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CURRÍCULO OFICIAL E CURRÍCULO PARALELO NA FACULDADE DE MEDICINA DA UFRGS

Resumo:

Com o objetivo de avaliar alguns aspectos do currículo, da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, foram entrevistados 165 alunos, do II ao XII semestres do curso, através de um instrumento fechado. A amostra foi selecionada de modo sistemático, sendo composta por 101 alunos do sexo masculino e 64 do sexo feminino. A média de idade foi de 21,9 anos. Os estudantes foram críticos com relação ao ensino e, ao mesmo tempo, foi constatada uma grande procura por atividades extra-curriculares para complementar a formação.

Summary:

In order to evaluate the UFRGS medical school curriculum, a survey was conducted among 165 students, 101 male and 64 female, wich the mean age of 21,9 years. The sample for this study was sistematically selected. The students considered medical education poor or very poor. Most of the participants were searching extra-curricular training programs to improve their education.

INTRODUÇÃO

O currículo deve proporcionar ao estudante a possibilidade de alcançar a auto-realização e, ao mesmo tempo, de contribuir para a construção de melhores comunidades. O currículo inclui mais do que os conteúdos programáticos. O programa não se constitui em currículo enquanto não se transforma em parte da experiência do educando. Sendo assim, para avaliá-lo deve-se observar, cuidadosamente, a qualidade das vivências que ele proporciona. Sendo um processo, o currículo deve estar permanentemente sendo discutido.66. SANTOS, J.O. Filosofia da educação médica: interpretação da práxis. R. Bras. Méd. 10(2): l06-106, Rio de Janeiro, 1986.

O curso de Medicina da UFRGS tem como objetivo “a formação do profissional generalista, com conhecimento suficiente, habilidades e atitudes que o capacitem a promover e a proteger a saúde, a diagnosticar, a tratar e a reabilitar pessoas e grupos com doenças (...) prioritárias para a elevação da saúde de uma determinada população. (...) Visa formar um médico capaz de atuar tanto com indivíduos, como com famílias e populações de forma contínua e personalizada, proporcionando-lhes cuidados primários de saúde através de um atendimento integral dos problemas físicos, psicológicos e sociais”.22. COMCAR/MED. Of. Circ . nº 01/86. Porto Alegre, 1986. O currículo que é discutido neste trabalho foi reformulado e implantado em 1981, tendo a duração de 12 semestres (9075 horas). Os dois últimos semestres são destinados a estágios nas quatro grandes áreas: Pediatria, Ginecologia e Obstetrícia, Medicina Interna e Cirurgia.

No entanto, durante os anos em que esteve em vigor, este currículo demonstrou, por vezes, dificuldades práticas em atingir seus objetivos. Em muitas ocasiões a teoria antecedia à prática, em vez de estar a ela integrada; o básico antecedia ao clínico e havia grande ênfase na simulação. O ensino tornava-se, muitas vezes, dirigido para a doença, ou para a lesão, com ênfase nos aspectos curativos e reabilitador. A metodologia de ensino, principalmente no início do curso, era centrada em aulas expositivas e grande parte do pessoal docente, especializado por microdisciplinas.11. ANDRADE, M. Marco conceptual de la educación médica en la America Latina. Educ. Med. Salud, vol.12 nº 1:1-19, 1978.),(44. MENDES, E.V. A integração docente-assistencial na perspectiva dos serviços. UFMG, Belo Horizonte, 1980.

Simultaneamente, forma-se um “ensino paralelo” de Medicina, adquirido nas horas de trabalho passadas fora da faculdade. Definimos por extra-curriculares, neste estudo, as atividades realizadas pelos alunos dentro da área de saúde, que não estejam diretamente relacionadas às disciplinas que cursam no semestre, como estágios, participação em projetos de pesquisa, monitorias, trabalho remunerado em serviços de saúde privados, etc. Estas atividades, não exigidas pelo currículo oficial, tornaram-se parte integrante da formação médica. Assim, este ensino paralelo é responsável por uma complementação do ensino oficial como, também, pelo aumento da distorção na formação médica, já que muitas vezes é inadequada mente supervisionado, ou não tem programa definido.

Segundo Kurt Kloetzel33. KLOETZEL, K. “O ensino paralelo” da Medicina. Anais do XIV Congresso Brasileiro de Educação Médica. ABEM : 671-4, Rio de Janeiro, 1976., este fato poderia ter diversas causas: dificuldades econômicas do acadêmico de Medicina, a sua impaciência (que o leva a antecipar-se ao ritmo da faculdade por acreditar que dentro do currículo tradicional não aprenderá o bastante), bem como uma real insuficiência no campo do ensino prático.

Um novo currículo oficial está em fase de implementação em nossa faculdade. A participação de toda a comunidade acadêmica é importante para que a reforma curricular não se torne mera reorganização de disciplinas e de carga horária, sem transformações objetivas. Neste contexto, o objetivo deste trabalho é avaliar algumas características do currículo ainda em vigor sob o ponto de vista dos alunos, incluindo a realização de atividades extra-curriculares e suas motivações.

MATERIAL E MÉTODOS

Para avaliação da procura de atividades extra-curriculares foi aplicado um questionário padronizado em uma amostra de 165 alunos da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. O questionário foi elaborado especialmente para este objetivo, com base em estudo piloto realizado em outras faculdades de Medicina de Porto Alegre. Consistiu de questões fechadas sobre o currículo e atividades realizadas, bem como de uma reta, onde o entrevistado marcava o ponto que considerava mais aproximado do “nível de ensino da faculdade”. As questões fechadas foram elaboradas a partir do rol de respostas surgidas nas questões abertas do questionário piloto, não se desprezando nenhuma alternativa.

A amostra foi selecionada de modo sistemático incluindo o primeiro de cada três estudantes, segundo a ordem de matrícula do segundo semestre de 1987. Foram excluídos os alunos ingressantes naquele período, por não terem ainda vivência do currículo. Os alunos que não compareceram à matrícula foram procurados no decorrer do semestre.

A análise dos dados foi feita com o auxílio do pacote estatístico SPSS e limitou-se, na maioria dos casos, à descrição das freqüências observadas.

RESULTADOS

A amostra foi composta de 165 alunos, sendo 101 (61,2%) do sexo masculino e 64 (38,8%) do sexo feminino. A média de idade foi de 21,9 anos (desvio-padrão de 2,7). Sessenta por cento dos alunos procediam de Porto Alegre. Os demais vieram, principalmente, do interior do Rio Grande do Sul. A grande maioria dos estudantes era de cor branca (98,8%).

Cento e quatro alunos (63%) referiram ter algum parente ligado à área de saúde, sendo que, destes, 41 (24,8%) eram parentes de primeiro grau e 78 (47,3%) eram médicos.

Entre os motivos mais citados para a escolha do curso estavam motivos humanitários e científicos. As áreas de maior interesse dos estudantes foram: Clínica Geral ou Medicina Interna (17,57%), Cirurgia (12,7%), Pediatria (9,09%), Psiquiatria (7,27%) e Ginecologia e Obstetrícia (6,66%). Seis por cento dos estudantes declararam interesse por Medicina Preventiva e três por cento por Medicina Geral Comunitária. As demais opções citadas eram especialidades, somando 37,62%. A percentagem de estudantes que não responderam foi de 15,75%.

A opinião dos estudantes sobre o curso de Medicina foi medida pela nota dada ao ensino, de 0 a 10, marcada em uma reta (ver Tabela 1). Não houve associação significativa entre a nota e o semestre do curso em que o aluno se encontrava. Além disso, 155 alunos (93,9%) responderam que, até o fim do curso, seria necessário mais alguma atividade para complementar sua formação. Cento e trinta e seis alunos (82,4%) pretendem fazer curso de pós-graduação, enquanto apenas 7 (4,2%) consideram o curso suficiente para exercer sua profissão com segurança.

A descrição de aspectos específicos do ensino da faculdade, segundo os alunos, está ilustrada na Tabela 2.

Quanto às atividades extra-curriculares foi possível constatar que a grande maioria dos estudantes realiza uma ou mais atividades, sendo as mais frequentes o estudo não relacionado com as provas, os estágios, a participação em projetos de pesquisa e à observação de profissionais em seu ambiente de trabalho, conforme exposto na Tabela nº 3. O motivo mais citado para estas atividades foi o de complementar a formação, seguido de adquirir experiência. Obter dinheiro foi o último motivo citado.

Em geral, o número de atividades realizadas aumenta com o semestre em que o aluno se encontra, sendo os alunos do último semestre os mais ativos (p 0,01).

DISCUSSÃO

A amostra foi composta, predominantemente, de homens e de pessoas de cor branca. Este é um fato já descrito por Mendes44. MENDES, E.V. A integração docente-assistencial na perspectiva dos serviços. UFMG, Belo Horizonte, 1980. quando analisa a hierarquização da Medicina e o acesso restrito ao curso médico, que privilegia homens, brancos e de classe média alta.

A nota dada ao ensino, em geral, foi baixa, com 71,5% dos estudantes avaliando o ensino como ruim ou muito ruim. Este dado refere-se apenas a este grupo de estudantes em particular e não deve ser comparado com a nota dada por estudantes em outras escolas já que as discussões realizadas sobre o currículo podem influenciar na avaliação crítica do ensino. Por outro lado, os alunos tiveram grande índice de concordância ao identificar que a teoria antecede à prática, a prioridade do ensino é o aspecto curativo ou reabilitador, que o espaço tisico é dividido em departamentos e grande parte do tempo é dispendida intra-muros.

Apesar de 63% dos alunos considerarem o clínico geral como o tipo de profissional que a população mais necessita, apenas 9% demonstraram interesse em seguir Medicina Geral Comunitária ou Preventiva, e 70% consideraram que a faculdade forma especialistas. Este fato pode estar relacionado com o tipo de professor que trabalha na faculdade, um especialista, segundo 93,2% dos alunos. Assim, os objetivos estabelecidos na implementação do currículo, de formar um profissional generalista e capaz de proporcionar cuidados primários de saúde, na prática não são vivenciados pelos estudantes.

As respostas dos estudantes revelaram uma grande procura por atividades extra-curriculares para complementar a formação e adquirir experiência. Como já foi constatado em outro estudo3, as razões financeiras não desempenham um papel muito importante. A média de quatro atividades por estudantes pode refletir a ansiedade e a impaciência em suprir as necessidades de sua formação mas, também, pode ser reflexo da quantidade e qualidade das opções disponíveis no meio. Deve-se ressaltar, também, que certas atividades, como participação em projetos de pesquisa, monitoria e estágios de férias, embora não curriculares, são parte integrante da vida universitária.

Embora tradicionalmente o currículo seja considerado como as matérias constantes de um curso, a tendência atual é de se usar o termo em um sentido mais amplo55. RAGAN, W.B. Currículo primário moderno. Ed. Globo, Porto Alegre, 1978., referindo-se à vida e ao programado estabelecimento de ensino e incluindo todas as experiências dos estudantes sob a responsabilidade dessa instituição. É necessário, portanto, avaliar este aspecto quando se avalia e se planeja um currículo, pois se por um lado as atividades paralelas podem propiciar experiências valiosas, por outro lado também podem distorcer a formação médica e, se algumas experiências ocorrem no âmbito da Universidade, outras acontecem em serviços pouco estruturados e sem supervisão, aumentando a tensão dos estudantes por exercerem atividades para as quais possam não estar plenamente habilitados.

Um importante próximo passo é explicitar cada uma destas atividades extra-curriculares, avaliando se representam formação ou deformação do ensino médico.

Agradecimentos

Profa Dra. Maria Inês Schmidt

Centro Acadêmico Sarmento Leite

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • 1
    ANDRADE, M. Marco conceptual de la educación médica en la America Latina. Educ. Med. Salud, vol.12 nº 1:1-19, 1978.
  • 2
    COMCAR/MED. Of. Circ . nº 01/86 Porto Alegre, 1986.
  • 3
    KLOETZEL, K. “O ensino paralelo” da Medicina. Anais do XIV Congresso Brasileiro de Educação Médica ABEM : 671-4, Rio de Janeiro, 1976.
  • 4
    MENDES, E.V. A integração docente-assistencial na perspectiva dos serviços. UFMG, Belo Horizonte, 1980.
  • 5
    RAGAN, W.B. Currículo primário moderno. Ed. Globo, Porto Alegre, 1978.
  • 6
    SANTOS, J.O. Filosofia da educação médica: interpretação da práxis. R. Bras. Méd 10(2): l06-106, Rio de Janeiro, 1986.

Tabela 1
Nota dos Estudantes Para o Ensino na Faculdade

Tabela 2
Opinião dos estudantes sobre aspectos específicos

Tabela 3
Atividades Extra-Curriculares

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Jul 2021
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 1993
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