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A Relação Médico-Paciente e o Cuidado Humano: Subsídios para Promoção da Educação Médica

The Physician-Patient Relationship and Human Care: a contribution to the promotion of medical education

Resumo:

Em um estudo qualitativo com 25 médicos, na cidade de Florianópolis (SC), no ano de 2001, o tema “interação médico-paciente” permeou a análise e discussão dos dados, representando uma importante dimensão na construção cotidiana de “ser médico” e na satisfação com a profissão. O objetivo deste artigo é resgatar este tema, esperando gerar reflexões, individuais e coletivas, que estimulem a revisão de atitudes durante a formação e a prática médica, visando promover a satisfação docente e a do docente com sua prática pedagógica. Forma utilizados princípios da pesquisa qualitativa, com estudos de caso, a partir da análise de conteúdo dos dados empíricos de depoimentos dos participantes desse estudo, bem como dos dados da literatura. Percebe-se que o ensino médico não tem priorizado a abordagem de questões relacionados à interação, seja entre médico e paciente, seja entre docente e discente, o que poderia ser transformado se fossem incorporados em seu contexto componentes do cuidado humano.

Palavras-chave:
Relação Médico-Paciente; Saúde Holística; Satisfação no Emprego; Educação Médica

Abstract:

In a qualitative study envolving 25 physicians in the city of Florianópolis, Santa Catarina, Brazil, in the year 2001, the theme “physician-pacient interation” permeated the data analysis and discussion, revealing importante dimensions in the daily construction of “being a doctor” and personal satisfaction with the profession. The objective of this article is to reclain this issue in the hope of generating individual and collective reflections that foster a review of atitudes during medical training and practice, seeking to promote patient satisfaction in the physician-pacient relationship, physician satisfaction with the medical practice, and thar of faculty and students in relation to the teaching/learning process. The empirical data as well as material gleanes from the literature. Based on analysis of the interviews, medical education has failed to prioritize issues related to physician-patient and faculty-student interaction, a situation that could be changed if componentes of human care were incorporated into this contexto.

Key-words:
Physician-Patient Relations; Holistic Health; Job Satisfaction; Education, Medical

INTRODUÇÃO

O conteúdo deste artigo teve como fonte de dados a tese de doutorado11. Grosseman S. Satisfação com o trabalho: do desejo à realidade de ser médico. [Tese]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina; 2001.Satisfação com o trabalho: do desejo à realidade de ser médico, cujo objetivo era compreender, junto a profissio­nais médicos, os significados do desejo de ser médico e a satisfação com a realidade do trabalho.

Para alcançar tal objetivo, o método da pesquisa foi o qualitativo22. Bogdan R, Biklen SK. Investigação qualitativa em educação: uma introdução à teoria e aos métodos. Porto: Porto; 1994.,33. Demo P. Metodologia científica em Ciências Sociais. São Paulo: Atlas; 1989.,44. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo-Rio de Janeiro: Hucitec­Abrasco; 1993.,55. Patrício ZM. A dimensão felicidade-prazer no processo de viver saudável: uma questão bioética numa abordagem holístico-ecológica. [Tese] Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 1995., e o tipo de estudo o Multicasos22. Bogdan R, Biklen SK. Investigação qualitativa em educação: uma introdução à teoria e aos métodos. Porto: Porto; 1994.,66. Trivinõs ANS. Introdução à pesquisa em Ciências Sociais. São Paulo: Atlas ; 1995., com 25 médicos (pediatras, clínicos, cirurgiões, ginecologistas/obstetras e médicos da Saúde Pública), de ambos os sexos, formados há mais de 15 anos, residentes em Santa Catarina (Brasil). A pesquisa atendeu os princípios de eticidade, preconizados na Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde: os objetivos do estudo e os benefícios que dele poderiam advir foram apresentados, verbalmente e por escrito, aos pesquisados, que, então, foram convidados a participar do estudo. Após aceitação, eles receberam, para leitura, o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), que continha os objetivos e outros detalhes da pesquisa. Nesse Termo, a pesquisadora se comprometia a garantir o anonimato dos pesquisados e fornecia telefones de contato, caso eles quisessem desistir, a qualquer momento, de participar da pesquisa. Então, lhes foi solicitada a assinatura do Termo e a escolha de um codinome, para preservação do anonimato77. Brasília. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Resolução n° 196/96 sobre Pesquisa Envolvendo Seres Humanos, de 10 de outubro de 1996.. Os dados foram coletados por entrevista semi-estruturada em profundidade (subsidiada por recursos de simbolização) e analisados pela técnica "Análise-Reflexão-Síntese"11. Grosseman S. Satisfação com o trabalho: do desejo à realidade de ser médico. [Tese]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina; 2001.,55. Patrício ZM. A dimensão felicidade-prazer no processo de viver saudável: uma questão bioética numa abordagem holístico-ecológica. [Tese] Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 1995.,88. Patrício ZM. Qualidade de vida do ser humano na perspectiva de novos paradigmas: possibilidades éticas e estéticas nas interações ser humano-natureza-cotidiano-sociedade. In: Patrício ZM, Casagrande JL, Araújo MF. (orgs). Qualidade de vida do trabalhador: uma abordagem qualitativa do ser humano através de novos paradigmas. Florianópolis: PCA; 1999..

Com esse processo, foram encontrados sete grandes temas: "A potência e o potencial do desejo de ser médico" (processo de construção do desejo de ser médico); "A 'perda da poesia' na formação acadêmica" (processo de formação acadêmica);" A satisfação de ser médico" (fatores que promovem a satisfação do médico com seu trabalho); "O conflito com os desejos altruístas, no exercício da profissão" (fatores psicológicos do cotidiano que limitam a satisfação profissional); "Entre o curar e o cuidar" (estratégias elaboradas frente às limitações sentidas no cotidiano); "Desilusão com os desejos de reconhecimento e boa qualidade de vida" (outros fatores de insatisfação) e "Dos desejos do passado aos desejos para o futuro" (expectativas do passado e para o futuro).

O componente "interação médico-paciente" permeou esses temas, expressando-se como importante dimensão na construção cotidiana do "ser médico" e na satisfação com a profissão, tendo como referência os significados que originaram o desejo profissional e as expectativas para a vida futura, com forte influência do processo de formação acadêmica.

Entendendo que é de grande importância estudar a relação médico-paciente, o objetivo deste artigo é trazer dados desse tema, esperando gerar reflexões que estimulem, individual e coletivamente, a revisão de atitudes aprendidas e ensinadas durante a formação e a prática médica, na perspectiva de inter-relações que promovam maior competência técnico­humanística do profissional, cuja qualidade possa promover a satisfação do paciente com o médico, a do médico com seu trabalho, a do aluno com o docente e a do docente com sua prática pedagógica.

Partindo dessas considerações e seguindo princípios da pesquisa qualitativa, o tema proposto é apresentado a partir de dados empíricos, relativos a depoimentos selecionados do conjunto de dados dos participantes do estudo' e analisados com apoio da literatura.

A IMPORTÂNCIA DA FORMAÇÃO ACADÊMICA NA INTERAÇÃO MÉDICO-PACIENTE

Um dos principais significados para o emergir do desejo de ser médico, nos profissionais do estudo de Grosseman11. Grosseman S. Satisfação com o trabalho: do desejo à realidade de ser médico. [Tese]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina; 2001., foi o desejo de curar, ajudar, salvar ou cuidar de outros seres humanos. Muitos deles pensavam que a promoção do bem­estar de outros seres humanos lhes proporcionaria a realização profissional e pessoal, pois, como veiculado por desejos coletivos e transmitido pela sociedade, o exercício adequado da medicina acarretaria reconhecimento social e financeiro, e boa qualidade de vida.

No cotidiano do trabalho, a interação médico-paciente tem importante papel na satisfação profissional desses médicos, gerando energia e disposição, e contribuindo para que eles reflitam sobre a vida do "outro" e a própria vida:

A profissão me satisfaz bastante pela coisa do auxiliar (...) a ponto de ver que você está cansado, depois de um plantão, ou não acorda legal, não está disposto a atender, mas, à medida que começa a atender, vai mudndo. A tua disposição melhora pela própria interação com o indivíduo que está na tua frente. Então, isto dá uma satisfação muito grande (...).

Os meus vonte e poucos anos de profissão já me deram a oportunidade de um monte de pessoas sentarem na minha frente(...). Se um por cento daquelas pessoas(...) deixou alguma coisa para mim, eu sou uma pessoa bastante rica, porque (...) ela sempre deixa alguma coisa boa para você, se você estiver aberto para receber(...). Só médico vive isso. (...) também, tu abres a oportunidade de olhar o mundo, você cresce com isso. Você olha a outra pessoa e diz: 'Puxa, o que eu estou fazendo da minha vida!'. Você dá um conselho para uma pessoa: 'A senhora tem que caminhar'. Aquilo volta para mim e digo: 'Puxa, tenho que caminhar'.

Nessa perspectiva, a formação acadêmica vivenciada por esses profissionais, por não ter valorizado em seu contexto a competência relativa ao relacionamento interpessoal, limitou a expressão de parte de seus desejos, o que precipitou, nesta época, reflexões sobre os ideais da escolha da profissão.

Entre as limitações apontadas na formação, destacaram-se: o aprendizado centrado no diagnóstico e tratamento de doenças, principalmente em sala de aula e no contexto hospitalar; oportunidades insuficientes de interagir com a com unidade para compreender sua cultura e seus determinantes saúde-doença; a não valorização de atitudes voltadas às necessidades do ser humano, no processo de ensinar-aprender a interação médico-paciente:

(...)o próprio currículo, que me distanciou cada vez mais daquela imagem de médico que eu tinha, na adolescência(...). Em termos de currículo, eu acho uma catástrofe porque (...) o curso de medicina é o exercício de tirar você do paciente, de tirar você da população, do 'desexercício' da medicina (...). Você tem um monte de matérias e tem uma aula prática com 15 pessoas. E, aí, te jogam um paciente enfermo (...) eu vejo leito hospitalar. Eu não vejo determinação da doença (...). Então, há uma 'desinserção' do currículo com a realidade da população, para determinação da doença (...). Porque a nossa prática tem que se dar principalmente dentro da população. Porque é ali que se dá o processo saúde-doença.

A faculdade te ensina o que é um abd^men agudo, que aquela cama lá tem um paciente com apendicite e tal. O conhecimento hoje é tanto, que a faculdade não tem tempo de colocar o anuno diante do ser humano mesmo. Ela não ensina isso. Você vai aprender na vida ... vai lapidando isso.

(...) a nossa faculdade, do ponto de vista racional, é muito complicada. Acho o caos (... ). Eles preparam para o camarada saber e ir para a vida profissional, sem nenhuma base de relação humana. Nenhuma, nada, zero! (...) para trabalhar isso, cada semestre que passasse, deveriam colocar pessoas competentes para trabalhar a parte de relação do aluno com a vida dele fora da academia também. A relação do aluno com o paciente é uma coisa muita mecânica também; tem que ter uma outra abordagem. A relação médico-meio é muito complicada. Ele (o aluno) não se prepara nada. Ele é jogado feito um 'cachorro no meio da arena' e ele já sai de armas em punho.

Teve uma pessoa que me falou que o estudante entra muito idealista e sai um clínico por que (...) o modelo é muito técnico, esquece a visão geral, a visão humana mesmo. Clínico, no sentido de fingir que lida com humanos (...) Então, no início, na aula de anamnese, ele se preocupa até em se apresentar, pede licença, explica para os pacientes o que está acontecendo. E quando ele sai, já chega uma maca, já tira o lençol do cara, nem fala com o cara, uma coisa muito mecânica, como se ali estivesse um amontoado de órgãos deitados naquela maca.

Os professores que ensinaram a gente a tocar no paciente e a chamar o paciente pelo nome, ao invés da doença, foram poucos. Tanto é que cada um de nós tem um professor desses em mente. Eu acho que isso é o mais importante no médico. Está mais que provado. Se tiver essa parte, a gente consegue curar muito mais do que com medicamento (...).

Na verdade, o curso de medicina foi, para mim, a desmistificação da medicina(...). Daquilo que eu imaginava de ser médico. Ele foi me tirando da minha poesia.

Os profissionais do estudo também ressaltaram o sentimento de negação de sua vulnerabilidade no cotidiano do processo ensinar-aprender já na própria relação docente-discente, e como isso repercutia em sua qualidade de vida.

Eu acho um absurdo o que fazem com a gente na faculdade de medicina. Eles criam a gente assim: 'Médico não pode comer, médico não tem fome, médico não tem dor, médico não fica doente'. Quantos pacientes falam: 'Mas médico também fica doente?' (...). Então, eu passei batido a minha vida. Anos que nem um trator e não tenho dúvidas de que médico é prepotente (...), a gente é criado para isso.

Por conta da "inabilidade" na interação com o paciente, esses médicos, quando em situações de difícil manejo, como, por exemplo, de grande sofrimento e morte iminente, sentem mais dificuldades relacionais, o que gera neles grande sofrimento.

Um paciente (...) em fase terminal é uma criança (...) e a medicina não vai dar conta de salvar (...). Isso não me frustra do ponto de vista de onipotência (...). O que me preocupa é como vou conseguir dar o apoio adequado nessas horas (...) e é o que me machuca mais no dia-a-dia. (...) do ponto de vista profissional, a gente não é preparado nem na escola, nem na vida profissional.

O médico sabe lidar com a morte? Não sabe. O paciente terminal é abandonado. O médico faz oncologia, eu tenho um residente que está fazendo oncologia no Rio. Eu perguntei: 'Vocês têm algum apoio psicológico?'. Não, nenhum. É paciente que morre, paciente que morre, paciente que morre. O que é que ele vai fazer se não tem preparo? Endurece diante da vida (...).

Esses depoimentos levam a considerar que, durante a formação acadêmica, os profissionais aprenderam a buscar o objeto "doença" nas pessoas e sentiram falta de abordagens que estimulassem seu potencial de se relacionar com o outro. Além das limitações que apontaram no processo ensino-aprendizagem no que se refere à subjetividade do outro, também expressaram o aprendizado da negação da própria subjetividade, em especial a expressão de seus sentimentos.

Atualmente, os médicos têm se deparado com críticas da sociedade. Dunning99. Dunning AJ. Status of the doctor -present and future. The Lancei 2000; 354 (SN):2. pondera que um dos fatores que têm contribuído para isto é que, hoje, uma população mais bem informada requisita maior consideração e transparência dos profissionais médicos, além de modelos profissionais seguros. Esse autor remete a William Osler, que, em 1903, já exclamava, em relação aos médicos, que "metade de nós está cega, poucos de nós sentimos e todos nós estamos surdos". Neste sentido, Zimerman1010. Zimerman DE. A formação psicológica do médico. In: MelloFilhoJ (orgs). Psicossomática hoje. Porto Alegre (RS): Artes Médicas; 1992. p. 64-69. enfatiza a necessidade de o médico se esforçar para compreender o paciente, pois "não há nada pior no ato médico do que o 'diálogo de surdos' da incomunicação, razão por que é da máxima importância que o médico possa traduzir a linguagem do paciente, quando ela vem trazida sob signos primitivos".

Segundo Ballint1111. Ballint M. O médico, seu paciente, e a doença. 2° ed. Rio de Janeiro: Atheneu; 1988., na formação acadêmica prepara-se o médico para "catequizar" o paciente a seguir as ordens médicas, como se fosse uma religião, à qual o paciente deveria aderir pela fé no possuidor do saber. Entretanto, o autor ressalta que a doença não pode ser compreendida como um fenômeno isolado, mas sim em relação à vida do indivíduo e seu ambiente.

Para Crema, "a doença é um ruído indicativo de nossas contradições. Necessitamos escutá-lo e compreendê-lo para, só então, eliminá-lo"1212. Crema R. Saúde e plenitude: um caminho para o ser. São Paulo: Summus; 1995: 105.. Considerando que a doença é uma forma de o indivíduo explicitar conflitos internos, Ballint1111. Ballint M. O médico, seu paciente, e a doença. 2° ed. Rio de Janeiro: Atheneu; 1988., assim como Crema, chama atenção para o valor que esta doença representa, tanto para o indivíduo que adoece como para o médico, para lançar luz ao conflito que ela expressa.

Aprender a trabalhar com a subjetividade é fundamental para o desenvolvimento de uma relação médico-paciente construtiva, o que vem a definir a qualidade da prática médica. Ballint1111. Ballint M. O médico, seu paciente, e a doença. 2° ed. Rio de Janeiro: Atheneu; 1988. chega a afirmar que "o remédio mais usado em medicina é o próprio médico, o qual, como os demais medica­mentos, precisa ser conhecido em sua posologia, reações colaterais e toxicidade".

A relação médico-paciente, para Entralgo1313. Entralgo PL. Historia de la medicina. Barcelona: Salvat; 1978.,1414. Entralgo PL. Técnica, ética y amistad médica. In: Viveros MG (orgs). Mêdicina y sociedade. México: Fondo de Cultura Económica; 1994. p. 27-36., é uma forma singular de amizade ser humano/ser humano, que deve abranger a benevolência (querer o bem do outro); a benedicência (falar bem do outro, na medida em que pode fazê-lo sem mentir); a beneficência (aceitar lealmente o que o outro é, ajudando-o delicadamente a que seja o que deve ser); e a benefidecência, que é a efusão - expansão de afeto - em direção ao outro, para compartilhar com ele algo que lhe pertence intimamente, que se dá em confidência e vai permitir aos dois transformar a relação dual em didática.

O tipo de interação que se estabelece entre o médico e o paciente depende de como o médico vê o ser humano que o procura. Neste sentido, Guareschi1515. Guareschi P. Alteridade e relação: uma perspectiva crítica. In: Arruda A (orgs). Representando a alteridade. Petrópolis (RJ): Vozes;1998. p. 149-161. explana que as relações entre os seres humanos são influenciadas pela visão predominante do contexto histórico-social em que eles estão inseridos. Quando a visão da sociedade é individualista, muitas vezes, o ser humano tende a considerar o "outro" como pouco importante para o seu próprio crescimento, e o tipo de relação que se estabelece se dá de forma que cada um tenta ver o que pode "tirar" do outro, ao invés de vê-lo como complementar. Quando a visão é totalitária, o ser humano passa a ser secundário ("uma peça na máquina"), havendo perda da individualidade, e a forma de relacionamento que se estabelece também leva pouco em consideração o "outro", pois a importância está centrada no sistema, geralmente muito burocratizado.

Guareschi1515. Guareschi P. Alteridade e relação: uma perspectiva crítica. In: Arruda A (orgs). Representando a alteridade. Petrópolis (RJ): Vozes;1998. p. 149-161. pondera que, para o estabelecimento de rela­ções construtivas de diálogo e uma verdadeira relação interpessoal, é necessário valorizar o "outro" em sua identidade, respeitando seus valores e compartilhando suas experiências, considerando-o alguém essencial à própria existência. Por meio desta visão, o ser humano passa a sentir necessidade de escutar o "outro", pois este, ainda que distinto, contribui para o próprio desenvolvimento pessoal. O autor esclarece que somente neste tipo de relação pode-se considerar a ética e o respeito entre os seres humanos.

Atualmente, na sociedade ocidental, a visão tem sido mais centrada no individualismo e, como consequência, o hábito de escutar tem sido pouco enfatizado no cotidiano das interações entre os seres humanos. Entretanto, este escutar precisa ser resgatado, pois, como afirma Alves: "O que as pessoas mais desejam é alguém que as escute de maneira calma e tranquila. Em silêncio. Sem dar conselhos (...). A gente ama não é a pessoa que fala bonito. É a pessoa que escuta bonito"1616. Alves R. O amor que acende a lua. Campinas, SP: Papirus: Speculum; 1993. p. 73..

No caso da interação médico-paciente, Videla1717. Videla M. Prevención. Buenos Aires: Ediciones Cinco; 1998. comenta que os pacientes têm fome de solidariedade porque a enfermidade, muitas vezes, humilha, corrói o sentido do "eu", tornando-os vulneráveis à palavra do médico e, portanto, este deve cultivar a flexibilidade e a tolerância para honrar o ponto de vista dos pacientes. O autor esclarece que o médico pode saciar a fome de solidariedade do paciente com conversas terapêuticas e a tentativa de resgate de uma "esperança ética", que, inclusive, pode ajudar a instalar no paciente uma busca interna de cura.

Fazendo-se uma leitura dialética dos dados empíricos, pode-se observar que o contexto satisfação-insatisfação, por ter gerado contradições, estimulou transformações e fez emergir um movimento particular de reflexão, resultando em novas sínteses que incorporaram componentes do cuidado, como aparece nos depoimentos que se seguem:

Eu tive contato com um professor (...) que me introduziu aquela imagem diferente do que é uma pessoa, do que é a doença. Pela primeira vez, 18 anos de formada, eu comecei a aprender a atender um ser humano (...). O médico mesmo, ele atende um paciente que está doente, nem sempre uma doença que precise de medicamento; muitas vezes, é uma doença que é da família ou de uma vida mal vivida. E como é que a gente vai interagir nisso? O poder de cura é limitado ... Você pode fazer muita coisa pelo paciente, sem curá-lo. Ajudar, cuidar... E, quando você não cura e cuida, eu acho que o sentido tanto do cuidado do doente como o do médico se complementam.

A gente dá outras coisas. A gente tem um envolvimento diferente (...) além de medicar a dor, conversa com o paciente, procura reabilitá-lo dentro daquela circunstância: a família a ele e ele à família. Então, a gente consegue conversar até sobre a doença com a família e consegue tirar coisas de uma doença, que a dor diminui, mesmo sem ser com analgésico. Você, incluusive, prepara o caminho para a morte, até... sem grandes recursos. Basta conversar. E, muitas vezes, a gente não consegue dizer nada e a gente abraça.

Analisando-se qualitativamente os dados empíricos e teóricos apresentados, à luz da literatura sobre interação humana na assistência à saúde e qualidade de vida dos envolvidos nesse processo, surgem categorias que representam a qualidade da interação médico-paciente e a qualidade da interação docente-aluno de medicina. Essas categorias, por sua vez, expressam componentes do construto do cuidado humano, abordados nos estudos de Leininger1818. Leininger M. Teoria do cuidado transcultural: diversidade e universalidade. In: Anais do Seminário de Pesquisa em Enfermagem. Florianópolis: UFSC; 1985.,1919. Leininger M. Care constructs. Seminario de Pesquisa em Enfermagem. Florianópolis. Mimeos 1985..

Leininger desenvolveu a Teoria do Cuidado Transcultural, voltada para o cuidado da saúde do ser humano, na área da antropologia. A autora chama atenção para o "cuidado humanizado", demonstrando a importância de considerar, na assistência, o ser humano em sua integralidade, diversidade e unicidade, contemplando suas crenças, seus valores, conhecimentos e suas práticas de saúde, o que se expressa pelos componentes do care-caring (cuidar-cuidando)1919. Leininger M. Care constructs. Seminario de Pesquisa em Enfermagem. Florianópolis. Mimeos 1985..

Patrício, partindo de dados de experiências de campo na área da saúde em contextos brasileiros, estudou essa teoria e ampliou esse construto, com base em outros teoristas sobre "cuidado humano"2020. Patrício ZM, Bohes EA. O significado do cuidar/cuidado. Florianópolis: UFSC. Mimeo 1988. e em Gramsci2121. Gramsci A. Concepção Dialética da História. 7 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 1987., tendo em vista a saúde como bem viver individual-coletivo que envolve subjetividade, ambiente, participação, cidadania e educação, ao qual denominou "processo de cuidar-cuidado sócio-cultural"2222. Patrício ZM. A prática do cuidar-cuidado com a família da adolescente grávida e seu recém-nascido através de uma marco conceituai de enfoque sócio-cultural. [Dissertação]. Florianópolis: UFSC ; 1990.. Posteriormente, a autora incorporou outras concepções, que ampliaram a compreensão do ser humano, na construção individual-coletiva do processo saúde-doença, que evidenciaram ainda mais a qualidade das interações como mediadoras da construção desse processo e da própria qualidade de vida individual-coletiva, denominando-o "Referencial do Cuidado Holístico-Ecológico"55. Patrício ZM. A dimensão felicidade-prazer no processo de viver saudável: uma questão bioética numa abordagem holístico-ecológica. [Tese] Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 1995..

Nesse contexto, para a autora, o "cuidado da vida" - "cultivar a vida" - seja para promover a saúde ou para tratar problemas que limitam o processo de viver saudável - pressupõe a integração entre razão e sensibilidade como atributo da qualidade das interações que o ser humano desenvolve com outros seres humanos e com a natureza não cultural.

Assim, o processo de cuidar envolve componentes éticos e estéticos de bem viver individual-coletivo num dado ambiente, tendo em vista a complexidade e diversidade das múltiplas interconexões que se constroem na história de vida, desde o primeiro ambiente, o útero materno. Nesse processo de cuidar, o profissional da saúde, além de considerar os componentes culturais, também valoriza as expectativas, sentimentos e desejos dos seres humanos envolvidos na situação em estudo. É um diálogo de escuta e troca de um versos culturais e afetivos, que resulta em transformações não somente na­quele que é cuidado, mas também no cuidador55. Patrício ZM. A dimensão felicidade-prazer no processo de viver saudável: uma questão bioética numa abordagem holístico-ecológica. [Tese] Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 1995.,2222. Patrício ZM. A prática do cuidar-cuidado com a família da adolescente grávida e seu recém-nascido através de uma marco conceituai de enfoque sócio-cultural. [Dissertação]. Florianópolis: UFSC ; 1990..

Na expectativa de melhorar a qualidade da interação médico-paciente e ainda promover satisfação, a reflexão crítica - o questionamento ético - acerca dos dados empírico­teóricos até aqui apresentados evidencia a importância da qualidade das interações que se desenvolvem no processo ensinar-aprender, nos diversos cenários do cotidiano, na formação acadêmica dos cursos de medicina. Até porque nada ensina tão bem quanto o "discurso testemunhado", e isso o aluno precisa ver na relação docente-paciente, docente-docente e docente-discente. Este processo favorece uma aprendizagem mais tranquila, mais saudável, mais humana e, inclusive, uma aprendizagem para o autocuidado.

As autoras concebem, nesse momento, que o paciente deseja e tem o direito de ser cuidado no processo de ser assistido pelo médico e que o aluno também deseja e tem o direito de ser cuidado no processo de ensinar-aprender medicina.

As novas Diretrizes Curriculares2323. Brasil. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Superior. Resolução CNE/CES 4/2001. Diário Oficial da União de Brasília, 9 de nov. 2001, Seção 1: 38., fruto de esforços conjuntos de diversos setores envolvidos e comprometidos com o ensino e a prática médica, já incorporam essa filosofia, representando um avanço conceituai conquistado. Nessa perspectiva, diversas escolas médicas no País têm inovado seu currículo e divulgado suas experiências2424. Congresso Brasileiro de Educação Médica, 39. Fórum de Avaliação das Escolas Médicas, 11. "Avaliações no Ensino Médico: Impactos e Desafios"; 26-30 set 2001; Belém, Brasil. São Paulo: ABEM; 2001.,2525. Comissão Interinstitucional Nacional de Avaliação do Ensino Médico. Preparando a transformação da educação médica brasileira: projeto CINAEM III fase: relatório 1999- 2000 / CINAEM. Piccini RX, Facchini LA, Santos RC (organizadores). Pelotas (RS): UFPel; 2000.,2626. Campos JJB, Komatsu R. Novos currículos de medicina na FAMEMA e na UEL: uma construção permanente rumo à realidade presente e futura. Olho Mágico 2001; 8 (2): 8-14.,2727. Venturelli J, Piorini, VML. Programas Educacionais Inovadores em Escolas Médicas: capacitação docente. Rev. Bras. Educ. Méd 2001; 25 (3): 7-21..

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como propiciar que movimentos individuais se tornem coletivos? Como "sair da teoria para a prática"? Em outras palavras, como operacionalizar os conceitos e princípios das novas Diretrizes?

Entendendo que todo projeto coletivo pressupõe uma transformação individual, as autoras acreditam que seja necessário investir em processos pedagógicos que promovam atitudes de reflexão individual, com foco nos objetivos comuns.

Esse processo cria oportunidades para que cada participante se dê conta de seu próprio referencial e daquele dos demais, ou seja, das crenças, expectativas, práticas e sentimentos, desejos, valores e conhecimentos envolvidos no processo. Isso significa refletir sobre si mesmo, sobre dimensões humanas, incluindo relações cotidianas e com o mundo em geral, e o reflexo dessas situações na qualidade de vida individual-coletiva2828. Patrício ZM. Nem talco nem diamante: a riqueza de um processo de ensino-aprendizagem participante na área da sexualidade-adolescência. Texto &Contexto; 1994 jul/dez; 3(2): 93-109..

Nesta oportunidade, as autoras convidam os colegas a refletirem sobre a responsabilidade individual e coletiva de melhorar a qualidade das interações educador-educando e médico-paciente, para que se promova, efetivamente, a satis­fação mútua nestas relações. O contexto atual favorece o desencadeamento de reflexões e mudanças de atitude.

É preciso; para tanto, que os responsáveis pelo ensino médico comecem a considerar a diversidade e complexidade da subjetividade humana, no processo do ensinar-aprender e no processo do adoecer-curar, tendo em vista o importante papel que o médico tem como mediador destes processos.

Desta forma, pode ser vislumbrada uma medicina que integre ciência e arte, incorporando a dimensão estética, para consolidar uma prática profissional guiada por princípios de uma "ética do afetivo"2929. Grosseman S, Patrício ZM. Do desejo à realidade de ser médico. Florianópolis; 2003. no prelo.. O maior lucro dessa atitude é, no futuro, ter médicos com mais capacidade de cuidar de sua própria saúde e também do paciente e da comunidade à qual pertencem.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2004

Histórico

  • Recebido
    25 Nov 2003
  • Revisado
    27 Fev 2004
  • Aceito
    19 Maio 2004
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