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Resgatando a Dimensão Subjetiva e Biopsicossocial da Prática Médica com Estudantes de Medicina: Relato de Caso

Retrieving the Subjective and Biopsychosocial Dimension of Clinical Practice With Medical Students: a case report

Resumo:

Com o objetivo de formar médicos, com uma visão biopsicossocial vem sendo efetivadas mudanças curriculares nos cursos de Medicina para valorizar práticas mais humanizadas e que permitam a compreensão do universo psicológico do paciente. Nesse contexto, o objetivo deste trabalho é discutir aspectos subjetivos da prática médica a partir de um caso clinico apresentada e discutido por estudantes do terceiro ano do curso de Medicina da Escola Superior de Ciências da Saúde de Brasília (DF). Nas reuniões semanais em que tais casos são discutidos; a proposta é abordar a história clínica, o diagnóstico e o prognóstico mediante reflexões subjetivas dos alunos, pn'vi/eg1 mdo suas reações emocionais diante do caso e5tµdado. Tais reflexões contribuem para uma compreensão melhor do caso pelos alunos e também para a formação de uma consciência humanística e social indo ao encontro da proposta da escola de compreender o diagnóstico como algo que transcende a questão orgênica e leva em conta aspectos psicológicos e sociais. Considera-se que atividades como essas são fundamentais na formação de profissionais comprometidos com a saúde de seus pacientes de forma global e humana.

Palavras-chave:
Currículo; Saúde Holística; Educação Médica

Abstract:

With the purpose of educating physicians with a biopsychosocial vision, changes in medical school curricula are being proposed to encourage more humanized medical practice, thereby fostering a better understanding of the patients psychological world The current study discusses aspects related to medical practice through clinical cases presenteei by third-years students at the School of Medicine, University of Brasília. During weekly meetings where cases are discussed, the aim is to approach the patient history, diagnosis, and prognosis from the students' subjective perspectives, favoring their emotional reaction to the cases. Such perspectives contribute not only to a better understanding of cases themselves by students, but also a more hunamstic and social approach thus achieving the Schools objective, namely for diagnosis to transcend biological aspects and include individuals' social and psychological dimensions. Such activities are crucially important for the development of professionals with a comprehensive and human commitment to their patients' health.

Key-words:
Curricula; Holistic Health; Education, Medical

INTRODUÇÃO

A Medicina vem obtendo grandes conquistas nas últimas décadas, com o desenvolvimentode tecnologias que possibilitam diagnósticos precisos e tratamentos efetivos. Paradoxalmente, o avanço tecnológico tem levado a um distanciamento na relação médico-paciente, o que pode gerar a elaboração de diagnóstico e tratamento focados somente na doença, desconsiderando o universo psicológico e social do paciente11. Garcia-Roza LA. Palavra e verdade: na filosofia antiga e psicanálise . Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 1998..

Segundo Cassorla22. Cassorla RMS. Dificuldades no lidar com aspectos emoci nais da prática méd ica: estudo com médicos no início de grupos Balint. Revista ABP - APAL. 1994 ; 16 (1): 18-24., o médico acaba por se transformar num técnico que identifica o mau funcionamento de uma parte e a conserta. Com dificuldade para lidar com os aspectos emocionais de seuspacientes e de si próprios, muitos médicos procuram fugir desses aspectos, reduzindo sua atividade à abordagem do biológico.

Atualmente, vem sendo discutida a necessidade de retomar a abordagem holística, evitando-se a desvalorizaçãodas relações afetivas e humanas como conseqüência da evolução unilateral do conhecimento33. De Marco MA. A face humana da medicina - do modelo biomédico ao modelo biopsicossocial. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2003..

A relação médico-paciente tem sido abordada extensivamente por numerosos autores44. Caprara A, Rodrigues J. A relação assimétrica médico-paciente: repensando o vínculo terapêutico. Ciência e Saúde Coletiva. 2004; 9(1): 139-146., embora muitas vezes suas análises sejam lidas e debatidas por profissionais distantes da prática clínicas55. Fernandes JCL. A quem interessa a relação médico-paciente? Cad. Saúde Pública 1993; 9 (1):21-27..

Mudanças curriculares em cursos de Medicina são necessárias na formação de profissionais num modelo biopsicossocial, visando à obtenção de práticas humanizadas, que permitam a compreensão do universo psicológico do paciente. Nessa perspectiva, a doença passa a ser visualizada de forma plena e integrada à história de vida do indivíduo.

Atualmente, nas escolas médicas, abre-se espaço para práticas reflexivas que permitam ao estudante discutir as vivências emocionais no atendimento do paciente. Entre as novas propostas curriculares, destaca-se a medicina narrativa, implantada inicialmente na Columbia University, em Nova Iorque. Esse método de ensino busca resgatar aspectos subjetivos e emocionais, reconhecendo o valor da palavra e da escuta, e propiciando melhor comunicação médico-paciente66. Charon R. Narrative and Medicine. New Engl J Med 2004; 350 (9): 862-864..

No Curso de Medicina da Escola Superior de Ciências da Saúde (FEPECS) do Distrito Federal, o modelo pedagógico utiliza a aprendizagem baseada em problemas (ABP), que aproxima a teoria e a prática clínica, numa perspectiva interdisciplinar. Esse método permite discutir concomitantemente os aspectos biológicos, psicológicos, culturais e socioeconômicos envolvidos em cada situação, considerando que as ciências médicas se situam na interface das ciências biológicas e das ciências humanas.

O objetivo deste trabalho é discutir aspectos subjetivos da prática médica, numa perspectiva biopsicossocial, a partir do relato de caso de um paciente hospitalizado.

MÉTODOS

O relato de caso foi baseado em história clínica de um paciente hospitalizado colhida por estudantes do terceiro ano do curso de Medicina da ESCS/FEPECS, constando de exame físico, anamnese e aspectos psicossociais.

Nas reuniões da terceira série, são discutidos relatos livres de casos atendidos, com a proposta de repensar a história, o diagnóstico e o prognóstico mediante reflexões subjetivas:Qualo impacto emocional do caso para o estudante? Como transcorreu o processo da entrevista? Quais as reações verbais dos estudantes no grupo? Quais os modelos de entendimento da doença? Propiciamos nessas reuniões, conforme sugestão de Cruz77. Cruz EMTN. Formando médicos da pessoa-o resgate das relações médico-paciente e professor-aluno. Rev Bras Educ Méd 1997; 21 (2/3): 23-29., espaço de reflexãosobre as angústias frente às limitações, quebra de onipotência, frustrações e vicissitudes do aluno em suas experiências no hospital. Nesse sentido, consideramos essencial que, ao lado das discussões clínicas, haja sempre espaço para uma apreciação da ahnosfera emocional que cerca o ato médicos88. Zimerman, D. A formação psicológica do médico. ln: Mello Filho, J. Psicossomática hoje . Porto Alegre : Artes Médicas; 1992..

RELATO DO CAS O CLÍNICO, SEGUINDO MODELO BIOPSICOSSOCIAL

O paciente em questão era um rapaz de 26 anos, presidiário, internado em decorrência de uma pneumonia. O rapaz não conheceu o pai e, em função de atos delinqüentes, fora levado ao presídio. A mãe parecia manter bom relacionamento com o filho. No momento, o paciente estava cumprindo pena na penitenciária Papuda, tendo sido removido para o hospital em função da pneumonia. Por conta de uma infecção hospitalar, acabou permanecendo no hospital por período mais longo.

No local do dreno, na região torácica esquerda, formou se uma imensa ferida, que o paciente ostentava de forma visivelmente irônica e provocativa. Ele parecia querer testar nossa capacidade de suportar a visão de seu desamparo, de sua dor, enfim, de sua ferida. Esta estava literalmente aberta, escancarada, e desnudava toda a cavidade torácica, o que constituía certo espetáculo de horror para os presentes. Todo o ambiente e o quadro nos chamavam a atenção - a aparente banalização da ferida, da dor, e a indiferença à doença.

Nossa reunião começou com o relato dos dois estudantes responsáveis pelo caso, e, num primeiro momento, as reações emocionais diante do caso foram o foco da discussão. Um estudante falou do imenso constrangimento diante das algemas e da presença do policial responsável pelo paciente. Ao começarem a atender o rapaz, os estudantes não sabiam que ele era presidiário e aos poucos foram compreendendo a situação. Um dos alunos se queixou de sua timidez e verbalizou estar receoso diante daquele paciente. O segundo estudante, em separado , falou da importância de não julgarmos o outro, independentemente de sua condição. Verbalizou um imenso pesar pelo paciente, que tinha a sua idade. Pensou que o rapaz poderia ter tido a mesma oportunidade que ele na vida e que suas realidades eram muito diferentes. Disse não ter sentido piedade e, sim, um grande pesar.

Essas reflexões possibifüaram maior consciência humanistica e social entre os presentes à reunião, e os estudantes mostraram-se bastante motivados com a temática. O caso desencadeou a reflexão sobre os preconceitos, tendo sido verificados posicionamentos divergentes . Foi abordada a dificuldade de abrir mão da posição de julgador do outro e de ocupar um lugar de escuta, compreensão e amparo .

O grupo foi se mobilizando em função da descrição do ferimento e começou a refletir sobre as feridas de cada um. Ficou evidente que a verdadeira ferida do rapaz era maior do que aquela cravada em seu corpo: ela dizia respeito à sua história de vida, sobre a qual ele não conseguia falar. A discussão possibilitou concluir que é necessário focalizar não apenas o ferimento, mas o homem ferido99. Calil LC, Teixeir a VPA, Figueiredo MAC. A ferida do homem e o homem da ferida - o trabalho médico e a atividade médica. Psicoterapia - experiência inoportuna e desnecessária para médicos? Uberaba (MG): FMTM; 2003. [Trabalho realizado na disciplina de Psiquiatria da Faculdade de Medicina do Triângulo Mineiro - FMTM - Uberaba, MG. Artigos Originais - Medstudents] ..

DISCUSSÃO

Esse trabalho com os alunos demonstra a importância de atividades com enfoque biopsicossocial na formação médica. Tais atividades podem contribuir para que o aluno de Medicina desenvolva uma atitude comprometida com o sofrimento humano - um humanismo médico que se traduz, principalmente, no respeito pelo paciente, seja ele conveniado, indigente ou particular1010. Martins C. Caminhos - ensaios psicanalíticos. Porto Alegre (RS): Movimento/ Instituto Cyro Martins; 1993..

O caso que escolhemos para ilustrar este trabalho nos remete ao mito de Quiron - um centauro que tinha uma ferida incurável e manifestava grande humildade na cura de seus pacientes, porque, como eles, vivenciava uma dor. O mito de Quiron se opõe ao de Asclépius, um semideus que, de forma arrogante, começou a mexer na ordem natural do universo, pois não aceitava a morte e muito menos o limite dos mortais1111. Brescia SR. Cura-te a ti mesmo. Revista do Hospital das Clínicas- Faculdade de Medicina de São Paulo 1997; 52(6): 345-347.. Sentimentos de invulnerabilidade, onipotência e supremacia, como os de Asclépius, parecem ter contaminado a medicina atual. Acreditamos que a prática médica deveria ser vista à luz do mito de Quiron, considerando que a empatia é fundamental na relação médico-paciente.

Na elaboração de diagnósticos médicos, os aspectos psicológicos, muitas vezes, são colocados em segundo plano, vistos como absolutamente secundários e sem importância. Na ESCS/ FEPECS1212. Escola Superior de Ciências da Saúde. Fundação de Ensino e Pesquisa em Ciências da Saúde. Projeto Pedagógico. Brasília (DF): ESCS/FEPECS; 2001., busca-se elaborar diagnósticos amplos e globais, diferentes dos diagnósticos orgânicos e fragmenta ­ dos, tão usuais em decorrência da predominância do modelo biomédico nas escolas de Medicina.

REFERÊCIAS

  • 1
    Garcia-Roza LA. Palavra e verdade: na filosofia antiga e psicanálise . Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 1998.
  • 2
    Cassorla RMS. Dificuldades no lidar com aspectos emoci nais da prática méd ica: estudo com médicos no início de grupos Balint. Revista ABP - APAL. 1994 ; 16 (1): 18-24.
  • 3
    De Marco MA. A face humana da medicina - do modelo biomédico ao modelo biopsicossocial. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2003.
  • 4
    Caprara A, Rodrigues J. A relação assimétrica médico-paciente: repensando o vínculo terapêutico. Ciência e Saúde Coletiva. 2004; 9(1): 139-146.
  • 5
    Fernandes JCL. A quem interessa a relação médico-paciente? Cad. Saúde Pública 1993; 9 (1):21-27.
  • 6
    Charon R. Narrative and Medicine. New Engl J Med 2004; 350 (9): 862-864.
  • 7
    Cruz EMTN. Formando médicos da pessoa-o resgate das relações médico-paciente e professor-aluno. Rev Bras Educ Méd 1997; 21 (2/3): 23-29.
  • 8
    Zimerman, D. A formação psicológica do médico. ln: Mello Filho, J. Psicossomática hoje . Porto Alegre : Artes Médicas; 1992.
  • 9
    Calil LC, Teixeir a VPA, Figueiredo MAC. A ferida do homem e o homem da ferida - o trabalho médico e a atividade médica. Psicoterapia - experiência inoportuna e desnecessária para médicos? Uberaba (MG): FMTM; 2003. [Trabalho realizado na disciplina de Psiquiatria da Faculdade de Medicina do Triângulo Mineiro - FMTM - Uberaba, MG. Artigos Originais - Medstudents] .
  • 10
    Martins C. Caminhos - ensaios psicanalíticos. Porto Alegre (RS): Movimento/ Instituto Cyro Martins; 1993.
  • 11
    Brescia SR. Cura-te a ti mesmo. Revista do Hospital das Clínicas- Faculdade de Medicina de São Paulo 1997; 52(6): 345-347.
  • 12
    Escola Superior de Ciências da Saúde. Fundação de Ensino e Pesquisa em Ciências da Saúde. Projeto Pedagógico. Brasília (DF): ESCS/FEPECS; 2001.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Abr 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2005

Histórico

  • Recebido
    20 Out 2004
  • Aceito
    25 Fev 2005
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