 1965. 336 p. (Publ. Cient. n° 122). e um estatuto de cientificidade da Pedagogia Médica1010. BRIDGE, E. M. - Pedagogía médica. Organización Panamericana de la Salud, Washington, 1965. 336 p. (Publ. Cient. n° 122).),(1111. MILLER, G. E. (Ed.) - Teaching and learning in medical school. Harvard Univ. Press, Cambridge, Mass., 1962., ao incorporar métodos sociométricos, inventários de personalidade, desenhos quase-experimentais e pesquisas antropológicas.

No Brasil, a reforma do ensino básico, apoiada pela Fundação Rockefeller, foi liderada pela Universidade de São Paulo, onde se desenvolveu a partir de então, considerável tradição de pesquisa básica na área biomédica. Por seu turno, os programas comunitários implantaram-se sucessivamente em Ribeirão Preto, São Paulo, Campinas, além de outras experiências mais limitadas em diversas Faculdades.33. GARCIA, J. C. - La educación médica en la América Latina. Organización Panamericana de la Salud, Washington, 1972. 413 p. (Publ. Cient. n° 255).

Com a criação da Associação Brasileira de Escolas Médicas, em 1962, estabeleceram-se as condições para a realização de seminários, congressos anuais, cursos, pesquisas, ciclo de debates onde foram discutidos e analisados os impasses do ensino médico e sugeridas opções para sua resolução.

A reforma definitiva parecia ser, em 1965-66, a da Universidade de Brasília, com a organização da Faculdade de Ciências da Saúde. Foi proposto um plano de estudos que incorporava o ensino por blocos de sistemas, buscando integrar disciplinas básicas, clínicas e da área de Medicina Preventiva1212. ALENCAR, H. de - A Universidade de Brasília: projeto nacional da intelectualidade brasileira. In: RIBEIRO, D. - A Universidade necessária. 2a ed., Paz e Terra, Rio de Janeiro. 1975. p. 271-296.),(1313. LOBO, L. C. G. & FERREIRA, J. R. - La carrera médica en la Universidad de Brasília. Educ. méd. y Salud , 4(4): 310-321, oct./dic. 1970.. Propunha-se formar um médico integral. Reestruturou-se a distribuição espacial do ensino médico. Os laboratórios eram multidisciplinares, com alunos adistritos a suas área de trabalho e pesquisa. O hospital, como Unidade Integrada de Saúde, não dispunha de enfermarias especializadas e integravam-se as ações preventivas e curativas.

O ensino em blocos sustentou-se enquanto pôde, a Unidade Integrada aos poucos contaminou-se com a inquietação dos especialistas e a conjuntura política pulverizou com rigor a experiência em andamento, culminando com a saída expontânea ou demissão da equipe originalmente responsável pelo programa.1212. ALENCAR, H. de - A Universidade de Brasília: projeto nacional da intelectualidade brasileira. In: RIBEIRO, D. - A Universidade necessária. 2a ed., Paz e Terra, Rio de Janeiro. 1975. p. 271-296.),(1313. LOBO, L. C. G. & FERREIRA, J. R. - La carrera médica en la Universidad de Brasília. Educ. méd. y Salud , 4(4): 310-321, oct./dic. 1970.),(1414. AZEVEDO, J. C. - Nemêsis e a Medicina (ou procura-se o Flexner brasileiro). Folha de São Paulo, 25 nov. 1976. p. 3.),(1515. MACHADO NETO, A. L. - A ex-Universidade de Brasília. Rev. Civil. Bras., 3 (14): 139-158, 1967.

O período 1966-1972 é da explosiva proliferação das escolas médicas no País. Neste intervalo, criaram-se 37 escolas; o número de matrículas novas cresceu de 3.800 para 9.0001616. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA. Departamento de Assuntos Universitários, Comissão de Ensino Médico - O Ensino Médico no Brasil: a expansão da rede escolar. Brasília, julho de 1972. 57 p. (mimeo.).. Estas novas escolas, privadas quase todas, adotaram velhos modelos curriculares, talvez até anteriores à reforma de Flexner, motivando medidas do Ministério da Educação e Cultura, dirigidas a estabelecer critérios mínimos aceitáveis e, sob certo aspecto, a conter a epidemia.1616. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA. Departamento de Assuntos Universitários, Comissão de Ensino Médico - O Ensino Médico no Brasil: a expansão da rede escolar. Brasília, julho de 1972. 57 p. (mimeo.).

Desde a experiência de Brasília, uma única tentativa logrou repercussão: o curso experimental da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.1717. MARCONDES, E. - O curso experimental de Medicina da Universidade de São Paulo. Educ. méd. y Salud , 9 (2): 172-195, 1975. A experiência encerrou-se em uma crise político-institucional em fins de 1976.1818. Na Faculdade de Medicina da USPSaúde em Debate , 1 (2): 48-53, jan./mar. 1977.

2. O momento analítico: Estado e políticas educacionais

As tendências esboçadas neste trabalho, sem pretensões de periodização histórica, servem como diferentes exemplos de situações enfrentadas pelos reformadores curriculares. O caráter e o sentido destas tentativas de transformações têm sido omitidos nas análises e avaliações dos êxitos e fracassos. Têm sido privilegiadas as explicações simplistas que atribuem o ônus do insucesso das reformas à inércia do pessoal docente, indiferença ou rebeldia estudantis, conservadorismo dos dirigentes, descaso dos administradores, falta de aparelhagem.

Na atualidade, retoma-se o tema e o problema, emoldurados pela ideologia da modernização e da racionalização administrativas, das decisões técnicas baseadas em critérios objetivos, neutros e científicos.1919. CARDOSO, F. H. - O modelo político brasileiro. Difusora Européia do Livro, São Paulo. 1972. p. 83-103.),(2020. CARDOSO, F. H. - Autoritarismo e democratização. Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1975. p. 223-240. O mito da racionalidade invade o setor Saúde - mais intensamente no componente “organização da assistência médica” - porém com evidentes reflexos na formação de recursos humanos. É a lógica de uma “economia de mercado” com alto grau de controle e intervenção estatal que vem presidir as decisões em Saúde.

Como compreender neste quadro as possibilidades, os limites e os acenos das reformas curriculares? Um caminho pouco percorrido é o de analisar tais elementos em uma orientação que busque relacionar a instituição escolar (universitária, no caso) com as políticas sociais que são a expressão da intervenção do Estado, como resposta ou forma de antecipação aos confrontos de interesses entre os grupos participantes da coalizão que detém o poder, em um período ou momento dados, com os grupos sociais excluídos. As políticas sociais - no caso específico, as educacionais e de saúde - têm repercussões institucionais, traduzidas, a nível das escolas médicas, nos objetivos de ensino, na proposta do plano de estudos, nas técnicas instrucionais utilizadas, bem como nas formas de relações estabelecidas entre os agentes do processo de aprendizagem.

De um lado, as políticas educacionais significam o projeto de formação de um intelectual que se ligue organicamente à classe hegemónica; a este intelectual cabe a tarefa de buscar o consenso, de “cimentar” a sociedade, elaborar e difundir o material ideológico que deve impregnar todos os grupos sociais e assegurar a sustentação da coalização de frações de classes e grupos sociais que participam do sistema no poder.2121. PORTELLI, H. - Gramsci et le bloc historique. Presse Univ., Paris, 1972. p. 97-124.),(2222. GRAMSCI, A. - Os intelectuais e a organização da cultura. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1968. p. 3-23. Os intelectuais são, nesse sentido, o conjunto de “funcionários” especializados na elaboração e difusão de normas, valores, moral dos grupos dirigentes, propiciando a homogeneidade e a direção da sociedade.2121. PORTELLI, H. - Gramsci et le bloc historique. Presse Univ., Paris, 1972. p. 97-124.

De outro lado, as políticas educacionais ao representarem, de forma simultânea e contraditória, a expressão de conquistas sociais, abrem espaços e criam limites para transformações das instituições escolares.

No plano dos efeitos conseqüências, nem sempre as reformas propostas pelo Estado logram plena eficácia, pelo simples fato de que as instituições escolares não respondem automaticamente ao projeto definido pela política educacional. Há um conjunto de resistências e oposições intra-institucionais que se referem a grupos sociais “tradicionais” ou a outros projetos eventualmente discordantes das propostas mais coerentemente vinculadas à política emanada do Estado.

O projeto de definição do intelectual orgânico da coalizão dominante ainda não parece se ter concretizado no Brazil. Seria particularmente verdadeira essa assertiva para o caso dos profissionais de saúde e, principalmente, entre estes, dos médicos.

A análise dos discursos institucionais inscritos nos planos e programas educacionais levam ao reconhecimento da base ideológica dos nexos entre Educação e Desenvolvimento. CUNHA2323. CUNHA, L. A. - Educação e desenvolvimento social no Brasil. Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1977. 291 p. indica que há, pelo menos, três sentidos mais difundidos na expressão “educação para o desenvolvimento”.

O primeiro deles é o da relação entre educação e crescimento econômico, cujo fundamento é o de que os investimentos no “capital humano” têm taxas de retorno que justificam amplamente as inversões públicas e privadas no setor. Esta orientação deu margem a estudos que buscavam estabelecer:1 1 Em termos de Saúde foram estudadas as projeções sobre gastos em formação de pessoal, número de egressos e nível de saúde.

  1. as relações entre gastos em educação e crescimento da renda em determinado período ou país;

  2. cálculos da contribuição da educação ao Produto Nacional Bruto;

  3. cálculos de taxas de retorno dos investimentos realizados em educação;

  4. relações entre proporções de mátriculas e o Produto Nacional Bruto de diversos países.

Esta orientação não permite sustentar, entretanto, qualquer ligação de natureza causal entre as variáveis investigadas.

Em segundo lugar, estão os supostos sobre o papel da educação na modernização da sociedade, através da inclusão de padrões de conduta orientados à “ação racional”, motor básico do progresso, em oposição à “ação tradicional”. Assim, seriam criadas as condições de rentabilidade e produtividade, estilos de vida, etc. compatíveis com o desenvolvimento. A passagem à modernidade seria a condição para o progresso social, através da inculcação de uma nova “estrutura psicológica” à população, estimulando o espírito de empresa e qualificando profissionalmente aos individuas.

Em terceiro lugar, o papel da Educação seria o de assegurar a Justiça Social. A criação de uma sociedade mais justa estaria garantida pela igualdade de oportunidades educacionais que permitiriam a ascensão social dos indivíduos, atenuando as “naturais” diferenças entre os homens, uma vez treinados adequadamente para suas funções. Esta era a orientação de uma linha de pensamento psicológico que postulava a eliminação das variáveis fortuitas que intervém no sucesso ou fracasso dos indivíduos a partir da criação de comportamentos bem definidos.

O intelectual assim formado seria o motor do progresso econômico, o gerador da modernidade das sociedades sub­desenvolvidas e o indicador de um sistema bem programado de justiça social.

É no cruzamento e coexistência destas orientações que se vão basear as políticas educacionais no Brasil2323. CUNHA, L. A. - Educação e desenvolvimento social no Brasil. Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1977. 291 p., particularmente a partir de 1968 com a Reforma do Ensino Superior e em 1971 com a Lei 5.692 relativa à Reforma do Ensino de 1° e 2° graus, bem como as reformulações dos planos de estudos e as inovações pedagógicas.

CUNHA2323. CUNHA, L. A. - Educação e desenvolvimento social no Brasil. Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1977. 291 p. indica que em vez de cumprir quaisquer dos três postulados, as políticas educacionais mantêm como resultado a reprodução reatualizada das relações entre as classes sociais e as relações de dominação. As reformas do ensino superior e médio lograram, em um primeiro momento, atender a demanda das camadas médias por acesso à Universidade e, por conseqüência, às burocracias estatais e privadas. A satisfação destas aspirações não foi totalmente efetiva, pois desvalorizou-se o diploma do curso superior e estabeleceu-se uma nova forma de hierarquização e estratificação com base nos títulos de pós-graduação. Como ideologia, permeia a Política Educacional a ilusão dos direitos sociais igualitários que ocultam as desigualdades reais geradas pelo próprio sistema produtivo e pelo modelo de crescimento econômico.

Tendo em vista o quadro apontado é possível que o sistema educacional, particularmente o universitário, esteja ainda impregnado e comprometido, em seu conjunto geral, com um “atraso relativo” na formação dos quadros de intelectuais, uma indefinição no projeto de constituição dos intelectuais orgânicos do atual sistema no poder. Com as indecisões e na falta de um projeto hegemónico, lança mão o Estado, a cada momento, de seus aparelhos de coerção para manter em limites definidos a vida escolar.

No campo da Saúde, entrechocam-se as ambiguidades das políticas de formação de recursos humanos com as políticas de prestação de serviços. Aqui se fazem sentir resistências atuantes. à modernização curricular talvez pela situação ainda prevalente do médico ser um intelectual de tipo tradicional, ligado aos interesses de grupos não mais hegemónicos. Este caráter é difícil de ser identificado em face das técnicas com que maneja, e frente ao sentido mais ou menos corporativo mantido pela profissão médica, que a faz passar pela História como os mágicos ou técnicos da arte de curar, sem compromissos com qualquer grupo social.2222. GRAMSCI, A. - Os intelectuais e a organização da cultura. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1968. p. 3-23.

A indefinição do projeto de formação médica tem assistido as condições de reorganização da atenção à saúde, particularmente a partir de 1967 com o funcionamento do Instituto Nacional de Previdência Social.2424. QUADRA, A. A. F. & CORDEIRO, H. de A. - Sistema Nacional de Saúde: antecedentes, tendências e barreiras. Rev. Adm. públ., 11 (3): 15-29, jul./set. 1977. A prática médica centrada nas instituições estatais e nas empresas médicas, com crescente predomínio das últimas, torna anacrônica a discussão tão em voga nos anos 60 sobre reformas curriculares orientadas a reajustes de cargas horárias, mudança de disciplinas para uma ou outra série, e questiona mesmo as idéias de integração e coordenação de ensino clinico e básico.

A emergência de uma nova conjuntura sanitária2424. QUADRA, A. A. F. & CORDEIRO, H. de A. - Sistema Nacional de Saúde: antecedentes, tendências e barreiras. Rev. Adm. públ., 11 (3): 15-29, jul./set. 1977., cujo eixo é a assistência médica privatizada, com alto grau de incorporação de tecnologia, lança um novo desafio aos educadores médicos e estudantes. Reconhecida esta tendência e na medida em que se superem as barreiras do “tradicionalismo”, as tecnoburocracias da Saúde e da Educação, amparadas em um regime autoritário, imprimiriam outra modernidade à Educação que se poderia voltar à formação de quadros técnicos adequados às novas condições de organização da atenção à Saúde, compatibilizando as exigências de médicos especialistas e de generalistas de baixa remuneração e limitada qualificação, assalariados de empresas médicas, além de pessoal auxiliar para os programas de extensão de cobertura, dirigidos a grupos populacionais e áreas geográficas ainda excluídos ou pouco integrados ao consumo médico.

Em suma: daí decorre a falta de atualidade dos temas tão caros e melodiosos aos educadores médicos - definição de objetivos, esquemas de avalição, integração de ensino básico e clínico etc. Quaisquer que sejam as sutis opções, as condições concretas para a inserção do egresso da escola médica no mercado de trabalho estão dadas.

3. Práticas sociais da medicina e as novas tentativas de reforma da escola médica

O quadro analítico nos remete à identificação de, pelo menos, três projetos de Escola Médica. Um deles, como reflexo das tendências que aspiram a um retorno da Medicina sobre si mesma, resgatando o médico liberal, autônomo, em sua prática isolada de consultório, configura o ideal médico anterior ao desenvolvimento do si tema previdenciário.

Outra tendência busca articular a formação médica ao mercado de trabalho vigente, que se organiza cada vez mais em termos de trabalho assalariado, seja na empresa médica ou na instituição pública.

Uma terceira idéia resulta da concepção de uma formação médica mais adequada ás necessidades de saúde da população, da irreversibilidade da prática institucional da Medicina e do desenvolvimento de um constante pensamento crítico.

As propostas de integração docente-assistencial, cuja diretriz básica é a de articular as escolas médicas aos serviços de saúde, podem conseguir adeptos entre os defensores das tendências acima exceto a primeira. Os favoráveis à prática médica autônoma acreditam que a integração docente-assistencial traria o risco da “massificação” do ensino, absorvendo a escola médica em tarefas assistenciais, sobrecarregando o pessoal docente, gerando uma clientela reivindicatória - os previdenciários - e impedindo a seleção de casos ilustrativos para as demonstrações de “beira de leito”

Incluem-se também entre os adeptos da integração, os que acham possível formar o médico apenas como mão­de-obra, preparado para cumprir as tarefas normatizadas pela empresa médica ou pela burocracia previdenciária, disciplinado e disciplinador de uma clientela que deve imediatamente retornar às tarefas produtivas no seio da sociedade.

Médico tradicional ou médico disciplinado pelo complexo médico-industrial não são, em nosso entender, as soluções para uma Medicina comprometida com a saúde da população. Acreditamos indispensável uma formação integral do médico onde a articulação com a prestação de serviços se realize desde os primeiros anos do curso. A integração docente-assistencial, compreendida como experiências de prestação de ações de saúde de todos os níveis de complexidade, pesquisa e participação em tarefas docentes de preparo de pessoal auxiliar é uma proposta a ser considerada e levada a efeito. Não basta, entretanto, a integração à prestação de serviços; isto deve ter um sentido político-institucional que seja conseqüente ao projeto de extensão igualitária do acesso à atenção médica a todos os grupos sociais, com participação na cena em que as políticas de saúde são definidas.

Estas preocupações devem ser traduzidas por conteúdos temáticos do plano de estudos dirigidos à análise das políticas e das instituições de saúde, de sorte a exercitar no aluno o espírito crítico e a formação técnica capazes de contribuírem para novas soluções institucionais na atenção à saúde. Despida deste sentido crítico, as tentativas atuais de reforma da escola médica poderão produzir, apenas, um médico comprometido e subordinado ao complexo médico-industrial.

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    Em termos de Saúde foram estudadas as projeções sobre gastos em formação de pessoal, número de egressos e nível de saúde.
  • * Uma versão preliminar deste trabalho foi apresentada no Seminário sobre Educação Médica. Rio de Janeiro, NUTES-UFRJ/CLATES-OPS, julho de 1977

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 1978
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