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MEDICINA NO. SÉCULO XXI

Medicine on XXI Century

"De uma coisa podemos estar certos, a Ciência, ao obedecer a lei da humanidade, sempre trabalhará para aumentar as fronteiras da Vida." (Louis Pasteur, ao inaugurar o Instituto Pasteur, em 1888)

I - MEDICINA NO SÉCULO XXI

Através de fresta na porta do futuro século que começa a se descortinar neste 1999, já se pode entrever que uma renovada medicina desperta. Na história da civilização, esta Ciência em muito tardou para ser realmente eficaz. Até o quinto século antes de Cristo era medicina meramente mágica; com as aulas de Hipócrates e a observação dos sintomas, ensaiou se tornar científica, mas permaneceu ineficaz até meados do século passado. Ou seja, somente há 150 anos a medicina passou a mudar o destino da humanidade, com os fundamentais estudos de Darwin, Pasteur e Mendel, entre outros: só então surgiram as vacinas e a possibilidade da terapia cirúrgica.

Em nosso século XX, a medicina iniciou um processo acelerativo ao ganhar novos conhecimentos, iniciado em 1936 com a descoberta das sulfonamidas, adquirindo impulso com o advento da penicilina, de outros antibióticos e dos hormônios. A eficácia terapêutica passava, então, a permitir cirurgias complexas, cardíacas, pulmonares, cerebrais.

Bernard, em publicação de 1995, define quatro definidas características da medicina no século XXI: racionalidade, eficácia, individualidade e prevenção.

MEDICINA RACIONAL

Conceitos de fisiologia e física introduzidos no final do século XIX e desenvolvidos durante o século XX transformaram a medicina. Assim, Claude Bernard, 1865, mostrou não haver diferenças importantes entre os princípios das ciências biológicas e os das ciências físico-químicas. E Wilhem Conrad Rontgen, ao descobrir os Raios-X, abriu portas para uma fonte inesgotável de diagnósticos por imagem: o scanner, a tomodensitometria, a cintilografia, a ecografia, o ultrassom e a ressonância magnética. Estas poderosas máquinas não param de se aperfeiçoar e ao se juntarem aos novos conhecimen­tos de computação eletrônica trarão progressivamente novos e mais afinados instrumentos de auxílio diagnóstico.

Mas será pelos conceitos de bioquímica e de patologia molecular que a medicina se guiará no próximo século. Mayana Zatz, professora titular de genética da Universidade de São Paulo, é responsável pelo Laboratório de Pesquisas do Genoma Humano. Recentemente, em revista especializada, discorreu sobre o projeto genoma humano. Segundo a autora, até o ano de 2003, aquele projeto pretende identificar os 60 mil a 70 mil genes responsáveis pelas características humanas normais e patológicas. Recordando-se de que até 1998 menos de 10% dos genes humanos haviam sido sequenciados, o objetivo parece ambicioso, mas certamente revolucionará a medicina. Abrir-se-á uma gigantesca porta, mas implicações éticas, legais e sociais necessariamente deverão ser discutidas e aprofundadas. A escolha do sexo, a identificação de genes ligados ao comportamento (agressividade, homossexualismo, alcoolismo, bom-humor) e a identificação de genes responsáveis por doença são exemplos da revolução que se inicia nesta área do conhecimento. A autora coloca uma grande pergunta: estaremos preparados para o conhecimento de nosso ser? Para se ter uma ideia, apenas com o conhecimento atual, estima-se que nos Estados Unidos existam 30 mil famílias em risco para doença de Huntington, 36 mil para distrofia miotônica, 3 a 5 milhões de indivíduos para o mal de Alzheimer e um milhão de mulheres portadoras de mutações genéticas nos genes BRCA1 e BRCA2, o que as leva a um risco de cerca de 80% de desenvolver câncer de mama.

MEDICINA EFICAZ

No primeiro quarto do próximo século, haverá triunfos sobre as doenças do coração, das artérias, em especial as tromboses e obstruções, e sobre os cânceres. Recentemente, Niklason, engenheira biomédica da universidade de Duke, em trabalho em parceria com o célebre Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), desenvolveu trabalhos fantásticos no campo da engenharia de tecidos: artérias produzidas a partir de células do próprio paciente. Mais de 25 tipos diferentes de tecidos humanos, como ossos, córneas e válvulas cardíacas estão sendo desenvolvidos em laboratórios em todo o mundo. Jean Paul Jacob, professor de informática da universidade de Berkeley e consultor da IBM, vem trabalhando em experimentos que, embora pareçam science-fiction, são exatamente o contrário: science reality. Como exemplos, o desenvolvimento de chips miniaturizados que permitirão factibilizar a memória artificial ou micro-robôs que poderão ser injetados via sanguínea e funcionarão, dentro do organismo, ou como "desentupidores" ou mesmo como carregadores de medicamentos para pontos específicos do corpo humano.

A Internet, com todas suas possibilidades, já permite incrível fluxo de informações entre cientistas e acesso à pesquisa em importantes centros e bibliotecas; o atendimento à distância, com juntas de especialistas recebendo via digital informações e prestando-se, destarte atenção à distância já é realidade. A Internet2, rede de alta velocidade que reúne centros de excelência e empresas americanas criará superinstituições de pesquisa e desenvolvimento virtuais.

MEDICINA INDIVIDUAL

A medicina do futuro deverá recolher dados e informações de estudos epidemiológicos realizados em grandes contingentes populacionais, mas sempre levando em conta as características únicas do ser humano. Parece uma assertiva banal, mas é fundamental e relaxante se saber que, a par do tecnologismo, toma cada vez mais lugar de destaque na medicina do século XXI as antigas lições de humanismo. Os próprios cursos de Medicina estão transformando seus cur1iculos para fornecer uma formação mais humanista ao médico e estreitar os laços dele com seu paciente. No Brasil, a Faculdade de Medicina de Botucatu inseriu alunos do primeiro ano em postos de saúde, para a melhor compreensão dos problemas de saúde e contato precoce com o doente. Segundo o diretor do programa, a taxa de cesariana caiu de 40 para 21% e zerou-se a mortalidade materna naquela cidade. Outras universidades vêm seguindo este exemplo, como é o caso da UERJ, no Rio de Janeiro e da Faculdade de Medicina de Marília, em São Paulo. O principal é que se veja o doente como um todo e não se abuse de métodos modernos de diagnóstico que fracionam o ser humano em pedaços. O já citado Jean Paul Jacob afirmou recentemente que já se observou que as máquinas não substituirão os médicos, pois já se tem ideia de que elas não têm capacidade de hierarquizar corretamente as informações e muito menos têm o chamado "olho clínico" que a experiência, a intuição e a compreensão constroem.

II- MEDICINA NO SÉCULO XXI: PREVISÃO E PREVENÇÃO

"O Tempo constrói uma fortaleza e o próprio Tempo a destrói." (provérbio servo-croata recolhido do "Dictionnaire de Proverbes et Dictons" de Montreynaud & Pierron & Suzzoni)

Esta é a grande e mais marcante característica da medicina do século XXI. A identificação e análise rigorosa de fatores de risco, as novas vacinações e a previsão constantemente confirmada são seus três eixos. Aqui cabem também comentários sobre a automedicação. Moliere já havia escrito: "c'est notre impatience quí gâte tout et la plupart des hommes meurent de leurs remédes e non de leur maladies". Os remédios são ao mesmo tempo eficazes e perigosos. A ampla educação, o acesso irrestrito ao serviço de saúde e a contenção dos arroubos publicitários das transnacionais farmacêuticas são medidas que tentarão coibir o uso irracional de medicamentos.

A epopéia das vacinações, aberta em 1796 por Edward Jenner com a anti-variólica, seguida pela anti-rábica de Pasteur, vem evoluindo desde então, abrindo-se espetacular horizonte para o século XXI. Podemos aguardar a vacina anti-Aids e as vacinas contra certos cânceres. Um bom exemplo é a redução do número de casos de câncer hepático coma introdução da vacina contra hepatite B, sabidamente doença precursora. Esperam-se também as vacinas contra doenças parasitárias, como febre amarela (uma das primeiras causas de mortalidade no mundo) e contra a esquistossomose. A Fundação Oswaldo Cruz no Brasil é tradicionalmente pioneira em descobertas deste jaez, havendo grupos de estudos envolvidos neste labor.

A epidemiologia assumirá neste novo século lugar de destaque para a compreensão e prevenção das doenças. Já são bem conhecidas associações por esta ciência determinadas e que já trouxeram melhorias para o quadro sanitário de diversos países. Clássico é o estudo inglês que pela primeira vez comprovou associação entre o hábito de fumar e o câncer pulmonar. Os dados falam por si: 90% dos cânceres de pulmão se devem ao tabaco, assim como 40% do conjunto desta patologia. Ao lado disto, atribuem-se ao tabaco muitas outras patologias, como o enfizema, as bronquites crônicas, as cardiopatias. Jean Bernard antevê que, antes da metade do século XXI, após poderosa campanha educacional, o tabaco estará proscrito da sociedade francesa e "a sabedoria terá então triunfado e será possível melhorar a saúde do ser humano".

Nos Estados Unidos, há dados do Environmental Protectian Agency que mostram diminuição do uso de tabaco de 34 para 25%, entre 1974 e 1993; o uso de medidas de segurança em carros fez com que se reduzisse em 32% a mortalidade em acidentes; o número de pessoas que vivem em cidades não poluídas aumentou em 23% (entre 1988 e 1993).

A medicina de predição será no século XXI uma medicina rigorosa. O entendimento dos fatores de risco e de proteção, o controle dos primeiros e a disseminação do segundo, e novos métodos de prevenção, levarão à melhoria das condições de saúde da população, ao mesmo tempo em que tomará a medicina muito mais econômica.

NOVAS DOENÇAS, NOVAS DESCOBERTAS

Duas considerações são importantes ao se prognosticar a medicina do século futuro. Primeiro, há que se lembrar que muitas das descobertas científicas se deveram, se não ao acaso, à boa dose de acidente. Foi o caso do telefone com fio e da penicilina. Nesta linha de raciocínio, é legítimo imaginar que com tantas frentes de pesquisa abertas, podemos ser surpreendidos positivamente com descobertas não pensadas ou antecipadas. Por outro lado, há de se pensar no surgimento de novas doenças ou na "reemergência" de antigos males.

Em 1984, os cientistas Ruffié e Sournia escreveram: "os progressos da medicina não deixaram o ser humano imune à fragilidade; sempre será preciso inventar novas armas para novos inimigos"; pouco depois, a epidemia de aids avançou exponencialmente. As febres hemorrágicas, como o ébola no Zaire e as doenças transmissíveis em animais, como a encefalite espongiliforme dos bovinos, "mal da vaca louca", são exemplos. Esta última, causada pelo príon, proteína anormal ainda não totalmente conhecida, diferente dos agentes infecciosos como bactérias, vírus e parasitas, causam doenças cerebrais entre ovinos e bovinos, raramente entre homens, mas é assunto merecedor de muitos estudos.

Nesta década, por exemplo, surgiu o conhecimento de uma nova hepatite, antes chamada de não-A e não-B, teve identificado seu vírus causador (vírus C). Trata-se de doença insidiosa e que leva, após longos silenciosos anos, à cirrose, câncer hepático e morte. Sua epidemiologia vem mostrando, através de estudos recentes, que sua prevenção se fará da mesma forma que a da aids e o que a fará sumir do mapa serão simples medidas de higiene e prevenção.

O recrudescimento de antigas doenças como a raiva, a tuberculose (em especial entre aidéticos), cólera, diarreias infecciosas e tantas outras é o paradoxo da medicina do século XXI.

Paralelamente ao grande crescimento do conhecimento tecnológico, a pobreza continuará a garantir uma condição de saúde medieval entre as populações pobres. Neste fim de século, 600 milhões de pessoas padecem de desnutrição. Em todo o mundo, de todos nascidos vivos, 17% nascem com peso insatisfatório; a meta de organismos internacionais seria de no máximo 10%. Pois bem -ou pois mal-, em países desenvolvidos este percentual já está em sete a oito por cento, enquanto no mundo em desenvolvimento chega a 18%, o que representa 20 milhões de seres humanos que nascem anualmente já em grande desvantagem, pois são recém-nascidos de altíssimo risco ou para o óbito ou para um desenvolvimento insuficiente ou mesmo prejudicado. Se, como disse Quintana, o poeta, democracia é dar um mesmo começo para todos, o que dizer de seres humanos que começam neste pé de desigualdade?

NOVA MEDICINA E VELHOS PROBLEMAS

A pobreza é a mãe de todas as doenças, já foi dito. O stress, o pai. A civilização progressiva e caótica, mormente nas metrópoles deve ser outro co-responsável. Medidas políticas superiores deverão ser contempladas para que a população do próximo século seja mais saudável. Um programa nacional americano, chamado Health 2000, construiu há 25 anos metas definidas para a melhoria da saúde da população daquele país. Relatório recente do U. S. Department of Health and Human Services mostrou o que se caminhou, quanto se caminhou e o que falta fazer às portas do novo milênio. São inúmeros exemplos, mas para nosso raciocínio destacamos que, com relação à saúde materno-infantil, aquele rico país conseguiu atingir 60% da meta de redução da mortalidade infantil, mais de 80% de diminuição das complicações graves da gestação, porém, apenas 20% em redução de taxa de cesarianas, apenas cinco por cento em redução de mortes fetais e, por outro lado, não se atingiu em nada, mas houve acréscimo nas taxas de nascidos de baixo-peso e acréscimo na taxa de mortalidade materna. O objetivo de se introduzir em locais de trabalho programas de exercidos físicos com finalidade de diminuir doenças coronarianas foi atingido em mais de 100%, a redução desta doença se deu em 60% do desejado, muito porque os alvos de se diminuir a obesidade não foi atingido em nada, ao contrário, naquele país o sobre­peso vem aumentando preocupantemente a cada ano.

Para o Brasil, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), em seu relatório de 1999, mostrou certos dados otimistas. A mortalidade entre crianças menores de cinco anos era, em 1960, de 177 por mil nascidos vivos; reduziu para 60 por mil em 1990 e para 44 por mil em 1997; nestes períodos, a média de redução anual foi de, respectivamente, 3,6% e 4,4%, sendo necessário que a diminuição se dê em 3,2% entre 1997 e o ano 2000. Esta mesma organização mostra que o Brasil conseguiu diminuir de 5900 casos de tétano neonatal em 1990 para 80 casos em 1997, com 99% de redução. Ou seja, caminhou-se positivamente. Mas a grande questão da educação, essencial para se alcançar nível de saúde razoáveis, é de se lamentar: 855 milhões de pessoas em todo o mundo são analfabetas. Isto corresponde a um sexto da humanidade e denuncia grande discriminação da população feminina, pois esta representa dois terços deste total. No Brasil, reduziu-se sim o analfabetismo, mas, quantitativamente, o contingente atual é astronômico. Dados do IBGE mostram que, em 1920, 65% dos brasileiros eram analfabetos; este percentual hoje se encolheu para cerca de 15%. Grande avanço, mas, em número absoluto, isto corresponde a quase 16 milhões de brasileiros.

CUSTO & BENEFÍCIOS

Para encerrar, vale disponibilizar considerações econômicas que despertam o raciocínio. Assim, estima-se que o custo do serviço de pré-natal para gestantes custe por volta de U$400 e pode prevenir quase a totalidade de recém-nascidos prematuros ou, pelo menos, antecipar atenção específica que preveniria males maiores. Pois um recém/nascido internado em Unidade de Tratamento Intensivo pode custar ao sistema de saúde entre U$14 mil e U$30 mil dólares. Segundo dados do Instituto de Medicina dos Estados Unidos, aquele país gasta com tratamento de sequelas atribuídas ao baixo-peso ao nascer uma quantia de U$3,7 bilhões anualmente. O custo anual estimado em gastos por abuso de tabaco gira em tomo de U$65 bilhões; por abuso de álcool, U$99 bilhões; problemas causados por uso de drogas ilícitas, U$66,9 bilhões.

Violência, em especial nas grandes cidades, é das principais causas de morte entre adultos jovens. E o que dizer das guerras? O UNICEF, em seu último relatório, mostra que somente nos últimos dez anos, dois milhões de crianças foram mortas em guerras, sendo que outras seis milhões ficaram gravemente feridas ou mutiladas. O custo apenas financeiro das guerras é de contrapor a todos estes números: dados do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos e do The Guardian, recentemente republicados na grande imprensa escrita brasileira, informam que a primeira guerra mundial ficou em U$2,85 trilhões, a segunda, em U$4 trilhões e, das mais recentes, custou a do Vietnã (1961-1975) U$720 bilhões, a do lrã-lraque (1980-88), U$150 bilhões, a do Golfo (1991), U$102 bilhões. A guerra do Kosovo já consumiu, até abril de 1999, U$894 milhões. Apenas um helicóptero Apache custa U$45 milhões...

Como afirmar -de posse destes dados- que o orçamento de uma nação para a saúde, ou para a educação, ou para a ciência e tecnologia de seu povo é grande ou pequeno?

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Set 2020
  • Data do Fascículo
    May-Dec 1999
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