Acessibilidade / Reportar erro

SUBSÍDIOS À ANÁLISE POLÍTICA DAS PROPOSTAS DE INTEGRAÇÃO ENTRE AS INSTITUIÇÕES PÚBLICAS DE SAÚDE

Resumo:

O presente ensaio, a partir de uma análise da crise da política de saúde no País, de sua subordinação à Previdência Social e dos determinantes do padrão atual de intervenção do Estado no setor, examina a proposta de integração das ações de assistência médica prestadas pelos diversos organismos públicos (INAMPS, Secretarias Estaduais, Secretarias Municipais e Universidades), especialmente levantando questões relativas aos rumos da política de saúde em âmbito estadual.

Abstract

The present paper examines the proposal for integration of health assistance actions rendered by different public organisms as INAMPS, State Health Secretariats, Municipality Secretariats and Universities through analysis of the countrie's health policy, its subordinated position in relation to Social Welfare and through analysis of the facts determinate the present standard of State intervention in the area. This, specially by raising questions in relation to the course of health policy on State level.

INTRODUÇÃO

O processo de formação de recursos humanos e, em especial a educação médica, marca-se por determinações advindas da forma de organização social dos serviços de assistência médica. Este ensaio tem por objetivo fornecer subsídios ao debate atual e que atinge diretamente a todos aqueles que se ligam à proposição de Integração Docente-Assistencial, sobre as tendências e alternativas da política de saúde e será desenvolvido em três etapas. Na primeira, realizaremos uma análise sucinta da crise da política de saúde no País, de sua subordinação à Previdência Social e dos determinantes do padrão atual de intervenção do Estado no setor. Na segunda, examinaremos as alternativas delineadas pela Previdência Social como instituição hegemônica na definição dos rumos dessa política, que se traduziram, no nível do setor público, na proposta de integração das ações de assistência médica entre INAMPS, Secretarias Estaduais de Saúde e Secretarias Municipais de Saúde. E, finalmente, na terceira etapa, colocaremos algumas questões, a nosso ver essenciais, para a discussão dos rumos da política de saúde em âmbito estadual, examinando em particular o papel das secretarias estaduais de saúde na condução desse processo.

1. A Crise da Previdência Social: mitos e realidade

Muito já foi dito sobre a crise do sistema previdenciário brasileiro: o corte das despesas com assistência médica, passando pelo fracassado projeto do PREV-SAÚDE, o corte das aposentadorias, os gastos supérfluos e, finalmente, o aumento das contribuições estabelecido pelo “pacote” previdenciário, cuja constitucionalidade esteve em discussão.

Na tentativa de esclarecer certos equívocos presentes nas interpretações correntes sobre a crise previdenciária, enumeraremos a seguir alguns mitos que costumam dificultar uma visão integrada da Previdência, como sistema de seguro social.

O primeiro mito - e talvez o mais forte dele, pela freqüência com que o problema das filas, da corrupção e dos “pacientes fantasmas” é divulgado pelos meios de comunicação - é de que a crise previdenciária em seu conjunto se confunde com a crise da assistência médica previdenciária.

Ao contrário, a crise da Previdência transcende - e muito - a crise do INAMPS, embora seja notória a irracionalidade e na aplicação dos recursos destinados à assistência médica, com quase 80% do orçamento transferidos sem maior controle ao setor privado de saúde. É necessário ressaltar, contudo, que os gastos com assistência médica não representam mais que 1/4 da despesa previdenciária. E mais, as despesas do INAMPS vêm tendo seu custo real efetivamente controlado desde 1977.

Isto não significa evidentemente negligenciar a urgência de uma total reformulação do sistema de saúde brasileiro, subordinado em sua maior parte à transferência de recursos previdenciários ao setor privado em saúde. Esta subordinação explica, como veremos mais adiante na segunda etapa deste documento, o ostracismo a que foi relegada a versão preliminar do PREV-SAÚDE, bem como os obstáculos colocados na última década pela Previdência quando se tratava de ampliar a cobertura do setor público, por exemplo, através de convênios com Prefeituras.

Em suma, o que cabe questionar não é o montante de recursos empregados e sim a forma mais racional de empregá-los no setor público em uma política de saúde efetivamente voltada para os interesses da população.

O segundo mito, sempre presente nas críticas à política previdenciária, é o que reduz a crise à falta de racionalidade administrativa. O erro consiste em buscar a origem do “déficit” previdenciário no lado da despesa, como se se tratasse simplesmente de uma questão de “eficiência”.

Se, de um lado, a despesa com benefícios (aposentadorias, pensões, auxílios-doença, acidentes e doenças do trabalho) responde efetivamente pela maior parte dos gastos da Previdência (70 %), cabe ressaltar, de outro, que estes constituem categoria compulsória de despesa, estabelecida por lei que rege o sistema de seguros. E portanto, ao contrário da despesa com assistência médica, menos permeável a medidas administrativas de contenção de gastos. Desta forma, além das medidas necessárias ao controle de fraudes, a única política passível de ser adotada aqui é de prevenção, no sentido de procurar diminuir o impacto da demanda sobre o sistema. Isto exigiria profundas transformações no conjunto da política social brasileira, no sentido de alterar substancialmente o perfil de morbidade e mortalidade dos segurados, contendo assim a demanda por benefícios e assistência. Tais medidas evidentemente extrapolam os limites da racionalidade administrativa do sistema previdenciário.

Mas não basta analisar o problema do ponto de vista da despesa. Tomando-o pelo lado da receita, vemos que existe aqui também outro mito bastante difundido: de que a crise do sistema previdenciário decorre exclusivamente do desemprego, pela diminuição expressiva do número de contribuintes.

Ainda que, como as anteriores, esta hipótese seja parcialmente verdadeira, ela negligencia um aspecto fundamental do problema, que é a própria estrutura da receita previdenciária. Evidentemente, o desemprego crescente, decorrente de uma crise econômica sem precedentes no País, faz com que uma parcela expressiva de assalariados deixe de contribuir para o sistema. Contudo, o ponto central não é este, mas sim de que se trata de um sistema tripartido - empregados, empresas e União. Se todos contribuíssem adequadamente, não haveria esta vulnerabilidade do sistema em relação ao declínio do total das contribuições dos assalariados, por força do desemprego provocado pela política recessionista.

Chegamos aqui ao cerne da questão: a dívida que há décadas as empresas e a União vêm acumulando com a Previdência transformaram-na em um “tripé” sustentado por uma única base - a contribuição do assalariado.

Em fins de 1981 já se estimava o “déficit” previdenciário em 200 bilhões de cruzeiros, sendo ainda a dívida da Previdência para com os bancos da ordem de 100 bilhões, com o pagamento de juros diários de 100 milhões. Este “déficit” se é que pode ser chamado assim - é conseqüência da não contribuição por parte de muitas empresas e da diminuição crescente da participação do Governo Federal em sua receita.

Naquele ano, cerca de 63.000 empresas, em sua maioria (94%) já deviam à Previdência cerca de 27 bilhões de cruzeiros, segundo dados do IAPAS. Acrescida de juros e correção monetária, esta quantia já permitiria reduzir consideravelmente o propalado “déficit” previdenciário. O principal responsável pela queda da receita, no entanto, é a dívida da União. Sua participação na receita da Previdência caiu de 10% nos primeiros anos da década de 70, para 3,4% em 1980. Como o Governo não paga juros e correção monetária sobre sua dívida, estima-se que se estes fossem computados e somados à dívida das empresas, seriam suficientes para um “superavit” do sistema.

É a vultosa dívida da União e das empresas que explica a extrema flexibilidade da receita da Previdência frente às oscilações na política salarial e de emprego. Ela ressalta ainda mais o absurdo da opção, expressa pelo “pacote” previdenciário, de penalizar assalariados, aposentados e pensionistas. No caso destes dois últimos, até então isentos de contribuição, ela na prática acabou anulando a vantagem do reajuste semestral de 10% sobre o INPC.

Tudo isto, por que? Em nome de um “déficit” imaginário em grande parte - aquele referente ao governo - porque puramente contábil; e, o que é mais grave, socialmente danoso, ao obrigar o sistema previdenciário a funcionar com total desrespeito aos termos atuariais e financeiros em que foi concebido, tornando-o absolutamente inviável.

2. Do PREV-SAÚDE ao Plano do CONASP: tendências e alternativas

A medicina privada brasileira floresceu, na época do milagre, à sombra dos pródigos recursos da Previdência Social. Contudo, a expansão da privatização esbarra hoje nos limites - cada vez mais estreitos - do poder de compra do sistema previdenciário. Vimos anteriormente que, para esta situação, que se vem agravando desde 1977, contribuiu principalmente a dívida das empresas e da União para com a Previdência, aumentando a vulnerabilidade do sistema pela sua crescente dependência da contribuição sobre o salário dos trabalhadores. A queda no volume global de empregos no País, em conseqüência da política econômica recessiva, exerceu, por esta razão considerável impacto no sentido da diminuição progressiva da receita previdenciária, levando o sistema a uma crise sem precedentes.

É no contexto desta crise que devem ser analisadas as chamadas “propostas alternativas”, que culminaram em 1980 com o Projeto PREV-SAÚDE - que Gentile de Mello muito apropriamente denominou de “natimorto” - cujas principais sugestões foram posteriormente retraduzidas na proposta racionalizadora do CONASP (Conselho Consultivo de Administração da Saúde Previdenciária): a descentralização do sistema de assistência médica através da criação de uma única “porta de entrada”, integrando numa rede básica de serviços públicos de saúde a capacidade instalada já existente no INAMPS, nos Estados e nos Municípios, entrando a rede privada apenas onde não existirem unidades estatais.

Em que pese a semelhança das proposições, cabe ressaltar uma distinção fundamental entre a versão preliminar do PREV-SAÚDE e a proposta contida no Plano do CONASP: enquanto a primeira traçava novos rumos para uma política nacional de saúde, a segunda se limitou a retraduzir esta contribuição segundo as necessidades da Previdência Social em sua política racionalizadora, subordinando as demais instituições de saúde a este processo.

Nunca é demais lembrar o doloroso processo de tramitação do PREV-SAÚDE desde 1980. Este projeto, da excelente qualidade de sua versão preliminar - apesar da restrita participação da sociedade em sua formulação -, acabou irreconhecível, tantos foram os remendos e alterações impostos pelos diferentes grupos de interesse da medicina privada, empenhados em restringir ao máximo a parcela destinada ao setor público no “bolo” previdenciário.

Contudo, a crise acabou impondo à Previdência Social - apesar das fortes resistências de determinados setores empresariais médicos - a necessidade da redefinição da sua política de compras ao setor privado, consolidada no “Plano de Reorientação da Assistência à Saúde no âmbito da Previdência Social”, elaborado pelo CONASP.

O impasse financeiro da Previdência tornou inviável a manutenção do ritmo de transferência dos recursos previdenciários às empresas privadas médicas, tal como vinha se dando no período do “milagre”. Isto explica a crise do setor hospitalar vinculado à Previdência, que se acentuou a partir de 1977. E, mais recentemente, a partir de 1982, a fixação pelo CONASP de teto para despesas previdenciárias com assistência médica, associada a parâmetros para cobertura assistencial, com vistas ao controle dos gastos efetuados pelo sistema em suas compras a terceiros.

Nesse sentido, é possível mostrar, a partir de um estudo em profundidade das sucessivas crises por que passou a Previdência Social brasileira na última década, que o aumento da participação do setor público no conjunto da assistência médica previdenciária constitui tendência irreversível que o PREV-SAÚDE apenas antecipou. Mais que isso, esta tendência é essencial à implantação de uma política de saúde adequada ao atual estágio do desenvolvimento capitalista no País.

No Brasil, as exigências do conjunto do sistema produtivo com relação à assistência médica na Previdência esbarram em dois obstáculos fundamentais e intimamente associados: a elevada concentração da renda e, como conseqüência desta, a fragilidade e o caráter parasitário da maioria das empresas médicas, incapazes em boa parte dos casos de sobreviver de forma autônoma no mercado, o que explica sua extrema dependência com relação aos recursos previdenciários. Os dados disponíveis mostram que cerca de 90% da medicina que se pratica hoje no País estão direta ou indiretamente vinculados à transferência de recursos previdenciários e apenas 2% da população brasileira têm hoje condições de comprar serviços médicos no mercado, independentemente destes subsídios.

Tais condições apontam para a total inviabilidade de consolidação, na atual configuração do mercado, de um modelo privatizado de saúde, na medida em que sua expansão esbarra nos já referidos limites do poder de compra do sistema previdenciário. Por esta razão é possível afirmar que a participação dos setores empresariais médicos tenderá a se restringir no conjunto do sistema de prestação de serviços.

No entanto, a expansão do setor público, a atenção primária e a extensão da cobertura, longe de significarem uma mudança radical nos rumos da atual política de saúde brasileira, respondem na verdade às necessidades financeiras do próprio INAMPS em sua política privatizante de barateamento de custos para o setor público e transferência da maior parte dos serviços (e respectivos recursos) para o setor privado.

A crise da assistência médica previdenciária não é, portanto, a expressão de um colapso do sistema de saúde brasileiro, e nem tenderá a desembocar numa “socialização” da medicina no País. Ela é conseqüência “natural” de um ajuste na organização institucional da Medicina às necessidades contraditórias impostas, de um lado, pela acumulação de capital do setor de medicina privada e, de outro, pela incapacidade financeira da Previdência Social - nas condições atuais - com a estreita dependência que estabeleceu com relação à rede hospitalar privada para o atendimento de seus usuários - em atender à demanda com seus próprios recursos.

Desta forma, embora possa contribuir para melhorar e racionalizar os serviços oferecidos à população trabalhadora, a expansão do setor público está longe de ser contraditória com a manutenção de um modelo privatizante em saúde. E mais: ela é condição necessária para a própria sobrevivência deste modelo, respondendo às determinações do sistema produtivo, mantendo sua principal característica: a concentração de serviços nos polos urbanos industrializados e a paralela marginalização de grandes contingentes populacionais.

A integração interinstitucional, tal como proposta pelo CONASP no “Plano de Reorientação da Assistência à Saúde no Âmbito da Previdência Social”, através de Convênio entre os Ministérios da Previdência e Assistência Social, da Saúde e as Secretarias Estaduais, só seria uma alternativa efetiva se subordinasse os recursos previdenciários aos supostos objetivos da saúde pública. Tudo leva a crer, contudo, que ocorrerá justamente o inverso, de resto uma tendência atual e bem mais provável de unificação: a incorporação pela Previdência Social dos recursos do Ministério da Saúde e das Secretarias Estaduais e Municipais, como uma fonte adicional de receita, barateando custos através do aproveitamento da capacidade instalada existente.

O aumento da cobertura do setor público em saúde pela Previdência Social através do convênio não se traduz necessariamente em maiores investimentos pelo INAMPS em suas unidades próprias, ampliando-as ou mesmo recuperando­as. A política adotada é uma política de rebaixamento de custos, que confere prioridade ao aproveitamento da capacidade ociosa existente nas demais instituições do setor público.

Os protestos de inúmeras entidades médicas contra a Resolução 26/82 do INAMPS mostraram o caráter emergencial das medidas que vêm sendo tomadas em um contexto de crise financeira da Previdência, à revelia dos maiores interessados: a sofrida população usuária e a classe médica exposta a condições aviltantes de trabalho. Ao restringir as internações hospitalares segundo parâmetros homogêneos para distintas regiões do País, sem levar em conta as peculiaridades locais, a referida portaria teve efeitos catastróficos, ocasionando demissão de médicos e protesto dos usuários.

Na análise das especificidades regionais, há um aspecto do problema que tem sido pouco mencionado e merece ser examinado em maior profundidade: a expansão das outras modalidades privadas, como as empresas de medicina de grupo, cooperativas médicas e sistemas de seguro-saúde.

Vimos que o agravamento da situação financeira do sistema previdenciário acabou tornando inviável a alternativa de pagamento por unidade de serviço, pela enorme drenagem de recursos para os hospitais privados que ela propicia. Mas esta não é a única modalidade de compra ao setor privado pela Previdência Social. Para o sistema previdenciário, as formas de convênio com empresas médicas mostram-se muitas vezes como uma alternativa, uma vez que operam a um custo menor, evitando os ônus com atendimentos, exames e internações. A política previdenciária de expansão dos convênios com empresas vem deslocando progressivamente para as empresas médicas a transferência de recursos que até então se concentravam nos hospitais, sob a forma de pagamento por unidade de serviço. Isto não significa que os hospitais tendam a desaparecer, mas apenas que se subordinarão de maneira crescente ao controle das empresas médicas e passarão a responder à lógica destas últimas.

Esta modalidade de contrato pela Previdência Social está acoplada às grandes empresas industriais e comerciais, concentrando-se em áreas urbanas industrializadas, não sendo portanto viável enquanto forma dominante de prestação de serviços em todo o País. De qualquer forma, sua importância política enquanto expressão de fortes interesses privados na área médica não pode ser menosprezada, especialmente em um momento de crise do sistema previdenciário, quando se coloca em questão a redefinição da divisão do mercado entre as instituições públicas e privadas em saúde.

Estas empresas médicas de grupo que exercem importante função de controle sobre os trabalhadores, através da seleção dos mais aptos e mais saudáveis, ou seja, os que demandarão menos cuidados médicos ou internações. Ao contrário do pagamento por unidade de serviço, a distorção que costuma ocorrer nesta forma de atendimento pela empresa médica é a omissão do cuidado médico, nunca o seu excesso.

É portanto equivocada uma análise da assistência médica previdenciária que ignore o peso político do grupo de interesses privados representado pelas empresas médicas de grupo, como se se tratasse simplesmente de uma oposição entre a rede própria do INAMPS e os grupos privados vinculados ao sistema de pagamento por U.S.

A ampliação da capacidade de atendimento do setor público, através da extensão de cobertura e da atenção primária está longe de ser incompatível com os interesses privados da medicina de grupo. Ao contrário, pode ser bastante adequada aos seus interesses, absorvendo a clientela que pressionaria seus serviços e aumentaria seus custos operacionais.

A questão da saúde é portanto uma questão política que transcende - e muito - aos limites da Previdência Social. Por esta razão, alternativas racionalizadoras, restritas ao âmbito institucional dos Ministérios e Secretarias, sem a explicitação dos diferentes grupos de interesses de setores da sociedade - usuários trabalhadores e não-trabalhadores, médicos e empresários - mostram-se geralmente fadados ao fracasso, na medida em que tentam inutilmente, em nome da racionalidade do planejamento, ignorar o conjunto das forças sociais em jogo.

3. A política estadual de saúde e a divisão de trabalho entre instituições.

É, pois, no nível político que o problema se coloca, levantando as questões referentes à autonomia e ao peso das secretarias estaduais de saúde perante este processo de transição e integração.

Vimos até aqui que, na tentativa de resolver sua crise, o sistema previdenciário tende a buscar uma subordinação das instituições do setor público - em particular das Secreta rias Estaduais e Municipais de Saúde - à lógica de funcionamento dos serviços prestados pelo próprio INAMPS. Neste processo, a Previdência Social vem estimulando, através de medidas racionalizadoras e de rebaixamento de custos, a realização de serviços em grande escala, com alta produtividade, de forma sintomática e eventual, privilegiando as urgências e o atendimento a intercorrências. Orienta, desta forma, sua política de compras ao setor público no sentido da absorção da demanda sem critério de qualidade, respondendo à pressão social e à necessidade de devolução rápida de trabalhadores de menor qualificação ao sistema produtivo.

A identificação de tais determinações coloca, para as instituições do setor público em. saúde, a necessidade de analisar em profundidade as implicações deste processo de integração, explicitando suas possibilidades e seus limites.

Especialmente no que diz respeito às secretarias estaduais de saúde, cabe - a partir de uma avaliação crítica da situação institucional existente - examinar suas condições reais de fazer face a esta tendência.

Vale aqui retomar, a título de exemplo, de forma sucinta, as recentes propostas de integração institucional no âmbito da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo. Em 1980, a partir do Grupo de Trabalho encarregado de elaborar o Projeto São Mateus, constituiu-se Grupo Especial de Estudos, sob a coordenação pessoal do Secretário, para elaborar a proposta do Projeto da Rede Básica, que culminou no documento “Projeto de Expansão da Rede Básica de Saúde da Grande São Paulo”, concluído em 1981.

Com relação a esse projeto, diz Sauveur (1983)11. SAUVER, G. B. G. A. “O projeto de expansão da rede de serviços básicos de saúde em São Paulo: um novo modelo ou os desdobramentos da reforma administrativa de 1969?”, In: Cadernos Fundap, São Paulo, 3 (6): 50-70. jul. 1983.: “O que surpreende no Projeto da Rede Básica é o fato de que a estrutura da Secretaria permanece à margem - em termos de montagem organizacional - no lançamento deste projeto. (...) E quais são os resultados administrativos deste novo projeto? Eles permanecem no plano das intenções, até o presente.(...). Porque esse projeto, de grande envergadura, com fontes de financiamento não previstas na programação orçamentária da Secretaria, ainda não ultrapassou o estágio de um Plano Operativo que procura integrar todos os níveis de intervenção governamental no setor saúde em São Paulo. (...) A decisão de realizar a expansão da cobertura de serviços sem considerar a estrutura organizacional existente não é apenas um limite imposto à ação da Secretaria. Ela parece significar o cabal enfraquecimento desse órgão em termos de autonomia decisória. O que representa também seu debilitamento técnico e operacional para as ações executivas de saúde pública.” (grifo nosso)

A rede ambulatorial das se c retarias estaduais de saúde vem funcionando com grande capacidade ociosa e com muitas de suas unidades em situação precária de instalação, restringindo seu atendimento a atividades “programadas” de rotina, realizadas basicamente por atendentes de enfermagem. As ações de saúde executadas tendem a se concentrar sobre o chamado “quarto estrato previdenciário”, situado na franja do mercado de trabalho, engrossado por uma crescente população de desempregados e seus dependentes.

Estas ações de saúde resumem-se basicamente às atividades assistenciais ao grupo materno­infantil, ampliando-se em algumas secretarias a outros programas específicos como Programas de Tuberculose e Hanseníase. A ênfase na atividade materno-infantil faz com que muitas vezes o atendimento se limite à imunização, suplementação alimentar e seguimento agendado de “supostamente sadios”. Estes atendimentos são feitos basicamente pela atendente de enfermagem, que marca as consultas médicas de acordo com o número de horas que cada médico se dispõe pessoalmente a dar. Esta participação esporádica do médico em muitas das unidades de saúde das secretarias estaduais deve-se, de um lado, à baixa remuneração deste profissional, e, de outro, à sua vinculação simultânea ao setor privado, respondendo aos interesses de empresas médicas da área onde atua.

A rede ambulatorial dos serviços estaduais de saúde, portanto, caracteriza-se por uma baixa capacidade resolutiva e de atendimento a intercorrências, decorrente em boa parte da restrita participação do médico no atendimento.

É evidente, portanto, que a integração com a Previdência Social deverá colocar novas demandas para esta rede. Em várias das Secretarias Municipais e Estaduais que já firmaram ou estão em vias de firmar o convênio com o INAMPS, o parâmetro mínimo de produtividade assistencial tem-se mantido em torno de 4 consultas médicas por hora, o que impõe uma exigência de produtividade para o repasse financeiro da Previdência, ao ritmo de uma consulta médica a cada 10 ou 15 minutos.

Mesmo que se considere como consulta, para fins dos convênios, a função delegada à atendente de enfermagem, isto não implicará aumento significativo da produtividade, pois a capacidade atual de absorção de novas funções por parte desta profissional é limitada, na medida em que até aqui sua ação se tem restringido às atividades de rotina.

Na verdade, mais do que a metade produtividade a ser definida, interessa-nos aqui ressaltar o forte impacto que a extensão da cobertura do padrão atual de atendimento, por um lado, e a exigência de produtividade, por outro, colocará sobre uma rede despreparada e que, até o presente, funcionou segundo outra lógica, atuando de forma marginal no sistema de saúde.

Evitar a possibilidade de eventual colapso da rede ambulatorial dos serviços estaduais de saúde, por seu despreparo em assumir as novas funções exigidas, além de demandar considerável investimento em treinamento, reciclagem e contratação de recursos humanos adicionais, tornará necessária a ampliação dos investimentos em capacidade instalada e a adequação da rede de laboratórios.

Trata-se, pois, de repensar as políticas estaduais de saúde em seu conjunto, introduzindo profundas modificações em sua própria forma de funcionamento. Acreditamos, assim, que se coloca neste momento sério impasse para as secretarias estaduais de saúde signatárias de convênios com a Previdência Social quanto aos rumos que deverão seguir na definição de suas políticas de saúde. Trata-se do espaço efetivo do serviço público neste processo: ou se parte para uma política assistencialista de extensão pura e simples da cobertura, através da mera resposta sem critérios às exigências da demanda, ou se opta por um programa consistente de saúde pública, hierarquizando prioridades e sistematizando a intervenção. Certamente, esta última alternativa não é incompatível com a possibilidade de integração das instituições públicas na rede básica ou mesmo de um convênio com a Previdência Social. Exige apenas que se subordine o assistencialismo à saúde pública e não o inverso.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

  • 1
    SAUVER, G. B. G. A. “O projeto de expansão da rede de serviços básicos de saúde em São Paulo: um novo modelo ou os desdobramentos da reforma administrativa de 1969?”, In: Cadernos Fundap, São Paulo, 3 (6): 50-70. jul. 1983.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Set 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 1984
Associação Brasileira de Educação Médica SCN - QD 02 - BL D - Torre A - Salas 1021 e 1023 | Asa Norte, Brasília | DF | CEP: 70712-903, Tel: (61) 3024-9978 / 3024-8013, Fax: +55 21 2260-6662 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: rbem.abem@gmail.com