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Graduação e Prática Médica: Expectativas e Concepções de Estudantes de Medicina do 1° ao 6° ano

Undergraduate Education and Medical Practice: Expectations and Concepts in a Group of First to Sixth-Year Brzilian Medical Students

Resumo:

O objetivo deste estudo é conhece, as concepções e expectativas do estudante de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp-EPM) em relação à graduação e à sua futura prática profissional. O procedimento metodológico compreendeu entrevistas semi-estruturadas com 40 estudantes do 1° ao 6° ano, distribuídos equitativamente em três grandes blocos: 1°e 2° anos, 3° e 4° anos, e 5° e 6° anos. Os resultados foram agrupados em categorias: papel do aluno e suas especificidades, expectativas e dificuldades em relação ao curso, papel da escola, expectativas relativas à prática médica e preocupações em relação ao futuro profissional. A análise revelou que ser um bom médico é a expectativa central de todos os alunos. A concepção do ‘bom médico’ muda com o desenrolar do curso: uma visão idealizada da profissão é progressivamente substituída por uma aproximação mais realista da mesma. A expectativa em relação ao curso acompanha estas mudanças de concepção de ‘bom médico’ e altera os papéis como acadêmicos da aquisição e acúmulo de informações à ênfase no aprender fazendo, culminando com a preocupação com o preparo para o exame de Residência Médica.

Palavras-chave:
Educação Médica; Estudantes de Medicina; Prática Profissional

Abstract:

This study focused on medical students' concepts and expectations concerning undergraduate training and future professional practice. Qualitative analysis was the method chosen to allow visualization of these concepts and expectations. Forty first to sixth-year medical students were interviewed, distributed equally among three groups: 1st-2nd year; 3rd-4th year, and 5th-6th year. The results revealed students' representations, signaling a process of personal maturity and progressive contact with the reality of the profession, mainly in relation to intemships.

Key-words:
Education, Medical; Studentes, Medical; Professional Practice

INTRODUÇÃO

O movimento de mudança na Educação Médica tem como uma das premissas o entendimento do aluno como sujeito do processo de construção do conhecimento em busca de uma autonomia profissional compatível com as demandas sociais11. Kaufman DM. Applying educational theory in practice. Br Med J. 2003; 326:213-216..

Um maior conhecimento do aluno por parte das escolas, incluindo suas expectativas, concepções e representações sobre o curso e a prática profissional futura, pode contribuir com os processos de transformação das escolas médicas. O acesso ao ensino médico ocorre, geralmente, num clima de muita pressão e competitividade, mobilizando recursos intelectuais e emocionais do aluno.

São múltiplos os fatores que levam o aluno a estudar medicina. Isto se dá por motivações de natureza consciente e inconsciente, que vão desde o prestígio social e o saber até a atração pela responsabilidade e pelo dinheiro, passando pela necessidade de tornar-se útil e aliviar os que sofrem22. Millan LE, Marco OLN, Rossi E, Arruda PCV. O universo psicológico do futuro médico. São Paulo: Casa do Psicólogo; 1999..

Ignarra33. Ignarra RM. Medicina: representações de estudantes so­bre a profissão. [Tese] São Paulo: Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo; 2002. aponta os seguintes fatores identificados pelos alunos para a escolha do curso de Medicina: vocação, missão de ajudar o próximo e ser útil à sociedade, possibilidade de salvar vidas ou de melhorar a qualidade de vida das pessoas e inclinação para as ciências biológicas.

Habitualmente, o estudante de Medicina chega à faculdade após um período de grande estresse, representado pelo concurso vestibular, mas com um "ego massageado" pela vitória alcançada.

Segundo Millan e colaboradores22. Millan LE, Marco OLN, Rossi E, Arruda PCV. O universo psicológico do futuro médico. São Paulo: Casa do Psicólogo; 1999.:

Após longo período de estudos, a faculdade é vista pelo aluno como o continente idealizado, onde não haverá mais angústia, insegurança ou exigências; pelo contrário, será o lugar onde suas expectativas serão satisfeitas e aquele desejo de ser médico, muitas vezes presente desde a infância, será finalmente realizado.

Gonçalves44. Gonçalves EL. Evasão no ensino universitário: a escola médica em questão. São Paulo: NUPES, mar. 1997. (Documento de Trabalho). assim se refere ao aluno diante da universidade: "universo idealizado, que esconde todo o futuro de quem está parado a sua porta".

Este contato inicial com a universidade passa por três estágios: mudança de comunidade, transição para um novo contexto com valores, normas e padrões próprios, e integração a este novo ambiente cultural e social55. llnto V. Stages of student departure. Reflections on the longitudinal character of student leaving. J Higher Educ. 1998; 59 (4): 438-455.. Isto se dá num momento de vulnerabilidade do aluno, que pode se acompanhar de indecisão, ansiedade e angústia.

O desenvolvimento do estudante do ensino superior ocorre em fases, incluindo momentos de estabilidade e de transição66. Strange C. Student development: the evolution and status of an essential idea. J Coll Student Develop. 1994; 35 (6):399-412..

Num primeiro momento, o aluno tende a caracterizar a escola como uma instância que vai transformá-lo no profissional por ele idealizado.

No decorrer do curso de Medicina, a fase inicial de euforia do aluno é substituída por uma de desencanto, com queixas frequentes, como excessivo volume de estudos, pouca utilidade dos conteúdos e má didática dos professores. Finalmente, no internato, o aluno se depara com as dificuldades e conflitos da prática profissional22. Millan LE, Marco OLN, Rossi E, Arruda PCV. O universo psicológico do futuro médico. São Paulo: Casa do Psicólogo; 1999..

Diante das demandas universitárias e da grande quantidade de informações a que é exposto, o aluno vai progressivamente desempenhando novos papéis, que incluem desde o domínio da linguagem médica até a assimilação de novos valores, a assunção de novas responsabilidades e a reaprendizagem do ato de estudar.

Estes papéis são influenciados pelos estilos e padrões na abordagem e solução de tarefas, e pelos desafios da própria aprendizagem66. Strange C. Student development: the evolution and status of an essential idea. J Coll Student Develop. 1994; 35 (6):399-412..

A experiência acadêmica envolve aspectos cognitivos, como lógica, pensamento crítico, conhecimento e habilidades, e também aspectos afetivos, como valores, crenças, autoconceito, motivação e relações interpessoais77. Polydoro SAJ. Evasão cm uma Instituição de Ensino Su­perior: desafio para Psicologia Escolar. (Dissertação) Campinas (SP): Pontifícia Universidade Católica de Campinas; 1995..

Gonçalves44. Gonçalves EL. Evasão no ensino universitário: a escola médica em questão. São Paulo: NUPES, mar. 1997. (Documento de Trabalho). comenta que se impõe o reconhecimento de que fatores de natureza psicológica, principalmente os de natureza emocional, condicionam fortemente o sucesso pretendido no processo educacional. A emoção que assume o maior peso talvez seja representada pela ansiedade, que pode de­sencadear agravos somáticos de gravidade variável.

Conhecer as concepções e expectativas do estudante de Medicina da Universidade Federal de São Paulo - Escola Paulista de Medicina (Unifesp-EPM) em relação à graduação e à sua futura prática profissional foi o eixo condutor deste trabalho.

Neste sentido, algumas questões foram norteadoras:

  • Como o estudante de Medicina descreve seu papel e que especificidades nele identifica?

  • Quais são suas expectativas em relação à graduação e que dificuldades enfrenta?

  • Quais são suas expectativas e preocupações em rela­ção ao futuro exercício profissional?

  • Existem diferenças de concepções entre os alunos à medida que o curso se desenvolve?

Esta pesquisa pretende contribuir para a discussão do ensino médico contemporâneo e seu processo de aprimoramento.

METODOLOGIA

A população de estudo foi uma amostra de 40 estudantes do 1° ao 6° ano, distribuídos equitativamente entre as séries. Os dados foram coletados e sistematizados considerando-se três grandes blocos: 1° e 2° anos, 3° e 4° anos, e 5° e 6° anos (internato).

Utilizou-se o método qualitativo para a coleta e análise dos dados, entendendo-o como um caminho mais eficaz para captar a questão do significado dos parâmetros investigados. Partiu-se da premissa de que respostas inesperadas são sempre uma inquietude a ser analisada com o auxílio de informações complementares ou com o uso de um método que permita visualizar estas concepções de forma mais ampla.

Com o objetivo de identificar a representação dos discentes, bem como apreender possíveis mudanças no decorrer do curso, foram realizadas 40 entrevistas semi-estruturadas com os estudantes. A entrevista semi-estruturada foi entendida como uma conversa a dois, realizada por iniciativa do pesquisador, destinada a fornecer informações pertinentes ao objetivo da pesquisa. O entrevistado teve a possibilidade de discorrer sobre o tema proposto sem respostas ou condições prefixadas88. Minayo MCS. O desafio do conhecimento. São Paulo, Rio de Janeiro: Hucitec, Abrasco; 1992..

O roteiro da entrevista abrangeu os seguintes eixos de análise:

  • o papel do estudante de Medicina;

  • especificidades no desempenho deste papel;

  • dificuldades no cotidiano do curso;

  • expectativa em relação ao curso;

  • expectativas e preocupações em relação à futura prática profissional

Na realização destas entrevistas, no ano de 2001, foi preservada a identidade dos respondentes, buscando-se representantes de grupos distintos, na perspectiva de construir um quadro de concepções sobre o objeto investigado. As entrevistas foram gravadas e transcritas na íntegra, com termo de consentimento assinado por todos.

O roteiro da entrevista foi previamente testado com seis alunos, um de cada série do curso médico, e posteriormente readaptado.

Os dados foram analisados por meio da técnica de análise do conteúdo. Neste sentido, os movimentos interpretativos envolveram: a pré-análise (desde a leitura flutuante do material coletado até a sistematização dos dados); a exploração dos dados, relacionando-os a partir das categorias estabelecidas a priori; e a interpretação do material coletado, construindo uma referência explicativa que articulou o marco teórico adotado na pesquisa, os eixos de análise previamente estrutu­rados e as categorias que emergiram dos próprios dados99. Bardin L. Análise de Conteúdo. Lisboa (PT): Edições 70; 1977..

As categorias encontradas foram descritas e discutidas a partir do referencial teórico, que compreendeu o estudo da literatura e de pesquisas similares de professores e alunos de escolas médicas brasileiras apresentadas nos congressos da Associação Brasileira de Educação Médica e de suas Regionais nos últimos cinco anos.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

O Quadro 1 mostra a síntese dos resultados obtidos nos três momentos do curso.

QUADRO 1
Síntese dos Resultados Obtidos nos Três Momentos do Curso

Os estudantes dos dois primeiros anos do curso entendem que o papel principal do aluno é adquirir conhecimentos na área da medicina, reconhecendo, como especificidades neste papel, a responsabilidade crescente em lidar com a vida humana e a maior necessidade de dedicação ao curso.

A gente tem um papel social muito maior que um engenheiro, um advogado, por que durante nossas vidas a gente vai estar lidando muito com o sofrimento das pessoas.

A administração do tempo, o relacionamento entre as pessoas, a dissociação entre teoria e prática, a necessidade de priorizar as provas em detrimento do estudo independente e a busca mais ativa das informações constituem as dificulda­des enfrentadas no cotidiano do curso. Esperam sair do 60 ano com embasamento científico, humano e técnico para o exercício profissional.

(...) um profissional com boas bases na área médica, um cidadão atuante, diferenciado.

Assim, o papel da escola será o de orientar, estimular, favorecer o aprendizado, oferecendo infra-estrutura adequada e disseminando valores humanos e culturais. Sua expectativa em relação ao futuro profissional é o exercício de uma medicina caracterizada pela ajuda, compromisso, idealismo e cuidado (semelhante a um sacerdócio), preocupando-se com a competência profissional, estabilidade financeira e com o lidar com a morte.

(...)eu me imagino ficando cansado, estressado, mas satisfeito. Tomara que tudo isso seja compensado com a sensação de que estará valendo a pena, de que eu estarei sendo útil, que eu vou estar fazendo alguma coisa maior.

Este momento inicial do curso, caracterizado pelo altruísmo e por uma visão idealizada da escola e da futura prática profissional, tem sido também apontado por outros autores que analisaram os estudantes nesta etapa.

Tamosauskas e Packer1010. Tamosauskas MRG, Packer MLT. "Por que ser médico?" A visão dos alunos do segundo ano de medicina da Faculdade de Medicina do ABC. Anais do 38° Congresso Brasileiro de Educação Médica. Petrópolis (RJ): ABEM, 2000. p. 61., estudando fatores envolvidos na escolha da medicina entre alunos da Faculdade de Medicina do ABC, encontraram razões altruístas, como ajudar pessoas, diminuir sofrimentos; fatores pessoais, como vocação e realização pessoal; e fatores materiais, como remuneração e garantia de emprego.

Em outro estudo, Mascaretti et al.1111. Mascaretti LAS et al. Perfil do Aluno da FMUSP em 2000 - o aluno e seu projeto de vida profissional-FMUSP­São Paulo. Rev Bras Educ Med. 2002; 26 (supl 2): 55. encontraram a "vontade de ajudar o próximo (25,7%), interesse pela Biologia (19,5%) e preocupação social (18%)" como os principais motivos de escolha da medicina entre os calouros da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

Os dados encontrados nesta pesquisa em relação às motivações de opção pelo curso médico parecem, assim, corroboraras tendências apresentadas na literatura, reforçando a relação entre escolha da medicina e o desejo de minimizar o sofrimento humano22. Millan LE, Marco OLN, Rossi E, Arruda PCV. O universo psicológico do futuro médico. São Paulo: Casa do Psicólogo; 1999.), (33. Ignarra RM. Medicina: representações de estudantes so­bre a profissão. [Tese] São Paulo: Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo; 2002..

A representação do ser estudante de medicina foi também estudada por Milet, Pinho, e Reis1212. Milet TC, Pinho AJCPRA, Reis MM. O que os calouros de medicina esperam do curso: personalidades em construção x modelo de formação. Anais do 36° Congresso Brasileiro de Educação Médica. Recife (PE): ABEM, 1998. p. 24, ao analisarem palavras investigadas entre calouros da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade de Pernambuco, tendo como resultados: dedicação (31 %), responsabilidade (27%), gratificação (16%), interesse (13%), difícil (11 %) e realização (11 %).

É importante destacar a expectativa de que a escola médica contribua para concretizar o ideal de ser médico, possibilitando situações de aprendizagem estimulantes e motivadoras. Observa-se uma aproximação deste resultado com os dados apresentados por Assis et al.1313. Assis TZP et al. Percepção Discente da profissão e do Curso. Anais do 36° Congresso Brasileiro de Educação Médica. Recife (PE): ABEM, 1998. p. 24 sobre alunos do 1° ano da Faculdade de Medicina da USP: 81,6% deles acreditavam que os objetivos do curso seriam atingidos; este percentual caiu para 46,1 % entre os alunos do 20 ano.

No meio do curso (3º e 4° anos), o estudante já admite que o seu papel é preparar-se para o exercício profissional, com ênfase no cuidado e ajuda às pessoas e promoção da saúde. A responsabilidade por lidar com a vida em situações de fragilidade, gerando, inclusive, ansiedade no aluno, além da necessidade de maior dedicação são características específicas em seu desempenho.

(...)e como a gente lida com pessoas em momento de fragilidade, você tem que ter mais amadurecimento para lidar com elas, não pode ser uma coisa superficial.

A administração do tempo, a quantidade de informações, a freqüente dissociação entre teoria e prática e o excesso de cobrança são as maiores dificuldades no cotidiano acadêmico. Há a expectativa de ser um bom médico, com enfoque generalista, dimensão cuidadora do exercício profissional, visão social, discernimento, experiência e autoconfiança.

Uma base boa... ser alguém que ajude, que esteja exercendo cidadania, mesmo nas microrrelações que a gente tem com os pacientes, trabalhar para melhorar a sociedade.

À escola cabe fornecer infra-estrutura com materiais ade­quados e corpo docente comprometido (direcionador, estimulador de interesse, exemplo e experiência). O aluno espera ser um bom médico, realizando-se profissional e pessoalmente, por meio do exercício de uma medicina ligada à ajuda, ao cuidado, à ética e ao compromisso.

Em relação à futura prática, preocupa-se, essencialmente, com as adaptações à realidade da profissão, incluindo a necessidade de dedicação integral à medicina sem prejuízo da qualidade de vida, a saturação ou dificuldades do merca­do e as preocupações com o erro médico.

Quero ter família e não quero ficar só trabalhando. Ter segurança no que eu faço, ter equilíbrio emocional e financeiro.

Ao final do curso (5° e 6° anos), o estudante entende que "aprender fazendo" é o papel do aluno, enfatizando a assistência e a capacitação profissional. Ressalta a falta de espaço para outros afazeres fora do curso, o excesso de cobrança, o número de informações e a insegurança quanto ao futuro como as principais dificuldades no desempenho deste papel.

Pois é, estou no 6° ano e não sei nada. Quanto mais você estuda, mais você vê que não sabe absolutamente de nada.

Espera estar preparado para o exame de Residência Médica. Tem a sensação de não saber nada e de que a realidade vivenciada no curso foi diferente da idealizada no ingresso, gerando certo grau de decepção e desencanto. Entende que o papel da escola é fornecer material adequado e corpo docente comprometido (direcionador, estimulador de interesse e exemplo).

Eu espero ter uma mínima formação para passar na Residência. Acho que talvez eu esteja preparado para passar na Residência, mas para atuar realmente como médico eu não sei.

Tem a expectativa de ser um bom médico, mas demonstra um grande componente de medo, insegurança e dúvidas. Espera constituir família e se realizar pessoalmente, adaptando-se bem à profissão. Suas preocupações estão mais voltadas ao mercado de trabalho, à desvalorização da profissão e à exploração do trabalho médico.

Eu tenho muito medo do futuro. O que eu vou fazer da minha vida?

Mas acrescenta:

Poderia ajudar ao máximo o meu paciente. De ver um sorriso no rostinho de uma criança. Ter o suficiente para poder viver. Quero estar fazendo algo que me dê prazer.

Guimarães et al.1414. Guimarães RGM e cols. O que mudou em nossas vidas? Os alunos de medicina na vivência do curso médico. Anais do 38° Congresso Brasileiro de Educação Médica. Petrópolis (RJ): ABEM, 2000. p. 113-14., analisando estudantes do 1° ao 12° semestres das escolas médicas do Rio de Janeiro, comentam o aumento progressivo do grau de estresse entre os alunos no decorrer do curso. Dificuldades de organização do estudo, competitividade, distanciamento dos professores, intensa quantidade de informações, limite das atividades de lazer, frustração com o ciclo básico, contato com o sofrimento e a morte, contato com a realidade dos serviços de saúde, processo de escolha da especialidade, exame de Residência Médica, perspectiva do mercado de trabalho e a sensação de não saber nada são apontados como fatores desencadeantes deste processo.

Nesta direção situa-se o trabalho de Lima et al.1515. Lima MCP et al. Chegou o Quinto Ano: e agora? A experiência da Faculdade de Medicina de Boutucatu (UNESP) na preparação para o internato. Rev Bras Educ Med . 2002; 26 (supl. 2): 37-8, no qual comentam que a etapa final da formação médica (internato) se caracteriza pelo contato intensivo com a prática, trazendo angústias e apreensões, com conseqüente estresse e ansiedade. Estudantes da Faculdade de Medicina de Botucatu, no início do 50 ano, mostraram como expectativa a apreensão e o desejo, associada a uma perspectiva assustadora (responsabilidade crescente, medo de errar ou de não saber o que fazer). No início do 6° ano, a expectativa do aluno já se volta para o sucesso nos exames (especialmente o de Residência Médica).

As tendências apresentadas nesta pesquisa e recorrentes em diferentes estudos são reforçadas pela afirmação de Bellodi, Cardillo e Lima-Gonçalves1616. Bellodi PL, Cardillo G, Lima-Gonçalves E. Perfil do Aluno FMUSP: vida pessoal. Rev Bras Educ Med . 2002; 26 (supl 2): 50.: "aprender a ser médico significa, muitas vezes, perda e/ou diminuição do contato com mundo não médico, especialmente em relação ao lazer, ao contato com a família e a outros significantes fora do ambiente acadêmico".

Algumas características discentes se mantêm do início ao término do curso. Assim, a responsabilidade assumida pelo acadêmico ao lidar com a vida e a necessidade de grande dedicação ao estudo são apontadas como especificidades no papel do estudante de Medicina do 1° ao 6° sexto ano do curso.

A administração do tempo - tanto para o estudo propriamente dito como para sua adequação à vida pessoal - e a frequente dissociação entre teoria e prática são dificuldades apontadas em todos os ciclos investigados.

As transformações vividas no decorrer do curso médico constituem processos de desenvolvimento do estudante universitário, que, ao se deparar com as situações concretas de aprendizagem, ensino e formação, vai reconfigurando expectativas e motivações66. Strange C. Student development: the evolution and status of an essential idea. J Coll Student Develop. 1994; 35 (6):399-412..

Assim, a partir de um momento inicial de euforia, vai se construindo uma estabilidade e uma regularidade quanto às tarefas acadêmicas, marcadas ora por queixas, ora pela assunção de atitudes propositivas.

No campo da Educação Médica, Milan, Marco, Rossi e Arruda22. Millan LE, Marco OLN, Rossi E, Arruda PCV. O universo psicológico do futuro médico. São Paulo: Casa do Psicólogo; 1999. destacam que este processo de desenvolvimento do aluno se caracteriza por sentimentos de ansiedade, angústia e desencanto. Este quadro também foi encontrado nesta investigação, chamando atenção o alto grau de convergência entre as diferentes pesquisas antes mencionadas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ser um bom médico é a expectativa central de todos os alunos, do 1° ao 6° sexto ano. No entanto, percebe-se que a concepção de "bom médico" muda com o desenrolar do processo de formação: uma visão idealizada da profissão é progressivamente substituída por uma aproximação mais realista.

A expectativa em relação ao curso parece acompanhar as transformações vivenciadas em relação à concepção de "bom médico". Inicialmente, os alunos idealizam o curso. No 3°/4° anos, mantendo a imagem de uma prática médica mais hu­manizada, passam a questionar a dinâmica do próprio pro­cesso de formação. No 5°/6° anos, evidenciam certo desencanto com o processo vivenciado.

Neste cenário, a concepção de seus papéis como acadêmicos sofre alterações significativas. No início do curso, adquirir e acumular informações, idealizando sua futura aplicação a uma prática profissional, emerge como nuclear. No final do curso, apreende-se uma ênfase no aprender fazendo, em que adquirir e acumular informações se dão frente à aplicação imediata na prática vivenciada.

As expectativas e concepções discentes durante a graduação em Medicina apontam um processo de transformação pessoal e uma aproximação progressiva da realidade da profissão. Estas transformações precisam ser mais bem conhecidas no contexto de construção de novos currículos, atentando para as demandas sociais e mudanças na profissão médica e, consequentemente, no mercado de trabalho, inserindo desafios no processo de formação em Medicina.

Pesquisas e projetos que procurem ampliar este conhecimento constituem estratégias primordiais e contínuas no processo de (re)pensar as propostas de aprendizagem, ensino e formação desenvolvidas nas escolas médicas brasileiras.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2004

Histórico

  • Recebido
    19 Dez 2003
  • Revisado
    14 Jul 2004
  • Aceito
    30 Set 2004
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