INTRODUÇÃO
A Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) vem implementando um extenso projeto de reforma curricular que tem sido referência nacional. As principais modificações introduzidas envolvem a integraçãode conteúdos desenvolvidos sob a forma de modulo sem que diferentes aspectos, básicos e clínicos, são enfocados por professores de diferentes departamentos ou áreas.
A avaliação do desempenho de alunos de Faculdades de Medicina tem sido apontada como fator de maior importância na capacitação de profissionais voltados para as necessidades aluais da população1,2.·O uso de métodos de avaliação do desempenho confiáveis, reprodutíveis e efetivos, é indubitavelmente prioridade no processo de avaliação da qualidade dos nossos cursos de Medicina3,4. Infelizmente, os métodos clássicos de avaliação sofrem de inevitáveis restrições na pontuação das habilidades adquiridas pelo aluno, na sua capacidade de comunicação e na avaliação de seu raciocínio clínico5. O principal fator de limitação destes métodos decorre das impressões subjetivas dos preceptores e de sua influência na avaliação de desempenhos objetivos. Mais ainda, no sistema de ensino tradicional, os professores têm grande dificuldade de avaliar a relação médico-paciente ou de apontar atitudes pouco apropriadas ou inadequadas de seus alunos.
As diretrizes curriculares aplicadas ao ensino da Medicina têm atribuído crescente importância ao ensino de atitudes centradas na formação geral do médico, com orientação ao todo do indivíduo, enfatizando as competências técnicas, éticas e humanísticas e o espírito crítico, mas sempre respeitando o contexto psico-sócio-econômico e a autonomia do paciente6. A avaliação clínica objetiva e estruturada (Objective Structured Oinical Examination -OSCE) foi inicialmente descrita por Harden e seus colegas e envolve um percurso de estações onde as habilidades do aluno são testadas em tarefas específicas7. Além de poder medir de forma objetiva habilidades técnicas e a capacidade de comunicação do aluno, o método pode ser aplicado para avaliar atitudes8.
No 2° ano da nova grade curricular da FCM, uma das partes do módulo designado como "Habilidades II" visa capacitar o aluno a realizar entrevistas clínicas, registrar os dados da identificação, coletar adequadamente os dados que compõem a anamnese de forma clara e cronologicamente correta, enumerando os antecedentes pessoais fisiológicos e psicológicos, realizar o heredograma e listar os antecedentes familiares do paciente em condições normais e em condições especiais.
O aluno é, portanto, treinado a entrevistar pacientes com diferentes graus de confiabilidade e em situações especiais como déficit de memória, anormalidades na fala, problemas psiquiátricos e outros. Sua habilidade em obter tais dados vem sendo, tradicionalmente, avaliada de forma objetiva através de uma anamnese obtida de paciente internado em nossas enfermarias do Hospital das Clinicas da FCM. No entanto, a grande variedade de situações clinicas e ambientais a que o paciente e o próprio aluno estão sujeitos dificulta a avaliação real de desempenho. Não raramente a entrevista tem de ser interrompida ou adiada para medicação, procedimentos ou porque o paciente necessita deslocar-se para outro local, desconcertando o aluno e dificultando o estabelecimento de uma relação médico-paciente adequada.
Mais ainda, o corpo docente não tem como avaliar a postura do aluno, sua atitude frente ao doente. Nosso corpo docente preocupa-se com a introdução precoce de conceitos humanísticos no trato dos pacientes, almejando incorporar tal avaliação ao resultado obtido no ensino do módulo Habilidades II.
Conscientes de que os métodos de avaliação norteiam o processo de ensino-aprendizagem, decidimos implantar um método apropriado para:
verificar a competência do estudante em suas habilidades clínicas;
informar ao estudante acerca de seus pontos fracos assim como de suas melhores atuações nas técnicas de entrevista;
prover um retorno ao corpo docente envolvido no modulo correspondente acerca da maneira pela qual seus estudantes se desempenharam;
analisar as atitudes do aluno para com o paciente;
prover a nossa Comissão de ensino com um resumo informativo acerca da viabilidade do método, de seu planejamento e implementação, mostrando os resultados que pode obter.
Apresentamos os resultados iniciais da implan tação de projeto-piloto de avaliação utilizando pacientes-padrão, especialmente treinados para objetivamente avaliar o desempenho do aluno na asserção dos dados de anamnese e em sua atitude para com o paciente.
MÉTODOS
Após visita de treinamento de membro de nossa equipe (Laura S. Ward) para observação do método na Universidade da Flórida, a convite do Harrell Professional Development and Assessment Center, sob coordenação da Dra. Margaret C. Duerson, implementamos projeto-piloto de avaliação objetiva estruturada em nossa Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp. Utilizamos um caso desenvolvido pelo Harrell Center que foi adaptado a nossa realidade por membro da equipe adequando a linguagem aos padrões brasileiros.
Um funcionário da FCM, que foi voluntário para tanto, foi treinado para representar o papel de um paciente deprimido, recebendo um histórico da patologia, da vida, hábitos e antecedentes do paciente-padrão representado. Todas as entrevistas começavam com uma mesma frase: "Tenho tido problemas para dormir e ando muito desanimado", que o paciente foi treinado a repetir. No entanto, a condução da entrevista a seguir ficava a cargo do aluno avaliado, reproduzindo uma situação de consulta ambulatorial rotineira. O paciente-padrão foi instruído a dar sempre as mesmas respostas para perguntas similares.
Antes de receber os alunos do curso de graduação em Medicina, o paciente-padrão foi entrevistado por docente da Disciplina de Medicina Interna e Semiologia, externo ao processo em curso. Tal docente considerou nosso funcionário voluntário apto a desempenhar o papel de indivíduo deprimido.
Foram recrutados 10 voluntários entre alunos regulares do módulo de Habilidades II. Os alunos se dirigiam para área onde aguardavam sua vez. Ali, recebiam de membro da equipe instruções de que deveriam obter uma História Pregressa da Moléstia Atual do paciente-padrão, cujos dados de identificação lhes eram previamente fornecidos. Consideramos como itens importantes a serem perguntados: a queixa do paciente e sua duração; a caracterização da severidade da queixa através de perguntas sobre a influência do quadro de depressão nas atividades laborais do paciente e na sua vida familiar além de avaliação o do risco de suicídio; a caracterização de sintomas acompanhantes ao quadro de depressão como perda ou ganho de peso, alterações de sono, drogadição ou abuso de ingestão de álcool; antecedentes pessoais e familiares de suicídio ou tentativas de suicídio.
A entrevista foi realizada em sala similar à de um consultório, na verdade sala de reuniões do Departamento de Clínica Médica, apenas com uma mesa e cadeiras. Após os 10 minutos previstos para a entrevista, o aluno se retirava e o paciente-padrão respondia a 11 questões envolvendo a habilidade do aluno em obter informações sobre sua condição e 5 questões acerca de sua atitude. Estas questões eram apresentadas em forma de formulários a serem preenchidos, os quais já eram do conhecimento do paciente-padrão. As tabelas 1 e 2 mostram os questionários preenchidos pelo paciente-padrão. Os alunos foram solicitados, em seguida, a redigir e entregar suas observações.
RESULTADOS
A prova foi considerada simples e prática, tanto pelos alunos como pelos docentes envolvidos. O funcionário recrutado para atuar como paciente-padrão não encontrou nenhuma dificuldade maior na interpretação do personagem, nem na avaliação dos alunos. Seu treinamento, envolvendo instruções e a verificação do 'caso-padrão' por docente externo ao projeto durou pouco mais de 1 hora. A realização total da prova se estendeu por cerca de 2 horas, de modo que o paciente-padrão levou cerca de 1 minuto para preencher os formulários de avaliação.
A Figura 1 mostra que os alunos souberam caracterizar a queixa de depressão, avaliada através de 4 questões, de forma excelente (os 4 quesitos foram perguntados pelo aluno ao paciente-padrão) ou boa (3 dos 4 quesitos). Nove alunos identificaram sintomas associados à queixa de depressão, como anorexia. No entanto, 7 dos 10 alunos não se preocuparam em interrogar hábitos eventualmente associados ao quadro depressivo, como fumo, alcoolismo e drogadição e apenas 1 aluno identificou o risco de suicídio do paciente. Tais resultados foram comunicados aos membros do corpo docente com sugestões para a adequação de seus métodos de ensino quanto à orientação de nossos alunos em relação a tais pontos específicos.
A Figura 2 mostra os resultados relacionados à atitude do aluno frente ao paciente. Embora a maior parte dos entrevistadores tenha tido um desempenho considerado bom, um deles foi considerado ríspido e outro usou linguagem considerada pelo paciente-padrão como inadequada pelos termos técnicos usados.
A pontuação das histórias escritas, realizada por 2 docentes do módulo, se mostrou comparável à pontuação conferida pelo paciente-padrão, com variações não maiores do que 15%.
DISCUSSÃO
A reforma de ensino instituída com a XXIX turma da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp vem procurando estruturar-se dentro dos objetivos definidos nas diretrizes do Ministério da Educação. Nosso curso destaca-se por procurar formar médicos generalistas, com perfil humanístico, crítico e reflexivo, capacitados a atuais, pautados em princípios éticos, no processo de saúde-doença em seus diferentes níveis de atenção, com ações de promoção, prevenção, recuperação e reabilitação da saúde, na perspectiva de integralidade da assistência, com senso de responsabilidade social e compromisso com a cidadania, como promotores da saúde integral do ser humano.
Dentro desta perspectiva, o curso está estruturado para oferecer ao aluno de graduação diferentes cenários de ensino-aprendizagem, permitindo-lhe conhecer e vivenciar situações variadas da organização da prática do trabalho em equipe multiprofissional e também vincular, através da integração ensino-serviço, sua formação médico-acadêmica às necessidades sociais da saúde. Este processo, relativamente novo, necessita de avaliações contínuas, críticas e bem estruturadas. Assim, é fundamental a implantação de métodos de avaliação capazes de fornecer um real perfil da eficácia do nosso processo de reforma curricular.
A avaliação das competências adquiridas pelos estudantes durante cursos de Medicina é assunto de considerável controvérsia e grande preocupação atual, particularmente no que se refere às competências não-cognitivas, como habilidades, comunicação e postura em relação ao paciente. O emprego de sistemas de avaliação estruturada, com o uso de pacientespadrão especificamente treinados para simular problemas na área da saúde é bastante difundido em todo o mundo9,12. O método é considerado o mais reprodutível entre os métodos padronizados para avaliar habilidades13,14.·O número de escolas de Medicina que utilizam pacientes-padrão em algum período do curso aumentou de 34,1% a 50,4% entre os anos de 1993 e 1998 nas 125 escolas médicas dos Estados Unidos da América13,14. Os pacientes-padrão podem reproduzir de maneira eficaz e realística várias situações importantes na aprendizagem médica além de avaliar objetivamente habilidades, desempenhos e atitudes dos alunos15.
Nossos resultados sugerem que nossos alunos têm um desempenho comparável com o de outras instituições em relação ao aprendizado de técnicas básicas em clínica médica16.
Este projeto-piloto mostrou que a avaliação estruturada baseada em pacientes-padrão possui várias vantagens, como o fato de poder ser programada em horários convenientes ao corpo docente e discente sem depender da disponibilidade de pacientes, a possibilidade de detectar deficiências no ensino e de apontar precocemente falhas em determinadas atitudes do aluno para com o paciente. O método foi implantado de forma relativamente simples e não implicou em maiores gastos, corroborando dados da literatura que mostram uma análise positiva do ponto de vista custo-benefício17.
Um sistema de avaliação estruturada semelhante, por estações e com emprego de pacientes padronizados para avaliação de aprendizado em Clínica Médica, já havia sido introduzido em 1995 na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto18. Entretanto, uma profunda avaliação do impacto de tal sistema fez o professor Troncon sugerir que a implantação de exames clínicos objetivos estruturados em escolas médicas tradicionais não deve partir de iniciativas isoladas, mas que deve ser realizada em toda escola, com alocação de verbas de custeio adequadas, apoio institucional e ampla divulgação19.
Em conclusão, sugerimos que a realização de uma avaliação estruturada utilizando pacientes-padrão é factível em nosso meio, traz importantes benefícios para o ensino da Medicina e pode ser realizada com um custo relativamente baixo.