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Complexidade e Transdisciplinaridade: Uma abordagem multidimensional do Setor Saúde

Resumo:

Este ensaio resulta de um esforço de síntese do conhecimento que hoje se possui sobre o caráter multidimensional do setor saúde com os avanços recentes no desenvolvimento de uma teoria, epistemologia ou paradigma da complexidade. O objetivo em vista é o de uma melhor compreensão do processo saúde-doença nas populações. A partir dessa compreensão, sugere-se a construção coletiva de estruturas matriciais que facilitem a criação de parcerias entre múltiplos atores e sistemas sociais na abordagem de problemas do setor saúde.

Palavras-chave:
Saúde; Setor de saúde; Complexidade; Transdiciplinaridade; Paradigma

Summary:

This essay represents an effort to combine current knowledge about the multidimensional character of the health sector with recent developments of what may be called a theory, epistemology or paradigm of complexity. The objective is to obtain a comprehensive view of the problems of the health sector including the responsability of other sectors and systems, in order to better plan and implement concerted multi-sectoral actions. To achieve this goal, the author suggests the construction of matrices problems x systems to facilitate building partnerships among multiple soci­al actors and systems.

Keywords:
Health; Health sector; Complexity; Transdisciplinarity; Paradigm

INTRODUÇÃO

O avanço da ciência e da tecnologia neste século é considerado maior do que tudo o que já tínhamos conseguido avançar. Todos conhecem a dificuldade que temos para manter-nos atualizados em nossas próprias disciplinas. Mas, ao mesmo tempo, reconhecemos a imperiosa necessidade de desenvolver marcos conceituais e abordagens que nos permitam compreender o mundo em que vivemos e situar dentro dele o setor em que exercemos nossa atividade, o setor saúde em nosso caso.

Nosso objetivo neste ensaio é precisamente este: melhor compreender para melhor agir. Até agora, o paradigma dominante na ciência tem-nos levado à contínua divisão do conhecimento em disciplinas e destas em subdisciplinas. Neste trabalho, o esforço é no sentido contrário, é o de religar. Mas não se trata - é preciso que fique bem claro desde o início - de nenhuma posição antidisciplina. Ao contrário, trata-se de buscar um mecanismo de apoio ao crescimento disciplinar, mantendo a unidade do todo. Permeia o ensaio urna posição pragmática no setor saúde. A busca é do conhecimento relevante que possa gerar ações que redundem em benefício do ser humano.

O trabalho é dividido em três partes: a primeira delas explica os conceitos básicos, a segunda busca uma melhor compreensão dos problemas, e a última sugere uma estratégia integrativa para nossa ação conjunta sobre os problemas.

COMPLEXIDADE E TRANSDISCIPLINARIDADE

Complexidade

Na linguagem coloquial, a palavra complexo é usada com frequência e muitas vezes absolve quem a usa de dar maiores explicações sobre o assunto de que trata. Ouvimos constantemente as expressões: a situação é complexa, o problema é complexo, a busca de solução é uma tarefa complexa. Daí, a ideia que nos fica de complexidade é de caos, desordem, obscuridade. É o oposto do que a palavra, por sua etimologia, quer dizer. A palavra vem de plexus, entrelaçado, tecido em conjunto. Em vez de usar a palavra como escapatória, devemos ver como melhor entendê-la para ajudar-nos na abordagem de problemas.

De um modo ou de outro, a ideia de complexo, de complexidade, sempre foi usada, mas só modernamente vem ganhando foros de uma nova ciência. Fala-se em teoria da complexidade, paradigma da complexidade, epistemologia da complexidade. A complexidade vem sendo usada para estudos no mundo da física, alguns de escala planetária, envolvendo emissão de gases poluentes, camada de ozônio, correntes marítimas, aquecimento da Terra. No mundo biológico, a complexidade aparece em sua plenitude no ser humano, com seus múltiplos sistemas e aparelhos interagindo para manter a homeostase. No mundo social, a complexidade torna-se cada vez mais importante pelos avanços tecnológicos que permi­tem comunicações cada vez mais rápidas entre pessoas, povos e nações. A recente crise econômica desencadeada na Bolsa de Hong-Kong e rapidamente espalhada pelo mundo todo serve de exemplo.

Devemos falar por agora em teoria da complexidade, paradigma da complexidade ou simplesmente complexidade? Morin11. MORIN, E. Introduction à la pensée complexe. Paris: ESF, 1990. 158 p. prefere usar a expressão pensamento complexo. A meu ver, talvez seja menos ambiciosa e a que melhor responda às necessidades do setor saúde no momento.

Para bem entendermos a ideia de complexidade, temos que vê-la em relação ao que se considera usualmente seus opostos. Podemos formar vários pares: simples-complexo, simplificação-complexificação, redução-conjunção, reducionismo­holismo, partes-todo. É preciso frisar, contudo, que a complexidade não funde seus opostos em um todo homogêneo: ela mantém a distinção entre as partes. Ela associa sem tirar a identidade das partes que a compõem, mas sempre considerando que o todo é maior que a soma das partes.

A complexidade do mundo em que vivemos transparece nas expressões que usamos: o mundo das artes, o mundo da política, o mundo da ciência, o mundo acadêmico, o mundo do comércio e por aí vai. No entanto, só existe um mundo. Todos os mundos acima se entrelaçam num mesmo espaço-tempo em que vivemos.

Transdiciplinaridade

O mundo da ciência, o mundo acadêmico, é o mundo das disciplinas. O avanço da ciência e o progresso tecnológico deste século foram devidos em boa parte à verdadeira explosão da pesquisa disciplinar. A complexificação dos problemas tornou necessária a aproximação e associação gradual das disciplinas em diferentes graus, do mais simples, o da multidisciplinaridade, ao mais completo, o da transdisdplinaridade.

Neste ponto devemos definir os termos que estamos usan­do, pois, conforme os autores, podemos ir desde quatro até seis níveis no espectro que vai da disciplina até a transdisciplinaridade. Prefiro trabalhar com quatro termos: disciplinaridade, multidisciplinaridade, interdisciplinaridade e transdisciplinaridade. Não farei distinção entre multidisciplinaridade e pluridisciplinaridade, usarei apenas o primeiro termo. Também não usarei o nível e o termo crossdisciplinarity22. JANT SCH, E. Towards interdisciplinarity and transdisciplinarity in education innovation. In: Interdisciplinatiry-problems of teaching and research in universities. Paris: OECD, 1972. p. 106-107. por não considerá-lo útil à discussão. Procurei as definições que me parecem mais simples, que são as que necessitamos aqui:

  1. Disciplina - constitui um corpo específico de conhecimento ensinável, com seus próprios antecedentes de educação, treinamento, procedimentos, métodos e áreas de conteúdo33. JANT SCH, E . Interdisciplinarity - Problems of teaching and research in universities. Paris: OECD , 1972. p. 25..

  2. Multidisciplinaridade - ocorre, segundo Piaget44. PIAGET, J. The Epistemology of interdisciplinary relationships. In: op. cit. n. 3, p.136-139., quando "a solução de um problema torna necessário obter infor­mação de duas ou mais ciências ou setores do conhecimento sem que as disciplinas envolvidas no processo sejam elas mesmas modificadas ou enriquecidas".

  3. Interdisciplinaridade - ainda segundo Piaget, o termo interdisciplinaridade deve ser reservado para designar "o ní­vel em que a interação entre várias disciplinas ou setores heterogêneos de uma mesma ciência conduz a interações reais, a uma certa reciprocidade no intercâmbio, levando a um enri­quecimento mútuo".

  4. Transdisciplinaridade - continuando com Piaget, o conceito envolve "não só as interações ou reciprocidade entre projetos especializados de pesquisa, mas a colocação dessas relações dentro de um sistema total, sem quaisquer limites rígidos entre as disciplinas".

Piaget, há quase três décadas, considerou que a transdisciplinaridade ainda era um sonho. Seu sonho é hoje uma realidade. Transdisciplinaridade e complexidade se complementam. O avanço da pesquisa disciplinar reforça a necessidade de estudo da complexidade. Como diz Nicolescu55. NICOLESCU, B. La Transdisciplinarité-manifeste. França: Éditions du Rocher, 1996. 231p.: "a complexidade se nutre da explosão da pesquisa disciplinar, e por sua vez a complexidade determina a aceleração da multiplicação das disciplinas". Ainda o mesmo autor faz notar que, embora a transdisciplinaridade seja confundida muitas vezes com a multidisciplinaridade e a interdisciplinaridade, porque as três vão além da disciplina, é preciso destacar o caráter radi­calmente distinto da transdisciplinaridade. As duas primeiras continuam inscritas no quadro da pesquisa disciplinar. No entanto, "a transdisciplinaridade, como o prefixo trans indica, lida com o que está ao mesmo tempo entre as disciplinas, através das disciplinas e além de todas as disciplinas. Sua finalidade é a compreensão do mundo atual, para o que um dos imperativos é a unidade do conhecimento"55. NICOLESCU, B. La Transdisciplinarité-manifeste. França: Éditions du Rocher, 1996. 231p..

Mais adiante ainda Nicolescu5 afirma que "mesmo reconhecendo o caráter radicalmente distinto da transdisciplinaridade, com relação à disciplinaridade, multidisciplinaridade e interdisciplinaridade, seria extremamente perigoso tomar adiferença em forma absoluta, pois desse modo a transdisciplinaridade seria esvaziada de todo o seu conteúdo. Sua eficácia, como instrumento de ação, seria reduzida a nada". Podemos por isso reafirmar a necessidade das disciplinas para o avanço da ciência e ao mesmo tempo o imperativo da transdisciplinaridade para a compreensão do mundo.

Pensamento complexo

É muito difícil separar a ideia de pensamento complexo da de transdisciplinaridade, pois, como diz Morin66. MORIN, E. Le Besoin d'une pensée cornplexe. (mimeo). Rio de Janeiro: 1996. 7p. (Trabalho apresentado na Conferência Internacional sobre Representação e Complexidade, 1996)., o pensamento complexo se elabora nos interstícios entre as disciplinas, a partir do pensamento de matemáticos, físicos, biólogos e filósofos. Duas revoluções científicas deste século estimularam seu desenvol­vimento: a revolução quântica do início do século e a revolução sistêmica de meados do século. A primeira, com base na termodinâmica, na física quântica e na cosmofísica, introduziu a incerteza; a segunda introduziu a auto-organização nas Ciências da Terra e na ecologia, sendo estendida depois à biologia e à sociologia. O pensamento complexo é aquele que lida com a incerteza e que é capaz de conceber a auto-organização. Nesse sentido, ele inclui ideias da moderna teoria do caos77. GLEICK, J. Caos: a criação de uma nova ciência. Rio de Janeiro: Campus, 1990. 310p.),(88. PARKER, D.; STACEY, R. Caos, administração e economia - as implicações do pensamento não-linear. Rio de Janeiro: Inst. Liberal, 1995., bem como reencontra a relação dialógica do yin e do yang, existente no pensamento chinês desde a antiguidade. Podemos completá-lo com o tetragrama ordem-desordem-interação-organização sugerido por Morin11. MORIN, E. Introduction à la pensée complexe. Paris: ESF, 1990. 158 p..

Quisemos, com este bosquejo inicial sobre pensamento complexo e transdisciplinaridade, caracterizar o referencial teórico que nos guiará para as partes seguintes deste ensaio. A ideia fundamental é a da unidade do conhecimento, necessária ao pensamento complexo, mas que demanda humildade e prudência. Em plena era do fim das certezas99. PRTGOGINE, I. La Fin des certitudes: temps, chaos et les lois de la nature. Paris: Odile Jacob, 1996., não queremos saber tudo, mas também não queremos ficar encerrados em nossas disciplinas. Como diz Morin11. MORIN, E. Introduction à la pensée complexe. Paris: ESF, 1990. 158 p., a complexidade é uma palavra problema e não uma palavra solução. Creio que entrar mais a fundo no exame do setor saúde exige um trabalho de equipe de pessoas de muitas disciplinas, de muitas profissões, de muitos setores da sociedade. Nossa visão habitual disciplinar, corporativa, unidimensional, tende a deformar nossa visão de mundo. Para corrigir essa deformação temos que sair do nosso setor, olhá-lo de fora e depois voltar a entrar. Precisamos olhá-lo desde muitos ângulos e analisá-lo em suas várias dimensões.

Podemos considerar a complexidade como mais abrangente que a transdisciplinaridade. A complexidade é a expressão adequada para tratar o Mundo Real tal como ele é, uno, indivisível, em que tudo é parte de tudo. Tudo depende de tudo. Reservaríamos a palavra transdisciplinaridade para aquela parte do mundo real que trata do conhecimento, de sua organização em disciplinas, das superposições e espaços vazios entre elas. A complexidade está para o mundo real como a transdisciplinaridade está para o mundo acadêmico. A complexidade inclui a transdisciplinaridade. Almeida Filho e Paim1010. ALMEIDA FILHO, N.; PAIM. L. S. A Saúde coletiva e a nova saúde pública: novo paradigma ou velha retórica? Salvador: 1997 (Texto para discussão, comissionado pela OPS)., falando da construção de um novo paradigma em saúde, consideram que a transdisciplinaridade pode ser uma abertura para as dificuldades encontradas. Essa abertura seria reservada para "aqueles capazes de transitar entre distintos campos disciplinares, pelos cortes epistemológicos, dos velhos aos novos paradigmas".

ANÁLISE MULTIDIMENSIONAL -A COMPREENSÃO DOS PROBLEMAS

O setor saúde, como os demais setores da sociedade, tem fronteiras imprecisas. É um dos setores sociais, ligado intimamente a outros setores sociais, como educação, trabalho e seguridade social, e dependente dos setores econômicos. A expressão setor saúde é usada principalmente para o nível macro, nível de país. Seu objetivo é proporcionar à população de um país o nível mais alto de saúde que é possível alcançar num dado momento histórico com os recursos disponíveis. Saúde é parte integrante do bem-estar social. Os indicadores de saúde, por conseguinte, são componentes essenciais de indicadores mais complexos de qualidade de vida.

Não cabe aqui uma discussão sobre os conceitos de saúde e doença, e de vida e morte. Basta dizer que saúde e doença são abstrações necessárias para descrever diferentes graus de sucesso na interação dos indivíduos com o meio que os cerca e na dinâmica interna do seu próprio corpo. Como se usa a expressão indivíduos saudáveis, por extensão hoje se fala de famí­lias saudáveis, casas saudáveis, escolas saudáveis, cidades saudáveis e municípios saudáveis. No fundo, tais extensões se referem a famílias, casas, escolas, cidades, municípios, que proporcionam aos indivíduos um meio ambiente favorável à promoção, manutenção e recuperação da saúde, e os serviços necessários para esse fim.

O setor saúde de um país é só parcialmente capaz de influenciar os indicadores de saúde. Boa parte da capacidade de influenciá-los num sentido positivo recai em outros setores, responsáveis por outras dimensões da saúde. O nível de saúde de um país depende em última análise de um trabalho harmônico, em parceria, de vários setores da sociedade, públicos e privados. Fala-se hoje inclusive de um terceiro setor, em que entram recursos para a saúde, oriundos de organizações não governamentais (ONGs) e de vários mecanismos desenvolvidos por iniciativa da sociedade civil1111. TOSCHPE, E. B. et al. Terceiro setor: desenvolvimento social sustentado. São Paulo: Paz e Terra, 173 p..

Podemos analisar o setor saúde de inúmeros ângulos ou pontos de observação, que aqui chamamos de dimensões. Reunindo informações desde múltiplas perspectivas, ou seja, fazendo uma análise multidimensional, podemos ter uma visão mais clara e completa da realidade. A visão unidimensional, ou mesmo de apenas duas ou três dimensões, é insuficiente.

Na Figura 1, representamos as dimensões às quais atribuímos maior importância sob a forma de uma roda com oito raios, tendo em seu eixo o setor saúde e em seu aro, a Realidade Transetorial em que todos os setores interatuam. Todos os compartimentos do círculo se comunicam entre si, visando caracterizar a unidade do todo constituído pela realidade transetorial e na qual, no nosso caso, o setor saúde é o foco de atenção. Se estivéssemos estudando outro setor, ele, por sua vez, ocuparia centro do círculo, ficaria na berlinda.

Figura 1:
Dimensões do setor saúde

Comentemos brevemente cada uma das oito dimensões. Como recurso mnemônico, note-se que começam todas por E. Em dois casos, entre parênteses na figura, usei de um artifício para ter oito Es.

Dimensão ética

A dimensão ética perpassa todas as dimensões do setor saúde. Constitui mesmo seu pilar central. Sua importância aumenta à medida que as descobertas científicas e o progresso tecnológico dão maior poder à Medicina para intervir nos fatos da vida e da morte.

As questões de natureza ética ocorrem a cada momento nas distintas fases do ciclo vital e no exercício das várias profissões da saúde. Questões ligadas à reprodução assistida, ao aborto e à neonatologia, bem como as ligadas ao transplante de órgãos e a pacientes terminais, apresentam dilemas éticos com os quais o médico a cada momento tem de lidar.

A questão do autocuidado e da responsabilidade de cada indivíduo em relação à sua própria saúde, bem como à de sua família, de grande importância em prevenção no setor saúde, ilustra outro aspecto da ética humana.

Em relação à ética dos serviços de saúde, são pontos-chave as questões da alocação de recursos públicos, em geral insuficientes, de forma a obter o maior benefício para o maior número.

Os custos crescentes da alta tecnologia vêm gerando, mesmo nos países ricos, como Holanda e Suécia, a questão do racionamento da assistência médica. Deve fazer-se tudo o que se pode fazer? Deve haver um conjunto de necessidades assistenciais básicas? Deve-se levar em conta a idade dos pacientes? Como lidar com traumatismos autoprovocados? São exemplos ilustrativos de questões éticas que afetam o setor saúde, mas em que a decisão transcende o setor, é da sociedade como um todo1212. MARTIN, J. Ética y servicios de salud: el debate continua. Foro Mundial de la Salud, v.17, n. 4, p. 432-436, 1996..

Dimensão ecológica

A planetização do homem, a ocupação quase completa do ecúmeno terrestre, o crescimento demográfico, o desenvolvimento econômico poluente e predatório trouxeram para o primeiro plano problemas ligados à ecologia, ao meio ambiente, como o do desenvolvimento sustentável e o da preservação do ambiente e seus recursos naturais para uso das futuras gerações. Mas, para a população dos países em desenvolvimento, os problemas prioritários ainda são os de nível micro, de saneamento básico, água potável, remoção de lixo, poluição de rios, praias e baías. São geradores de problemas importantes de saúde, e sua solução depende, na maioria das vezes, de outros setores de governo.

A espécie humana é parte da natureza, como as demais espécies, mas é a única capaz de questionar sua própria sobrevivência e de organizar-se para adaptação a um mundo progressivamente mais quente, mais povoado e mais interligado. Em nível mundial, inúmeras organizações governamentais e não-governamentais vêm atuando num movimento ecológico amplo, que se reproduz em nível de país e de comunidades.

É no nível de comunidade que a dimensão ecológica do setor saúde é percebida com maior clareza, sob a forma dos binômios saúde e saneamento, saúde e meio ambiente.

A saúde ambiental abrange prioritariamente medidas relativas a:

  • Abastecimento público de água e saneamento;

  • Saúde dos trabalhadores;

  • Manejo de resíduos sólidos domésticos e hospitalares;

  • Higiene da habitação;

  • Controle dos riscos de saúde relacionados com o ambi­ente;

  • Seguridade no uso de substâncias químicas, como metais pesados, agrotóxicos e solventes orgânicos1313. HELLER, L. et al. Saneamento e saúde em países em desenvolvimento. Rio de Janeiro: CC&P Editores Ltda, 1997..

É na saúde ambiental que engenharia sanitária e saúde pública se encontram. A OPS, em junho de 1997, decidiu reunir o Centro Pan-Americano de Ecologia Humana e Saúde (ECO), situado no México, ao Centro Pan-Americano de Engenharia Sanitária e Ciências do Ambiente (Cepis), situado em Lima. O novo centro "se ocuparia dos aspectos tecnológicos da epidemiologia ambiental, da toxicologia ambiental e clínica, da avaliação de impactos, bem como da engenharia e das dimensões sociais da redução e controle de riscos"1313. HELLER, L. et al. Saneamento e saúde em países em desenvolvimento. Rio de Janeiro: CC&P Editores Ltda, 1997..

Dimensão epidemiológica

Nesta e nas duas dimensões que se seguem, entramos no âmago do que constitui propriamente o setor saúde. Iniciamos pela dimensão epidemiológica porque ela é básica para a compreensão das duas outras, a dimensão estratégica e a econômico-política.

Embora pareça estranho, com todas as afirmativas que se fazem desde a criação da OMS sobre o conceito positivo de saúde, não temos ainda instrumentos adequados para medir saúde, e sim o seu oposto, a doença.

A pesada carga da doença nos absorve de tal modo, que talvez ainda não tenha chegado o momento de desenvolver um indicador próprio para a saúde. Um progresso significativo foi feito em colaboração entre a OMS, o Banco Mundial e a Universidade de Harvard1414. MURRAY, C. J.; LOPEZ, A. D. (Ed.). The Global burden of disease: a comprehensive assessment of mortality and disability from diseases, injuries and risk factors in 1990 and projected to 2020. Trabalho colaborativo WHO e WORLD BANK, publ. por Harvard School of Public Health. Cambridge MA, Harvard Univ. Press, 1996., com o desenvolvimento de um indicador que permite uma visão conjunta da mortalidade e da morbidade em cada país. Não se trata mais de saber isoladamente de que se morre e de que se adoece em cada país. Trata-se de saber da perda que cada país sofre com mortes prematuras ou em termos das limitações que sofrem os indivíduos que sobrevivem às variadas doenças e acidentes.

O novo indicador expressa um somatório de anos de vida perdidos por morte prematura e anos de vida vividos com uma doença de duração e severidade especificadas. O acrônimo do novo indicador em inglês é Daly (disability-adjusted life years). A palavra disability tem sido traduzida para o espanhol por discapacidad. Em português, podemos, por extensão, usar discapacidade. O novo índice deverá, pois, ser descrito como anos de vida ajustados por discapacidade, e seu acrônimo seria Avad. A questão pode parecer irrelevante. Mas é de prever-se que o Avad venha a ter um uso crescente, já que o iceberg da doença nas estatísticas de mortalidade deixa submersa uma parte importante da carga de doenças que, sem causar a morte, são fonte de sofrimento humano e de custo social e econô­mico enorme, como é o caso das doenças mentais.

Especialistas da OMS/Banco Mundial fizeram projeções para as 15 principais causas de carga de doença usando o novo indicador, com base em dados de 1990 e projetados para 2020. O cenário básico para 2020 seria o seguinte, pela ordem de importância relativa:

  1. Doença isquêmica do coração

  2. Depressão unipolar grave

  3. Acidentes de tráfego

  4. Doença vascular cerebral

  5. Doença pulmonar crônica obstrutiva

  6. Infecções respiratórias inferiores

  7. Tuberculose

  8. Guerra

  9. Doenças diarreicas

  10. Aids

  11. Doenças do período perina

  12. Violência

  13. Anomalias congênitas

  14. Ferimentos auto-infligidos

  15. Cânceres da traqueia, brônquios e pulmão

Note-se a participação importante de causas externas e reflexos da tensa situação da vida contemporânea. Violência, depressão, ferimentos auto-infligidos, acidentes de tráfego e guerra representam um terço das 15 causas de morte ou discapacidade medidas pelo novo indicador.

Cabe aqui um comentário sobre fatores de risco, de grande importância sob o aspecto preventivo. Segundo o estudo já mencionado, quase 40% da carga de doença ocorrida em 1990, medida em Avads, é atribuível aos dez fatores de risco enumerados a seguir. Por ordem de importância, foram eles:

  1. Má nutrição

  2. Água, esgotos, higiene pessoal e doméstica deficiente

  3. Comportamento sexual inseguro

  4. Fumo

  5. Álcool

  6. Ocupação

  7. Hipertensão

  8. Inatividade física

  9. Drogas ilícitas

  10. Poluição do ar

Os dados e considerações apresentados acima têm reflexo importante sobre a dimensão educacional do setor saúde. Reconhece-se que os currículos médicos devem ter uma base epidemiológica sólida, enfatizando a patologia prevalente.

Seria preferível falar de base demográfico-epidemiológica. O aumento da longevidade é fenômeno mundial. As chamadas doenças da velhice - doenças vasculares cerebrais, cânceres, Alzheimer e outras - aumentam consideravelmente a carga da doença, tanto em países industrializados como naqueles em desenvolvimento, sob o ponto de vista humano, social e econômico.

Os currículos médicos devem dar atenção aos problemas que constituem a pesada carga da doença atual, mas precisam refletir também a preocupação com a prevenção da doença futura, já que o quadro nosológico vem-se modificando acentuadamente. Existem doenças resultantes de fatores de risco que vêm aumentando, como no caso do fumo entre adolescentes. Utilizando os dados existentes e gerando outros que forem necessários, será preciso empregar o novo indicador para compor um mapa nacional de saúde/doença, que sirva para monitorar avanços e retrocessos na luta contra a doença. Que sirva também para auxiliar os formuladores de políticas nacionais de saúde e proporcionar às faculdades da área da saúde os elementos necessários para transformações curriculares.

Dimensão estratégica

É uma decorrência da dimensão epidemiológica, que nos fornece elementos para analisar a importância relativa das doenças e causas externas na produção de discapacidades, e ainda, com relação a elas, o peso relativo dos fatores de risco em sua etiologia. Desde o início da década de 50, os cinco níveis de prevenção definidos por Leavell e Clark1515. LEAVELL, H.R. & CLARK, G.R. Preventive medicine for the doctor in his community: an epidemiologic approach. 3 ed. New York: McGraw-Hill, 1965. vêm servindo de guia para uma atuação preventiva nos serviços de saúde. Atua-se sempre no sentido de prevenir um mal maior, quando a própria doença não pode ser evitada.

Lembremos que os níveis de prevenção são os seguintes: 1 - Promoção da saúde; 2 - Proteção específica; 3 - Diagnóstico e tratamento precoce; 4 - Limitação do dano; 5 - Reabilitação. Hoje, com os novos conhecimentos aportados pela epidemiologia, a lista deve ser expandida, com o acréscimo de dois níveis de prevenção.

Um deles deve vir antes do primeiro, que é a promoção da saúde. Esta é geralmente tomada no nível individual, incluindo alimentação balanceada, exercício físico e controle de estresse, entre outras medidas recomendadas para a boa saúde. O nível a criar é o da prevenção primordial, tomada como a prevenção de fatores de risco, quase todos provenientes do ambiente e sob a responsabilidade de outros setores.

O outro nível deve vir depois do quinto, a reabilitação. É nível dos cuidados paliativos, que se tomam necessários quando a reabilitação não é mais possível, e o fim se aproxima. É uma etapa de grande importância social e humana e que deve ser considerada em todo plano estratégico.

A dimensão estratégica, além de sua base epidemiológica, apoia-se também na dimensão econômica e política, que examinaremos a seguir.

Dimensão econômica e política

De há muito se tem usado a economia como justificativa para obter recursos para programas especiais, aumentos de orçamentos. Dá-se um valor à vida humana com base em potencial de ganho que não é realizado por uma morte prematura. Calcula-se a perda econômica motivada pelo absenteísmo causado por determinada doença. Essa visão economicista não é, a meu ver, a que deve prevalecer. A área de economia da saúde é importante para melhor uso de recursos, para maior racionalidade do sistema e para que o poder político possa tomar melhores decisões. Intencionalmente, reuni nesta dimensão a economia e a política, aparecendo a consideração econômica em primeiro lugar. Ela informa o poder político, que, em última análise, é o que toma as decisões. A dimensão econômica que deve ter a chamada economia da saúde tem que estar orientada no sentindo do valor intrínseco da vida humana, e não do seu valor de uso como instrumento de trabalho.

São de importância nesta dimensão as questões ligadas à eficiência, custo-efetividade, avaliação de tecnologias, estabelecimento de prioridades, alocação de recursos, gestão orientada para qualidade e resultados. As linhas de pesquisa orientadas para a chamada medicina baseada em evidências (evidence-based medicine) proporcionariam também elementos úteis para a dimensão econômica.

Dimensão educacional

A educação é considerada essencial para qualquer progra­ma de governo que busque o desenvolvimento sócio-econômico sustentável. Vista por este prisma, ela é um setor autônomo e prioritário, para o qual o setor saúde contribui na chamada educação para a saúde, seja em educação básica, como em educação de adultos e educação popular de modo geral.

Na área de formação de recursos humanos para a saúde, seja no nível profissional ou no nível técnico e auxiliar, o setor saúde mantém estreitas relações com o setor educação. Virtualmente, o aparelho formador de profissionais de saúde pode ser visto como subsistema do sistema de saúde, sendo inúmeros os projetos em que há articulação intersetorial. No caso da formação de técnicos e auxiliares, a participação direta do setor saúde é marcante, inclusive na educação de nível superior para a saúde pública.

Quando falamos na dimensão educacional do setor saúde, pensamos principalmente na educação da população como um todo para a plena cidadania, incluindo a parcela de responsabilidade que cabe a cada indivíduo por sua própria saúde e por sua contribuição à saúde da família e da comunidade.

Dimensão psico-sócio-cultural

O conhecido esquema quadridimensional de Lalonde1616. LALONDE, M. A New perspective on the health of Canadians: a working document. Ottawa: Gov. do Canadá, 1974. inclui o estilo de vida ao lado da biologia humana, do ambiente e dos serviços de saúde como os quatro determinantes do nível de saúde do povo canadense. Com base no estudo que fundamentou o esquema, realizado nos anos 70, concluiu-se que a melhoria dos níveis de saúde no Canadá dependeria, daí por diante, muito mais de ações sobre estilo de vida, meio ambien­te e de novos conhecimentos sobre biologia humana, do que da melhoria e expansão da rede de hospitais e outros serviços de saúde. O estudo canadense pode ser considerado como uma aplicação do pensamento complexo ao setor saúde. O comportamento dos indivíduos em seu cotidiano, nos seus microambientes, é dependente ou influenciado em grande parte por fatores sociais, culturais e psicológicos, e representa uma dimensão fundamental para a análise setorial.

O comportamento é um resultado final das opções feitas pelo indivíduo exposto à pressão consumista, costumes enraizados na classe e segmento social a que pertence e à ânsia de pertencer e ser reconhecido por seu pequeno grupo, de esquina, de clube, de trabalho em horas pós-trabalho. O conceito de liberdade individual tem que ser relativizado numa cultura de massa, como aquela em que vivemos. Assim como enfatizamos o autocuidado em saúde, outras forças, às vezes mais poderosas, conduzem à autodestruição.

Dimensão transcendental

Por certo, esta dimensão não deveria faltar em nosso pensamento complexo. A religiosidade é parte da natureza humana, em que o sagrado e o profano, tão bem estudados por Mircea Eliade1717. ELIADE, M. Lo Sagrado y lo profano. 2 ed. Madrid: Guadarrama, 1973. 185 p., convivem, se complementam, fazem parte de nós mesmos, de nossa estrutura arquetípica. É tão variada a gama de medidas e práticas de saúde usadas pela população fora da racionalidade terapêutica da chamada medicina ocidental ou medicina oficial, que nos parece conveniente, dentro da complexidade, incluir nesta dimensão tanto as práticas de saúde com base em fé religiosa, como outras que nossa mentalidade cartesiana se recusa a aceitar, ou mesmo examinar, com a simples afirmação de não terem base científica. Isso numa época em que a própria verdade científica sofre questionamentos. A medicina baseada em evidências poderá vir a questionar um bom número de práticas aceitas pela medicina oficial. Em princípio, creio que esta dimensão constitui um campo minado, em que se deve transitar com extrema cautela. Devemos entrar nesse campo com a mente aberta e sem juízos de valor preconcebidos. Apesar da dificuldade, a dimensão transcendental não pode faltar em nossa agenda de trabalho.

Concluindo esta parte de análise multidimensional, reitero que tanto o esquema de Lalonde como o que acabo de apresentar sob a forma de uma roda de oito raios continuam sendo simplificações da realidade, não conseguindo abranger a totalidade das dimensões sob as quais o setor saúde poderia ser analisado. A noção fundamental é a da necessidade premente de passarmos de um pensamento unidimensional, reducionista, para um pensamento multidimensional, holista e não-excludente, em que tudo o que aprendemos até agora seja aproveitado em um amplo esquema integrador, ordenador. O arcabouço conceitual transdisciplinar deve servir de pano de fundo e ser constantemente iluminado pela pesquisa disciplinar, multidisciplinar e interdisciplinar.

ABORDAGEM INTEGRATIVA - AÇÃO SOBRE OS PROBLEMAS

As dimensões do setor saúde que estivemos analisando nos ajudam a compreender os problemas de saúde ao tornarem mais visível sua complexidade. Lançamos olhares diferentes sobre o setor, pudemos vê-lo sob novas perspectivas, porém isso não nos basta. O pensamento complexo deve conduzir-nos a melhores modos de atuação sobre a realidade no sentido de mudá-la para melhor, de transformá-la.

Comecemos por situar-nos no espaço-tempo. Com uma abordagem reducionista e sistêmica, usualmente descrevemos nosso sistema isolando-o dos demais. Queremos que sejam claros seus limites, seu contorno. O que está fora denominamos genericamente de contexto ou meio externo. Externo a quê? Externo ao constructo que tínhamos em nossa cabeça. Faço aqui uma autocrítica, pois foi essa a posição que tomei em meu livro Saúde e sistemas1818. CHAVES, M. Saúde e sistemas. 2. ed. Rio de Janeiro: FGV, 1978. 205 p., escrito há mais de duas décadas.

No pensamento complexo, o que fazemos é religar nosso sistema com os demais com os quais está em permanente interação. Nosso contexto é um agregado de sistemas complexos, conformando um sistema maior, um supra-sistema. Continuaremos a usar a palavra contexto, mas num sentido mais amplo, englobando nosso sistema particular no sistema total, num espaço-tempo definidos.

Para maior clareza, simplificaremos as dimensões espaciais em apenas três níveis, usando os prefixos micro, macro e mega. O nível micro é o nível local, em que cada um de nós vive, é o do nosso cotidiano, de nossa família, nossa casa, da água que bebemos, do ar que respiramos. O nível macro é o do nosso país, com nossas leis, linguagem e cultura. O nível mega é o do nosso conturbado mundo atual, com sua complexa rede de agências internacionais e que reproduz nossas organizações de nível micro e macro. Assim, por exemplo, as secretarias municipais de saúde, os ministérios de saúde e as organizações hemisférica (OPS) e mundial da saúde (OMS) ocupam espaços micro, macro e mega, numa linha governamental de organizações que tratam da saúde. Outras linhas semelhantes ocor­rem entre as ONGs, corporações profissionais, organizações sindicais, científicas, educacionais.

Entre os níveis micro-macro e macro-mega existem níveis intermediários. Um exemplo seria o nível estadual no Brasil entre o micro e o macro, e o nível da América Latina ou do Hemisfério, no caso do macro-mega.

Nossa perspectiva do aqui espacial deve ser completada com a do agora, temporal. Devemos ver sempre a dimensão espaço-tempo, conjugando as dimensões micro-macro-mega (perspectivas-visão de mundo) com as dimensões temporais da história, do hoje e dos planos e projeções (prospectiva - visão de futuro). Atuar no presente - aqui e agora - com visão de futuro é um lema para direcionar as abordagens integrativas, multidimensionais que intentamos conduzir. Perspectivas e prospectiva são, num certo sentido, complementares.

Para efeito da discussão de uma abordagem integrativa do setor saúde, em vez de níveis micro-macro-mega, tomemos micro-intermediário (estadual)-macro. Consideremos que nosso aqui, macro, é o Brasil, e o nosso agora é 1998. Um dos princípios em que se apoia o pensamento complexo é o princípio hologramático, segundo o qual o todo se repete quase inteiramente em suas partes. O microcosmo reproduz o macrocosmo. Uma minúscula semente encerra o projeto de uma imensa árvore. O indivíduo está potencialmente incluído no material genético de cada uma de suas células. Atribui-se a Espinosa a expressão: o oceano está contido numa gota d'água.

Partindo da ideia de holograma, procuremos agora uma forma de representar no plano o que seria uma figura tridimensional com os três níveis de um país como o Brasil - local, estadual, nacional. Pensemos numa figura geométrica, o círculo, que signifique o nível macro, coloquemos em seu centro o indivíduo e construamos a partir daí o nosso esquema (Figura 2). A vantagem de uma figura geométrica simples para a representação do pensamento complexo é permitir que o mesmo seja verbalizado, explicado, discutido e possa servir de base para ações transformadoras. A representação passa a ter maior peso, maior significado, quando é compartilhada por um número maior de pessoas.

Figura 2:
Visão do Setor Saúde sob o prisma da Complexidade

Agora que discutimos as dimensões principais do setor saúde e reduzimos seu número a oito, pensemos num número limitado de sistemas complexos que atuam sobre qualquer das dimensões do setor saúde e que, por conseguinte, têm influência maior ou menor sobre o setor. Listei 12 sistemas complexos do nível macro e os distribuí regularmente ao redor do círculo, tomando como lógica inicial o conhecido esquema de Lalonde1616. LALONDE, M. A New perspective on the health of Canadians: a working document. Ottawa: Gov. do Canadá, 1974..

Examinemos a Figura 2. No eixo vertical estão o ambiente e o sistema familiar. Considero este sistema o equivalente da biologia humana, no esquema de Lalonde, pois nele se cruzam as influências da genética (nature) e do ambiente externo nos pri­meiros anos de vida (nurture). No eixo horizontal estão as outras duas dimensões de Lalonde: o sistema de serviços de saúde e o estilo de vida. Cultura, etnia, classe social, situação econô­mica, bairro, grupo de convivência (amigos, vizinhos, companheiros de clube) influenciam o estilo de vida de cada um de nós mais do que supomos.

Tomei o esquema de Lalonde como ponto de partida por ser bem conhecido e acrescentei oito sistemas complexos nos quadrantes em que o círculo foi dividido.

As quatro dimensões da parte inferior incorporam os sistemas educacional, econômico (incluindo trabalho, emprego, seguridade), lazer e mídia, e agricultura/alimentação. Na parte superior da figura, aparecem os sistemas dos três poderes do Estado e o sistema transcendental, incluindo religiosidade, misticismo, crenças pessoais, ética e transcendência.

Obviamente, no círculo não há em cima nem embaixo. Mas a representação geométrica, em forma de mandala, com o indivíduo no centro (microcosmo), facilita a evocação do sistema total (macrocosmo) como constructo inicial. Unamos agora todos os pontos entre si e apaguemos o círculo. Surgem três figuras geométricas concêntricas. Uma delas, o polígono externo (dodecágono), representa o nível macro para nós, e as outras duas o nível intermediário e o nível micro, assinalados na figura com linhas cheias. É como se tivéssemos colapsado uma figura tridimensional, um cone invertido, em um plano único. O macro reproduz-se no intermediário, e este no micro.

Em termos de complexidade, ela cresce do micro para o macro, na mesma proporção em que se diversificam os micros num mesmo país. Temos cinco macrorregiões, 26 estados e mais de cinco mil municípios. Em nível local, não podemos trabalhar com médias; temos que trabalhar com contextos específicos, fazendo sempre referência àquelas dimensões básicas do setor saúde no mundo real daquele nível micro em que estamos atuando. O mundo real do nível micro se transforma em virtual tão logo começamos a trabalhar com dados, informações, no nível intermediário. Quanto mais esses dados e informações contiverem descrições multidimensionais fundamentais, mais precisão terá a imagem virtual que construiremos e que permitirá decisões e ações mais adequadas.

Estruturas matriciais

O exame atento das dimensões do setor saúde (Figura 1), da lista das principais causas de discapacidade e dos grupos afins de sistemas complexos com atuação ou influência sobre o setor saúde revela a extrema complexidade do setor. Mostra a necessidade do pensamento complexo. Precisamos adaptar nossa estrutura mental para, em vez de nos intimidarmos pela complexidade, usar o pensamento complexo em benefício das ações transformadoras do setor saúde.

Estaríamos impotentes se estivéssemos sós. Mas, trabalhando em equipes interdisciplinares e transdisciplinares com base em princípios comuns e com um esquema integrador consensualmente desenvolvido, aceito, internalizado, é possível progredir nos aspectos tanto epistemológicos como prag­máticos do setor saúde.

Não pretendo avançar, a não ser minimamente, na proposta de um caminho a seguir. Os avanços da epidemiologia permitem-nos analisar em conjunto problemas de saúde, dados de prioridade relativa de doenças em termos de discapacidade (Avads) e dados de pesos relativos de fatores de risco oriundos de análises multi variadas e de análise dos sistemas ou condições sociais (apinhamento, desemprego, etc.) produtores dos riscos. Tais análises permitiriam bem caracterizar os sistemas envolvidos e também as disciplinas do mundo acadêmico cuja contribuição é necessária.

A título de exemplo, preparamos o Quadro 1, representativo de uma matriz problemas x sistemas de tipo nosológico que poderia ser desenvolvida para o nível macro. Grupos universitários, instituições de serviço e de pesquisa, órgãos de governo e ONGs, trabalhando sob a forma de consórcios, poderiam tanto ampliar como revisar a lista de problemas e a de sistemas. Cada instituição de um consórcio escolheria suas linhas de trabalho. As linhas incluiriam não só problemas de doenças e injúrias (traumatismos produzidos em geral por forças externas), como também problemas de fases do ciclo vital, de gestão moderna do sistema de saúde ou problemas importantes oriundos de outras dimensões do setor. Como pano de fundo, teríamos sempre a complexidade no mundo real e a transdisciplinaridade no mundo acadêmico.

Quadro 1
Matriz problemas x sistemas*

A matriz problemas x sistemas seria complementada com uma matriz problemas x disciplinas, que seria desenvolvida pelos próprios pesquisadores envolvidos com um dado problema.

Pensando no médio e longo prazos, podemos antever um uso das matrizes, ao se analisarem as colunas, quando elas tiverem um número razoável de linhas, para desenvolver um verdadeiro contencioso daquilo que cada sistema deveria estar fazendo e não está. Seria como uma cobrança social de um sistema em falha. A análise de coluna seria uma representação da dívida social do sistema faltoso. A sociedade como um todo e não só o setor saúde seriam os cobradores da dívida. Ao não agirmos assim, acontece o de sempre. O setor saúde é a priori acusado de culpas que, muitas vezes, não tem e que resultam de falhas de outros sistemas e setores. Com a visão da complexidade, percebe-se que todos os setores são interdependentes. Planos e programas de saúde, para serem abrangentes, têm necessariamente que ser transetoriais e, por conseguinte, devem ser parte de planos de Governo com o apoio da sociedade civil.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este ensaio terminou esboçando uma proposta e aceitando o desafio da complexidade. Em trabalho anterior1919. CHAVES, M. Educação das profissões da saúde: perspectivas para o século XXI. Rev. Bras. Educ. Méd., v. 20, n. 1, p. 21-27, 1996., caracterizei o momento atual como de transição paradigmática. O paradigma flexneriano que guiou a educação médica no presente século já não atende às necessidades da sociedade contemporânea. Já não falamos de ensino médico isoladamente e sim em ensino das profissões da saúde. Já não falamos em medicina preventiva e medicina curativa e sim em medicina integral. Já não falamos em atenção primária de saúde isoladamente e sim em sistemas hierarquizados e regionalizados de saúde.

As divisões ou mudanças de terminologia que fomos progressivamente - fazendo nos levam agora a alguns questionamentos, se tivermos os olhos postos no setor saúde em sua relação com os outros setores. Será que necessitamos de tantas divisões na medicina (preventiva, comunitária, social) e na saúde (individual, pública, coletiva)? Será que, em vez de falarmos na nova saúde pública, num novo paradigma para o ensino médico, num outro para o sistema de atenção à saúde, não devemos falar de um só paradigma aglutinador que nos permita unir forças dispersas, juntar, religar partes que nunca deveriam ter sido separadas, porém mantendo sua identidade própria? Minha resposta está implícita nas perguntas formuladas.

No trabalho já citado1919. CHAVES, M. Educação das profissões da saúde: perspectivas para o século XXI. Rev. Bras. Educ. Méd., v. 20, n. 1, p. 21-27, 1996., tive ocasião de discutir necessidades de saúde da sociedade contemporânea não atendidas pelo paradigma atual e o período de transição paradigmática em que nos encontramos.

Não sei se para nós é necessário ou fundamental uma denominação para o nosso paradigma, já que o essencial é começar a construí-lo. Sabemos qual é seu oposto: é o paradigma da simplificação (da disjunção e redução), é o paradigma newtoniano-cartesiano, que na educação médica tomou o nome de paradigma flexneriano. Sugiro que adotemos provisoriamente a denominação paradigma da complexidade. É o paradigma emergente2020. MIGUELEZ, M. M. El Paradigma emergente: hacia una nueva teoria de la racionalidad científica. Barcelona: Gedisa, 1993., que só tomará sua forma final no próximo século. Morin2121. MORIN, E. Op.cit. n.l, p.103. diz com razão que, no fundo, ele deverá ser o "produto de todo um desenvolvimento cultural, histórico e civilizatório. O paradigma da complexidade virá do conjunto de novas concepções, de novas visões, de novas descobertas, de novas reflexões, que vão pôr-se de acordo e reunir-se".

O importante não são as palavras e sim as ações. Necessitamos de alianças, coalizões, consórcios, redes, que nos permitam trabalhar juntos, sem barreiras entre disciplinas, departamentos, instituições, serviços, comunidades. Nas escolas das profissões da saúde, falamos da necessidade de articulações básico-clínicas; nas escolas de saúde pública, falamos de articulações epidemiológico-gerenciais. As dimensões ecológicas, sócio-culturais e político-econômicas já estão sendo consideradas em muitas instituições. Pensando em termos das matrizes problemas x sistemas e problemas x disciplinas, como esquema integrador, ordenador, podemos tomar convergentes esforços hoje dispersos no setor saúde. Aumentando a cobertura de áreas-problema que estão necessitando pesquisa e desenvolvimento, e acelerando o processo de aplicação ao setor saúde das novas visões que nos aporta o pensamento complexo, estaremos, ao mesmo tempo, construindo juntos um novo modelo para o setor saúde em nosso país.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Set 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 1998
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