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Projeto Político-Pedagógico da Escola Médica

The Teaching Plan in Medical School

Resumo:

O projeto político-pedagógico é um documento que apresenta as definições básicas dos cursos de acordo com seu contexto, origem, motivos e finalidade. É interessante perceber o projeto em suas funções integradora, no sentido de que aproxima fundamentos e práticas; atualizadora, no sentido de que constitui objeto de reavaliações desses fundamentos e práticas; e estruturante, no sentido de que articula e consolida a constituição e perspectivas acadêmicas dos cursos. Projeto é projeção, é visão do futuro que se constrói no presente e se revê no passado, para que se saiba de onde e por onde o curso se construiu, onde se encontra e para onde se direciona essa construção. Assim, o projeto favorece a consciência do sentido dos cursos, porque estimula a explicitação e qualificação da sua história, objetivos, proposta, conceitos e compromissos fundamentais. Este estudo, portanto, além de observar conceitos e argumentos, procura mostrar uma das estruturações possíveis do projeto, suas partes e suas previsões, no âmbito da escola médica.

Palavras-chave:
Educação Médica - Tendências; Avaliação; Currículo

Abstract:

The Plan for Teaching Policy is a document that outlines the basic definitfons of course contents, origins, motives, and objectives. lt is interesting to analyze the Policy Plan in its various roles: integrating basic theoretical content and practice; updating training, in the sense that it provides the object for reevaluations of such contents and practices,· and structuring the course by linking and consolidationg the establishment of the courses and their academic perspectives. The Plan is a vision of the future that is developed in the present and reflects on itself in the past in order to determine the paths by wich the course was established, its current status, and its direction for the future. The Plan thus fosters an awareness of the meaning of medical school courses, since it encourages the recording and qualification of their history, objectives, proposal, concepts, and underlying commitments. In addifion to observing concepts and arguments, this study therefore seeks to demonstrate one of the possible structuies in the Plan and its components and forecasts for medical school.

Key-words:
Education, Medical - Trends; Evaluation; Curriculum

INTRODUÇÃO

O projeto político-pedagógico é um documento que apresenta as definições básicas dos cursos de acordo com seu contexto, origem, motivos e finalidade.

É interessante perceber o projeto em suas funções integradora, no sentido de que aproxima fundamentos e práticas; atualizadora, no sentido de que constitui objeto de reavaliações desses fundamentos e práticas; e estruturamente, no sentido de que articula e consolida a constituição e as perspectivas acadêmicas dos cursos. Por isso, as Coordenações de Cursos, que também assumem as perspectivas integradora, atualizadora e estruturante, encontram no projeto político-pedagógico um documento interdisciplinar de especial importância para o avanço das metas que orientam as práticas.

A interdisciplinaridade e o envolvimento dos diversos professores e especialidades nas análises e definições constituem características do projeto e interessam, especialmente, aos Coordenadores de Cursos porque "coordenar é organizar em comum, é prever e prover momentos de integração do trabalho"11. Rangel M. Supervisão: do sonho à ação - uma prática em transformação. In: Ferreira NSC, org. Supervisão educacional para uma escola de qualidade. São Paulo: Cortez; 2000. p.69-96..

A coordenação das atividades didáticas e curriculares é interdisciplinar, tanto em seus fundamentos, quanto no sentido da promoção de articulações entre os elementos do processo pedagógico22. Rangel M. O estudo como prática de supervisão. In: Rangel M. Supervisão pedagógica: princípios e práticas. Campinas (SP): Papirus; 2001. p.57-68..

Projeto é projeção, é visão do futuro que se constrói no presente e se revê no passado, para que se saiba de onde e por onde o curso se construiu, onde se encontra e para onde se direciona essa construção.

A origem etimológica do termo é a palavra latina projectu, que é a flexão do particípio passado do verbo projicere, cujo sentido é projetar, lançar para frente, para o futuro.

Assim, o projeto, que "lança adiante" os objetivos, as decisões institucionais e pedagógicas, seus conceitos, princípios e fundamentos, parte de uma trajetória anterior pela qual se chegou ao presente, com seus recursos, condições, propostas, sistemas, processos e realizações, cujos avanços e reconstruções para o futuro são refletidos, decididos, assumidos e projetados pela e para a comunidade acadêmica, que vai praticá-los.

Por isso, o projeto considera o passado e o quanto e como as experiências, conquistas e dificuldades acrescentaram, subsidiando melhores escolhas e alternativas ao que se faz (ou se pode fazer) no presente. Entretanto, o que se projeta para o futuro também requer ultrapassagens e rupturas, para que se considerem novas condições e possibilidades de superação do que se faz pelo que se deseja e se precisa fazer.

Assim, o projeto favorece a consciência do sentido dos cursos, porque estimula a explicitação e qualificação da sua história, objetivos, proposta, conceitos e compromissos básicos e, também, seus ideais.

É interessante, ainda, observar o conceito (significado e sentido) da expressão "político-pedagógico", que adjetiva e, portanto, qualifica o projeto.

O projeto é político, no sentido da observância do significado de política como ciência do bem público. E, sem dúvida, a universidade, de modo geral, e a escola médica, de modo particular, têm origem e finalidade pública, entendendo-se que o seu saber e o seu fazer constituem bens e serviços que se realizam pelo e para o povo.

O projeto é pedagógico, no sentido da observância do significado educacional dos bens e serviços universitários. A pedagogia é o campo de estudos da educação; como tal, esse campo incorpora as questões do ensino, da pesquisa, da extensão das ações educacionais implementadas em todas as áreas de formação e trabalho. Não se recomenda, portanto, dissociar o político do pedagógico:

Político e pedagógico têm assim uma significação indissociável. Neste sentido é que se deve considerar o projeto político-pedagógico como um processo permanente de reflexão e discussão dos problemas da escola, na busca de alternativas viáveis à efetivação de sua intencionalidade33. Veiga IPA. Projeto político - pedagógico da escola: uma construção coletiva. In: Veiga IPA, org. Projeto político­pedagógico da escola: uma construção possível. Campinas (SP): Papirus ; 2000. p.11-36..

Assim, a escola médica, que tem expressiva dimensão de contribuições socioprofissionais ao público, ao povo, ao país, na perspectiva política e cidadã de suas funções, tem também, consequentemente, expressiva dimensão de contribui­ções sociopedagógicas, pelo conhecimento que ensina, desenvolve, pesquisa e estende à comunidade. A educação médica é, portanto, por excelência, um campo de estudos e ações político-pedagógicas.

Desse modo, o projeto político-pedagógico traz definições básicas das perspectivas e propostas sociocducacionais e políticas assumidas pela escola médica, de acordo com sua história, sua origem, sua finalidade, observando as concepções - de professor, de aluno, de currículo - que a orientam.

Nesse sentido, Veiga33. Veiga IPA. Projeto político - pedagógico da escola: uma construção coletiva. In: Veiga IPA, org. Projeto político­pedagógico da escola: uma construção possível. Campinas (SP): Papirus ; 2000. p.11-36. observa que o projeto político-pedagógico tem recebido a atenção e o reconhecimento de professores, pesquisadores e instituições educacionais, tanto no nível nacional, como no estadual e nos municípios, sempre de forma relacionada a avanços na qualidade do ensino, desde a escola básica à universidade.

O projeto associa-se à própria organização do trabalho nas instituições nas quais e pelas quais ele se formula. As principais referências do que se projeta encontram-se nos alunos, professores e comunidade acadêmica de modo geral, incluindo funcionários e observando-se as características e necessidades do contexto social cm que a instituição se insere.

Com esse interesse de refletir e organizar o trabalho e com a finalidade de aperfeiçoar seu encaminhamento, é preciso que a instituição se "lance para diante" e busque o possível, a partir do que tem, do que é e do que deseja ser e alcançar, porque o projeto é, naturalmente, uma síntese do real presente e do ideal futuro.

Ao construirmos os projetos de nossas escolas, planejamos o que temos a intenção de fazer, de realizar. Lançamo-nos para diante, com base no que temos, buscando o possível (...). Nessa perspectiva, o projeto político-pedagógico vai além de um simples agrupamento de planos de ensino e atividades diversas. O projeto não é algo que é construído e em seguida arquivado ou encaminhado às autoridades educacionais como prova de cumprimento de tarefas burocráticas. Ele é construído e vivenciado em todos os momentos, por todos os envolvidos com o processo educativo da escola33. Veiga IPA. Projeto político - pedagógico da escola: uma construção coletiva. In: Veiga IPA, org. Projeto político­pedagógico da escola: uma construção possível. Campinas (SP): Papirus ; 2000. p.11-36..

Por tudo isso, o projeto segue e persegue um rumo, uma direção. Suas ações e decisões são intencionais, ou seja, têm um sentido, um significado explícito, assim como têm compromissos definidos e assumidos pelo coletivo que vai implementá-lo.

O qualificativo "político" é adequado, então, a esses compromissos, que são sociais e públicos, de acordo com os interesses e necessidades concretas da população a que o trabalho institucional atende.

Ainda, do ponto de vista político, a discussão, o envolvimento da comunidade acadêmica com o projeto não só propicia como fortalece a vivência democrática, uma vez que mobiliza o coletivo que vai praticá-lo, trazendo seu olhar, suas atenções para o que é essencial e atual na perspectiva dos avan­ços e comprometimentos do trabalho.

Assim, as relações movidas por possíveis disputas de poder, ou por corporativismo, tendem a se superar, já que se restabelecem objetivos comuns, priorizados sobre as possíveis fragmentações decorrentes da divisão e setorização do trabalho, que, frequentemente, têm reforçado diferenças e a segmentação de poderes de decisão.

Já no plano pedagógico, situam-se as práticas que correspondem à especificidade do processo institucional de ensino, aprendizagem, currículo, pesquisa e extensão. Esse plano, que é de formação de conhecimentos e valores, incorpora as questões da formação para o exercício competente do trabalho, que, por sua vez, se vinculam a direitos e deveres do profissional (aluno ou professor) responsável, engajado, crítico e consciente.

Político e pedagógico são, portanto, qualificativos que se articulam e, na verdade, são mutuamente recorrentes. Assim, projeto político-pedagógico é construído e implementado, servindo ao encaminhamento de reflexões e avaliações constantes, além de constituir-se em estímulo à discussão dos problemas acadêmicos, notando-se dificuldades e emperramentos à efetivação de sua intencionalidade.

O fator intencionalidade, que é substância da formulação do projeto, decorre da própria natureza da instituição, sua origem e os fins para e pelos quais foi criada. Assim, quando se prevêem o processo e ações para a melhoria de qualidade, retomam-se também os propósitos originais e aqueles que a evolução dos conhecimentos e dos apelos socioeducacionais, científicos e tecnológicos acrescentou.

Desse modo, o projeto, ao mesmo tempo em que retoma as bases, origens e condições institucionais, atualiza, de acordo com o tempo, o estado da ciência, da tecnologia, da sociedade, as suas solicitações e compromissos. Por isso, é importante rever a história da instituição, para que não se perca a memória do caminho percorrido e se chegue, com mais segurança, aos novos caminhos.

Por que Rever a História

A história é algo que se constrói no tempo, no espaço, na vida e na sobrevivência dos cursos e das instituições. Desse modo, os fatos e processos históricos são reveladores das razões e dos objetivos que movem pessoas e projetos, traçando sua identidade, delineando a maneira como se situam no curso da trajetória institucional.

A revisão histórica não é "letra morta"; ao contrário, é viva e revitalizante, pois traz, aos pensamentos e às ações, seus sentidos e valores essenciais, seus motivos, suas perspectivas, suas "razões de ser". Nessa revisão, reapresentam-se os personagens que construíram o curso, a instituição, que se envolveram, que se expuseram, decidindo, assumindo, liderando.

A história retoma as bases, os fundamentos que sustentam, que dão segurança de algo que se criou, que prosseguiu, consolidou-se, superou obstáculos, para chegar, hoje, àqueles que fazem a "nova" história, mostrando que é possível, é preciso, é viável reconstruí-la e continuá-la, talvez em novas bases, mas reconhecendo que não se pode edificá-las sem as suas fundações.

História não é passado, até porque a dicotomia e repartição do tempo é algo didático, aplicado às periodizações, enquanto recursos de compreensão e análise de uma "realidade" cuja dimensão é maior e mais complexa do que a leitura humana pode alcançar.

O tempo, em si, não tem descontinuidade, não para em determinadas épocas, não é estanque, fracionado, estereotipado, e, portanto, não se submete (senão para estudo) a "classificações" ou recortes.

Mais ainda, o grande argumento sobre o valor histórico dos fatos, processos e realizações é atestado pelo princípio de que o futuro é construído a cada dia, tanto quanto o presente foi construído por um passado que ele incorpora e prossegue.

"Olhar o passado" pode, então, representar uma consciência maior do que se faz no presente e do que se aspira no futuro. É também esse o significado de "acompanhar o tempo", de atualizar-se, de prever o futuro e caminhar em sua direção de modo mais claro e mais sustentado.

A memória histórica, assim como a memória orgânica, cerebral são sinais de saúde, dos corpos e das instituições. A perda da memória, ao contrário, é sinal de deterioração e de doença.

Se o movimento acadêmico e científico, em tempos de informatização e globalização, evolui em ritmo acelerado, propondo mudanças, novos paradigmas e novos horizontes a serem alcançados, mais que nunca se acentua a importância da recorrência à história e ao conhecimento (e sabedoria) que pode acrescentar às novas perspectivas, projetos e processos, até porque as novas perspectivas não se formulam sem as suas bases, sem as suas estruturas e, portanto, sem o seu encaminhamento histórico.

Rever, reconsiderar, qualificar a história significam readquirir valores e realçar a responsabilidade de cada ato e cada decisão sobre os "novos fundamentos, o "novo presente", com qual se escreve e prescreve o futuro.

Desse modo, se hoje a história é revista e reconsiderada, ela traz ao presente e aos seus protagonistas a noção de que, no futuro, a sua história também será relida e também será parâmetro e exemplo nesse futuro que ajudaram a construir. Por isso, o tempo do universo é construído em cada momen­to, em cada ato, em cada projeto.

Após esta argumentação introdutória, oferece-se ao leitor uma das composições possíveis de um projeto político­pedagógico, situando-o no contexto da escola médica.

Em Cada Parte, um Conjunto de Definições do Projeto

No interesse de subsidiar o leitor, oferecendo um exemplo de composição de um projeto político-pedagógico da escola médica, apresenta-se um possível encaminhamento de reflexões e definições que constituem cada parte, iniciando­se pela apresentação.

Apresentação

Esclarece "o quê" e "para quê" do projeto, situando-se como documento que expressa a construção e a identidade próprias dos cursos da escola médica, suas concepções e propostas fundamentais e integradoras.

Na apresentação cabem os conceitos de projeto, suas razões e importância, sua posição como documento de estudo, de integração, de estruturação e atualização dos cursos, sua natureza interdisciplinar e participativa. Assim, podem ser considerados os fundamentos conceituais que introduziram este artigo.

Contexto Institucional

Após a apresentação, sugere-se que o projeto se situe no contexto institucional da universidade e da escola médica, sua história e sua estrutura organizacional.

Nesta parte do projeto, revêem-se elementos significativos da história da universidade e sua estrutura de organização (níveis acadêmicos, cursos), na qual a escola médica se insere. A história da universidade, sem dúvida, é relevante, no intuito da revisão e reafirmação de valores e fundamentos sociopolíticos e pedagógicos. O segmento deste artigo que procura responder ao "por que rever a história" esclarece e justifica seus motivos e valor, que podem ser assinalados no projeto, servindo às suas reflexões sobre o que se construiu e o que se deseja construir.

A mesma releitura, reafirmação de valores e redefinição de propostas relativas à universidade podem ser observadas no âmbito específico da escola médica, revendo-a em suas "fundações históricas" a sua razão de ser e compromissos.

Em seguida, situado o projeto no contexto institucional, é a vez de situá-lo no contexto social.

Contexto Social: o Estado, o Município, o Bairro, o Aluno

Neste capítulo de contextualização, observam-se os aspectos pontuais, que representam as condições socioeconô­micas e de saúde da população do Estado, do município, do bairro (considerando a infraestrutura de atendimento médico e de prevenção a doenças). Tais observações podem se es­tender ao diagnóstico do contexto predominante do aluno que procura a escola médica. Nesse sentido, contextualizar a escola médica é, também, situá-la em termos de necessidades de ofertas mais imediatas, informadas pelas circunstâncias do bairro, do Município e do Estado, e em termos de características da demanda, informadas pelas circunstâncias de origem dos alunos.

Ao se definirem elementos do contexto, estabelecem-se, consequentemente, prioridades sociopedagógicas dos cursos, suas preocupações políticas, seus critérios de ação e comprometimento público:

A comunidade dos interessados no projeto político-pedagógico da Escola não se limita ao seu interior ou ao entorno imediato. A Escola lida com interesses relevantes para a sociedade toda, que preparam as demais instituições sociais e agrupamentos humanos, em articulações múltipla44. Marques MO. O projeto político-pedagógico organiza a escola. Revista Espaços da Escola 2001; 10(39): 3..

Essa inserção do projeto no contexto social, que é, sem dúvida, referência a estudos e análises contínuas e atualizadas, sustenta as (re)definições das finalidades e concepções básicas que devem orientar a integração do trabalho e de seus propósitos.

Finalidades e Concepções Básicas: da Escola Médica, dos Cursos, do Professor e seu Papel Social e Acadêmico, do Aluno que se Deseja Formar

Neste capítulo, explicitam-se, de modo geral, as finalidades da escola médica e, de modo específico, as finalidades de cada curso, em seus aspectos sociais e pedagógicos, incluindo as perspectivas do ensino, da pesquisa e da extensão.

A (re)construção dessas finalidades é tarefa do coletivo dos professores, a ser atualizada de acordo com os avanços do conhecimento científico e tecnológico, e as necessidades do mercado de trabalho e do contexto social, segundo as informações do capítulo anterior.

A essa parte, seguem-se definições sobre o professor e seu papel social e acadêmico, e sobre o aluno que se deseja formar, complementando-se, então, de modo coerente e sustentado, as finalidades da escola e dos cursos.

Este segmento do projeto é especialmente significativo, pelas concepções que se formulam sobre os profissionais formadores do futuro médico e, conseqüentemente, do futuro da medicina, no sentido de sua inserção em seu tempo, sua história, suas solicitações. Aqui se realça a importância da relação prática-teoria-prática, ou texto-contexto, e da atenção aos novos paradigmas que se apresentam ao ensino e à aprendizagem de saber e saber fazer a medicina, em níveis crescentes de qualidade científica e social.

Assim, o projeto político-pedagógico da escola médica formula e responde à indagação sobre que profissional se deseja formar, em tempos de avanços acelerados do conhecimento e tecnologia, numa sociedade globalizada e informatizada, com efeitos expressivos no refinamento das medicações, diante das especificidades crescentes dos diagnósticos e das complexidades, cada vez maiores, das desigualdades sociais, do desemprego e da pobreza.

Se o desenvolvimento social não acompanha o desenvolvimento científico e se o índice de Gini55. Deininger K, Squire L. Measuring lncome lnequality: A New Database. Development Discussion Papers 1996; 537. -coeficiente usado por economistas para avaliar a concentração de renda e como medida de desigualdade em relação às condições socioeconômicas - aponta, no Brasil, um dos níveis mais acentuados do mundo, equivalente aos de Serra Leoa, na África (Rosemberg, 2001)1 1 Luis Paulo Rosemberg, professor de economia da USP, em palestra realizada no Rio de Janeiro, no Banco Safra, em 26 de outubro de 2001. , pode-se entender em que medida e com que razões a sociedade brasileira traz ao médico e à medicina conflitos, desafios e complexidades que se potencializam na mesma dimensão da pobreza.

Assim, também na mesma proporção, acentua-se a necessidade de indagar (e responder) sobre o perfil do profissional formador e formado pela escola médica.

Às concepções sobre os sujeitos (professores e alunos), seguem-se definições sobre o objeto da formação, ou seja, o conhecimento científico, que se sistematiza e se articula no currículo. Essa questão - substantiva e nuclear nos escopos e processos da escola médica - traz ao projeto a consideração quanto às diretrizes nacionais, à estrutura curricular atual e, possivelmente, à estrutura que esteja em construção, em mudança, denotando uma tendência e uma projeção.

Currículo: Questão Essencial do Projeto da Escola Médica

O currículo é a expressão formal do projeto político-pedagógico da escola. É a materialização desse projeto; aponta para ele e o informa, mesmo a quem não tenha tido acesso ao seu documento oficial.

Por vezes, os objetivos da escola, definidos em seus estatutos, não são mais do que a expressão de intenções nem sempre realizadas. Uma das formas de avaliar o quanto tais intenções se traduzem na prática é uma atenta análise do currículo.

Na verdade, o currículo é (deve ser) a expressão da realidade diária da escola, para além dos aspectos teóricos, formalizados num texto oficial. A escola pode, por exemplo, informar que sua racionalidade se baseia numa concepção biopsicossocial da gênese das doenças, mas o espaço destinado às disciplinas biológicas (em detrimento das psicossociais) no currículo pode mostrar que essa crença não se realiza ou não encontra condições concretas de se realizar na prática; nesse caso, trata-se de intenção que não se realiza nas ações.

Ao mesmo tempo, o currículo deve ser entendido como uma criação histórica, resultante do confronto de forças que, atuando no passado da escola, determinaram sua estrutura curricular atual. Na escola médica, como em outras, por exemplo, a carga horária pode ser conquista e manifestação de prestígio e poder. A disputa histórica pelo prestígio e poder está exibida no currículo; a presença de umas e a ausência de outras disciplinas, carga horária maior ou menor podem revelar determinações históricas e políticas.

Sem perder de vista os condicionantes históricos do currículo, é necessário conformá-lo aos objetivos do projeto político-pedagógico da escola, entendendo-se "da escola" como o maior consenso possível, no momento, entre seus professores, diretores e alunos, e expressão tanto dos avanços do conhecimento médico, quanto do papel social da Faculdade de Medicina. Dessa forma, o currículo encarnará o projeto político-pedagógico e o tornará acessível mesmo a quem não disponha dos documentos oficiais que definem cada escola médica especificamente.

Que competências básicas e correspondentes habilidades específicas são buscadas por quem pretende ser médico? Que tipo de saber deve ter esse profissional que exerce uma atividade com grande embasamento nas ciências biológicas, mas que não se restringe a elas? Respostas dessa natureza deverão estar contidas no currículo. De forma bastante resumida, pode se dizer, a título de exemplo, que a atuação médica exige, entre outros, os seguintes aspectos:

Uma Sólida Formação Clínica

Encarada apenas no seu aspecto profissionalizante, essa é a ênfase da maioria das faculdades de Medicina, senão de todas. A escola pretende formar um profissional cuja prática pri­oritária se dará no interior de uma relação com seus pacientes, individualmente, e no sentido de lhes dar todas as possibilidades diagnósticas e terapêuticas que a medicina de melhor padrão pode oferecer. Essa ênfase ainda representa uma visão do médico como profissional com atuação clínica predominante, o que não está longe do que se tem observado na prática.

Nesse aspecto, apesar de ainda enfatizarem os fatores biológicos, as escolas médicas têm avançado no sentido de formar profissionais que entendam os determinantes psicosso­ciais da saúde e da doença. Além disso, a preocupação predominantemente curativa dos currículos tem sido abrandada por uma perspectiva de valorização dos elementos de promoção da saúde e prevenção de doenças, sem, entretanto, perder de vista a reabilitação como aspecto da prática médica de significativa importância. Para que esses (e outros) avanços se realizem, é necessário aprofundar e produzir conhecimento.

Capacidade de Gerar Conhecimento

Mais do que um curso profissionalizante, a escola médica assume os compromissos da universidade, cujo papel primordial, ao lado da transmissão, é o da geração de conhecimentos. Não se pode relegar essa atividade a segundo plano, sob pena de tornar o profissional dependente de conhecimentos gerados em outros contextos, muitas vezes dissociados da prática em seu meio, em suas reais condições de trabalho.

Nada substitui a experiência de um clínico com vários anos de prática médica. Contudo, para que essa experiência se torne conhecimento, é preciso que sobre ela atue o método científico, para transformar impressões em fatos examinados e comprovados, com fundamentos teóricos, associados à experimentação e à observação sistemática e crítica. Trata-se, portanto, da competência em pesquisa.

Entretanto, os estudos necessários à competência investigativa têm sido, freqüentemente, postergados para a pós-graduação, especialmente em nível de mestrado e doutorado, nos quais se formam pesquisadores que nem sempre permanecem na prática clínica.

Compete, então, à escola médica orientar os profissionais por ela habilitados no sentido de se conscientizarem de que o conhecimento avança pelo somatório das observações empíricas de sua área, desde que essas observações recebam a priori uma formatação conceituai e se submetam ao método científico, para comprovação de sua validade. Essa perspectiva requer, também, estrutura e apoio administrativo.

Competência Administrativa

Muito embora, em cada organização ou unidade de saúde se encontre, salvo raras exceções, um médico na direção ou gerência, a competência necessária para esse tipo de função nem sempre é contemplada no currículo das escolas médicas. Assim, os profissionais que atuam nessas funções acabam aprendendo "na prática" ou buscando cursos de especialização com o objetivo de desenvolver essa habilidade.

Por outro lado, é preciso, também, compreender o consultório - sonho de parte significativa da população de egressos da escola médica - como uma pequena empresa que deverá ser gerenciada com competência. A escola médica tem estado pouco atenta à capacitação para essa atividade, como se ela estivesse ausente da realidade na prática, o que deixa o profissional com uma grave lacuna em sua formação, visto que um percentual expressivo de médicos tem atuação privada em consultórios.

A formação médica, em sua qualidade de atendimento aos interesses socioprofissionais concretos, requer, sem dúvida, uma ação administrativa competente, assim como a mobilização política, que se inicia, prioritariamente, pelas necessidades da saúde pública.

Capacidade de Formular Políticas Públicas de Saúde

A formulação de políticas públicas de saúde é urna função técnica realizada no âmbito de órgãos públicos (ministério, secretarias) por médicos, entre outros profissionais de saúde. A disciplina que capacita os médicos para essa competência, na maioria das escolas, é a disciplina de Medicina Social.

Entretanto, essa competência, para que contemple os apelos das populações e os aspectos específicos das comunidades, de acordo com a localização e os problemas que apresentam, deve ser vista como transdisciplinar, perpassando todo o currículo das faculdades de Medicina, visto que, mesmo quando não pretendendo atuar diretamente na formulação de políticas de saúde, o médico sempre estará agindo no interior de um sistema com políticas definidas, que deverão ser compreendidas e examinadas, com visão e fundamentos críticos. Desse modo, em sua atividade profissional, o médico poderá promover, além do benefício de seus pacientes, um incremento do bem público, em favor dos avanços necessários à saúde coletiva.

Médico, aluno, professor e profissional têm uma possibilidade efetiva de liderança social, pela formação e pelo tipo e âmbito de sua atuação. Por isso, a consciência do compromisso político é parte substancial do trabalho e competência educativa da escola médica.

Competência Educativa

Mesmo quando não pretende seguir a carreira docente, o médico estará em contato permanente com educandos, sejam esses seus pacientes (com os quais assume a função de orientar sobre hábitos saudáveis, no intuito de promoção da saúde e prevenção da doença e de seus agravos), sejam profissionais em formação, já que a grande maioria dos serviços públicos e privados de saúde é frequentada por acadêmicos que ali procuram a complementação prática de seus estudos.

A relação com profissionais em formação constitui um momento particularmente interessante para o médico já formado, no qual ele pode reoxigenar sua prática, estabelecendo trocas significativas com os acadêmicos que, com ele, estão atuando dialeticamente, no sentido de contextualizar o conhecimento teórico na prática real das instituições de saúde. Esta também é uma forma de contribuição dos profissionais em exercício para a desalienação dos formandos e sua inserção nas condições concretas do trabalho.

Assim, ao sumariar algumas das questões ponti1ais do currículo, exemplifica-se sua relevância no contexto da formação acadêmica, reafirmando-se que, na essência da proposta curricular, define-se o conhecimento, que é objeto dessa formação.

Currículo, que, etimologicamente traz o significado de "curso", de "caminho", revela, na verdade, a direção que se percorre para chegar ao profissional que se deseja formar. Os traços mais marcantes desse profissional encontram-se, portanto, no contorno do encaminhamento curricular. Essa argumentação conceitual sustenta a afirmativa de que o currículo é um dos pontos nodais do balizamento do projeto político­pedagógico, incorporando algumas de suas mais relevantes definições.

Portanto, para além das indicações legais, normativas, é importante que a construção do currículo se fundamente nas opiniões de professores, considerando, também, sugestões de alunos em curso e alunos egressos, que poderão trazer suas visões, suas experiências.

Quanto às diretrizes legais, normativas, é interessante que constituam objeto de estudo, exame e diálogo dos professores, considerando as condições, interesses e circunstâncias concretas da prática, do processo de formação e do contexto socioprofissional em que esse processo se insere e ao qual serve.

Por tudo isso, o projeto político-pedagógico incorpora aspectos essenciais do trabalho e da formação, constituindo motivo e referência para a avaliação da qualidade e atualidade dos cursos, seus fundamentos, meios e processos. Considerando o dinamismo e a relevância das ações e contribuições da escola médica, a avaliação se reveste de importância especial, devendo ser prevista no texto e nas perspectivas do projeto.

Avaliação: Dinâmica da Escola e de seu Projeto

A avaliação é ponto sensível do projeto e do processo da escola médica. Assim, concluem-se esses aportes considerando que a avaliação é menos o final do que o reinício das previsões que identificam e "projetam" o que professores, alunos e comunidade científica e social entendem e esperam da formação acadêmica para a medicina.

Desse modo, contemplam-se três enfoques: avaliação do aluno: princípios e processos; avaliação dos cursos: princípios e processos; avaliação do projeto político-pedagógico: princípios e processos.

Os elementos iniciais de referência são, sem dúvida, os fundamentos e concepções que orientam a educação médica. Por isso, as previsões da avaliação constituem um segmento que não só conclui como sinaliza os caminhos das redefinições e atualizações do projeto.

As previsões sobre a avaliação do aluno podem incluir procedimentos a serem realizados no início de cada curso (avaliação diagnóstica), em seu desenvolvimento (avaliação de processo) e ao final de cada período, para verificação de resultados.

A avaliação dos cursos poderá ter uma periodicidade definida no projeto e incluir procedimentos que envolvam professores e alunos (não só os que estão em processo, como os que já concluíram, nesse caso aproveitando-se as contribuições dos egressos, especialmente úteis na perspectiva da relação prática-teoria-prática), procurando-se, sobretudo, preservar o sentido de uma avaliação construtiva e emancipadora.

A avaliação com sentido construtivo e emancipador não se concentra em aspectos desfavoráveis ou em negações da qualidade do trabalho. Ao contrário, as informações encontradas servirão para realçar os aspectos positivos, que possam constituir referências ao aperfeiçoamento do que se faz no presente e do que se "projeta" para o futuro.

Avalia-se para obter informações que fundamentem decisões. Avaliar para construir, para avançar é, principal e essencialmente, buscar informações sobre os melhores caminhos que têm sido percorridos (e nos quais as dificuldades estejam sendo superadas ou minimizadas), para que esses caminhos se reforcem e se ampliem. Essas informações serão, portanto, estímulos a análises nas quais os problemas constatados não se sobreponham ao que já se conquistou e, sobretudo, não reduzam a confiança em novas (e melhores) conquistas.

Esses princípios, que fundamentam um conceito de avaliação, podem estar explicitados no texto e nos critérios de avaliação dos cursos e, também, da avaliação do próprio projeto político-pedagógico, na qualidade de documento e proposta em "permanente constituição e validação":

A Escola se organiza por seu projeto político-pedagógico em processo permanente de constituição e validação, porque elucidativa da vontade coletiva de seus constituintes: alunos, professores, funcionários, comunidade concreta a que ela serve44. Marques MO. O projeto político-pedagógico organiza a escola. Revista Espaços da Escola 2001; 10(39): 3..

Com esses princípios e valores que se encaminharam nestas reflexões, esta conclusão não finaliza, mas apenas introduz, estimula, provoca o debate do projeto político-pedagógico da escola médica. É possível e preciso incrementá-lo, em favor da qualidade pedagógica e social da medicina. Essa qualidade é uma reivindicação da vida cidadã, envolvendo direitos e deveres pelos quais a escola médica tem atuado historicamente (com particular ênfase no Brasil), com significativo empenho e competência.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • 1
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2004

Histórico

  • Recebido
    28 Abr 2004
  • Revisado
    01 Out 2004
  • Aceito
    04 Out 2004
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