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A UNIVERSIDADE E “SAÚDE PARA TODOS NO ANO 2000”

As Universidades devem constituir-se na consciência crítica da sociedade e, como tal, serem o principal instrumento de promoção das transformações necessárias. Efetivamente, no decorrer de nossa história, a Universidade manteve um discurso de mudança e dela nasceram as idéias inovadoras que se poderiam converter em propostas de transformação de nossas sociedades, como um todo; na prática, entretanto, a Universidade não chegou a cumprir este papel renovador.

O processo social, em sua expressão predominantemente de natureza política, manteve, em nossos países, um conteúdo de inércia e resistência à mudança, o qual lhe concede sua característica fundamental - a conservação.

A Universidade, como síntese desse processo social e como espelho das contradições que se observam na sociedade, cumpre um papel de manutenção, perpetuando-se internamente como estrutura conservadora, embora com discursos revolucionários. Serviu, sobretudo, para a consolidação do “status quo” de sociedades que não se transformam na velocidade desejada através da reprodução de valores estabelecidos ou alienados.

Isto se expressa em algumas das dimensões de uma das funções fundamentais da Universidade - a produção de conhecimentos - a qual ao invés de estar orientada à mudança ou transformação, se limita fortemente à reprodução do conhecimento gerado no exterior, isto é, produzido em sociedades estabilizadas ou em processo de estabilização, que, certamente não é o mais adequado para apoiar o processo de reformulação do que necessitamos.

Por outro lado, no cumprimento de suas atividades, como conseqüência desse processo global, a Universidade mostra uma tendência a isolar-se, ainda quando se proponha integrar-se na vida social. Os claustros do passado continuam vigentes atualmente, em uma forma modificada, porém, ainda assim, presente.

Nesse contexto, merece consideração especial a proposição de que os recursos humanos a serem formados devem estar orientados a satisfazer as necessidades reais de saúde da população como um todo. De fato, esta proposição que se baseia nesse valor presente em todos os discursos dos que pretendemos transformar e construir sociedades mais justas, que é o discurso da eqüidade, não passou, até hoje, de uma utopia.

Em termos concretos, as necessidades de saúde da população não se refletem nas demandas efetivas dessa mesma população e os serviços de saúde, ao longo do processo histórico, através do qual foram formados, têm-se orientado, fundamentalmente, à satisfação das necessidades de grupos, que dentro do corpo social puderam, por uma maior participação na distribuição do poder, sustentar e impor suas demandas na distribuição dos recursos escassos da sociedade.

Esta realidade política concreta faz com que o discurso da adequação dos recursos humanos às necessidades de saúde da população se constitua em uma quimera - uma quimera procurada, uma quimera desejada, uma quimera inclusive necessária, mas que não passa, até hoje, de uma quimera. À revelia inclusive da vontade de muitos dentro da universidade e apesar de muitos esforços realizados, a formação real dos recursos humanos se orienta realmente à satisfação das demandas sociais efetivas (minorias) e para a prática que elas requerem.

Em conseqüência, os métodos de planificação utilizados no desenvolvimento de recursos humanos em saúde têm apresentado sérias limitações. Quando planificamos recursos humanos função das necessidades tecnicamente definidas, formulamos planos com uma grande dose de ir realismo; entretanto, quando planificamos estes recursos de acordo com as demandas expressas socialmente e politicamente sustentadas em função da distribuição do poder social, estamos apoiando a manutenção do “status quo” e relegando a atenção dos grupos sem poder. O mesmo acontece quando planificamos os recursos humanos de acordo com a oferta de serviços, f unção dos recursos disponíveis, pois a situação é o resultado histórico de um processo social marcado por persistentes desigualdades. Esta é a expressão maior da contradição entre o que propomos fazer e o que de fato se chega a cumprir. Dentro dessa contradição podemos evidenciar algumas verdades, das quais quero destacar duas.

A primeira delas: as práticas concretas e as condições que envolvem essas práticas de saúde, incluindo as condições de trabalho e sobretudo as condições de emprego ou de utilização da força de trabalho, definem ou determinam, de fato, o tipo, a estrutura e a composição dos recursos humanos na sociedade.

Quando unimos esse fato ao primeiro comentário sobre o papel da Universidade validando o processo social, fica explicado porque de fato a Universidade não responde às necessidades de saúde da população e sim às demandas sociais. que verdadeiramente lhe são impostas em sua missão de formação profissional. A universidade, portanto, tem atendido à sociedade, embora, às vezes, com retardo em relação as demandas reais e concretas que a sociedade impõe. Ao fazê-lo, entretanto, consolida as práticas que respondem a essas demandas e não pode desenvolver uma função útil para a mudança das condições que as geraram.

A segunda referência especial, dentro da contradição citada, seria o papel determinante que exerce a tecnologia como fator de rigidez e de manutenção das práticas de saúde - um dos grandes desafios do momento.

O problema está no processo através do qual nossas sociedades e os sistemas de saúde, que delas dependem, incorporam, acríticamente na maioria das vezes, as tecnologias de ponta, as tecnologias sofisticadas e, sobretudo, as formas como as utilizam.

Os Sistemas de Saúde da América Latina destinam hoje de 80 a 90% dos recursos disponíveis para a atenção às pessoas com prestação de serviços nos níveis secundário e terciário de atendimento, o que indica que o discurso atual, e bem antigo, da precedência da prevenção e da promoção e, inclusive, o de atenção primária, não teve impacto significativo na transformação das estruturas de serviços e na distribuição dos recursos. Observações empíricas realizadas em alguns países da Região indicam que, entre 15 e 30% das ações realizadas nesses níveis secundário e terciário são absoluta mente desnecessárias. Se tomamos a cifra menor, de 15%, e a aplicamos aos 80 ou 90% da totalidade dos recursos que se utilizam nesses níveis de prestação de cuidados de saúde, nos damos conta de que a quantidade de recursos desperdiçados em ações desnecessárias é muito mais do que a totalidade dos recursos que estamos destinando à prevenção, à promoção e, inclusive, aos chamados programas específicos de ações primárias. Se a isso se agrega a ociosidade e a inadequação tecnológica específica podemos afirmar que em torno de um terço dos recursos disponíveis na América Latina para atenção às pessoas, em saúde, está sendo desperdiçado. Isso equivale grosso modo, a US$14 -16 bilhões cada ano. À questão tecnológica é, provavelmente, excluído o fato político, o principal fator alimentador dessa situação. Não somente condiciona diretamente o uso inadequado dos discursos; condiciona os comportamentos dos agentes produtores e dos consumidores, os padrões de organização e operação dos sistemas e unidades produtoras e a associação de interesses, estranhos à saúde da população, que sustentam tudo isso. Eis aqui um grande campo para mudança e a verdadeira dimensão do desafio tecnológico setorial: a avaliação do processo tecnológico global e das tecnologias específicas. Superá­lo constitui condição “sine qua non” para viabilizar e fazer factível a meta de saúde para todos com eqüidade, efetividade/eficiência e participação.

INFLUÊNCIAS PREGRESSAS - EDUCAÇÃO MÉDICA

Nesse contexto, caberia perguntar, em que medida a Universidade, como parte da sociedade, tem participado em muitos dos resforços para a superação desses problemas.

O que vamos referir, em continuação, está relacionado mais diretamente à área médica, mas pode ser tomado como exemplo do que ocorre na formação do pessoal de saúde em outras categorias profissionais.

Passamos por muitos movimentos e várias iniciativas em relação com o processo de formação profissional neste século. O primeiro e, talvez o mais antigo e ainda presente, esteve vinculado à necessidade do desenvolvimento das Escolas, das Instituições, para permitir uma melhor capacitação técnico-científica dos recursos humanos forma dos. O movimento “flexneriano” que leva mais de 70 anos e que todavia se expressa em muitas das atividades formativas dentro de nossas Universidades, teve conseqüências e resultados muito importantes, mas, também, foi e continua sendo fator significativo de algumas das distorções que hoje temos que enfrentar. Baseado em um paradigma fundamentalmente biológico e quase mecanicista da interpretação do fenômeno da saúde, esse movimento gerou, entre outras conseqüências, o culto à doença e não à saúde, o culto à tecnologia e à assistência sofisticada que se expressa no culto ao hospital - sob a suposição, também quimérica, de que o hospital seria o centro da atividade científica e assistencial em saúde.

Como reação a esse movimento passamos a uma orientação preventivista com os movimentos vinculados à medicina preventiva e social, que produziram importantes contribuições à formação do conhecimento e, inclusive, propiciaram alguns avanços no processo de planificação e organização de serviços. Estes, entretanto, se mantiveram sempre como atividades ou como experiências marginais dentro das Universidades, dentro dos Sistemas de serviço de saúde e, como resultado, dentro da prática social da saúde como um todo.

Experimentamos igualmente, e ainda vivemos um movimento vinculado à melhoria da formação através do desenvolvimento e aplicação das tecnologias educacionais. Qualquer que fosse a escola que interpretasse o processo de ensino-aprendizagem, cada uma delas gerou, como conseqüência, o desenvolvimento de tecnologias específicas para melhorar o processo de ensino. Tanto as escolas estruturalistas, como as escolas baseadas em conceitos e práticas para a vida e sobretudo as escolas funcional - comportamentalistas deram origem a certa quantidade de tecnologias educacionais. Entretanto, todas elas se mostraram limitadas ao terem que ser aplicadas dentro de um quadro mais amplo, que é o fenômeno de saúde e do papel das tecnologias nas atividades de formação no contexto das práticas sociais de saúde.

Mais recentemente ainda surgiu, e continua presente, o movimento da integração docente-assistencial, como esforço para recuperar a articulação e a integração das atividades de ensino e pesquisa com as atividades próprias do setor assistencial. Como variante desse movimento e talvez, como experiência piloto, vivemos uma tentativa ainda não completada e, em certa medida, já frustrada, de integração docente-assistencial em saúde no contexto de realidades concretas em comunidades específicas e/ou como parte de projetos integrados de desenvolvimento comunitário.

Os resultados de todos esses movimentos têm sido, em geral na América Latina, expressos na realização de experiências isoladas e pouco reproduzíveis. Representam um comportamento da Universidade como se ela fosse uma estrutura externa à prática social de saúde. Por outro lado, servem para constatar que, ao final, essa prática social de saúde prevalece e contribuem a construir a consciência, hoje quase universal, de que as condições dessa prática têm que se constituir no núcleo dinâmico e condutor do processo de transformação que todos desejamos.

PERSPECTIVAS FUTURAS - UNIVERSIDADE E SAÚDE

“Saúde para todos” significa um novo desafio e, mais que uma meta que pouco significado teria, constitui uma doutrina de ação. Uma doutrina que se expressa, entre outros, em três conceitos fundamentais: o conceito de eqüidade, quimera e utopia que devemos perseguir apesar de tudo; o conceito de efetividade/eficiência, porque não é justo que continuemos desperdiçando os escassos recursos que temos para atender à saúde da população, enquanto uma parte importante desta população se mantém marginalizada da atenção e os custos sociais se elevam extraordinariamente; e, por último, a concepção de que “saúde para todos”, exige participação, não só dos que formam o pessoal de saúde, como também da própria população, das comunidades, dos governos, das sociedades e das nações.

Os cenários possíveis até o ano 2000, já a um passo, a menos de 16 anos de nossos dias, nos indicam que temos que fazer frente, na América Latina e Caribe, às necessidades de 200 milhões de pessoas adicionais, todas elas vivendo nas cidades, todas elas havendo incorporado os padrões de consumo e de demanda próprios da cultura urbana; cultura que se expande, que se estende para o restante da população; população que será mais velha, população que se rá mais exigente social e politicamente.

Temos que enfrentar um ambiente que está sendo objeto de uma pressão extraordinária da atividade econômica e do próprio comportamento social, como um todo, para uma piora e maior agressividade. Temos que enfrentar, em conseqüência, uma transformação que se faz cada vez mais presente, no quadro nosológico, na estrutura dos problemas de saúde.

Quando ainda não superamos os problemas simples, evitáveis com as tecnologias de baixa complexidade de que dispomos hoje, já os problemas crônicos-degenerativos assumem proporções cada vez maiores e progressivamente predominantes. Se não fomos capazes de dar respostas aos problemas relativamente simples que tivemos que enfrentar no passado, seremos capaz es de fazê-lo, agora, com problemas mais complexos e em apenas 16 anos que nos restam daqui até o ano 2000? A resposta pode ser afirmativa se somos capazes de fazer a revolução necessária na área de saúde, que se expresse, resumidamente, em passar da atenção dominante à enfermidade à preocupação concreta e prioritária pela saúde; que se expresse na utilização da atenção primária, não somente como programa isolado de atividades dirigido à assistência de populações marginalizadas, mas, especialmente, como estratégia de avaliação e revisão de todo o sistema de saúde e, em particular, de seus níveis de atenção mais complexos. Uma estratégia de transformação do sistema de saúde como um todo, para colocá-lo a serviço da população. Estratégia que deve envolver, entre outras, a consideração específica, e muito importante, à formação de recursos humanos, de conceder capacidade de resolução aos. serviços do nível primário de atenção e de integrá-lo dentro do sistema, para servir como instrumento de transformação dos níveis secundário, terciário e quaternário. Isto expressa também o desafio tecnológico referido antes. Não se trata de eliminar a tecnologia sofisticada que é necessária e útil, e, sim, de colocá-la dentro dos limites e das condições adequadas para que seja realmente útil à saúde do povo.

Este processo exige, igualmente, a redefinição da inserção da saúde no contexto do desenvolvimento, para que as soluções das crises, como as que vivemos hoje, não impliquem em desmedro da satisfação das necessidades básicas das populações, entre elas as de saúde; para que os sistemas e os métodos de planificação do desenvolvimento possam inclui-la em forma explícita e não como uma conseqüência marginal, ou como um resíduo da manipulação das variáveis econômicas.

Por último, está incluído nesta proposição o desafio de procurar, nesta região do mundo, o estabelecimento de mecanismo de cooperação efetiva entre os povos e os governos, entre as instituições e as sociedades, inclusive entre as pessoas. Cooperação para que o trabalho realizado por cada parte alimente o avanço em tudo mais. Cooperação para que se construa uma nova realidade social que se expresse em sociedades em que prevaleçam os três principais conceitos e princípios de nossa cultura: a liberdade, a democracia e a justiça social. Cooperação que sirva, também, para a construção da paz, para que tanto a paz, como a justiça social, a democracia e a liberdade sejam, também, outras tantas dimensões da saúde.

Tudo isto indica que o desafio que temos que enfrentar na realização da meta e da doutrina de saúde para todos até o ano 2000 é, sobretudo, um desafio político, sendo também um desafio técnico-administrativo. E necessário ajustar ou criar a vontade e estabelecer o compromisso para que este desafio político possa ser enfrentado com condições de viabilidade.

As experiências do passado não nos animam a crer que sejamos capazes de superá-lo, porque antes de tudo é necessário que nos transformemos a nós mesmos como pessoas e como instituições; uma nova Universidade, uma nova Universidade de compromisso, uma nova Universidade de serviço e ao serviço da construção de novas sociedades. Esta é uma nova quimera que nos propomos, mas é uma quimera que temos que perseguir com afinco e sem desânimo, para que, também por fim, se possa formar o pessoal de saúde que se requer; pessoal para o compromisso social, pessoal para a solução dos problemas de saúde, pessoal para a construção da saúde. Que a formação de recursos humanos seja um contínuo, em seu método e em sua prática, um contínuo nos processos de ensino-aprendizagem, pesquisa e prestação de serviços.

Não é fácil cumprir com tudo isso e, se analisamos a situação atual e as perspectivas que dela se derivam, não temos razões de otimismo. A crise que estamos vivendo fá-lo ainda mais difícil. A crise econômica limitando as possibilidades de alocação de recursos para os setores sociais, para a solução dos problemas, para a disponibilidade de insumos críticos. A crise política levando à deterioração das relações sociais em cada país e das relações entre os países e desviando a atenção dos problemas essenciais de vida, a crise dos costumes e da cultura. Tudo isto nos cria dificuldades muito maiores do que as que tivemos que enfrentar no passado. Entretanto, continuamos convencidos de que a meta a que nos propomos e a doutrina que definimos podem ser realizadas; podem ser realizadas se mantemos a vontade e se somos capazes de construir o compromisso para isso, ainda que isso signifique crer, mais além da realidade, mais além inclusive da pura razão, no destino do homem e em nossa capacidade de construir este destino. A Universidade, mais que qualquer outra instituição, deve ser um âmbito e um instrumento nesse esforço - consciência crítica de si mesma como condição para ser a consciência crítica da sociedade e dínamo de sua transformação.

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    Tema das discussões técnicas da XXXVII Assembléia Mundial de Saúde - OMS, Genebra, maio 1984. Conferência pronunciada no México.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Set 2021
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 1984
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