Acessibilidade / Reportar erro

A Psicoterapia, a Comunidade e o Bebê na Graduação: Compartilhando as Experiências de um Novo Currículo Médico

Psycotherapy, the Commumty, and infants in Undergraduate Medical Education: Sharing the Experience with a New Medical School Curriculum

Resumo:

Ao se encontrar com um bebê e com seu mundo interior; o estudante de Medicina aprende também a olhar para dentro de si. Isso o capacita a conhecer o mundo de suas emoções para que possa trabalhar com a vida emocional do paciente. O aumento progressivo da necessidade de cuidados psicoterápicos, as revolucionárias contribuições dos estudos e pesquisas sobre os bebês e as inegáveis vantagens de proporcionar a mais intensa experiência possível aos alunos de graduação nos postos de saúde vinculados à comunidade justificam a instituição da formação psicoterápica curricular. Desde o segundo semestre, o aluno começa a acompanhar uma mãe e seu bebê: ali, apreende a presença singular ou múltipla da ampla patologia individual e social. As famílias e os grupos sociais mostram à exaustão o que é necessário para os seus cuidados. Por essa razão, é na comunidade que o aluno deve viver a maior parte de sua aprendizagem. Por meio deste trabalho, há sensibilização dos alunos para a importância dos primeiros anos da vida na formação da personalidade e na prevenção de numerosas patologias da vida adulta. Se a palavra for dada aos bebês, eles farão um excelente discurso. É necessário ouvi-los.

Palavras-chave:
Educação Médica; Currículo; Relações Comunidade-Instituição; Intervenção Precoce; Fases do Ciclo da Vida; Psicoterapia

Abstract:

By discovenng infants and their inner world, medical students also learn to look inside themselves. This experience prepares them to know the world of their own emotions in order to be able to work with the emotional lives of patients. The progressive increase in the need for psychotherapeutic care, the revolutionary contributions by studies and research on infants; and the undeniable advantages of providing the most intense experience possible for undergraduate medical students in community­based clinics justify the inclusion of psychotherapeutic training in the curriculum. ln the second semester, each student begins a follow-up on a mother and her infant, thereby grasping both the unique and multiple characteristics in the broad range of individual and social health anel disease. Families and social groups provide exhaustive evidence of what is needed for infant care. Therefore, students should experience most of their learning in the community. This work raises students' awareness concerning the importance of the first years of life for developing the child's personality and preventing numerous diseases in adulthood. If we give the floor to children, they will make excellent speeches. And doctors-in-training should listen to them.

Key-words:
Education, Medical; Curriculum; Community Institutional Relations; Early Intervention; Life Cycle Stages; Psychotherapy

INTRODUÇÃO E HISTÓRIA

O objetivo deste trabalho é destacar a importância do ensino da psicoterapia nos cursos de Medicina. Para isso, será exposta uma breve história da psicoterapia e uma nova abordagem para a sua aprendizagem. Ainda, será enfatizada a observação dos bebês, a psicoterapia dos bebês e o estágio nos postos de saúde da comunidade como uma etapa fundamental da formação médica.

A história da psicoterapia acompanha a da Medicina. Em suas origens, ela foi dualista: entendia a pessoa como saudável e boa, e que a doença e o mal vinham do exterior -causados por seres imaginários, deuses ou diabos, generosos ou vingativos. No auge da cultura grega, Hipócrates, com genialidade e humanismo, organizou essas idéias. Estabeleceu que a doença e o mal estão dentro da pessoa e que é ali que devem ser estudados e compreendidos11. Zilboorq G, Henry GW. Historia de la Psicologia Médica. Buenos Aires (AR): Psique; 1968..

Ésquilo, dramaturgo e presença forte da época, apresenta, por meio da fala de uma personagem, uma importante compreensão da psicoterapia: "Não sabes que as palavras são os médicos das almas transtornadas?"22. Teles B. Prometeu agrilhoado. Porto Alegre (RS): Chardron; 1914.. Expressou, assim, a força da comunicação entre as almas. Porém, como olhar para dentro de si exige coragem e persistência, regrediu-se - e a demonologia recrudesceu.

Foram necessários quase dois mil anos para que Paracelso recolocasse a doença na pessoa. Em lugares e momentos diferentes, a dicotomia voltou a ser configurada. Ao longo desses processos de avançar e retroceder, a psicoterapia foi crescendo. Em 1734, Mesmer repõe a doença na pessoa e descreve a cura pelo poder da mente. É o primeiro a falar em rapport. Em face de seu sucesso, supõe-se que tenha trabalhado com a empatia. Em seguida, Puysegur sistematiza o estudo da hipnose. Charcot, Bernheim Janet e outros descrevem diferentes manifestações do inconsciente.

Chega-se a Sigmund Freud, que, por meio de exaustivos estudos clínicos, demonstrou o quanto o inconsciente é imenso e dominador. Decifrou e mostrou os caminhos de muitos mistérios da alma. Enfatizou a influência da biografia no comportamento do paciente e do terapeuta. Apresentou a fala como instrumento fundamental para trabalhar com a desorganização das pessoas, ajudando a manejar os conflitos e as tensões da vida. Alertou para ser empático, ouvir, buscar o entendimento e usar as palavras11. Zilboorq G, Henry GW. Historia de la Psicologia Médica. Buenos Aires (AR): Psique; 1968..

A PSICOTERAPIA E OS CUIDADOS DA ALMA

A partir de Freud, a psicoterapia tem crescido e se ramificado, principalmente por meio da psicanálise, psicologia, psiquiatria e de médicos de variadas especialidades. Outros profissionais, como filósofos, religiosos, enfermeiros e assis­tentes sociais, em menor número, têm a ela se dedicado.

Os objetivos e a prática da psicoterapia são atraentes. O conhecimento de si próprio e das pessoas com quem se convive exerce uma atração irresistível, inclusive para aqueles mais distantes da possibilidade desse conhecimento. Auxiliar as pessoas e a si próprio a enfrentar a vida - pródiga em limitações e sofrimentos - deixa de ser atração e passa a ser uma necessidade, uma compulsão.

Em Porto Alegre, existem 45 centros de formação de psicoterapeutas, e em outras grandes cidades ocorre a mesma expansão. Cada um desses centros tem seus princípios e regras.

Cabe perguntar quais são a orientação e as inspirações dessa formação.

Em geral, cada grupo ou terapeuta, ao longo de seus estudos, desenvolve sua maneira de trabalhar, de conhecer suas limitações, as do paciente e as da vida. Espera-se que, por meio da adição de sua luz às luzes do paciente, este possa iluminar, por si próprio, suas capacitações e decisões. Cyro Martins, escritor, psiquiatra e psicanalista gaúcho, com propriedade, expressou seu jeito de ajudar as pessoas: "Ter senso de realidade, senso de humor e um sentido poético perante a vida"33. Martins C. Perspectivas do humanismo psicanílitico. Porto Alegre (RS): Sulina; 1974.. Não é necessário ser poeta no estrito senso da palavra. Mas, se for, é bom. É um espaço que envolve a alegria de viver, o amor, a empatia, a liberdade e a criatividade nos limites dos talentos de cada um.

Pergunta-se: esta avalancha de profissionais tem sido eficiente?

Em extensão, na simples formação de técnicos titulados, sim. Porém, em efetividade, no alívio das tensões da população, não. A principal causa dessa ineficiência é que, para exercer a psicoterapia, o terapeuta precisa conhecer o mundo de suas emoções para trabalhar com a vida emocional do paciente. Acrescenta-se a isso um modelo econômico que valoriza em demasia as medicações e que dificulta e distorce a tarefa primeira do psicoterapeuta: ter tempo para ouvir e para falar. É um tempo necessário para o paciente assumir suas potenci­alidades. Existem centros de excelência, porém são poucos e sem repercussão para a saúde pública.

A PSICOTERAPIA NOS CURSOS DE MEDICINA

Os cursos de Medicina têm recebido contribuições da medicina psicológica ao seu currículo. Hoje, estuda-se o ciclo da vida desde os bebês aos idosos, a relação médico-paciente, a tradicional psiquiatria e a psicoterapia. O maior êxito desta integração foi o desenvolvimento de Centros de Estudo em Psiquiatria, paralelos aos cursos médicos, alguns excelentes e que se destacaram principalmente em nível de pós-graduação. Entretanto, a separação entre o corpo e a alma segue presente, ou por incompreensão, ou por oposição direta ao estudo da mente. Alguns alunos e professores, por exceção, têm uma natural intuição psicológica, mas a maioria trabalha sem incorporar os afetos e as emoções.

Um exemplo dessa dicotomia é o dos residentes, que, no início de seu trabalho, quando se defrontam com um mínimo sinal de sofrimento da alma, encaminham prontamente o doente ao residente de psiquiatria. Não é uma atenção à especialidade do colega, mas, sim, a afirmação de que, com a sua progressão profissional, se limitam ao estudo e trabalho com o corpo.

O que acontece em hospitais universitários, sede de estágio de cursos de Psicologia e Medicina, é ainda mais gra­ve. Estabelece-se que os estudantes de Medicina e seus supervisores cuidem só do corpo, enquanto os alunos de Psicologia, com seus supervisores, cuidem só da mente. Consolida-se, nos primórdios da aprendizagem, que uns trabalham com o corpo, e outros com a alma, e a pessoa, dividida em dois pedaços, fica com a incompreensão. É o que ocorre também com alguns filósofos, religiosos e estudiosos das ciências biológicas que trabalham ou só com a mente ou só com o corpo, embora, teoricamente, refiram preocupações com o outro lado.

Os médicos, naturais integradores, têm uma maioria de empolgados com o corpo e esquecidos da alma. E os psiquiatras os acompanham. Magnetizados com o brilho das medicações, também abandonam as almas, embora lhes acendam algumas velas nos encontros e congressos.

Entende-se que a origem dessas distorções está na estrutura e no funcionamento dos cursos de Medicina e também em seus professores. Eles estudaram em outros cursos com as mesmas características.

BASES PARA UM CURRÍCULO INTEGRADOR

Para tentar reverter o exposto, trabalha-se com três pressupostos para a formação psicoterápica do médico durante a sua formação curricular:

  • o aumento progressivo da necessidade de cuidados psicoterápicos;

  • as revolucionárias contribuições dos estudos e pesquisas sobre os bebês;

  • ênfase na mais intensa experiência possível dos alu­nos de graduação nos postos de saúde vinculados à comunidade.

Capacitação Psicoterápica dos Médicos

Está prevista para o início deste século a prevalência de doenças como depressão, transtornos decorrentes do álcool e das drogas, conduta anti-social, transtornos neuróticos relacionados ao estresse, transtornos somatoformes e aqueles relacionados às perturbações fisiológicas44. Kaplan HI, Sadock BJ, Greebb JA. Compêndio de Psiquiatria: ciências do comportamento e Psiquiatria Clínica. 7 ed. Porto Alegre (RS): Artes Médicas; 1997.. Essas afecções exigem uma demanda inatingível pelos especialistas disponíveis.

A resposta a essa solicitação é capacitar o médico, ainda estudante de Medicina, para a prevenção desses problemas, colocando-o em face do estudo e das decisões relacionados aos primeiros anos do desenvolvimento. Capacitar, na graduação, a formação de médicos psicoterapeutas, qualquer que seja a especialidade futura, possibilitará a construção de uma base segura para atender os problemas emocionais dos pacientes55. Bridge EM. Pedagogía médica. Washington (US): Organização Mundial de la Salud; 1967..

O Estudo dos Bebês

O bebê é um importante professor de Medicina. É rico de sentimentos, conhecimentos e, acima de tudo, é o que melhor entende que corpo e alma são uma só entidade. Observando o bebê com tempo e atenção, aprende-se primeiro a sua transparência e, depois, no nascedouro, todas as flexões das emoções e da conduta da pessoa adulta66. Golse B. O desenvolvimento afetivo e intelectual da criança. Porto Alegre (RS): Artes Médicas ; 1997.. É professor porque, quando não o entendemos ou não sabemos o que fazer, ele nos dará a resposta se estivermos atentos às suas diferentes formas de expressão77. Lebovici S. O bebê, a mãe e o psicanalista. Porto Alegre (RS): Artes Médicas ; 1987..

Nesse encontro com o bebê e seu mundo interior, é natural que o aluno aprenda também a olhar para dentro de si. Isso é muito bom para o estudante de hoje, para o futuro médico e, em especial, para o psicoterapeuta44. Kaplan HI, Sadock BJ, Greebb JA. Compêndio de Psiquiatria: ciências do comportamento e Psiquiatria Clínica. 7 ed. Porto Alegre (RS): Artes Médicas; 1997.. Com essa aprendizagem, no berço do bebê e no berço do currículo médico, o aluno irá apreender a alegria, a empatia, a liberdade, a criatividade e, principalmente, a verdade.

O bebê é um acessível tratado de Medicina. A estrada foi aberta e vem se tornando cada vez mais ampla, com as contribuições de Spitz e Bolwby, Winnicott, Ester Byck, Lebovici, Kraemer, Brazelton, entre outros. O bebê-professor é um sábio, experiente, modesto, forte, mas também frágil. O mundo adulto tem sido em relação a ele, com frequência, um grande predador. Desconhecido no ensino da Medicina, nunca o foi pelos poetas e artistas. Vevéu, um escultor de Ouro Preto, cons­truiu em pedra-sabão a cabeça de um homem, com barba e vasta cabeleira, com diversos baixos-relevos de bebês. Em11. Zilboorq G, Henry GW. Historia de la Psicologia Médica. Buenos Aires (AR): Psique; 1968. Ouro Preto, em 25 de junho de 2002, ele assim descreveu seu personagem1 1 Citação pessoal. :

O homem que resgatou sua verdadeira identidade.

Esse homem nasceu e cresceu com o objetivo único de conseguir fama e dinheiro. Lutando para esses objeti­vos, ele chega no topo do sucesso de forma infeliz, por­que no seu interior encontrava um grande vazio; ele se perguntava: qual o motivo dessa infelicidade, desse vazio? A resposta estava dentro dele próprio. É que ele havia deixado para trás a criança que era ele, perdida no mundo. Arrependido, o homem volta atrás em busca dessa criança e se depara com vários grupos de meninos, vendo-se em cada grupo, brincando e sorrindo sem fazer qualquer diferença de classe, raça ou credo, onde têm apenas o dia para brincar, a noite para dormir, e eram felizes. Com o arrependimento, o homem volta a sua origem de homem e humilde como Deus o criou, por isso ele olha e fala com a pureza e a ingenuidade da criança. Antes ele havia conseguido fama e riqueza olhando apenas para frente, atropelando tudo e todos, sem se preocupar com as pessoas que estavam a sua volta. O homem nunca deve deixar de lado sua parte de criança.

Curso de Medicina na Comunidade

O estudo da pessoa, hoje, nos cursos de Medicina, ocorre em salas de aula, seminários, mesas-redondas, reuniões clínicas, ambulatórios e hospitais. São abordagens necessárias, mas modestas quanto à eficácia, ao entendimento, à incorporação de conhecimentos e às vivências experimentadas pelo aluno: são experiências facilmente distorcidas, seja porque o paciente está inserido num cenário divergente de seu mundo, seja porque o estudo e a discussão dos casos acontecem de forma racionalizada, teórica e, sobretudo, distante da pessoa.

É diferente quando se estuda o paciente interagindo no meio em que vive, com a sua família, na sua casa, em seus agrupamentos sociais, culturais e de lazer. É quando a aprendizagem se consolida, principalmente quando o aluno assume tarefas de fato - de início acompanhado, mas em seguida a sós. É na comunidade que se observa e aprende com efetividade quando um transtorno aparece no corpo, na alma ou no contexto social. Independentemente da origem, é ali que se irá ter clareza das intensas correlações corpo-alma­mundo externo. É onde a vida, em ciclos, emerge, cresce, declina e desaparece. É onde o aluno deve viver a maior parte da sua aprendizagem.

Aqui estão depoimentos de estudantes ao jornal Zero Horn, de Porto Alegre, em 12 de julho de 2000:

Aqui a gente trabalha com a vida desde o início. (Aluno 1)

Não tenho nada contra as aulas na Medicina, pretendo me especializar em cirurgia, está certo que os laboratórios macabros são inevitáveis. Porém a vida fora do laboratório e dos hospitais que o estudante está conhecendo, com o novo currículo (ciclo de vida), tornou-se a parte mais reveladora do curso até agora. (Aluno 2)

Estou terminando o curso e me despedindo da mãe e do bebê que acompanhei. Para mim, o futuro da medicina está na prevenção e na promoção da saúde e no reforço das relações do bebê com a família. (Aluno 3)

Antes de tudo sou amiga da mãe e do bebê. Ê uma relação importante porque estou vendo tudo que aprendo na faculdade. (Aluno 4)

Os entraves ao trabalho dos alunos na comunidade procedem das instituições e dos professores. Alega-se, por exemplo, que é dispendioso. Não é verdade. Os recursos para adquirir um instrumento de custo médio da tecnologia pós-graduada cobrem, com folga, a organização de mais de dez postos de saúde em comunidades. Outro obstáculo é o cansaço da maioria dos professores que trabalha na comunidade. A vocação médica exige esse gostar. O conluio contra a comunidade é forte: o curso economiza, o professor se acomoda com aulas magistrais em salas confortáveis, os alunos se protegem de seus naturais temores em face do paciente e sua gente; e a comunidade, por sua vez, tem dirigentes que querem projetos de efeitos políticos, ao invés daqueles mais efetivos e menos visíveis.

Não será receio da formação de um médico melhor?

Quando a aprendizagem acontece na comunidade, uma virtude se destaca: as discussões intermináveis sobre os conteúdos dos currículos, em especial sobre o que deve ser minis­trado em aula, são deixadas em segundo plano. Isso é possível porque as famílias e os grupos sociais mostram à exaustão o que é necessário para os seus cuidados.

PROPOSTA E RELATO DE UM NOVO CURRÍCULO MÉDICO2

A proposta de um novo currículo médico que se está apresentando2 2 Nota dos autores: esta proposta integradora do Ciclo da Vida e da Psiquiatria, no Currículo Médico do Curso de Medicina da Ulbra, foi organizada e coordenada pelo professores Odon Frederico Cavalcanti Carneiro Monteiro e Salvador H. Celia, com a colaboração dos professores Elaine Silveira, Telma Bernardes, Carmem Nudelman e Ana Lúcia Dieter, de 1996 a 2001. tem, como estrutura axial, uma sequência de disciplinas ao longo de oito semestres. Elas versam sobre as várias etapas do ciclo da vida e incluem a psiquiatria tradicional, que, nesta formatação, deixa de ser tão convencional.

As disciplinas apresentam-se na seguinte sequência:

  1. O bebê e o seu mundo - observação dos bebês, suas mães e famílias;

  2. O bebê e o seu mundo II;

  3. A pessoa, seus sintomas e o médico - semiologia psiquiátrica, integrada à semiologia geral, realizada na comunidade e que estuda também a pessoa do médico;

  4. A criança descobrindo o mundo -etapas seguintes do desenvolvimento, no contexto das famílias e comu­nidades;

  5. O adolescente e seu destino - estudo das últimas eta­pas do desenvolvimento até a morte;

  6. O homem, seus grupos e a introdução à psiquiatria - dá ênfase ao estudo dos grupos, principalmente médicos e de ensino;

  7. A pessoa, seus transtornos e cuidados;

  8. A pessoa, seus transtornos e cuidados JT.

Nestas duas últimas, estuda-se a psicopatologia e a psicoterapia dos bebês, crianças, adolescentes, adultos e idosos.

Por que oito semestres e não um só, anual e concentrado?

Como as ciências do corpo, as ciências da alma devem ser trabalhadas ao longo de todo o curso.

Por que integrar o ciclo da vida com a Psiquintria?

Quando se estudam os módulos básicos, morfologia e fisiologia, as anormalidades são referências breves. No estudo da patologia, as anormalidades são observadas nas células, nos órgãos e em geral, em estreita relação com os dois primeiros módulos citados. Aqui, existe uma razoável definição e fronteira entre o normal e o patológico. São sucintas as referências quanto ao desenvolvimento da pessoa e à prática clínica. Ocorre uma radical diferença no estudo da mente: o normal e o patológico estão integrados, intensa e extensamente, nas origens, no crescimento, nas circunstâncias da vida e no meio social. Em decorrência destes fatos, a Psiquiatria incorpora o estudo do desenvolvimento, das gerações anteriores, das relações interpessoais e do mundo circundante.

Em resumo, a Psiquiatria, até há pouco ensinada nos últimos anos do curso médico, agora ocorre desde o início. Isto porque é necessário conhecer o desenvolvimento, os complexos generacionais e a trama dos processos sociais no momento em que aparecem, fundidos com os transtornos mentais. Quando um aluno começa, desde o segundo semestre, a acompanhar uma mãe e seu bebê, observa tudo o que se passa ao seu redor. Vai olhar, então, um avô alcoolista, um marido desempregado, uma avó tuberculosa, um tio esquizofrênico, um outro retardado, a fome, enfim: a presença singular ou múltipla da ampla patologia individual e social. Independentemente da disciplina em curso, por estar na comunidade, está em face de tudo o que irá encontrar na sua vida.

RESULTADOS, REPERCUSSÕES E DIFICULDADES

Os coordenadores e professores que começaram a trabalhar com este novo currículo acreditavam que iriam atingir objetivo de sensibilizar os alunos para a importância dos primeiros anos da vida na formação da personalidade e na prevenção das patologias da vida adulta. E isso de fato aconteceu.

A surpresa foi que ocorreram outros efeitos que superaram as expectativas. Os seguintes progressos foram anotados, não só pelos professores do Ciclo da Vida, mas também por professores de outras disciplinas e colegas de outras instituições médicas, locais de estágio dos alunos:

-o desembaraço progressivo na abordagem das famílias e em atividades da comunidade;

-o desenvolvimento de segurança para entrevistar pessoas a sós;

-ao assistir a uma entrevista de qualquer paciente, sendo ela difícil ou não, há evidente emergência de empatia com o sujeito, pois vários alunos se apresentam para prosseguir com o atendimento;

-menos de 10% dos estudantes optam por não participar. Deve-se entender esta opção por naturais sentimentos de vulnerabilidade e insegurança em face dos pacientes;

-expressam um claro desejo de ajudar, com investigação das histórias dos pacientes em entrevistas mais longas que as em uso nas escolas de Medicina;

-habilitam-se, como médicos gerais formados, para o atendimento de bebês, crianças, adolescentes, adultos e ido­sos;

-as avaliações de aproveitamento consistiram em níveis ótimo e bom para 70% dos alunos da primeira turma de formandos.

Algumas das respostas à questão de prova transcrita a seguir são, aqui, tomadas como ilustração.

Um pequeno comerciante, da comunidade do posto de saúde, busca atendimento porque quer se separar. Tem dois filhos, um de quatro anos e outro de três meses. A esposa tem um pequeno comércio, no qual é bem-sucedida. Não queria a segunda gestação. O parto foi cesáreo, não amamentou, chorou muito, deprimiu-se e mostrou total desinteresse pelo bebê. Este foi cuidado pelo pai e por duas babás convocadas entre os familiares. A esposa explica ao marido que há dois meses está apaixonada por outra pessoa. O comerciante ficou com muita raiva, de­primiu-se e quer a separação para a qual vem pedir ajuda. A pergunta aos alunos foi como orientá-lo.

As respostas foram homogêneas no conteúdo e forma. Escolheu-se uma longa (A), uma resumida (B) e outra média (C)

Resposta do aluno (A):

É preciso destacar que, sob o ponto de vista do marido, seria melhor que não fossem tomadas atitudes precipitadas diante de quadros nos quais nos encontramos deprimidos, e isto deve ser dito ao paciente. O momento de tomarmos decisões não é em momentos de depressão. Assim, o primeiro passo é conseguirmos estabelecer uma aliança terapêutica, colocando-nos de tal forma que esse marido perceba que entendemos sua dor e mágoa diante do quadro vivido pela esposa. O próximo passo é procurarmos entender o que se passa com esse casal, o que se passa com essa mãe. Diante do que nos coloca o marido, estamos diante de uma mulher vivendo um quadro de depressão pós-parto. É claro que não podemos esquecer a dor do marido e entender o que pode estar se passando com sua companheira. Ele coloca que gosta dela, tem dois filhos com essa mulher e, se ele encontrar-se disposto, deveríamos tentar ajudar o casal. Sua esposa não desejava ter outro filho; por alguma razão existente na história dessa mulher, essa ideia a revoltava, provavelmente por suas questões psicológicas, por suas experiências negativas em um processo de transferência com a chegada do bebê. Com toda essa carga de riscos, surge um caso de depressão pós-parto declarada pela narração do marido. Procurando expor o quadro ao marido, demonstrando as dificuldades de ambos em lidar com a situação, vamos procurar orientá-lo no sentido de expor seus sentimentos, suas inseguranças. Procuremos explicar a esse pai a necessidade de construirmos uma 'base segura' para esta mãe que se encontra desorientada na nova situação e enfatizar o quanto é importante para essa família a presença desse pai. Talvez podendo fazer esse homem aumentar sua auto-estima e perceber o quanto é importante para ajudar a mãe e o bebê. Podemos nos colocar à disposição dessa esposa e de seu bebê. Podemos também orientar o pai sobre a necessidade de auxiliar sua esposa nas atividades com ele, para que ela sinta necessidade de auxiliar companheiro e, dessa forma, o bebê será mais amado, percebendo que, embora não tenha sido planejado, está presente e oferece a oportunidade de ainda trazer muitas alegrias a esses pais. Os fotos devem ser postos de tal forma que a crise seja abordada e não mascarada como se fosse um relação que subitamente se encerrou. Entre outras coisas, além de conversar sobre o que está acontecendo, o marido pode reforçar os pontos positivos de sua esposa e de seu bebê, cuidando deste de uma forma dedicada, ajudando-o, suprindo suas necessidades de interação, sendo que assim o bebê também compreenderá que sua mãe está um pouco 'atrapalhada', assim como seu pai, nesta situação inovadora. Com conversa, calma e empatia poderemos ter uma evolução favorável desse processo.

Resposta do aluno B:

O grande problema desencadeante do quadro é a não-existência de apego entre mãe e bebê. O que está ocorrendo é uma depressão materna. A conduta sugerida seria uma terapia familiar, tentando determinar o conteúdo das relações pai-mãe-bebê. Observar, avaliar os conflitos, as defesas e a história de cada um dos pais. Avaliar a situação do bebê nesse quadro. É bastante provável a presença de fantasmas nessa relação, que deve ser elucidada melhor por meio da psicoterapia.

Resposta do aluno C:

O paciente deve ser orientado quanto à sua situação com a esposa, mas também quanto à depressão do filho. A separação neste momento não seria uma boa alternativa, pois o paciente deve procurar entender a sua esposa que sofre de uma depressão materna importante. A procura ou achado ocasional de um novo parceiro é reflexo da situação vivenciada por ela. Desde o início a esposa não aceitou a chegada do bebê e, após o nascimento, isso intensificou-se, já que exigia dela competência materna. Orientar o paciente também a respeito do bebê que se encontra em depressão devido à depressão materna. Portanto, é necessário antes da atitude da separação que ele incentive a sua esposa a procurar atendimento, pois a resolução da separação da sua esposa modificará todo esse quadro; o paciente deve levar a sua esposa para uma consulta comigo (psicoterapia) a fim de tratar a sua depressão. Ou ainda pode-se indicar para uma equipe de psicoterapia familiar para realizar acompanhamento da mãe e do bebê. O paciente também deve continuar se consultando no posto de saúde mental para avaliar sua raiva, angústia e depressão referidas por ele.

Essas três respostas, e as outras intermediárias no tamanho, mas igualmente densas e efetivas, mostram sensibilidade e preocupação com o paciente e seus cuidados. Cabe um destaque à primeira. É a compreensão de um conflito grave e um planejamento de psicoterapia para toda a família. Na terceira, num clímax de empatia, a aluna se apresenta para fazer o atendimento. Esses três estudantes já escolheram suas especialidades: não serão psiquiatras, mas revelam habilidades de psicoterapeutas para atuar nas respectivas especialidades. Quanto aos professores e criadores da prova, foram surpreendidos pela capacitação demonstrada.

Outros centros de formação médica, por intermédio de seus professores, expressaram opinião estimulante e se posicionaram positivamente frente ao currículo. Cita-se, primeiro, o saudoso professor Donald Cohen, então diretor da Child Study Center da Yale University, no ano 2000, quando conheceu pessoalmente esses alunos e serviços. Deixou a seguinte mensagem:

Os estudantes de Medicina de hoje serão os médicos da futura geração: eles se tornarão líderes em várias especialidades, como cirurgia, pediatria, cardiologia, oncologia, obstetrícia, psiquiatria e outras. Eles se tornarão líderes em suas comunidades, serão observados por outros e serão líderes não só na saúde pública, como nas áreas de atendimento governamentais. Terão uma grande influência sobre a saúde e a qualidade de vida de milhões de pessoas em muitas cidades. A participação dos estudantes, cuidando das mães e dos bebês, irá melhor prepará-los para seus futuros papéis na vida. Este programa irá prepará-los para:
  1. Lidar com sentimentos em situações intensas.

  2. Reconhecer o que ocorre em cada fase da vida de cada pessoa.

  3. O cuidado e a atenção para com as pessoas que vivem traumas ou crises.

  4. Aprender sobre o impacto dos fatores sociais sobre a saúde, doença e desenvolvimento.

O programa permite nos estudantes começar sua formação vendo, realmente, como é a vida familiar de muitas pessoas, uma grande minoria dos casos diferente de suas próprias famílias. Eles verão as dificuldades e luta de pais para desenvolver seus filhos e, nesse contato próximo, aprenderão sobre o papel do médico como cuidador, e os sentimentos que despertam nos pacientes e neles mesmos. O programa não é o mesmo que de um voluntário. O programa que eu vejo é uma parte importante do dia-a­dia da educação médica, permitindo no estudante trabalhar no laboratório de desenvolvimento humano, sob os cuidados de supervisores e professores especializados. Concluiria dizendo que o programa é uma introdução importante para a ciência da compreensão clínica e dos cuidados de atenção e atendimento no paciente.

Outros professores, por meio de citações pessoais, assim se manifestaram:

  • Miguel Cherro Aguerre (Montevidéu, 1999): Projeto inovador para a formação do estudante de Medicina e para prevenção. Gostaria de aplicar no Uruguai.

  • Bernarde Golse (Paris, 2002): Trata-se de uma experiência inovadora, inédita, que eu gostaria muito de desenvolver na Universidade René Descartes.( ... ) A prevenção mais profunda e mais radical (quer dizer aquela que toca realmente as raízes das dificuldades) passa efetivamente pelos cuidados físicos para com os bebês, pela atenção física que lhes é dada e pelo sistema educativo que lhes é oferecido. Eu nunca vira anteriormente uma municipalidade (Cnnela/RS - município onde os alunos de Medicina da Ulbra desenvolvem atividades de extensão) que tivesse cuidado com a primeira infância.

  • Serge Lebovici (Paris, 2001): Penso ser uma experiência muito positiva, que irá acrescentar à formação do médico, tal como os grupos Ballint acrescentaram para a formação humanística. Gostaria de acompanhar este trabalho.

  • Bertrand Cramer (Genebra, 2001): Penso ser de muita utilidade para n formação médica o estudo da assistência nos bebês e suas famílias. Pretendo acompanhar.

  • Sandra Serpa (Genebra, 1998): É um trabalho de pura emoção.

  • Antoine Guedeney (França, 2003): O programa é modelo para os europeus.

Para encerrar, faremos referência a problemas e a dificuldades. Primeiro, enfrenta-se a crítica que considera excessiva a importância dada aos bebês e a pressão para que se extinga a psicoterapia de bebês. Segundo, é reivindicado mais espaço para temas psiquiátricos tradicionais, mesmo que abundantes nos textos de Psiquiatria e apesar da riqueza encontrada nos estágios dos postos de saúde. Esses vetores insinuantes e enganosos, num primeiro momento, fizeram com que alguns dos professores e idealizadores do programa, confiantes na originalidade e na força do estudo dos bebês, passassem a duvidar de suas convicções e a concordar com propostas de mudanças. Entretanto, analisando-se melhor os fatos, encon­trou-se o seguinte:

  • desde o início do curso médico, foram publicados cerca de 30 trabalhos sobre o novo currículo em livros, revistas, congressos e encontros científicos; foram apresentadas mais de 15 comunicações internas à direção do curso, além dos planos de ensino que são renovados anualmente;

  • críticas e argumentos contrários nunca foram sequer formalizados: nada, nem interna, nem externamente, foi escrito contra a temática dos bebês;

  • após a avaliação anual realizada pelos alunos, estes foram citados como supostos grandes opositores do "exagerado estudo dos bebês"; conferindo-se, porém, foram encontradas apenas quatro avaliações contrárias num universo de 450 alunos;

  • a parte prática das três disciplinas específicas dedicadas ao bebê está totalmente integrada às famílias e às comunidades, local onde os transtornos observados correspondem a todas as etapas do desenvolvimento. É impossível estudar um bebê e sua mãe sem ver, por extensão, a sua família e o que o cerca. Cortar o estudo dos bebês é uma fuga da comunidade.

O aparente receio em face do trabalho com os bebês justi­fica um reestudo de suas possibilidades.

O trabalho segue, e, se a palavra for dada aos bebês, eles farão um excelente discurso. É necessário ouvi-los.

Sublinham-se duas histórias: a primeira, de Iruan. Ele ficou órfão logo ao nascer. Passou a ser disputado, então, pelos parentes de Taiwan e do Rio Grande do Sul. Por três anos, ambientou-se com os familiares de Taiwan; depois, por decisão da Justiça, retornou aos familiares brasileiros. Ambas as decisões foram tomadas sem levar em consideração os sentimentos e as necessidades da criança.

A segunda é a de dois pais peruanos. Por terem divulgado fotos da amamentação de seus bebês gêmeos, eles foram condenados pela Justiça americana, que alegou "ato obsceno". Receberam liberdade após protestos de instituições internacionais. Os gêmeos, de um ano de idade, foram afastados de seus pais por cinco meses e entregues à Seguridade Social do Estado do Texas.

Esses não são acidentes administrativos, mas, sim, realidades de uma burocracia inteligente, embora cega para as suas poderosas pulsões primitivas. São atendidas demandas de grupos sociais também primitivos, cujas maquinações - difícil é reconhecer-, em proporções variáveis, estão dentro de todos nós.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • 1
    Zilboorq G, Henry GW. Historia de la Psicologia Médica. Buenos Aires (AR): Psique; 1968.
  • 2
    Teles B. Prometeu agrilhoado. Porto Alegre (RS): Chardron; 1914.
  • 3
    Martins C. Perspectivas do humanismo psicanílitico. Porto Alegre (RS): Sulina; 1974.
  • 4
    Kaplan HI, Sadock BJ, Greebb JA. Compêndio de Psiquiatria: ciências do comportamento e Psiquiatria Clínica. 7 ed. Porto Alegre (RS): Artes Médicas; 1997.
  • 5
    Bridge EM. Pedagogía médica. Washington (US): Organização Mundial de la Salud; 1967.
  • 6
    Golse B. O desenvolvimento afetivo e intelectual da criança. Porto Alegre (RS): Artes Médicas ; 1997.
  • 7
    Lebovici S. O bebê, a mãe e o psicanalista. Porto Alegre (RS): Artes Médicas ; 1987.
  • 1
    Citação pessoal.
  • 2
    Nota dos autores: esta proposta integradora do Ciclo da Vida e da Psiquiatria, no Currículo Médico do Curso de Medicina da Ulbra, foi organizada e coordenada pelo professores Odon Frederico Cavalcanti Carneiro Monteiro e Salvador H. Celia, com a colaboração dos professores Elaine Silveira, Telma Bernardes, Carmem Nudelman e Ana Lúcia Dieter, de 1996 a 2001.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2004

Histórico

  • Recebido
    10 Set 2004
  • Aceito
    29 Out 2004
Associação Brasileira de Educação Médica SCN - QD 02 - BL D - Torre A - Salas 1021 e 1023 | Asa Norte, Brasília | DF | CEP: 70712-903, Tel: (61) 3024-9978 / 3024-8013, Fax: +55 21 2260-6662 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: rbem.abem@gmail.com