Acessibilidade / Reportar erro

Aprendizagem: Contribuições para Pensar a Formação do Médico

Learning: Contributions to Reflections on Medical Training

Resumo:

Reflexão teórica abordando a importância de investir na aprendizagem do aluno tanto quanto á investido na constituição de modelos curriculares integradores. O conhecimento sobre aprendizagem pode ser uma ferramenta de dupla função, tornando os aprendizes mais eficientes e os eficazes em sua atuação profissional. Aprender é elemento chave no processo contínuo de aprendizagem do médico tendo em vista um mundo velozmente mutável, os acentuados avanços na tecnologia da informação e as modificações nas relações de trabalho produção científica exigindo que os indivíduos sejam gerentes da sua própria formação. Ressalta-se ainda as diferenças existentes entre o ensino e a aprendizagem usando diversas análises conceituais; entre elas as metáforas do teatro e da dança, além dos problemas advindos da inadequação das posturas de aprendizagem do aprendiz, utilizando abordagem metacognitiva e crenças motivacionais.

Descritores:
Aprendizagem; Educação médica

Abstract:

Learning how to learn is an important task for both teachers and pupils. Such knowledge helps leaners learn more efficiently in their professional duties. Continuous education is paramount in a constantly changing world. It requires that people manage their own learning. Learning and teaching are two closely related concepts. However, this paper approaches them as separate entities. To present this topic, learning. Learning is viewed as both dance and theater. Motivation and metacognition are also discussed.

Keywords:
Learning; Medical education

INTRODUÇÃO

Ao longo das últimas décadas, os estudiosos do ensino médico sempre estiveram em busca da formação de um médico de qualidade, com capacidade de criticar, transformar e atuar positiva­mente para uma sociedade melhor. Analisando retrospectivamente todo esse movimento, verifica-se que as tentativas foram inúmeras, por vezes complementando ou corrigindo distorções.

Em 1974, no Documento n° 2 da Comissão de Ensino Médico do MEC, surgiu a primeira referência oficial sobre Integração Docente Assistencial (IDA) como conseqüência da crise da medicina flexeneriana no interior das escolas médicas. Nele postulava-se o binómio ensino-serviço na formação do médico, não afetando as instituições como um todo, ficando restrito a guetos nos Departamentos e Institutos de Medicina Comunitária. Na verdade, aprofundou-se o cisma entre a medicina curativa e a medicina preventiva, entre os “médicos” e os “sanitaristas”. Na década de 70, a Opas investiu na tecnologia educacional em saúde; criou-se o Nutes/Clates no Brasil, com crescente valorização da assessoria pedagógica e com a difusão e mitificação da tecnologia educacional. A partir de 1983, a proposta foi regionalizada por meio do Programa de Apoio Pedagógico aos Profissionais de Saúde (PAPPS) para prestar apoio técnico à IDA, mas apresentou efeitos pura­mente modernizantes, sem implicar mudança educacional real1010. Mendes, E.V. A integração docente-assistencial na perspectiva dos serviços. R. Bras. Educ. Méd., v.8(1), p.50-59, jan./abr., 1984.),(1212. Rocha, J.S.Y. A integração docente assistencial na educação médica no Brasil. R. Bras. Educ. Méd. , v.9(3), p.198-206, set./dez., 1985..

Nos tempos atuais, ocorre uma evolução que busca posturas mais equilibradas, entendendo as experiências vividas como fontes de inspi­ração, intervenção e transformação, apesar de todas as suas contradições. Os modelos curriculares integradores desenvolvidos nas mais variadas organizações e concepções, compreendendo tanto a estrutura formal de ensino quanto a estrutura de serviços como campos necessários a uma aprendizagem real e reflexiva, sem margem de dúvida, são fundamentais na busca da transformação esperada. No entanto, continua-se a dar uma importância menor ao processo metodológico desenvolvido. Na prática, o que ocorre é uma verdadeira distorção dos modelos teóricos propostos porque, entre outros relevantes motivos, não existe um investimento significativo na orientação da aprendizagem do alunado, empreendimento vital para a formação do profissional capacitado a atuar no terceiro milênio.

Definição e Delimitação de Objetivo

No presente texto, desenvolveremos alguns argumentos em defesa do conceito de que o conhecimento sobre a aprendizagem pode ser uma ferramenta de dupla função: do ponto de vista dos alunos, tornando-os aprendizes mais eficientes, e na perspectiva docente, permitindo maior eficácia em sua atuação profissional.

Discutiremos por que, em nossa opinião, saber aprender pode ser instrumento-chave para este terceiro milênio. Aqui, especificamente, apresentaremos alguns conceitos ligados apenas indiretamente ao processo de formação do médico. No entanto, acreditamos que este contexto mais amplo tem influência importante no profissional que pretendemos formar, particularmente o fato de que vivemos num momento de transição, em que é muito difícil para a instituição escolar oferecer cursos autolimitados. A idéia de que o graduado, ao final do curso, possui todos os conhecimentos e habilidades que permitirão seu exercício profissional definitivo encontra número cada vez menor de defensores. Que não se confunda o aqui exposto com o conceito de terminalidade do curso médico. O que pretendemos enfatizar é a necessidade de um processo contínuo de apren­dizagem do médico, mesmo depois de graduado.

Ressaltaremos ainda as diferenças existentes entre o ensino e a aprendizagem. Isto permitirá o recorte de um objeto sobre o qual será possível argumentar. Mostraremos como, em nossa opinião, o conhecimento sobre a aprendizagem permite obter os benefícios citados. Apresentaremos também os problemas advindos da inadequação das posturas de aprendizagem do aprendiz.

Finalmente, cabe ressaltar o limite a ser imposto ao objeto tema deste trabalho. Não acreditamos que a aprendizagem possa, por si só, promover mudanças amplas no processo educacional. Resolver este problema demanda um contínuo interagir de múltiplas áreas do conhecimento e da comunidade humana. Aspectos políticos e sociais, variáveis pertinentes ao ensino, contextos económicos nacionais e internacionais determinam um amálgama dentro do qual transita o aluno, nosso interesse e razão de ser.

POR QUE APRENDER A APRENDER É IMPORTANTE

A Era da Incerteza

Vivemos uma era de profundas transformações. Elas se fazem em todas as esferas de nossas vidas. É cada vez mais difícil prever o dia de amanhã. Esta era de incertezas demanda um profissional mais flexível, capaz de sobreviver num mundo velozmente mutável. Para isto. é necessário que ele seja hábil em inventar soluções.

Neste contexto, cabem as palavras de Earl Weaver1414. Weaver, E. lt's what you learn after you it all that really counts. Apud: Quilligan, E.J. & Stone, H.L.: ___ -Presidential address. Am. J. Obstet. Gynecol., 151(7), 833-9, 1985.: ‘lt's what you learn after you know it all that really counts”. Falamos de um lado da educação continuada, mas particularmente na habilidade que o profissional de hoje precisa possuir, que é a do aprendizado autônomo. Ou seja, ele deve assumir o papel de gerente da sua próprio oprendizagem. Para isto, é necessário que ele aprenda a aprender. O profissional que sabe aprender é autônomo. Sabe como obter a informação que precisa. Obtém as informações de forma crítica. Sabe por que e para que vai usar a informação obtida. Pode, assim, decidir inteligentemente.

A Era da Informação

Outro argumento em defesa do aprendizado contínuo e independente é o advento da Era da Informação. Ruben1313. Ruben, B.D. The comming of the lnformation Age: Information, Thecnology and the Study of Behaviour. ln: ___ ed. lnformation and Behaviour, Vol 1, 1a.ed. New Brunswick, New Jersey, 1985, p 3-26 discute esta “nova era”. Segundo ele, há um consenso entre acadêmicos e também entre o público informado de que já vivemos nela. Para Ruben, o termo é mais que um conceito abstrato, tornou-se uma realidade pragmática.

Com o passar do tempo, cada vez mais informação se torna disponível. Está implícito neste fato o conceito de que se 'alguma informação é boa, mais informação é melhor'. Isto não é necessariamente verdade. Tanto a falta como o excesso de informação podem ser danosos. Num extremo, temos os quadros de privação sensorial ou a tomada de decisões erradas por falta de dados. No outro, a multiplicidade de problemas pessoais e sociais decorrentes seja da sobrecarga de informação, seja pelo fato de que é cada vez menor a porcentagem absorvida pelo homem de toda a informação disponível.

Ademais, a Era da Informação demanda do usuário uma participação cada vez mais ativa. Um exemplo é a transformação progressiva dos meios de comunicação lineares em interativos, assim denominados pelo maior controle do usuário sobre o meio emissor. Isto significa dizer que os novos meios estão progressivamente transferindo as funções de controle da informação dos profissionais de comunicação para o público leigo, do emissor para o usuário. Por um lado, é possível defendê-la argumentando que um maior controle do usuário permite minimizar a tirania das elites, viabilizada pelo controle da informação. Isto favoreceria o pluralismo na sociedade, afirma Ruben. Por outro lado, Horowitz & Curtis defendem a posição de que um maior controle pelo usuário favoreceria a diminuição do controle da qualidade, da autenticidade e da legitimação da informação, permitida pela atuação de legítimos controladores.

Ainda mais, no contexto de controle progressivo pelo usuário, pode-se questionar a capacidade que estes meios de comunicação teriam de transmitir a cultura de uma sociedade quando ela é composta por indivíduos que partilham uma parcela cada vez menos comum de conhecimentos.

Na Era da Informação, a tecnologia ocupa lugar central. Novas e antigas tecnologias assumem papel relevante em quase todas as atividades profissionais. Por exemplo, nas bibliotecas, a visão tradicional de um lugar onde pessoas vão para obter informações armazenadas em material impresso vai sendo substituída pela de uma instituição genérica, cujo objetivo é satisfazer as necessidades de informação de seus clientes. Esta perspectiva se tornou possível, em grande parte, devido às tecnologias que permitiram dispensar a necessidade do contato físico entre um indivíduo e o livro como único meio de disponibilizar a informação.

No centro deste processo está a convergência entre meios que anteriormente eram distintos. Relógios podem ser também telas de televisão e calculadoras. Rádios são construídos com telefones e gravadores embutidos. Desta maneira, a Era da Informação é marcada pela ampla disponibilidade e aplicação de tecnologias eletrônicas em grande variedade de contextos pessoais e profissionais. Enquanto algumas destas tecnologias são novas, muitas outras resultaram da convergência e transformação de usos e formas tecnológicas preexistentes.

Por isto, pode-se dizer, hoje, que o conceito de alfabetização começa a mudar. A leitura e a redação são tradicionalmente as pedras angulares para a participação de um indivíduo na sociedade. Na Era da Informação novas competências podem vir a ser necessárias para que esta participação seja possível. É cada vez mais importante que o indivíduo seja capaz de interagir com os diferentes meios de produção, armazenagem, busca e recuperação da informação. Diversas profissões, tradicionalmente vistas como distintas, exigem cada vez mais competências operacionais comuns, como consequência do uso progressivo de tecnologias e processos relacionadas ao manejo da informação. Assim é que a noção de alfabetização precisa ampliar-se, entendendo a leitura e a redação como partes de um processo mais amplo e complexo de competências. Isto é particularmente crítico na profissão médica, já definida por alguém como uma “arte situada no cruzamento de várias ciências”.

MUDANÇAS NO TRABALHO E NA PRODUÇÃO CIENTÍFICA

Os modelos do passado tornam-se cada vez menos adequados para dirigir a atuação profissional do médico. Transdisciplinaridade, interdisciplinaridade e equipe multiprofissional são termos que se tornam cada vez mais comuns. De forma mais ampla, Charles Handy99. Handy, C. The age of unreason Apud: Dryden, G. & Vos, J., Revolucionando o Aprendizado. São Paulo, Makron Books, 1996., em seu livro The age of unreason, faz algumas previsões que falam de incerteza e flexibilidade, ao ressaltar a importância do aprender a aprender. Segundo ele, na virada do século apenas uma minoria de adultos em idade de trabalhar estará em empregos estáveis de período integral em companhias tradicionais. Serão pessoas com pós-graduação, que começaram a trabalhar tardiamente. No Brasil, o Estado já foi o quase único empregador da força de trabalho em saúde. Hoje a situação se altera.

O restante, segundo Handy, dividir-se-á em três grupos. O primeiro envolverá grupos de projetos, reunindo pessoas com objetivos específicos, com frequência por períodos curtos. Serão pessoas diferentes, que se reúnem transitoriamente, com composição e objetivos dos gru­pos variando ao longo do tempo (cooperativas médicas?). Este, provavelmente, será o método mais comum de trabalho bem remunerado. O segundo será o de trabalhadores de meio período e sazonais. Será um dos poucos mercados para os trabalhadores não qualificados ou semi­qualificados. Este é o grupo que conformará os novos-pobres (já há propostas governamentais para a instituição do emprego temporário na CLT). Já o terceiro agrupamento será o de pessoas que trabalham individualmente ou como um grupo familiar. Médicos possuem já longa tradição neste tipo de atuação profissional. Este grupo se beneficiará da rede de comunicações não só para vender produtos e serviços, como também para identificá-los. Fica clara, portanto, a necessidade de uma educação que estimule as pessoas a serem seus próprios gerentes, divulgadores e comunicadores mundiais.

Também na ciência ocorre processo análogo. Gibbons et al77. Gibbons, M. Limoges, C.; Nowotny, H.; Schwartzman, S.; Scott, P. & Trow, M.: The new production of knowledge -The dinamics of Science and Research in Contemporary Societies. London, England, Sage Publ., 1994., em seu livro The new production of knowledge, discorre sobre como o modo de produção científica vem-se transformando. Compara o Modo 1 (tradicional) com o Modo 2 (novo). O Modo 1 baseia-se na estrutura disciplinar tradicional. Diferencia a ciência básica da aplicada, o que implica uma distinção no fazer de núcleos teóricos básicos e daqueles onde o conhecimento é traduzido em termos de suas aplicações. O conhecimento é produzido em função dos interesses acadêmicos de uma dada comunidade cientifica. Aqui predomina a homogeneidade, cientistas como modelos e paradigmas similares. A organização do Modo 1 é hierárquica e tende a ser conservadora. Já a do Modo 2 é transdisciplinar e heterogênea. Sua organização é menos hierarquizada e tende a ser transitória. Caracteriza-se por um constante fluxo bidirecional entre o básico e o aplicado. Tipicamente, o conhecimento é produzido com um objetivo em mente, e suas aplicações estimulam a produção de novos conhecimentos.

SEPARANDO O BINÔMIO ENSINO-APRENDIZAGEM

Metáfora do Teatro

O binômio ensino-aprendizagem é lugar-comum entre todos os que atuam na formação médica. É claramente entendida a impossibilidade de dissociar estes dois conceitos na prática diária. No entanto, no dizer de Paulo Freire66. Freire, P. Pedagogia da Autonomia -Saberes necessários à prática educativa. São Paulo, Brasil, Paz e Terra, 1996.. “Não há docência sem deiscência, as duas se explicam e seus sujeitos, apesar das diferenças que os conotam, não se reduzem à condição de objeto, um do outro”.

Uma forma mais fácil de compreender estas diferenças é fazendo uso de uma metáfora. Em nossa reflexão, propomos o teatro como suporte a este pensar, a partir de uma comparação entre a montagem de um grande espetáculo teatral e o monumental investimento pedagógico na formação de um profissional de saúde.

É sabido que um espetáculo teatral de sucesso depende de múltiplos fatores: roteiro, direção, iluminação, etc. No entanto, todo esse esforço se expressa publicamente por meio da capacidade dos atores em representar adequadamente as idéias, e emoções desejadas pelo autor e diretor. Neste sentido, o domínio pelos atores das habilidades inerentes à arte dramática é ao mesmo tempo variável-chave e etapa terminal do espetáculo. É compreensível, portanto, a ênfase dada por todos os membros da classe teatral aos cursos de formação de atores. Assim, aprender a representar é elemento fundamental na rede de variáveis necessárias a um espetáculo de sucesso.

No que se refere ao processo educacional, é possível estabelecer algumas analogias. Aqui, toda essa estrutura “teatral” é sempre profundamente trabalhada, desde a construção do ·texto· (modelo curricular), a estruturação do “palco” (campos de treinamento do alunado), até a presença de “profissionais especializados nas diferentes funções” (investimento maciço na pós-graduação para qualificação dos docentes).

No entanto, esse esforço de melhoria do binómio ensino-aprendizagem tem sido desproporcionalmente desviado em direção ao seu primeiro termo. Pergunta-se: onde está a preocupação em capacitar os alunos a aprender? Se por um lado é importante maximizar a eficiência do ensino -seja nos aspectos referentes ao conteúdo, seja naqueles dirigidos à sua transmissão -, é igualmente importante um esforço similar em relação à aprendizagem. Em linguagem teatral: adianta pouco um bom roteiro e direção se o ator não sabe representar. Da mesma forma, esforços dirigidos à melhoria do ensino serão frustrados se ao corpo discente faltar competência em aproveitar os recursos que lhes são oferecidos. É preciso que os alunos sejam capacitados nas habilidades necessárias à aprendizagem. Ou seja, que possam aprender a aprender.

Metáfora da Dança

Outro argumento a separar o ensino da aprendizagem origina-se na epistemologia. Gill88. Gill, J.H. Learning to learn: Toward a philosophy of education. Atlantic Highlands, N. J.: Humanities Press International lnc., p.1-11 e 38-39, 1993. levanta uma questão, a seu ver, de importância central: a falta de uma filosofia da educação que discuta em profundidade qual o lugar do conhecimento, como os conhecedores são e o que pode ser conhecido. A mais valiosa contribuição de Gill, aproximando as visões de filósofos como Whitehead, Dewey, Freire e Rogers, é reforçar a necessidade de ver a atividade cognitiva como mais do que uma mera assimilação ou uma recepção passiva. Para ele, a principal dificuldade é que esses filósofos não levam suas percepções longe o bastante, direcionando-as a uma compreensão reducionista e analítica da natureza da experiência cognitiva. Michael Polanyi designa esta visão atomística como “filosofia crítica”, e suas implicações educacionais são amplas. Os sistemas educacionais americano e europeu centraram-se no esforço de aprender a isolar, analisar e explicar os diferentes dados da experiência como partes isoladas, a partir das quais o mundo é construído. O resultado final é a compreensão do processo de conhecer assu­mindo que o aluno e o conhecimento suo distintos e independentes um do outro.

A metáfora-guia que serve de eixo para as considerações de Gill é a da dança, entendendo-se que a característica focal da atividade cognitiva é a interação entre o aluno e o meio, tanto físico quando social. Essa interação relacional consiste num processo de troca - dar e receber -, em que ambos, o aprendiz e o conhecimento, se definem mútua e continuamente. Este modelo contradiz a compreensão filosófica da cognição como primariamente, se não exclusivamente, uma função da mente. Dançar envolve tanto o corpo quanto a mente, é uma atividade social que se relaciona horizontalmente com outros dançarinos e verticalmente com o que se vai dançar. A interação social incorporada numa contínua transformação do meio repousa no centro da cognição humana e deve formar a essência da teoria e prática educacionais. Implícitos nesta metáfora estão três pressupostos sobre o ato ou processo de conhecer: o conhecer é relacional, isto é, decorre da interação entre o ·aprendiz e o conhecimento; o conhecer é uma atividade, pois interagir é agir entre, é uma ação executada pelo aprendiz, que sofre e recebe as influências do meio (físico, social, intelectual, etc.). No entanto, mais do que interação entre a mente e o conhecimento apenas, ele também inclui a participação do corpo, de maneira integrada. O conhecer é social e não ocorre num vácuo pessoal, surge da inserção do homem em seu meio, pressupondo que a linguagem, mais do que forma de comunicação, é também ferramenta de construção e modificação do mundo. Além do mais, a linguagem é construída socialmente, estando já presente quando aqui chegamos.

Gill, refletindo sobre a fábrica de experiências de cognição na perspectiva do pensamento de Maurice Merleau-Ponty e Michael Polanyi, diz-se convencido de que o processo é mais importante do que o produto na educação. A informação pode ser buscada nos livros e o que é de suma importância é aprender como aprender, tornando o aluno sempre apto a aprender mais.

Tal qual no processo do conhecimento, tanto o conhecedor quanto o conhecer são funções dele e relacionais; no ato de dançar, são relacionais o dançarino e a dança, ou seja, um depende do outro para acontecer. Gill enfatiza que sua convicção na resolução das questões da teoria e prática da educação deve ser analisada sob a luz da epistemologia e clareada em termos da natureza do processo do conhecimento, do conhecedor e do que deve ser conhecido.·

TER E SER

Compreender as idéias expostas até o momento nos leva a valorizar a atitude do aluno em relação ao conhecimento e ao aprender. Estudar aquisitivamente ou interativamente faz muita diferença. Barnes11. Barnes, R. Seja um ótimo aluno -Guia prático para um estudo universitário eficiente. Campinas, São Paulo: Papirus, p.25-37, 1995. desenvolve estes dois conceitos com base em Fromm. Em sua obra Ter ou ser, ainda representativa e de considerável influência, o autor promove uma discussão muito mais ampla do que a proposta na discussão sobre formas de estudar.

De interesse para o tema em discussão, Fromm sugere que a idéia de adquirir conhecimento é um dos principais obstáculos para um estudo eficiente. Ele afirma que conhecimento ou aprendizagem não são “coisas” a adquirir. Neste sentido, ter conhecimento é tomar e conservar a posse do conhecimento disponível (informação). Já conhecer é funcional e serve apenas como meio no processo de pensamento produtivo, o que permite uma aprendizagem melhor.

Barnes, relacionando estas idéias às formas de estudar, estabele­ceu dois modos de aprender: o modo aquisitivo de estudar, que concebe o conhecimento como algo a ser adquirido, e tudo o que se precisa é descobrir como possuí-lo. Transforma o estudo num aglomerado fixo de idéias e teorias que deve ser armazenado. Aluno e aula são estranhos um ao outro, pois o primeiro se tornou apenas o proprietário de um conjunto de informações feitas por outra pessoa. Já no modo interativo de estudar, o estudo tem proposta bem diferente: tenta-se aprofundar nas afirmações e informações a fim de levantar questões, analisar e testar modelos para si próprio. Assim, o que se ouve estimula os processas mentais, originando novas idéias e mudanças. Ocorre participação ativa na aprendizagem, pois tenta-se entender conceitos e questões, ao invés de possuir conhecimento. Ocorre um processamento das informações, e o cérebro não permanece neutro, caso aglomerasse blocos fixos de idéias.

Fromm argumenta que a memória não é algo que alguém possa ter, pois não há nada para se ter. Lembrar é algo que fazemos pela recuperação de imagens e acontecimentos que deixaram impressão prévia. Ter boa memória é, na verdade, a capacidade de se lembrar. Recordar é uma função do modo interativo, é um processo ativo. Agora pode-se entender que, ao sublinhar palavras num texto, dependendo do “modo” de aprender utilizado, ou o aluno adquire uma coleção de informações ou processa uma coleção de idéias.

METACOGNIÇÃO

Por requerer que o indivíduo reflita sobre os seus processos mentais, o interesse pelo estudo do papel das estratégias no aprendizado ganhou um importante reforço com uma nova área de investigação psicológica denominada metacognição. Este termo foi introduzido por Flavell55. Flavell, J. Development studies of mediated memory. In: H.H. Reese & L.P. Lipsitt (Eds.), Advances in child development and behaviour, v.5, N. Y.: Academic Press, 1970. Apud: SILVA, A L da & SÁ, I. de: Saber estudar e estudar para saber. Porto, Portugal: Porto Editora, 1993, p.22., em 1970, para definir o conhecimento sobre os próprios processos e produtos cognitivos. O autor distingue dois domínios: o primeiro é o do conhecimento metacognitivo - todo o conhecimento que o indivíduo adquiriu sobre si mesmo e sobre variáveis (das pessoas, da tarefa e da estratégia) que podem influenciar os caminhos e resultados de suas ações, fruto das interações que consiga articular. Por exemplo: um estudante, por ter conhecimento prévio dos objetivos de um texto e por conhecer e usar ações mais eficazes, terá melhor desempenho que os demais em determinado assunto. O segundo domínio é o das experiências metacognitivas - que são experiências conscientes, quer cognitivas ou afetivas, relacionadas com qualquer um dos aspectos da tarefa, e que podem ocorrer em qualquer momento da atividade e estar relacionadas com qualquer das variáveis citadas acima. Temos como exemplo caso de um estudante que não compreende o que foi lido; ele relê parte do texto, para facilitar sua compreensão.

O desenvolvimento metacognitivo decorrente da prática direta das atividades acima descritas também pode ser incrementado pela modelagem dos educadores e ajuda os estudantes a regular o seu comportamento. Esta concepção sobre o conhecimento metacognitivo abriu novas perspectivas na investigação sobre as diferenças intra e interindividuais de rendimento escolar, frequentemente devidas a diferentes usos de Estratégias de Aprendizagem (E,A).

Os significados desenvolvidos por Flavell são comuns à maior parte dos autores e orientam diversas pesquisas sobre aprendizagem eficaz. Segundo Paris & Winograd1111. Paris, S. & Winograd, P. How metacognition can promote academic learning an instruction. In: B. Jones & L. Idol (Eds.), Dimensions of thinking and cognitive instruction. N. Y.: Lawrence Erlbaum, 1990. Apud, SILVA, A. L. da & SÁ, I. de: Saber estudar e estudar para saber. Porto, Portugal: Porto Editora, 1993, p.25 e 27. (p.25), a construção da aprendizagem com orientação metacognitiva apresenta inúmeras virtudes. Uma delas é o estudo das diferenças individuais no rendimento escolar, em que estudantes com idênticas capacidades intelectuais podem ter diferentes níveis de rendimento de acordo com suas formas de atuar sobre seus próprios processos de aprendizagem.

Embora não metacognitivista, em seu livro Experiência e educação, Dewey33. Dewey, J. Experience and Education. N.Y.: Macmillan, 1975. Apud, Gill, J.H., Learning to learn: Toward a philosophy of education. Atlantic Highlands, N. J.: Humanities Press International Inc., 1993, p.20-25. fundamenta sua teoria da educação na experiência vivida, sendo esta origem, objetivo e norma de toda atividade cognitiva. Para ele, a cognição é o meio através do qual o aluno responde às alterações de seu meio ambiente. Critério fundamental é a qualidade da experiência, tanto no seu sentido imediato de prazer ou desprazer, como na sua influência sobre experiências futuras. A isto Dewey denomina princípio da continuidade, e o usa para estabelecer um critério de julgamento. Neste sentido, defende que crescimento indutor de mais crescimento assegura a obtenção de outros objetivos de valor, tais como liberdade individual, satisfação pessoal, respeito alheio e diálogo social. Como outro critério para julgar a qualidade da experiência, o autor oferece a noção de interação, na qual o princípio da interação estuda o caráter dinâmico de toda experiência num dado contexto. Uma experiência sempre é o que é porque a transação acontece entre um indivíduo e o que naquele momento é o meio (outra pessoa, um livro, etc.). Isto mostrou, para Dewey, que o ponto de partida para o desenvolvimento de uma filosofia educacional é a natureza da experiência de aprendizagem. Mais ainda, ele considera a atividade cognitiva como reciproca e simbiótica, na qual ambos se constituem mutuamente e se moldam um ao outro, o aprendiz e o que se aprende.

Em apologia a Karl Marx, pode-se dizer que Dewey não se contenta com que o aluno entenda o mundo, seu objetivo é mudá-lo. Para ele, aprende-se fazendo. A compreensão da cognição como um processo ativo é enfocada em termos de duas dimensões principais. São elas: liberdade e participação. Assim; “a única liberdade de importância duradoura é a liberdade da inteligência”. Com relação à participação, ele se agrega aos progressistas, que frisam a importância da liberdade de ação como um modo de participar na formação dos objetivos que direcionam o processo de aprendizagem. Um último aspecto é a frequente menção do caráter social na vida humana e no aprendizado. Neste sentido, tem duas coisas em mente: a) nenhuma experiência em educação acontece sem a presença do indivíduo; b) no entanto, o controle social deve ser muito mais interno do que imposto pelo meio. É esta dimensão social que confere pragmatismo e direção responsável ao empreendimento educacional. Finalmente, é possível dizer que Dewey tende a achar que o conhecimento é algo externo ao conhecedor, algo que precisa ser encontrado por ele: o processo de conhecer é uma oportunidade de experimentação.

OBSTÁCULOS

Aprender pode ser dificultado por fatores intrínsecos ao processo da aprendizagem e relativamente autônomos do contexto de ensino. Segundo relato de Carr et al.22. Carr, M.; Borkowski, J.; Maxwell, S. Motivational components of underachievement. Developmental Psychology, v.27, p.108-118, 1991. Apud: SILVA, A. L. da & SÁ, I. de: Saber estudar e estudar para saber. Porto, Portugal: Porto Editora, 1993, p.25-32. (p. 25). várias pesquisas têm demonstrado que os alunos com insucesso são menos persistentes na busca de seus objetivos, não conseguem utilizar estratégias adequadas e subestimam a exigência da tarefa, especialmente nos trabalhos mais difíceis. Alguns autores acreditam que a ineficácia no uso das EA se baseia, em parte, no fato de que os alunos com insucesso não desenvolvem estados afetivos apropriados e crenças motivacionais adequadas, reconhecidos como fatores importantíssimos para o desempenho escolar.

Nas abordagens metacognitivas sobre a aprendizagem, muitos autores têm identificado certas crenças como as principais mediadoras cognitivas que intervém na motivação, estabelecendo uma estreita interdependência entre metacognição e motivação1111. Paris, S. & Winograd, P. How metacognition can promote academic learning an instruction. In: B. Jones & L. Idol (Eds.), Dimensions of thinking and cognitive instruction. N. Y.: Lawrence Erlbaum, 1990. Apud, SILVA, A. L. da & SÁ, I. de: Saber estudar e estudar para saber. Porto, Portugal: Porto Editora, 1993, p.25 e 27. (p.27).

No senso comum, todos entendem por motivação o impulso que leva a agir em direção a determinado objetivo. Quando ela existe em relação a uma atividade qualquer, há um aumento da persistência, do tempo, da energia e da determinação, mesmo quando se encontram dificuldades ou obstáculos. Os estudantes desenvolvem crenças sobre si próprios (bons ou maus alunos), sobre suas capacidades cognitivas (se são inteligentes ou se têm jeito especial para certa matéria), como também têm expectativas acerca dos resultados do seu desempenho e do valor atribuído ao sucesso escolar.

Estas crenças são denominadas metacognitivas, e as que merecem mais atenção dos pesquisadores são as que incidem sobre os próprios alunos, ou seja, as pessoais. A primeira delas se refere ao sucesso e insucesso escolares. As causas apontadas pelos alunos, para ambos os resultados, estão sempre alocadas em quatro categorias: capacidade, esforço, dificuldade da tarefa e sorte. A percepção que têm sobre estas causas vai influenciar diferencialmente as respostas emocionais, os desempenhos e a motivação. Outra crença diz respeito à inteligência e ao papel que ela tem na motivação para a aprendizagem. Segundo Dweck44. Dweck, C Motivational processes affecting learning. American Psychologist, v.41, p.1040-1048, 1986. Apud: SILVA, A. L. da & SÁ, I. de: Saber estudar e estudar para para saber. Porto, Portugal: Porto Editora, 1993, p.31., a análise deste aspecto permite estabelecer dois padrões motivacionais: padrão adaptado -caracterizado pela busca de desafios e elevada persistência e eficácia frente a obstáculos -e o padrão inadequado - caracterizado por evitar desafios e apresentar baixa persistência aos obstáculos. Esses estudos mostram que concepções inadequadas de inteligência conduzem a interpretações erradas do esforço depreendido, levando os alunos a adotar padrões de comportamento que dificultam a aprendizagem. A última dessas crenças diz respeito ao autoconceito, na dimensão da auto-estima que se tem revelado importante no estudo dos processos motivacionais, como demonstram os estudos de Carr et al.22. Carr, M.; Borkowski, J.; Maxwell, S. Motivational components of underachievement. Developmental Psychology, v.27, p.108-118, 1991. Apud: SILVA, A. L. da & SÁ, I. de: Saber estudar e estudar para saber. Porto, Portugal: Porto Editora, 1993, p.25-32. (p.32) -os alunos com sucesso escolar têm auto-estima mais elevada e atribuições internas mais consistentes frente ao sucesso.

CONCLUSÃO

Neste texto, defendemos a idéia de que a aprendizagem é uma área de conhecimento que pode subsidiar o processo de formação do médico e a caracterizamos como entidade distinta, porém interdependente, do ensino. Mostramos como atitudes e posturas do aprendiz podem ajudá­lo ou prejudicá-lo. Finalmente, levantamos alguns dos benefícios que o conhecimento sobre a aprendizagem pode trazer tanto para alunos quanto para docentes. Pensamos, assim, ter contribuído para tornar mais férteis o debate e a busca de soluções para os problemas que enfrentamos no dia-a-dia da educação médica brasileira.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • 1
    Barnes, R. Seja um ótimo aluno -Guia prático para um estudo universitário eficiente. Campinas, São Paulo: Papirus, p.25-37, 1995.
  • 2
    Carr, M.; Borkowski, J.; Maxwell, S. Motivational components of underachievement. Developmental Psychology, v.27, p.108-118, 1991. Apud: SILVA, A. L. da & SÁ, I. de: Saber estudar e estudar para saber. Porto, Portugal: Porto Editora, 1993, p.25-32.
  • 3
    Dewey, J. Experience and Education. N.Y.: Macmillan, 1975. Apud, Gill, J.H., Learning to learn: Toward a philosophy of education. Atlantic Highlands, N. J.: Humanities Press International Inc., 1993, p.20-25.
  • 4
    Dweck, C Motivational processes affecting learning. American Psychologist, v.41, p.1040-1048, 1986. Apud: SILVA, A. L. da & SÁ, I. de: Saber estudar e estudar para para saber. Porto, Portugal: Porto Editora, 1993, p.31.
  • 5
    Flavell, J. Development studies of mediated memory. In: H.H. Reese & L.P. Lipsitt (Eds.), Advances in child development and behaviour, v.5, N. Y.: Academic Press, 1970. Apud: SILVA, A L da & SÁ, I. de: Saber estudar e estudar para saber. Porto, Portugal: Porto Editora, 1993, p.22.
  • 6
    Freire, P. Pedagogia da Autonomia -Saberes necessários à prática educativa. São Paulo, Brasil, Paz e Terra, 1996.
  • 7
    Gibbons, M. Limoges, C.; Nowotny, H.; Schwartzman, S.; Scott, P. & Trow, M.: The new production of knowledge -The dinamics of Science and Research in Contemporary Societies. London, England, Sage Publ., 1994.
  • 8
    Gill, J.H. Learning to learn: Toward a philosophy of education. Atlantic Highlands, N. J.: Humanities Press International lnc., p.1-11 e 38-39, 1993.
  • 9
    Handy, C. The age of unreason Apud: Dryden, G. & Vos, J., Revolucionando o Aprendizado. São Paulo, Makron Books, 1996.
  • 10
    Mendes, E.V. A integração docente-assistencial na perspectiva dos serviços. R. Bras. Educ. Méd., v.8(1), p.50-59, jan./abr., 1984.
  • 11
    Paris, S. & Winograd, P. How metacognition can promote academic learning an instruction. In: B. Jones & L. Idol (Eds.), Dimensions of thinking and cognitive instruction. N. Y.: Lawrence Erlbaum, 1990. Apud, SILVA, A. L. da & SÁ, I. de: Saber estudar e estudar para saber. Porto, Portugal: Porto Editora, 1993, p.25 e 27.
  • 12
    Rocha, J.S.Y. A integração docente assistencial na educação médica no Brasil. R. Bras. Educ. Méd. , v.9(3), p.198-206, set./dez., 1985.
  • 13
    Ruben, B.D. The comming of the lnformation Age: Information, Thecnology and the Study of Behaviour. ln: ___ ed. lnformation and Behaviour, Vol 1, 1a.ed. New Brunswick, New Jersey, 1985, p 3-26
  • 14
    Weaver, E. lt's what you learn after you it all that really counts. Apud: Quilligan, E.J. & Stone, H.L.: ___ -Presidential address. Am. J. Obstet. Gynecol., 151(7), 833-9, 1985.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jan 2021
  • Data do Fascículo
    May-Sep 2000
Associação Brasileira de Educação Médica SCN - QD 02 - BL D - Torre A - Salas 1021 e 1023 | Asa Norte, Brasília | DF | CEP: 70712-903, Tel: (61) 3024-9978 / 3024-8013, Fax: +55 21 2260-6662 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: rbem.abem@gmail.com