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É PROIBIDO SABER

Ao Editor

A universidade contemporânea, em seu dinamismo, enfrenta múltiplos problemas que atingem sua própria concepção. No âmbito dessa conjuntura, sente-se crescer e se difundir, em muitas áreas o combate ao saber, na medida em que o mesmo é anunciado como poderosa arma de poder. Parece que tudo tem que ser alinhado na fronteira da mediocridade, onde talento, mérito e trabalho são considerados elitismo antidemocrático.

A palavra de ordem é desdenhar o saber, que transformado em poder seria utilizado como força policial a dominar e subjugar as. massas, tanto as despreparadas, como as ignorantes.

A continuar o culto da contracultura, do anti-saber na universidade, muito brevemente assistiremos a um curioso caminho evolutivo. Quanto mais estudioso, mais sábio um professor, gradativamente ficaria tolhido no seu progresso docente e, caso fosse extremamente culto e preparado, muito rapidamente seria alijado do convívio da corporação; no caso dos mais sábios só restaria a exclusão, pelo perigo que representariam. Da mesma forma, os alunos mais dedicados ao estudo e imbuídos da grave responsabilidade ética que deveriam ter com seu preparo como homens e profissionais encontrariam enormes dificuldades e barreiras para prosseguirem. Seriam reprovados a cada vez que mostrassem elevado nível de aprendizado, distanciando-se cada vez mais da diplomação, à medida que ousassem a demonstração do saber.

Em curto período, a universidade estaria transformada em celeiro de convívio e formação de homens primitivos que iriam povoar as ruas e as cidades com majestoso silêncio intelectual e cultural. Obra tão mortal quanto a bomba atômica.

Não é sem motivos que os jovens estão confusos e estonteados. A universidade, idealizada para criar, aprimorar e difundir o saber, declara-se extremamente duvidosa quanto a este destino e ensaia uma caminhada contra o vento do saber; a aula, cujo início estipula-se para as 9 horas, começa as 9h30min (quando é dada); a unidade temporal chamada semestre, dura 4 meses; o professor que assume o compromisso de permanecer 40 horas semanais na universidade comparece às 2as, 4as e 6as feiras, de 10 às 11 horas, quando tem tempo; o funcionário contratado para ser datilógrafo, não sabe bater à máquina; os conselheiros dos colegiados superiores da universidade comparecem em peso às reuniões dos mesmos apenas nas sessões de eleição dos governantes da universidade. Estes são pequenos exemplos retirados do diário da universidade. Somem-se a tudo isso os destemperos do cotidiano da vida e fica fácil compreender o porquê da confusão.

A veemência da afirmação sempre foi e será mais fácil e comovente do que o rigor da demonstração. Acontece que em todas as atividades humanas e muito particularmente na universidade, a primeira não pode substituir a segunda. A busca incessante do verdadeiro, da origem das coisas, só pode ter crédito e servir de apoio para o desenvolvimento da humanidade se for calcada na observação meticulosa, na investigação metódica e na pesquisa disciplinada, todas envoltas pelo rigoroso manto da ética. Pois bem, para que algum fenômeno possa ser demonstrado com rigor, alguns ingredientes básicos são necessários: primeiro, o profundo conhecimento da matéria objeto do fenômeno a ser estudado; segundo, o conhecimento acurado dos métodos utilizados para decifrar a intimidade e as incógnitas do fenômeno; terceiro, e fundamental, a consciência ética e moral de quem investiga. Não é difícil perceber que tarefa de tal magnitude exige estudo, dedicação e trabalho, sem contar com a solidez de princípios éticos, estes iniciados cem anos antes do nascimento. Em resumo, competência, talento e seriedade bastam para construir qualquer universidade.

Compreende-se, pois, que o movimento do anti-saber interessa fundamentalmente aos incompetentes, ou aos que trocam a manutenção da competência (que exige estudo e dedicação) por tarefas ditas, engenhosamente, de cunho “politicamente” mais amplo e abrangente. E, assim, instala-se a esperteza, esta, e em reforço ao que já foi dito, obscuro santuário dos incompetentes.

As mensagens dos “espertos” são todas bem conhecidas, porque também estereotipadas.

Todos sabemos as diferenças de exigências entre o que é preciso ser e saber quando se participa de um fórum ou atividade em que a competência profissional e científica se impõem, e o que é necessário para ser aclamado numa assembléia. No primeiro caso, o expert sabe que a esperteza é uma desqualidade; no segundo exemplo, a esperteza comanda o espetáculo.

É preciso alertar aos menos experientes para o diagnóstico mais rápido e preciso do “homo espertus”. Dentre algumas das características do espécime, destacamos: aparência geral cuidadosamente descuidada; não raro usa um par de sandálias - símbolo da humildade e da pobreza, a última muito mais do espírito do que do bolso; uma cansada indiferença em suportar os que ainda não aderiram ao seu inteligente “discurso”; apoia os movimentos de massa nas ruas e assembléias, mas nos gabinetes e nos colóquios com autoridades declara seu desgosto por atos tão indisciplinados; é tradicionalmente da oposição, embora não se oponha a ocupar cargos e posições no governo, mesmo que seja despreparado para tal; é mais assíduo às assembléias e às convenções do que às salas de aula e aos laboratórios; prega o desenvolvimento da sociedade sem privilégios e trabalha apenas a metade do tempo para o qual foi contratado, e assim por diante.

Mas cuidado, existem espécimes circulando de paletó e gravata cujas silhuetas podem ser assim delineadas; são envoltos por atmosfera de circunspeção; estão sempre a se desculpar cortesmente pela impossibilidade de comparecer às reuniões dos colegiados, particularmente se as sessões lhes parecem trabalhosas e prolongadas; retiram-se precocemente das reuniões, em especial quando o desfecho das mesmas exigirá um compromisso público com uma tese, uma idéia etc.

Há também subtipos, como o intermediário, talvez o mais comum e por isso o mais perigoso. Bem vestido, mas não enfatiado, fala macio, é simpático, não discorda, é insistente e procura arregimentar; nada produz, mas dá a impressão de muito fazer; impressiona pela palavra, é teatral, mas tudo é desprovido de essência e conhecimento.

O homem nasceu para pensar livremente. O pensar é certamente a única liberdade absoluta de que o homem ainda dispõe. Esta liberdade absoluta é conferida (ainda) pelo indecifrável, pela intimidade intangível; ninguém se expõe por apenas pensar, ficando-se pois fora do alcance das definições, das análises, das especulações - é a impenetrabilidade do homem, sua fortaleza, seu poder maior.

Ao lado do pensar livre o homem viaja na existência para aprender, mesmo que não queira. E impossível abandonar o plano existencial declarando nada ter aprendido.

O pensar e o aprender constroem o saber. O aprender alimenta o pensar e o aprender a pensar consolida o saber. Assim, a esperteza é a arrogância do falso saber, enquanto o saber verdadeiro revela-se pela crítica, pela argumentação fundamentada e pelo gosto e curiosidade permanentes pelo aprendizado.

Se por um lado o pensar é livre e de inteira responsabilidade do homem, individualmente considerado, o mesmo não pode ser dito quanto ã utilização e à aplicação do pensamento e do saber, regidas, fundamentalmente, pela moral e pela ética

Se o raio laser tivesse sido imaginado basicamente como arma destruidora de homens e cidades, certamente os códigos éticos e morais teriam desviado o ponto de aplicação do invento para outra rota, a fim de que a humanidade também se beneficiasse. Contrariamente ao exposto, o inventor do laser, jamais deu asas ao seu gênio criador supondo que sua máquina pudesse ser veículo de destruição; nesse caso, os códigos e preceitos éticos e morais, é que sofreram desvios. Em ambos os casos, o saber do inventor é admirável, a aplicação do saber, tanto na sua origem, como no seu desdobramento condenável.

Não será descabido considerar que tudo depende da utilização e do destino que se dá às coisas, e, muito particularmente, às idéias, ao pensamento, ao saber. A dinamite desenterra riquezas e enterra homens e monumentos; a palavra do médico produz conforto, alívio e desencadeia perturbação, angústia; o legistador harmoniza lares e produz ódio entre familiares; o professor desperta talentos e aniquila vocações.

Não cabe, portanto, combater o saber, ainda que seja poder. Seria inclusive mais correto considerar o saber como força uma vez que para se transformar em poder, o que se configura somente quando aplicado, necessita do respaldo social através dos fitros da ética e da moral. Sendo assim, mesmo que o saber, seja na sua origem, seja na sua aplicação, venha a prejudicar a humanidade, menos culpa cabe ao seu patrocinador do que à sociedade que acolheu e permitiu sua utilização.

À Universidade, como núcleo criador e irradiador do saber cabe cada vez mais cultivá-lo. Seria inimaginável que os portais da universidade e em nome de falacioso temor do poder, apusesse-se uma grande placa a anunciar - “Aqui é proibido saber pelo risco do poder e nesta Casa rejeitamos as tiranias.”

É preciso, sim, acurar a sensibilidade para distinguir o sábio do oportunista; a demonstração fundamentada da afirmação apenas veemente; o culto à verdade da demagogia, e o idealismo liberto das prisões dogmáticas.

Fernando Bevilacqua
Professores, Faculdade de Ciências Médicas, UERJEddy Bensoussan
Professores, Faculdade de Ciências Médicas, UERJ
José Manoel Jansen
Professores, Faculdade de Ciências Médicas, UERJ

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Jul 2021
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 1985
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