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A TEORIA DE CURRÍCULO E A DISCUSSÃO DO CURRÍCULO MÉDICO

Resumo:

Aborda-se a Teoria de Currículo e discute-se a genealogia do conceito de currículo e algumas abordagens contemporâneas no contexto brasileiro. Avalia-se a contribuição da teorização crítica do currículo. Trata-se, ainda, do modelo de currículo médico atual das críticas que lhe têm sido feitas e de propostas de reformulação curricular atuais, na perspectiva da melhoria e de adequação da formação esse profissional.

Palavras-chave:
Educação médica; Teoria de currículo; Currículo médico; Reformulação do currículo médico

Summary:

In this article, we deal with the curriculum theory where we discuss the genealogy of the concept of curriculum and some contemporary approaches in the Brazilian context. We evaluate the contributions of critical theory about the curriculum in order to face medical education issues concerned to the curriculum. We also deal with the actual medical curriculum, as well as the criticism about it, and current proposals of curriculum reformulation, aiming a better education of medical students.

Keywords:
Medical education; Curriculum theory; Medical curriculum; Medical curriculum reformulation

INTRODUÇÃO

O campo de discussão sobre currículo escolar ganha espaço na literatura a partir das conceitualizações da década de 40. O termo currículo, cuja utilização havia estado restrita a certos âmbitos acadêmicos - em particular, à produção dos EUA -, começou a invadir a literatura pedagógica, dando apoio às conceituações que buscavam substituir a velha expres­são "planos de estudo" por outra. Esta, por sua vez, abarcava não somente os documentos oficiais em que se prescrevia o que se devia ensinar, como também o conjunto de processos determinantes do que efetivamente se ensinava.

A multiplicação e a diversificação das temáticas que se foram localizando à sombra do conceito curriculum fazem com que o mesmo resulte, por excessivo, insuficiente. Ao a barçar tudo, ou quase tudo, perde sua capacidade discriminadora e acaba por cair cm definições de alcance extremamente restrito11. GARCIA, F. & MERCADO, R. El curriculum. In: Didac.1 (4):9-16., 1984..

Com fins de ordenação e com base nos autores pesquisados, podemos dizer que as conceituações acerco do currículo cobrem um arco definido de uma polarização: currículo como texto da grade curricular e currículo como todo educativo.

No primeiro caso, o conceito de currículo se aproxima do de "documento escrito". Esta analogia está presente não só em parte da produção escrita, como também no uso coloquial do termo no âmbito educativo: quando os professores, por exemplo, falam de currículo, se referem aos documentos com base nos quais definem seus programas anuais (programa por série a partir da grade curricular).

No segundo caso, as primeiras distinções entre o conceito de currículo como documento e a visão interativa do currículo, pronunciadas em 1968 por via do conceito de Currículo Oculto22. JACKSON, P. Life in Classrooms. New York: Holl, Rinehart & Winston., 1968., abriram espaço para um aprofundamento de currículo.

Essas maneiras de entender currículo são apenas duas entre muitas que podem entrar no amplo arco cujos extremos representam. Entre estes polos, é possível localizar numerosas e heterogêneas conceituações. Algumas integram o caráter textual/prescritivo do currículo com todas as transformações que resultam de sua existência como objeto social.

Porém, mais do que assinalar as inquietudes que estas questões geram nos teóricos do campo, interessa-nos destacar as consequências políticas associadas a identificar um currículo com um dos dois polos identificados.

Se o currículo é somente um documento escrito, a responsabilidade de quem desenha uma política curricular se circunscreve a modificar os textos escritos ou a reorganizar cargas horárias. Pode ocorrer que se acredite ser isto suficiente para definir o conteúdo da aprendizagem escolar. Nesse caso, se desconhecerá o impacto de outros fatores que, além do documento escrito, contribuem, em parte, para determinar aquele conteúdo. Pode ocorrer que se suspeite do impacto destes outros fatores, mas que se entenda que política curricular só pode incidir sobre os textos. Em ambos os casos, este modo de entender o currículo limita em muito as possibilidades operativas das políticas curriculares.

Se, por outro lado, currículo é tudo que ocorre na escola (bem como na universidade ou no mundo, de forma geral), a tarefo que se apresenta a quem tem a seu cargo o desenho de políticas curriculares é ou multiplicar ao infinito as prescrições sobre as escolas, a fim de controlar o maior número de variáveis possível -alternativa que, por definição, está destinada a fracassar -, ou então abandonar toda pretensão de eficácia, o que conduz à perigosa conclusão de que "dá no mesmo mudar um currículo ou deixá-lo igual", "dá no mesmo um currículo ou outro".

Mas, no processo de construção de hipóteses, não desejamos identificar o currículo nem somente com os textos escritos, nem com o todo educativo.

Assim, ê complexa a tarefa de analisar o campo do currículo. No decorrer deste artigo, pretendemos propor um conjunto de hipóteses acerca do campo e de seu conceito, que nos permitam introduzir uma ordem capaz de servir de ferramenta analítica para a compreensão dos currículos de Medicina e para definir os limites de seu impacto.

NOTAS SOBRE A GENEALOGIA DO CONCEITO DE CURRÍCULO

Propomos aqui um conjunto de notas destinadas a historiar este conceito de currículo enquanto texto (do desenho curricular). Traçaremos, neste artigo, alguns momentos histó­ricos, assinalando algumas ocorrências que entendemos como importantes para o modelo de abordagem proposto.

Segundo Angel Díaz Barriga, podemos falar de currículo somente a partir das conotações específicas que o termo assume na produção americana (EUA) a partir da década de 20: "O conceito currículo é criado no contexto da pedagogia da sociedade industrial. [...] Mesmo que na década de 1920 já circulassem ensaios que orientavam a problemática curricular, só depois da Segunda Guerra Mundial é que aparecem as primeiras formulações com um maior nível de articulação"33. DÍAZ BARRIGA, A. El currículo escolar. Surgimiento y perspectivas. Buenos Aires: REI., 1992.. Entre os principais textos desse período se encontram os "Princípios básicos de currículo e ensino" de Ralph W. Tyler (1949)44. TYLER, R. Princípios básicos de currículo e ensino. 4a. ed., Rio de Janeiro: Globo, 1977. e "Ela­boração do currículo" de Taba (1962)55. TABA, H. Elaboración del Currículo: Teoría y Prática. Buenos Aires: Troquei, 1976 (1962)..

Segundo Hamilton, devemos ir mais atrás, mais precisamente a Glasgow, Escócia, em 1633: "Um ponto de partida adequado seria o Oxford English Dictionary, que localiza a primeira fonte do currículo nos registros da Universidade de Glasgow, de 1633"66. HAMILTON, D. Orígene de los términos "clase" y "curriculum". In: Revista de Educación, "Historia dei curriculum" (1) . Madrid: Ministerio de Educación y Ciencia, 295:187-205, 1991..

Para Kemmis, a origem do currículo se remete a Platão e Aristóteles: "O termo currículo tem uma larga história. Foi utilizado por Platão e Aristóteles para descrever os temas en­sinados durante o período clássico da civilização grega"77. KEMMTS, S. El curriculum: más allá de la teoría de la reprodución. Madrid: Morata., 1988..

Três autores, três origens. Não se traia de estabelecer quem acerta com verdade histórica. Parece-nos que ir ao passado em busca da origem nos leva a encontrar essa origem no ponto em que o currículo se parece com o que hoje acreditamos que é, ou deveria ser.

Se o currículo é a ferramenta pedagógica da massificação da sociedade industrial, encontraremos sua origem nos Estados Unidos, no começo do século, como a encontra Díaz Barriga; se é um plano estruturado de estudos, podemos encontra-lo pela primeira vez em alguma universidade europeia, como propõe Hamilton, ou talvez no ratio studiorum dos jesuítas1 1 studiorum, no fim do século 16, regulamentou todo o sistema educacional jesuítico: organização em classes, horários, programas e disciplinas, inimos como qualquer indicação do que se ensina, podemos chegar, como Kemmis, a Platão e talvez mais atrás.

Temos, então: currículo como indicação do que se ensina, currículo como plano estruturado de estudos, currículo como ferramenta pedagógica da sociedade industrial. Não discutiremos a legitimidade de cada um destes conceitos; são sentidos historicamente construídos do currículo. Tentaremos compreender como este termo tem recebido diferentes significados com o passar dos anos; como se ampliou seu alcance; como seu sentido foi transformado.

Assinalaremos, a seguir, os pontos de maior importância, com base no destaque das instâncias de emergência de distintos sentidos do conceito88. FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Craal, 1989.. Interessa-nos destacar o aparecimento do conceito de currículo em função de sua ligação com um sentido específico: o das prescrições generalizadas acerca do ensino. Destacar os sistemas que se propõe prescrever com o fim de regular, normalizar, homogeneizar o que se ensina.

Neste primeiro sentido, é possível focalizar seu conceito em diferentes momentos. São igualmente representativos o trivium e o quadrivium2 2 Organização curricular das tendências eclesiásticas e simbólicas da idade Média, que limitavam as ciências a sete, onde no quadrivium se incluíam quatro disciplinas: aritmética, geometria, astronomia e música, e no trivium: gramática, retórica e dialética. , os planos de estudo das universidades europeias e a ratio studiorum da Companhia de Jesus. Interessa-nos destacar o ratio studiorum porque, ao caráter prescritivo que comparte com o trivium e o quadrivium e com o planos universitários, se soma o fato de contruir uma prescrição organicamente estabelecida para abarca um sistema de instituições bastante complexo e em expansão: os dos colégios jesuíta em todo o Ocidente. Aprovada em 1599, a ratio studiorum prescrevia não somente conteúdos de ensino, mas também “diretrizes específicas para tomar decisões em numerosos assuntos da vida escolar”99. BOWEN, J. Historia de la educación occidental. 2a.ed., Barcelona: Herder, 1986..

No mesmo sentido, outro ponto de emergência são os programas educativos da Revolução Francesa. Estes programas, além de seus fatos legislativos99. BOWEN, J. Historia de la educación occidental. 2a.ed., Barcelona: Herder, 1986., têm por objetivo constituir planos de alcance nacional, destinados a prescrever, desde o Estado, a orientação geral, a organização e os conteúdos do ensino do sistema educativo nacional que começa a se construir. Seu aparecimento sob forma legal é um dado importante.

Uma mudança significativa se produz quando se publicam, em 1949, os “Princípios básicos de currículo e ensino” de Ralph W. Tyler. Trata-se da primeira obra sobre desenho curricular com um impacto de longa duração no campo.

Em termos da programação curricular, a referência à obra de Tyler não foi substituída. Coll (1989), por exemplo, retoma as fontes de Tyler que propões para a determinação dos objetivos educacionais e acrescenta outras.

Os “Princípios básicos de um currículo e ensino” de Tyler abrem a perspectiva tecnológica do desenho curricular e “[...]proporciona um guia de como construir um currículo com as limitações de um sistema educativo cujo caráter e estrutura já vêm estabelecidos pelo estado”77. KEMMTS, S. El curriculum: más allá de la teoría de la reprodución. Madrid: Morata., 1988..

Desde estão, a perspectiva tecnológica do currículo foi atraindo continuadores. Entre os principais, interessa destacas a publicação, em 1956, da “Taxonomy of educational objectives, handbook I: cognitive domain”, editado por Benjamin Bloom - “taxonomia de Bloom”1212. BLOOM, B. y colaboradores. Taxonomia de los objetivos de la educación. La clasificación de las metas educacionales. Buenos Aires: El Ateneo, 1981., bastante conhecida na área educacional.

Em 1968 se produz uma ruptura quanto ao significado de currículo, que, desde então, será bastante utilizado na literatura de currículo: Phillip Jackson publica uma obra de grande impacto, intitulada “Life in classroom”. Nesta surge a expressão “currículo oculto” e, com ela, a consideração dos profissionais de educação de que certos fatores não prescritos no currículo “se combinam para dar um sabor específico à vida da sala-de-aula [...] As demandas criadas por estas características da vida na sala-de-aula podem constrastar com as demandas acadêmicas ‘o currículo oficial’, por assim dizer) [...]”22. JACKSON, P. Life in Classrooms. New York: Holl, Rinehart & Winston., 1968.. Este texto abre uma linha de trabalho - a se diversificar com o tempo - centrada no estudo dos fatores “não prescritos” que incidem na eficácia do “prescrito”.

Com efeito, o conceito de “currículo oculto”, aparecido quase como um conceito análogo destinado a mostrar a eficácia da formativa dos elementos imprevistos do cotidiano escolar, fundou conceitualmente a possibilidade de começar a ir mais além do currículo formal1313. TERIGI, F. Diseño, desarrollo y evaluación del curriculum. In: Programa de Transformación de la Formación Docente. Ministerio de Cultura y Educación de la República Argentina. Buenos Aires, 1993.. Esta possibilidade foi seguida com êxito em várias direções.

Antes de enumerá-las, porém, esclarecemos que a impor­tância do conceito de currículo oculto, para a análise do currículo médico, se justifica por reforçar a discussão relativa à impossibilidade de considerar o documento curricular enquanto único representante das intenções do que será efetivamente trabalhado no curso. As características da vida na sala de aula e/ou campo de prática estarão influindo e modificando o que tenha sido previsto no documento curricular. Este documento pode ser visto como uma carta de intenções.

A seguir, passamos a enumerar experiências e autores que reforçam a idéia de currículo oculto e que vão ainda mais além.

Apple & King, por exemplo1414. APPLE, M. W. & KING, N. Quê enseñan las escuelas? In: La Enseñanza: su teoria y su prática (J. Gimeno Sacristán & A. Pérez Gómez, orgs), Madrid: Ed. Akal, 1983., por meio de suas análises da incidência da organização das tarefas dos alunos nos jardins de infância na conformação de hábitos funcionais ao trabalho industrial, instauram a questão do aporte do currículo à reprodução da força de trabalho nas sociedades industriais, na linha das chamadas teorias da reprodução (Baudelot & Establet1515. BAUDELOT, C & ESTABLET, R. L'écolecapitalisteen France. Paris: Librairie François Maspero, 1971.; Bourdieu & Passeron1616. BOURDIEU, P & PASSERON,J. C. La reproduction: éléments pour une théorie du systeme d'enseignement. Paris: Les Editions de Minuit, 1970.; Bowels & Gintis1717. BOWLES, S. & GINTIS, H. Schooling in Capitalist America. New York: Basic Books, 1976.).

Outros trabalhos (Bemstein1818. BERNSTEIN, B. Clases, códigos y control. Madrid: Akal,1988., por exemplo) enfatizam a linha da reprodução cultural.

Recentemente, têm sido incorporados trabalhos sobre o papel da escola e, bem concretamente, sobre a organização do currículo escolar, na socialização política (Morgenstern1919. MORGENSTEIN, S. La socialización política del joven: cómo se gesta un pesota? In: El campo del curriculum. Antología. Vol. 1 (A. De Alba; A. Díaz Barriga & E. González Gaudiano), pp.383-390, México: Centro de Estudios sobre la Universidad Nacional Autónoma de México, 1991., por exemplo).

Dentro da linl1a da teoria crítica, podemos destacar Henry Giroux, que publica "Theory and resistance in education"2020. CIROUX, H. Teoria e Resistência em Educação: para além das teorias da reprodução. Petrópolis: Vozes, 1983.. Neste livro, Giroux propõe uma visão radical de educação inspirada na Escola de Frankfurt, integrando e superando as posições da Teoria da Reprodução e incorporando, ainda, idéias de Gramsci, em especial o conceito de resistência. O aspecto mais marcante do trabalho de Giroux parece ser o tratamento dialético dos dualismos entre ação humana e estrutura, conteúdo e experiência, dominação e resistência. A escola é analisada como um local de dominação e reprodução, mas que, ao mesmo tempo, é um espaço de resistência para as classes oprimidas2020. CIROUX, H. Teoria e Resistência em Educação: para além das teorias da reprodução. Petrópolis: Vozes, 1983..

Devemos também nos referir a outra série de trabalhos que se situam na análise da organização institucional de ensino, em particular toda a linha da investigação etnográfica acerca da vida cotidiana na escola (por exemplo, Rockwell2121. ROCKWELL, E. De huellas, bardas y veredas: una historia cotidiana en la escuela. In: La escuela, lugar del trabajo docente. Descripciones y debates (E. Rockwell & R. Mercado), 2a. ed., pp. 9-33, México: DIE/Cinvestav /IPN, 1989.).

No mesmo ano - 1968 - em que Jackson publica "Life classroom", aparece na Inglaterra a primeira publicação periódica especializada: o Journal of Curriculum Studies. A esta seguiram-se outras, que se converteram em âmbitos de debate acerca do campo e contribuíram para aumentar o número de artigos de pesquisa, análises de experiências, avaliações de currículos, etc. Entre eles, o trabalho de Schwab (1983), em combinação com a obra de Stenhouse2222. STENHOUSE, L. Investigación y desarrollo del curriculum. Madrid: Morata , 1991., volta a atenção sobre o currículo como processo e sobre os processos de desenvolvimento curricular1313. TERIGI, F. Diseño, desarrollo y evaluación del curriculum. In: Programa de Transformación de la Formación Docente. Ministerio de Cultura y Educación de la República Argentina. Buenos Aires, 1993..

Após este breve recorte, na tentativa de estabelecer os sentidos historicamente construídos do termo currículo, podemos reconhecer a multiplicação e a dispersão temática do campo. Este aparece como um grande significante, que tem recebido, ao longo de sua história, significações diversas, às vezes superpostas, sempre em transformação.

Nosso trabalho consiste em propor um conjunto de hipóteses sobre o tema e seu campo de estudo que nos sirvam como ferramentas analíticas para compreender tanto este complexo objeto em que se transformou o currículo, ,quanto a produção que se tem reunido a seu respeito.

ABORDAGENS CONTEMPORÂNEAS DO CURRÍCULO E O CONTEXTO BRASILEIRO

Segundo Tomaz Tadeu da Silva, há uma grande ausência de análises e estudos dos currículos e das pedagogias universitárias na literatura educacional nacional. Apesar de a perspectiva crítica ter sido dominante na área da educação nos últimos anos, esta crítica não se tem voltado para os meios e recursos pedagógicos da universidade.

Silva considera como exceção, no âmbito internacional, Pierre Bourdieu e, no nacional, Thiollent2323. THIOLLENT, M. Aspectos sociais da didática universitária. Educação & Sociedade, 4, 1979., de forma limitada. Comenta, ainda, que "nosso conhecimento sociológico (e mesmo apenas pedagógico) da educação universitária é mínimo ou inexistente. [...] Em termos de universidade, a sala de aula continua sendo uma escura e invisível caixa-preta"2424. SILVA, T. T. O discurso pedagógico da Sociologia da Educação: Crítica da crítica? In: Conhecimento educacional e formação do professor (A. P. B. Moreira, org.), pp.85-100, Campinas: Ed. Papirus, 1994..

As abordagens tradicionais de questões referentes ao currículo dedicam atenção central aos processos de planejamento, implantação e avaliação do mesmo, ou seja, preocupam-se especialmente com os elementos ditos substantivos do currículo: objetivos, conteúdos, métodos e procedimentos de avaliação. Mesmo que estes elementos possam ser substrato para análises mais aprofundadas, tradicionalmente os estudos tendem a privilegiar a instrumentalização que gere eficácia e eficiência nas decisões curriculares. Mas esta perspectiva vem sendo sucessivamente apontada como insuficiente, já que apresenta descontextualização do processo, e os fatores sociais, econômicos, culturais, ideológicos e políticos são postos em segundo plano. Isto é, faz-se uma crítica a tentativas de “objetivizar” o currículo, considerando-o neutro.

No início dos anos 70, um grupo de especialistas em currículo reuniu-se nos EUA, onde buscou uma reconceituação do campo. Esses diversos teóricos tinham cm comum a rejeição à postura instrumental, que até então dominava a teoria e a pesquisa sobre currículo. Passavam a reconhecer, portanto, o caráter histórico, político e ideológico da prática pedagógica.

Nesta década, tanto na Inglaterra como nos EUA, as análises de currículo adquiriram um caráter sociológico, sendo que, na Inglaterra, um grupo de sociólogos, liderado por Michael Young2525. YOUNG, M. F. D. Knowledge and control: New directions for the Sociology of Education. London: Collier - Macmillan, 1971., propôs novas direções para a sociologia da educação, dando origem à Nova Sociologia da Educação. O principal foco dessa abordagem passa a ser o currículo escolar, que visa tornar a sociologia da educação uma sociologia do conhecimento escolar, cujos tópicos centrais se relacionam à estrutura de poder da sociedade.

Os estudos desenvolvidos nos EUA passaram a se concentrar nas relações entre: "(...) currículo e ideologia, currículo e classe social, currículo e poder, currículo e Estado, currículo e reprodução social, currículo e cultura, currículo e subjetividade, etc.; investigando também as interações na sala de aula, a rotulação de alunos, o currículo oculto e a resistência de estudantes e professores ao processo pedagógico"2626. MOREIRA, A. B.(org.). Conhecimento educacional e for mação do professor. Campinas: Papirus..

Preocupados em mostrar que o conhecimento adquirido na escola não é neutro nem objetivo, mas selecionado, orde­nado e estruturado de modo particular, autores como Michael Apple2727. APPLE, M.W., 1979. Ideologia e Currículo. São Paulo: Brasiliense, 1994. e Henry Giroux2020. CIROUX, H. Teoria e Resistência em Educação: para além das teorias da reprodução. Petrópolis: Vozes, 1983. centram a atenção no conhecimento escolar. Para esses autores, o conhecimento escolar constitui-se nas ênfases e estruturas particulares de uma lógica subjacente, nem sempre explicitada.

O pensamento curricular brasileiro atual também se apresenta influenciado por essas novas perspectivas. A partir do final da década de 70 e durante grande parte dos anos 80, a tendência curricular crítica no Brasil refletiu as influências da Pedagogia crítico-social dos conteúdos e da educação popular; da sociologia do currículo (britânica e americana), principalmente dos textos de Michael Apple, Henry Giroux e, mais recentemente, de Michael Young. E o conhecimento escolar, matéria-prima do currículo, continua sendo importante centro dos estudos, como o foi durante a década anterior, revelando-se tema importante nos trabalhos apresentados nos semi­nários e congressos de educação2626. MOREIRA, A. B.(org.). Conhecimento educacional e for mação do professor. Campinas: Papirus..

Nessa perspectiva, a área de currículo deixa de ser vista apenas como meramente técnica e voltada para as questões de procedimentos, técnicas e métodos, e passa a incluir uma concepção crítica, guiada por questões sociológicas, políticas e epistemológicas. As questões do como (metodológicas) passam a ser importantes apenas na medida em que estejam relacionadas ao porquê das formas de organização do conhecimento escolar. O currículo, portanto, é considerado um artefato social e cultural. Isto é, o currículo se localiza no âmbito das determinações sociais, históricas e de seu contexto. Não é um elemento transcendente e atemporal, mas tem uma história, vinculada a formas especificas de organização da sociedade e da educação. O currículo está implicado em relações de poder; transmite visões sociais particulares e interessadas; produz identidades individuais e sociais específicas2828. MOREIRA, A. F. B. & SILVA, T. T. Sociologia e teoria crítica do currículo: uma introdução. In: Currículo, cultura e sociedade (A. F. B. Moreira & T. T. Silva, Tomaz, orgs.), pp. 7-39, São Paulo: Ed. Cortez, 1994..

Por meio da história da teoria crítica e da sociologia do currículo se depreende que o conhecimento corporificado como currículo educacional não pode ser mais analisado fora de sua constituição social e histórica. A teoria curricular não pode mais ater-se à organização do conhecimento escolar, encarando de modo ingênuo o conhecimento adquirido. O currículo existente passa a ser visto não apenas como implicado na produção de relações assimétricas de poder no interior da escola e da sociedade, mas também como histórica e socialmente contingente. "O currículo é uma área contestada, é uma arena política"2828. MOREIRA, A. F. B. & SILVA, T. T. Sociologia e teoria crítica do currículo: uma introdução. In: Currículo, cultura e sociedade (A. F. B. Moreira & T. T. Silva, Tomaz, orgs.), pp. 7-39, São Paulo: Ed. Cortez, 1994..

Em contraposição ao pensamento da teoria educacional tradicional sobre a relação entre currículo e cultura, a tradição crítica vê o currículo como terreno de produção e criação simbólica. A educação e o currículo, consequentemente, não agem apenas como transmissores de uma cultura, mas são partes integrantes e ativas do processo de produção e criação de sentidos, significações e sujeitos. Isto quer dizer que o resultado da transmissão dos conhecimentos curriculares, sendo estes da cultura oficial ou não, nunca será a rigor o previamente intencionado, pois a transmissão é feita num contexto cultural de significação ativa do conteúdo transmitido/recebido." A cultura e o cultural, nesse sentido, não estão tonto naquilo que se transmite quanto naquilo que se foz com o que se transmite"2828. MOREIRA, A. F. B. & SILVA, T. T. Sociologia e teoria crítica do currículo: uma introdução. In: Currículo, cultura e sociedade (A. F. B. Moreira & T. T. Silva, Tomaz, orgs.), pp. 7-39, São Paulo: Ed. Cortez, 1994..

Nessa perspectiva, a idéia de cultura é inseparável da de grupo e classes sociais. Numa sociedade estratificada, a cultura é um dos terrenos onde se dá a luta pela manutenção ou superação das divisões sociais. O currículo educacional, por sua vez, é um terreno privilegiado da manifestação desse conflito. O currículo, portanto, não é visto, como na visão tradicional, como um local de transmissão de uma cultura incontestada e unitária, mas como um campo em que se tentará impor tanto a definição particular da cultura da classe ou grupo dominante quanto o conteúdo dessa cultura2828. MOREIRA, A. F. B. & SILVA, T. T. Sociologia e teoria crítica do currículo: uma introdução. In: Currículo, cultura e sociedade (A. F. B. Moreira & T. T. Silva, Tomaz, orgs.), pp. 7-39, São Paulo: Ed. Cortez, 1994.. O currículo, como um elemento central estruturante da instituição educativa, ajuda a construir uma percepção do mundo social ligada ao exercício da função de legitimação da ordem social.

Por este motivo, é importante não negligenciar as relações de poder estabelecidas na rotina e nos rituais cotidianos das instituições. O poder não se localiza somente nas pessoas e atos legais/ oficiais.

Mas reconhecer que um currículo está perpassado por relações de poder não significa identificar essas relações. A formulação e a implantação dos currículos não são neutras, nem muito menos são o produto de um processo asséptico de elaboração e instrumentação de técnicas. Representam, sim, o resultado sintético de um processo de debate ou, muitas vezes, uma silenciada e oculta luta entre posicionamentos, interesses e projetos sociais, políticos, culturais e pedagógicos opostos, ou até antagônicos. O processo de definição das políticas curriculares não é unívoco nem isento de contradições e tensões.

Segundo Suárez2929. SUÁREZ, Daniel. Políticas públicas e reforma educacional. A reestruturação curricular na Argentina. In: Reestruturação curricular: teoria e prática no cotidiano da escola. (J. C. Azevedo & L H. Silva, orgs.), pp.108-127, Petrópolis: Ed. Vozes, 1995., os currículos são o produto de determinadas práticas políticas, culturais e (apenas depois) técnicas, levadas a cabo pelos atores sociais comprometidos com os interesses e projetos em disputa e com determinada lógica de funcionamento. Supõem a determinação, escolha e negociação das opções conceituais, normativas e de valor que se pretende transmitir na prática escolar e na concepção de educação. E o autor ainda acrescenta que "a determinação curricular é um processo caracterizado pela atualização permanente de um debate-luta entre diferentes posicionamentos que são os valores, noções e sig1úficados sociais, por exemplo, que constituem as diretrizes dentro de uma estratégia global de mudança educacional"2929. SUÁREZ, Daniel. Políticas públicas e reforma educacional. A reestruturação curricular na Argentina. In: Reestruturação curricular: teoria e prática no cotidiano da escola. (J. C. Azevedo & L H. Silva, orgs.), pp.108-127, Petrópolis: Ed. Vozes, 1995..

O debate-luta também se dá acerca da posição social e técnica que será atribuída aos professores na divisão do trabalho educativo ou dos instrumentos político-institucionais, metodológico-didáticos e conceituais que serão definidos e implementados curricularmente para que seja realizada essa função. Uma vez que o currículo tenha sido sancionado, o grupo beneficiado tenta fechar o debate-lula que lhe deu origem, dando lugar à hegemonia de determinada ideologia de ensino2929. SUÁREZ, Daniel. Políticas públicas e reforma educacional. A reestruturação curricular na Argentina. In: Reestruturação curricular: teoria e prática no cotidiano da escola. (J. C. Azevedo & L H. Silva, orgs.), pp.108-127, Petrópolis: Ed. Vozes, 1995..

O consenso que se pretende consolidar sobre esses significados tem por objetivo gerar o compromisso dos sujeitos receptores da interpelação curricular.

Michael Apple ratifica que o currículo nunca é apenas um conjunto neutro de conhecimentos, que simplesmente está sendo utilizado nos textos e nas salas de aula de uma nação. Ele sempre foz parte de uma seleção de alguém, da visão de algum grupo acerca do que seja conhecimento legítimo. "É produto das tensões, conflitos e concessões culturais, políticas e econômicas que organizam e desorganizam um povo"3030. APPLE, M. W. Repensando Ideologia e Currículo. In: Currículo, Cultura e Sociedade (A.F. Moreira & T. T. Silva, orgs), pp.39-59, São Paulo: Ed. Cortez , 1994..

O conhecimento acadêmico não é um conjunto isolado e estático de informações, mas, sim, comprometido com determinada visão de mundo, dependente de determinado processo de investigação do real.

O conhecimento chega até a universidade racionalmente produzido, elaborado e sistematizado por meio de determinado processo de investigação, desenvolvido no contexto de uma dada concepção de educação e de sociedade. Importa-nos compreender com base em que critérios e condições a investigação do real foi realizada.

Para Fleck3131. FLECK, L. La génesis y el desarrollo de un hecho científico. Madrid: Alianza Editorial, 1986., a epistemologia comparativa não deve considerar o conhecer como uma relação bilateral entre sujeito e objeto, entre o cognoscente e o objeto a conhecer. O estado de conhecimento de cada momento tem que construir, como fator fundamental para todo novo conhecimento, o terceiro componente da relação. Para o autor, as relações históricas e conformadas dentro de um estilo de pensamento, dentro de um saber, indicam que existe uma inter-relação entre o conhecido e o conhecer. O já conhecido condiciona a forma e a maneira do novo conhecimento, e este conhecer expande, renova e dá sentido ao conhecido. Fleck percebeu a importância da formação dos novos cientistas, na análise da estrutura da comunidade científica (para a ciência da educação, no caso). A análise do modo de introdução de um novo pesquisador num grupo de trabalho proporcionaria a melhor maneira para descobrir de que forma funciona um estilo de pensamento. Explica que pertencer ou não a um grupo e se identificar com o mesmo, aprender a forma de trabalhar e apresentar os problemas, o arcabouço teórico e a aplicação prática se adquirem na fase concreta de formação. Esta fase é onde se conhecem e se imitam os modelos. Para esse autor, a introdução num campo de conhecimento é mais um doutrinamento do que um estímulo de pensamento crítico-científico. E ratifica: "Toda introdução didática é, portanto, literalmente, um "conduzir-dentro" ou uma suave coerção. A história da ciência supõe uma ajuda pedagógica, pois os conceitos antigos tem a vantagem de ter uma menor especificidade intelectual, e por isso são mais facilmente compreendidos pelo aprendiz. Além disso são já conhecidos pelo grande público e por alguns aprendizes. A iniciação no estilo de pensamento e, portanto, também a introdução a uma ciência, é epistemologicamente análoga a essas iniciações que conhecemos através da entologia e história das culturas"3131. FLECK, L. La génesis y el desarrollo de un hecho científico. Madrid: Alianza Editorial, 1986..

Estas questões teóricas situam-se na reflexão sobre elementos do espaço pedagógico e, em especial, do espaço do conhecimento acadêmico. No âmbito da questão curricular há alguns elementos que dizem respeito ao conhecimento escolar e que estão presentes nos posicionamentos ante o conhecimento escolar desejável e possível.

O MODELO DE CURRÍCULO MÉDICO NA ATUALIDADE

Em educação, um aspecto polêmico se refere aos conteúdos fundamentais transmitidos por meio de qualquer sistema de ensino. Andrade3232. ANDRADE, J. Marco Conceptual de La Educación Médica en América Latina. Serie Desarrollo de Recursos Humanos. Washington: OPS/OMS, 28, 1979. considera conteúdos conceituais fundamentais o conjunto de noções que se evidenciam por meio da prática do indivíduo num campo determinado de sua atividade, mais ou menos amplo, segundo se trate de educação geral ou de programas mais específicos.

No caso da educação médica, esses conteúdos explicariam por que os médicos, uma vez formados, direcionam sua prática às especializações; dedicam mais atenção aos problemas de saúde individual do que aos coletivos e às ações curativas mais do que às de prevenção; desprezam, em sua prática, os fatores psicológicos e sociais enquanto determinantes no adoecer. Este questionamento quanto ao marco conceituai tem sido alvo de preocupação de educadores médicos em todo o mundo há várias décadas.

Sob o impacto do Relatório Flexner (em 1910), a medicina científica se voltou, cada vez mais, para a biologia, tornando-se mais especializada e concentrada nos hospitais.

Ao longo deste século, a revolução tecnológica se caracterizou por um processo cujas conseqüências foram de grande impacto sobre a história moderna. O progresso tecnológico tem, de forma mais radical nas três últimas décadas, marcado profundamente a prática da Medicina3333. SANTANA, J. P. Tecnologia Médica e Formação Profissional. Divulgação para Debate em Saúde. Cebes, 5: 55-57, 1991..

A tecnologia diagnóstica, segundo Porto3434. PORTO, M. A. T. Um espectro na máquina - abordagem cultural da tecnologia médica. Tese de Doutorado, Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, 1995., ao consolidar a hegemonia do modelo anatómico, promoveu uma

“agilização” do processo diagnóstico, mas produziu uma profunda mudança na relação médico-paciente, transformando-a, muitas vezes, num contato impessoal.

Neste trabalho, não se pretende fazer uma crítica à evolução científica. O questionamento e a crítica se localizam na utilização de seu potencial de melhoramento. O abuso, ou o mau uso, da tecnologia, desprezando-se outros aspectos fundamentais do processo saúde-doença dos indivíduos e da população como um lodo, tem provocado, no geral, mais doença do que saúde e merece, a nosso ver, ser repensado no âmbito da formação dos profissionais de saúde.

Os avanços da tecnologia não mudaram favoravelmente as condições de vida, miserável, da maioria do povo brasileiro. Segundo Santana3333. SANTANA, J. P. Tecnologia Médica e Formação Profissional. Divulgação para Debate em Saúde. Cebes, 5: 55-57, 1991., os produtos de conforto e luxo só atingem algo em tomo de 10% da população.

O enfoque do desenvolvimento técnico da Medicina no Brasil tem sido alvo de debate nas escolas médicas. Formar um médico significa, entre outras coisas, formar um aprendiz no manejo de técnicas, procedimentos e instrumentos. O trabalho médico, porém, não se esgota em sua natureza técnica, mas apresenta dimensões onde se expressam valores de ordem moral ou ética, ideológica ou econômica.

Em documento publicado pela OPS/OMS, Andrade3232. ANDRADE, J. Marco Conceptual de La Educación Médica en América Latina. Serie Desarrollo de Recursos Humanos. Washington: OPS/OMS, 28, 1979. aponta a existência, no processo educativo, de elementos que também intervêm na configuração da prática profissional e que ultrapassam o próprio currículo. A esse referencial mais amplo ele denomina "marco conceitual". O termo abrange, por um lado, os conteúdos conceituais fundamentais explícitos, vinculados à prática médica e, por outro lado, os conteúdos implícitos no processo de formação do médico; há uma estreita relação entre os dois níveis.

A organização dos conteúdos curriculares e a metodologia educacional a ser utilizada contribuem para a configuração do marco conceituai da educação médica, assim como contribuem para a estrutura social e econômica, a ideologia prevalecente do profissional e a estrutura de poder internacional. Os alunos percebem, de maneira conciente ou não, a existência de tais modelos e os adotam ou desprezam, na medida em que reforçam ou entram em conflito com o resto da estrutura e com o papel que pretendem desempenhar em seu interior.

A CRÍTICA AO CURRÍCULO DA MEDICINA

Contemporaneamente, em todo o mundo, há uma crescente preocupação em modificar a formação dos profissionais de saúde, em especial a dos médicos. Esse esforço caracteriza uma perspectiva de capacitar profissionais para superar os problemas do sistema no qual trabalham e de propiciar melhores serviços, à população. Como essa preocupação se tem manifestado tanto nacional como internacionalmente, os governos, universidades, associações de profissionais e diversos organismos internacionais vêm pron1ovendo reuniões, seminários e conferências com a finalidade de discutir medidas para atenuar esse descontentamento.

Na América Latina, esse movimento começou na década de 50 e continua até os nossos dias. Como decorrência do mesmo, formularam-se numerosas recomendações e propostas de reformulações curriculares, postas em prática cm maior ou menor medida.

Em 1950, surgiu um movimento de reforma da educação médica latino-americana, fundamentado em postulados identificados com os da atualidade, tais como: "criar cursos nos departamentos de medicina preventiva que sejam dados com a família e a comunidade(...)" ou., ainda, "ensinar ciências sociais e psicologia no começo dos estudos e estas disciplinas devem ser consideradas como básicas"3232. ANDRADE, J. Marco Conceptual de La Educación Médica en América Latina. Serie Desarrollo de Recursos Humanos. Washington: OPS/OMS, 28, 1979..

Em geral, até a década de 80, os resultados obtidos com as reformas vinham sendo limitados, o que levou ao questionamento dos pressupostos dessas propostas.

Segundo Santana3333. SANTANA, J. P. Tecnologia Médica e Formação Profissional. Divulgação para Debate em Saúde. Cebes, 5: 55-57, 1991., o movimento de reforma da educação médica se encontra entre o compromisso com o modelo assistencial, organizado para atender demandas, estratificadas segundo classes sociais, e o engajamento numa proposta preocupoda em satisfazer necessidades integrais, equânimes e universais do conjunto da população. No primeiro caso, basta seguir aperfeiçoando, com os meios da moderna tecnologia educacional, o modelo de formação médica. Seguir, cm última instância, os postulados flexnerianos para o ensino, a pesquisa e a prática da Medicina. No outro caso, é necessário rever as bases técnicas e ideológicas do processo de formação médica.

PROPOSTAS DE REFORMULAÇÃO CURRICULAR

A educação médica latino-americana tem sido submetida, desde a década de 50, a uma contínua influência internacional Em vários casos, esta influência se deu de forma irreflexiva, e os modelos estrangeiros foram distorcidos pelas características particulares do meio, levando a resultados frustrados. De qualquer forma, desde a década de 80, as escolas latino-americanas de Medicina têm buscado suas próprias soluções por intermédio de um processo crítico e criativo, baseado em sua realidade e nas exigências de sua sociedade.

Segundo relatório da Comissão-MEC/SESu3535. COMISSÃO OE ESPECIALISTAS DO ENSINO-MEC/SESu. Divulgação para Debate cm Saúde. Cebes , 5:19-25, 1991., "Não são outras razões pelas quais documentos mais autorizados acerca da educação médica, antigos e recentes, nacionais e estrangeiros, insistem na necessidade da formação geral e humanística, no apreço da relação médico-paciente, na responsabilidade do ensino médico perante a sociedade, na valorização do dever ético da profissão."

Assim, essa comissão defende a inclusão, entre as matérias básicas, das ciências sociais, já que, além do conhecimento científico do ser humano biológico, é fundamental o conhecimento científico do ser humano social.

A comissão destaca, ainda, a necessidade de treinamento dos estudantes nos métodos mais apurados de investigação diagnóstica para praticarem a Medicina científica, e como meta e instrumento de qualquer médico, não só dos especialistas. Durante o curso de graduação, todos os estudantes deverão adquirir o núcleo de conhecimentos fundamentais, o domínio das técnicas essenciais do exame clinico e dos métodos complementares mais simples, assim como a crítica das indicações e resultados mais complexos. As minúcias do uso destes últimos, salienta a comissão, virão tardiamente, nas fases de pós-graduação, destinadas à formação do especialista3535. COMISSÃO OE ESPECIALISTAS DO ENSINO-MEC/SESu. Divulgação para Debate cm Saúde. Cebes , 5:19-25, 1991..

Dentro de uma proposta curricular, a proposta pedagógica terá fundamental importância. A prática educacional, segundo aquela comissão, tem-se mostrado notavelmente resistente às modificações. Para os docentes, é sempre difícil modificar seus métodos e atitudes. Continuam a ensinar da maneira que sabem, alheios às modificações da prática do ensino da Medicina, pois, segundo eles, as propostas de reforma curricular acabam sem resultados positivos.

Piccini3636. PICCINI, R. Fatores determinantes da formação médica e do exercício profissional. Divulgação para Debate cm Saúde. Cebes , 5:26-28, 1991. entende por modelo pedagógico o conjunto de princípios que formam os marcos teóricos que orientam a organização e as ações curriculares. Acredita que se deve buscar de forma prática e operacional a concretização do discurso sobre o ensino médico. Defende um currículo centrado no paciente cm seu ambiente social; a inserção precoce do aprendiz na rede assistencial; a exposição aos problemas dessa área do conhecimento em níveis crescentes de complexidade; a per­manente reflexão teórica organizada sobre a prática executada; a participação ativa do aluno no processo de construção do conhecimento; o regime de tutoria como estruturador da relação docente-discente; enfim, "estes e outros princípios tão longamente debatidos nos foros de educação médica"3636. PICCINI, R. Fatores determinantes da formação médica e do exercício profissional. Divulgação para Debate cm Saúde. Cebes , 5:26-28, 1991..

Para Piccini, confundem-se conteúdos programáticos (os conteúdos que estão previstos curricularmente para serem desenvolvidos no curso médico) e estrutura pedagógica dos currículos (a forma, metodologia e lógica com que se pretende pôr em prática tal currículo). Esta confusão tem produzido grande desgaste na imagem das reformas curriculares por se darem, frequentemente, em tomo de modificações dos conteúdos, deixando ao largo a discussão do modelo pedagógico. Este fato, invariavelmente, leva apenas a uma maquiagem da estrutura antiga. Piccini recomenda que os conteúdos reflitam o perfil de morbidade da comunidade assistida, sem negligenciar problemas que sejam relevantes por sua letalidade e/ou potencialidade de intervenção cm prevenção primária.

Segundo Negri Filho3737. NEGRI FILHO, A. La transformación de la enseñanza médica: Concepciones estratégicas. Divulgação para Debate em Saúde. CEBES, 5: 37- 40, 1991., os documentos produzidos durante a década de 80 - GPEP Report, o Relatório de Análise Prospectiva da OPS, a Declaração de Edimburgo, o projeto EMA-chegaram à conclusão de que a crise da educação médica tem dois focos centrais: a insuficiência da educação tecnicista / cientificista e a ausência de compromisso social. Esse autor propõe uma discussão do marco conceituai do currículo de formação dos médicos, entendendo ser o marco conceitual "o conjunto de normas e princípios, amalgmnados por uma definição estrutural-ideológica, que rege a organização e o comportamento institucional e por extensão os indivíduos que fazem parte de tais instituições"3737. NEGRI FILHO, A. La transformación de la enseñanza médica: Concepciones estratégicas. Divulgação para Debate em Saúde. CEBES, 5: 37- 40, 1991.. Considera, ainda, como neopositivista a base do marco conceituai da educação médica atual, já que denoto a supremacia da "ciência" e de seu método de abordagem da realidade.

Os currículos atuais se caracterizam por uma estruturação excessiva, na qual todos os espaços são ocupados ou obstruídos. O currículo não pode ser individualizado, nem permite variações. O sistema de disciplinas definido pelo MEC é rigidamente ordenado e definido. Dentro desse sistema massificado, a relação professor-aluno não possui um caráter pessoal, e o estudante não tem responsabilidades concretas ao longo do curso, limitando-se a ser mero espectador. Os últimos dois anos, quando o aluno realiza o internato, são a única parte do curso em que, eventualmente, se lhes atribuem responsabilidades.

Negri Filho3737. NEGRI FILHO, A. La transformación de la enseñanza médica: Concepciones estratégicas. Divulgação para Debate em Saúde. CEBES, 5: 37- 40, 1991., ao criticar a atual formação médica, propõe uma nova estruturação, com a relação professor-aluno-paciente-comunidade no centro do processo de ensino-aprendizagem. Ele argumenta que "a atual massa hipertrofiada de Conhecimentos técnicos se interpõe entre o paciente, o aluno e o professor, tornando a relação médico-paciente algo distante e impessoal, mediada pelo aparato tecnológico"3737. NEGRI FILHO, A. La transformación de la enseñanza médica: Concepciones estratégicas. Divulgação para Debate em Saúde. CEBES, 5: 37- 40, 1991..

A interação profissional com a comunidade, acredita ele, garantirá a interdisciplinaridade e fará a realidade invadir os espaços da prática médica, com suas necessidades de res­postas e anseios por transformação. Negri Filho acrescenta que o ensino deve ocorrer onde está a realidade e não se esconder atrás de instituições sofisticadas ou do pedantismo profissional.

Neste sentido, defende a entrada precoce do estudante na comunidade: "o estudante entra desde cedo na atenç.io em nível primário, ascende ao nível secundário e posteriormente ao nível terciário''3737. NEGRI FILHO, A. La transformación de la enseñanza médica: Concepciones estratégicas. Divulgação para Debate em Saúde. CEBES, 5: 37- 40, 1991.. Nesse processo o estudante toma contato com a realidade concreta de saúde do país, aprende a identificar o normal, o saudável, e a preservar o saudável, ao mesmo tempo em que se torna capaz de diagnosticar e tratar as doenças mais frequentes.

A partir das críticas apontadas ao currículo de formação do médico, várias experiências de reformulação têm sido discutidas e implantadas. Alguns exemplos mais atuais são: Faculdade de Medicina de Botucatu (Universidade Nacional do Estado de São Paulo - Unesp); Faculdade de Medicina de Brasília (Universidade de Brasília - UNB); Faculdade de Medicina de Londrina (Universidade Estadual de Londrina - UEL); Faculdade de Medicina de Marília (Famema); Faculdade de Medicina de Natal (Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN); Faculdade de Medicina de Salvador (Universidade Federal da Bahia - UFBA) e Faculdade de Medicina da Universidade Federal Fluminense, Niterói - RJ - UFP.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Out 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 1998
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