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A ABORDAGEM DA VIOLÊNCIA NA FORMAÇÃO MÉDICA

Resumo:

Este artigo tem a finalidade de colocar o impacto da violência social sobre a saúde para a educação e a formação médica. Apresenta as mudanças do perfil de morbi-mortalidade do País, quando a violência passa a ocupar o segundo lugar, apenas abaixo das doenças cardiovasculares. E mostra a necessidade de sensibilização dos profissionais para esse problema sócio-epidemiológico e, também, o quanto urge a formação de especialistas para emergências, reabilitação e gestão do serviços, voltados todos, generalistas especialistas para a prevenção e promoção da saúde.

Palavras-chave:
Educação Médica; Abordagem da violência; Prevenção da violência; Atenção aos agravos violentos

Summary:

The objective of this article is to discuss the impact of the social violence over the health of the education and medical formation. Showing the changes on the mortality pofile, when violence reaches second position, only after the heart diseases, and also indicate the necessity of attention by the part of the profissionals for this social-epidemiological ready, and also, on what matters the creation of especialists ready to face the emergencies, rehabilitation and control for services, al1 of them faces, general specialists for prevention and promotion of Health.

Key Words:
Medical Education; Violence discussion; Violence preventions; Alert to violent injury

Introdução

A problemática da violência passou a fazer parte dos temas pertinentes à área de saúde desde a década de GO, quando nos Estados Unidos, os pediatras começaram a diagnosticar, denunciar e tratar a chamada "síndrome do bebê espancado". Não que a violência fosse um assunto estranho ao âmbito médico-legal ou aos hospitais de trauma e emergência. Tratada como advinda de uma “causalidade externa”, ao setor saúde sempre coube notificá-la ou medicalizá-la. O lema violência, porém sempre foi considerado evento do mundo social e tradicionalmente tratado pela justiça e pela segurança pública. Sobre ele se debruçaram também filósofos da mais alta estirpe como Hegel (1980HEGEL, G. H. F. A Fenomenologia do Espírito. Hegel. São Paulo: Abril Cultural. 1980. p.03-71. ), Freud (1974FREUD, S. Reflexões para os tempos de guerra e morte. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago. 1974. p. 311-339.), Engels (1981)ENGELS, F. Teoria da Violência. Engels. São Paulo: Ática. 1981. p. 146-188. , Sartre (1980SARTRE, J. P. A. Questão do Método. Sartre. São Paulo: Abril Cultural . 1980. p. 70-92.), Habermas (1980HABERMAS, J. O Conceito de Poder em Hannah Arendt. Habermas (B. Freitag e P.Rouanet, orgs). São Paulo: Ática . 1980. p. 100-118.), Sorel (1992)SOREL, G. Reflexões sobre Violência. São Paulo: Martins Fontes. 1992., Fanon (1965)FANON, F. The wretched of the earth. London: U. Press. 1965. Arendt (1970ARENDT, H. On Violence. New York: Rondon House. 1970. ) e outros, buscando entender a essência desse fenômeno tão familiar e desconcertante para a experiência humana, nas suas causas e nos seus efeitos.

Apesar da afirmação de William Forge, Diretor Executivo do Centro Carter no New England Journal of Medicine, em 1987, citada na revista Salud Mundial, OMS (1993)OMS. Salud Mundial, nº 46. 1993. (Apresentação). ORGANIZAClÓN PANAMERICANA DE LA SALUD/DIVISIÓN DE LA PROMOCIÓN Y PROTECCIÓN DE LA SALUD. Salud y Violencia: Plan de acción regional. Washington. DC, 1994 de que "desde tempos imemoriais, as doenças infecciosas e a violência são as principais causas de mortalidade prematura", a introdução da violência como uma questão de saúde no Brasil ocorre de forma sistemática apenas a partir da década de 80. Dentro de uma concepção de saúde que inclui as condições gerais de produção e reprodução, buscou-se ampliar a reflexão já existente na epidemiologia descritiva que criava indicadores de mortalidade por "causas externas". Hoje há no país uma respeitável produção científica, capaz de fundamentar sócio-historicamente análises epidemiológicas, dados gerais sobre as “sub-causas” que compõem o que na área de saúde é classificado corno violência, embora faltem estudos de sintonia fina, com finalidade explícita de intervenções localizadas.

A dimensão do problema é considerável. Diferentemente de outras sociedades onde a violência direta que provoca traumas e mortes estã diminuindo, como é o caso da Europa, analisado nos estudos de Chesnais (1981CHESNAIS, J. C. Historie de la Violence en occident de 1800 à nous jours. Paris: Pluriel E'd. 1981. ), no Brasil, a violência fatal tem aumentado nos últimos quarenta anos. A marca de recrudescimento é a década de 80. Esse alerta histórico merece atenção dos médicos, seja enquanto cidadãos preocupados com os rumos da sociedade brasileira, seja enquanto profissionais convocados a atuar nas marcas que a violência deixa nos corpos e nas mentes da população que demanda sua atenção.

Indicadores de morbidade e de mortalidade por violência

As mortes por violência estão incluídas na Classificação Internacional de Doenças (CTD) no grande grupo das causas externas (E800-E999). Compreende todos os tipos de acidentes (E800-E949); suicídios (E950-E959); homicídios e lesões intencionalmente infligidas (E960-969): intervenções legais (E970-978): lesões resultantes de operações de guerra (E990-999): e lesões que se ignora se foram acidental ou intencionalmente infligidas (E980-E989). Embora represente um grande esforço da Organização Mundial de Saúde, a classificação da violência será sempre problemática, pois como expressa muito bem o filósofo Denisov (1986DENISOV, V. Violência Social: Ideologia y Política. Moscú: Progreso. 1986. ) "existem milhões de fatores os mais diversos que incidem simultaneamente sobre a conduta humana, e todos os motivos do comportamento e da ação violenta passam pela mente". (pág.38)

Apesar da ressalva anterior, não se pode menosprezar a colaboração dos estudos epidemiológicos já existentes para lançar luz sobre a gravidade do problema e sobre as perspectivas de ação. É isso que se tenta a seguir, destacando-se alguns dados fundamentais.

Em primeiro lugar é importante notar que embora o Brasil sempre tenha sido um país nada pacífico e muito menos cordial como tentam fazer crer os ideólogos ufanistas, em 1930 a violência ocupava apenas 2% no total da mortalidade geral do pais. O que mais dizimava os brasileiros eram sobretudo as doenças infecto-parasitárias, conforme mostram os estudos de Prata (1992PRATA, P. R. A Transição Epidemiológica no Brasil. Cadernos de Saúde Pública . V.8, 168-175. 1992.). A partir de 1960, a violência passa a ter marcante presença no obituário nacional, atingindo, em 1980, 10,5%; em 1988, 12.3%, e, em 1990, 15,3% do total das mortes que acometeram a população brasileira (Minayo e Souza, 1993MINA YO, M. C. S. e SOUZA, E. R. Violência para Todos. Cadernos de Saúde Pública . V. 9, p.65-78. 1993.; Souza e Minayo, 1995SOUZA, E. R. e MINAYO, M. C. S. O Impacto da Violência Social na Saúde Pública do Brasil: Década de 80. Os muitos Brasis. Saúde e população na década de 80. (Maria Cecília de Souza Minayo, org.). São Paulo/Rio de Janeiro: Hucitec/Abrasco . 1995. p.85-116.). No início da década de 90, as estatísticas confirmam a tendência dos anos 80 e a violência se coloca como a segunda causa de morte no país.

O perfil da mortalidade por causas externas no Brasil segue a tendência mundial, indicando como maiores vítimas as pessoas do sexo masculino e faixas etárias jovens, estando mais concentrada nas grandes regiões· metropolitanas. Para se ter uma ideia, em 1989, de um total de 101.889 óbitos, 82,9% das vítimas eram homens. E no amplo período de 5 a 49 anos, as mortes violentas ocupavam o Primeiro Lugar, distribuindo-se no total das causas de morte nessas idades, com os seguintes percentuais: 47% na faixa de 5 a 9 anos; 54,6% de 10 a 14 anos; 70,85% de 15 a 19 anos; 65,95% de 20 a 29 anos; 41,1% de 30 a 39 anos; e 20,6% de 40 a 49 anos.

Embora o perfil de mortes violentas siga as tendências internacionais, é importante se observar algumas particularidades do caso brasileiro. O quadro nacional é configurado majoritariamente pelos acidentes de trânsito e pelos homicídios. No que se refere aos primeiros, diferentemente dos países desenvolvidos, onde a maioria das mortes é motivada por colisão de veículos, aqui as vítimas são prioritariamente pedestres que morrem por atropelamento. Os homicídios que têm baixas taxas nos países europeus representam, no Brasil, dentre as causas que conformam a classificação de violência, a que mais se elevou nos últimos anos, mostrando uma tendência crescente e preocupante a partir da década de 80.

No mapa da violência observam-se também algumas tendências a partir dos indicadores: deslocamento da incidência de homicídios para faixas etárias mais jovens, apesar de a maior proporção de óbitos ocorrer no grupo de 20 a 29 anos. Na década de 80 houve, por exemplo, um incremento proporcional e 79,5% na faixa de 10 a 14 anos: os dados revelam também uma elevada proporção de mortes violentas em mulheres acima de 60 anos, provavelmente relacionadas a quedas e a problemas no trânsito.

Considerando-se que as maiores taxas de mortes violentas se concentram nas Regiões Metropolitanas, observa-se que Recife, Salvador e São Paulo foram as que tiveram maior crescimento proporcional na década e o Rio de Janeiro permaneceu com taxas altas desde os anos 70. O Rio de Janeiro, inclusive, apresenta a particularidade de ter os homicídios como a principal causa específica no conjunto dos óbitos por violência, com uma frequência ao crescimento: passou de 33,45% a proporção dos homicídios no conjunto das mortes violentas, em 1980, para 45,21 %, no final de 1988. Essa persistente supremacia dos homicídios no perfil das causas externas no Rio de Janeiro difere do quadro apresentado pelo país, onde os óbitos no trânsito corresponderam, na década a 29,3% e os homicídios a 24,1%, no conjunto de todas as violências.

Se é difícil ter dados precisos sobre a mortalidade por violência, essa dificuldade aumenta quando se trata de expor a dimensão da morbidade. Os estudos são raros e apenas ultimamente se fizeram alguns progressos em relação a ternas muito específicos como a questão dos agravos à mulher e à criança. Contudo algumas estimativas podem ser apresentadas. Mello Jorge (1979MELLO, Jorge M. H. Mortalidade por causas violentas no Município de São Paulo. São Paulo: Faculdade de Saúde Pública, USP. 1979. (Tese de Doutorado)) e Yunes (1993)YUNES J. Mortalidad por causas violentas en la región de las Américas. Bol. of Sanit Panam. Washington, v. 114, n° 4, p. 302-316 citam Wheatley, segundo o qual para cada morte atribuível a um acidente, ocorrem 200 casos de seqüelas e incapacidades. Jurgensen (1993JURGENSEN, G. Nadie se rebela. Salud Mundial. OMS. V 46, 1993.) estima que para 10.000 pessoas que morrem no trânsito, 50.000 resistem com traumas cujos custos de tratamento são elevadíssimos. Machado e Minayo Gomez (1994MACHADO, J., MINA YO, Gomes C. Acidentes de Trabalho: Uma expressão da violência social. Cadernos de Saúde Pública . V.10, suplemento 1, p.74-87. 1994.), utilizando-se de dados da Previdência Social, estimam que, para cerca de 5000 acidentes fatais no trabalho, há um milhão de acidentados que requerem cuidados médicos e reabilitação. Marques (1993MARQUES, M. B. Brasil: In Search of a Paison Information National System. Rio de Janeiro: NECTZ/FIOCRUZ. 1993.), estudando acidentes por envenenamento no Brasil de 1987 a 1991, mostra um percentual de 38,5% de envenenamento por medicamentos e 6.4% por produtos de limpeza cm crianças entre 1 a 5 anos de idade. Dados da Associação Brasileira de Crianças Abusadas e Negligenciadas informam que há hoje, no país, cerca de 4,5 milhões de crianças vítimas de violência com seqüelas para sua saúde física e/ou mental. Num estudo sobre a situação da violência contra as mulheres, Heise (1994)HEISE, L. Gender-based Abuse: The Global Epidemie. Cadernos de Saúde Pública. V. 10, suplemento 1, p.135-145. 1994. informa que cerca de 35% das que se apresentam aos serviços de saúde nos Estados Unidos e em outros países por ela mapeados, expressam indícios de maus-tratos. Wolf (1994WOLF, R. S. Maltrato en el anciano. Atención de los Ancianos: Un desafio para los Noventa. (E. Anzola - Pérez ed), Washington, DC: OPAS. 1994. ), revendo pesquisas canadenses sobre a situação dos idosos, estima que 10%, deles sofrem uma ou mais formas de abuso, sendo as mais frequentes as de ordem financeira, verbal e agressão física. No Brasil, não se tem dados sobre o tema, na medida em que só agora os idosos aparecem como tema importante para os programas de saúde.

O mapeamento das questões colocadas acima apenas revela a agenda que a violência coloca para o setor saúde. Ou seja, além dos efeitos diretos e indiretos, físicos e simbólicos sobre o conjunto da população, os problemas, classificados pela OMS como de causalidade externa, congestionam os serviços de atenção à saúde, aumentam os custos globais do atendimento e afetam a qualidade da cobertura.

Muitas têm sido as explicações utilizadas para o aumento do impacto da violência no perfil de mortalidade no Brasil. Aqui se colocam algumas, que certamente não esgotam nem os motivos e nem as possibilidades de compreensão de fatos empíricos especificas. De um lado, existe uma explicação positiva que é a queda das doenças infecto-parasitárias e das imuno-preveníveis no perfil de mortalidade geral, indicando algumas mudanças nas condições de vida e uma certa universalização da atenção ô saúde. O raciocínio é o seguinte, como diminuiu o peso de outras doenças, aparece mais o peso das “causas externas". De outro lado, o aumento da violência direta está relacionada a uma série de fatores, sobretudo ao acirramento da questão social.

Ainda que não se possa fazer uma transposição mecânica do aprofundamento das desigualdades que aconteceram no país a partir da década de 80, combinada com o crescimento de uma juventude urbana sem perspectivas de emprego formal e submetida a uma brutal ideologia de consumismo com a intensificação dos índices de criminalidade, não há como negar a sinergia que esse tipo de movimento promove entre si. Não se pode considerar mera coincidência o fato, por exemplo, de Recife constituir-se na região metropolitana onde as taxas de morte violentas mais cresceram na década e ser também aquela em que os rendimentos dos 1% mais ricos serem 240 vezes maiores do que os dos 10% mais pobres. A sua taxa de pobreza familiar é elevadíssima, atingindo 51,7% das famílias em geral e 57,2% das famílias chefiadas por mulheres sem cônjuge. O percentual de crianças e adolescentes pobres com até dezessete anos em famílias chefiadas por mulheres chegava a 70, l %, em 1989, segundo dados de Saboia (1993SABÓIA, J, Distribuição de Renda e Pobreza Metropolitana no Brasil. O limite da Exclusão Social (Maria Cecília de Souza Minayo, org). São Paulo/Rio de Janeiro: Hucitec/Abrasco. 1993.). É preciso juntar a crueldade desses indicadores sociais com o fato de que é sobretudo a população jovem e pobre que está morrendo por homicídio nas regiões metropolitanas. Aqui se entende pois, que a forma fundamental da violência é a "estrutural", ou seja, aquela que dá as bases das injustiças e das iniquidades sociais, e é a partir dela que se pode analisar a criminalidade. Ao se apresentar de forma naturalizada, a violência social viceja na legalidade e permite a falsa visão de que os pobres são criminógenos, e de que a delinquência é um atributo das classes populares.

Além da análise das contradições sociais e articulada a ela, é necessário considerar que a partir da década de 80 houve também uma profunda mudança no perfil de criminalidade no país. Tornaram-se muito mais visíveis os crimes de colarinho branco, assim como vieram a público a promiscuidade e conluio da legalidade com a ilegalidade, no âmbito econômico, político, judicial e da segurança pública Esse desnuda­mento da corrupção fez aparecer aos olhos da opinião pública os meandros da criminalidade antes tomada apenas como atributo das classes populares. Nesse ponto, o movimento de exposição das entranhas podres do país, fato que dura até a metade dos anos 90, é positivo, sobretudo se redundar numa consciência cívica de maior responsabilidade com os bens públicos.

Em segundo lugar, de um perfil tradicional, o crime evoluiu para uma competente organização cm torno do narcotráfico e do narcoterrorismo, criando uma economia internacionalizada que compete com o comércio do petróleo e de armas. Em torno desse negócio, se arma um poder paralelo e articulado com o poder legal sob a omissão, a leniência, a cumplicidade e, por vezes, a participação de autoridades públicas. Para realização de suas ações, o narcotráfico articula os grupos de delinquência comum, dotando-os de modernos armamentos e capacidade financeira. Da mesma forma, apela a assassinos contratados, potencializa grupos de extermínio, estimula demonstrações públicas de torturas, mutilações e sevícias, gerando um clima cultural de banalização da vida e da morte, e de barbárie.

Embora as ações do narcotráfico não possam ser compreendidas de forma reduzida, como delinquência de marginais, e "bandidos" dos morros e periferias, as suas maiores vítimas têm o perfil dos que hoje engros­sam as estatísticas de homicídios: jovens de 15 a 29 anos, de baixa escolaridade, baixa renda, desempregados, sem qualificação profissional, do sexo masculino. (Mello Jorge, 1988MELLO, Jorge M. H. Investigação sobre Mortalidade por acidentes e Violências na Infância. São Paulo: Faculdade de Saúde Pública, USP. 1988 (Tese de Livre Docência); Souza. 1991SOUZA, E. R., Violência Velada e Revelada: Estudo epidemiológico da mortalidade por causas externas em Duque de Caxias - R.J. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública. 1991. (Dissertação de Mestrado); Minayo e Souza, 1993MINA YO, M. C. S. e SOUZA, E. R. Violência para Todos. Cadernos de Saúde Pública . V. 9, p.65-78. 1993.). É importante notar, porém, que muitos dos jovens que estão morrendo não são engajados no crime: são vítimas de uma mentalidade exterminista e eliminados nas mas e no anonimato desse clima de terror insegurança e medo em que se transformaram muitos centros urbanos no país. Estudos realizados por Hein (1993)HEIN, A. Derechos Humanos y Superación de la Violência en Colombia. Informe para el Sistema de las Naciones Unidas preparado el Coordinador residente en Colombia.1993. (mimeo). na Colômbia apontam para dois pontos de articulação entre a violência e o narcotráfico: a) o narcotráfico aumenta a violência social em geral, b) e ele se promove no bojo da violência estrutural: “a pobreza e a deterioração da qualidade de vida não geram violência por si mesmas. Mas a presença de atores e grupos armados, que se envolvem em conflitos, tem severo efeito multiplicador das tensões sociais nas áreas da pobreza e atua como determinante da violência, da qual as maiores vítimas são os próprios pobres”. (pág. 9)

Daí a necessidade de se atuar sistematicamente sobre as causas da violência e da pobreza.

Por que tratar do tema da violência na formação médica

A rigor, a violência não é um tema da competência da saúde. Ela, na verdade, é um termômetro das condições e das relações sociais de uma determinada sociedade. A violência, porém, afeta a saúde. Como afirma Agudelo (1989AGUDELO, S. F. Violencia y/o Salud: elementos preliminares para pensarias e actuar. PAHO/ OMS. 1989. (mimeo).), “ela representa um risco maior para a realização do processo vital humano: ameaça a vida, altera a saúde, produz enfermidade e provoca a morte como realidade ou possibilidade próxima”. Sobre o assunto a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) constatou numa de suas últimas reuniões regionais.

“A violência, pelo número de vítimas e a magnitude de seqüelas orgânicas e seqüelas emocionais que produz, adquiriu um caráter endêmico e se converteu num problema de saúde pública em vários países(...) o setor saúde constitui a encruzilhada para onde confluem todos os corolários ela violência, pela pressão que exercem suas vítimas sobre os serviços de urgência, de atenção especializada, de reabilitação física, psicológica e de assistência social. (OPAS, 1994:01)”

A pergunta que se segue seria a seguinte: dada a consciência da problemática da violência afetando o setor saúde, deveria a formação privilegiar programas e disciplinas sobre o tema? Do ponto de vista do autor deste artigo, cm princípio não. Deveria, porém, no interior das disciplinas de formação geral privilegiar uma sensibilização, tanto para o perfil de morbi-mortalidade onde a questão é irrefutável, assim como para as formas de diagnóstico de agravos específicos, modos ele prevenção que se inicia na atenção primária. Para os níveis de especialização estariam colocada tanto a formção em “sócio-epidemiologia da violência” como para a atenção nas emergências, processos de reabilitação física e psicológica e gestão desse novo tipo de agravo que afeta, encarece, sobrecarrega todo o sistema de saúde trazendo, para os profissionais, que aí atuam, uma carga emocional muito pesada. Todos esses fatos, o custo financeiro, social e humano da violência e sobre­tudo todas consequências psicossociais que envolvem a equipe de saúde não podem passar ao largo da formação médica, apropriada para atender ao perfil de morbi-mortalidade da população brasileira, sobretudo da que vive nos grandes centros urbanos.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Dec 1995
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