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Desenvolvendo Competências em Comunicação: Uma Experiência com a Medicina Narrativa

Developing Communication Competences: An Experience with Narrative Medicine

Resumo:

O presente artigo tem como objetivo descrever uma experiência com a Medicina Narrativa e refletir sobre a potencialidade dessa abordagem no desenvolvimento de competências em comunicação. Essa prática vem sendo incorporada às atividades desenvolvidas na unidade de comunicação da 3a série do Curso de Medicina da Escola Superior de Ciências da Saúde - ESCS do Governo do Distrito Federal. Após a apresentação de uma breve revisão da literatura sobre a Medicina Narrativa, são relatadas as atividades realizadas na unidade. Foram identificadas em vários trabalhos habilidades narrativas importantes no desenvolvimento: a) da observação; b) da empatia; c) do vínculo estudante-paciente; d) da compreensão das percepções do paciente; e) da capacidade de integrar as dimensões biológica, psicológica e social. Evidenciamos ainda que muitos estudantes foram capazes de refletir sobre a prática médica e sobre a experiência vivenciada. Esses primeiros resultados parecem indicar a potencialidade da abordagem para a capacitação em habilidades necessárias para o desenvolvimento de competências em comunicação visando uma prática médica compatível com o modelo biopsicossocial.

Palavras-chave:
Medicina Narrativa; Educação Médica; Comunicação; Relações Médico-Paciente

Abstract:

The pourpose of this article is to describe na experience with Narrative Medicine and relfect on the potenctialities of this approach for the development of communication skills. This practice has been incorporated into the activities developed by the communications unit of the 3º grade of the Medicne Course of the Escola Superior de Cieências da Saúde - ESCS of the government of the Federal District. After a brief review of literature about Narrative Medicine, some activities carried out in the unit will be reported. In diferente Works we identified narrative skills, wich are importante for the development of a) observation; b) empathy; c) the student-patient relationship; d) comprehension of the patient’s perceptions; e) the ability to integrate the biological, psycological and social dmensions. We found that many students were able to relfect on the medical practice and the experience they went through. These first results seem to indicate the potentiality of this approach for the development of skills necessary for creating competence in communication, aiming at a medical practice consistente with the biopsychosocial model.

Key-words:
Narrative Medicine; Education, Medical; Communication; Phsysician-Patiant Relations

INTRODUÇÃO

Ao longo da história da medicina observam-se diferentes enfoques que, refletindo o pensamento dominante de uma época, determinam o modelo dos cuidados à pessoa humana. O modelo biomédico, influenciado pelo paradigma cartesiano, tem predominado na cultura ocidental nos dois últimos séculos. Esse modelo focaliza-se em parâmetros biológicos e a tarefa do médico está circunscrita ao diagnóstico da enfermidade e seu tratamento, utilizando-se do método clinico-experimental.

O modelo biopsicossocial surge a partir do desenvolvimento de várias áreas de conhecimento, como a psiquiatria, a psicologia, a psicanálise e a medicina psicossomática, entre outras. Esse modelo busca uma visão holística do homem, em que os aspectos psicológicos e sociais são intrinsecamente vinculados aos aspectos biológicos. Nessa abordagem, o médico deve compreender não apenas a doença, mas também o paciente, e a relação médico-paciente adquire importância terapêutica.

Identificamos o momento atual como uma fase de crise do modelo biomédico, em que coexistem o paradigma biológico e novas práticas, baseadas no modelo biopsicossocial. Cursos de graduação em Medicina, tradicionalmente influenciados pelo modelo biomédico, nos últimos anos vêm tendo seus currículos modificados, para integrar à dimensão biológica as dimensões psicológica e social11. Feuerwerker LCM. Mudanças na educação médica & residência médica no Brasil. São Paulo: HUCITEC; 1998.), (22. Mnrcondes E, Gonçalves EL, coordenadores. Educação Médica. São Paulo: SARVIER; 1998.), (33. Almeida MJ. Educação médica e saúde: possibilidade de mudança. Londrina, Rio de Janeiro: EDUEL, ABEM; 1999..

Com a ampliação da área de conhecimento - do "bio" ao “biopsicossodal” - tem sido verificada a necessidade de se ampliar também o repertório de métodos de conhecimento, de acordo com essa nova realidade. O método científico, útil na investigação epidemiológica quantitativa, é insuficiente para a compreensão de realidades psicológicas e sociais, dotadas de história, movimento e sentido44. Cruchaga RW. Desarrollo de la capacidad empática a través de las humanidades. ARS Medica-Revista de Estudios Medico Humaitísticos. Universidad Católica de Chile, s/d; 2(2). Disponível em: <Disponível em: http://escuela.med.puc.d/publ/ArsMedica/ ArsMedica2/14_walker.htrnl >. Acesso em 03 jun. 2005.
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Para desenvolver nos estudantes as habilidades necessárias para uma relação médico-paciente compatível com o modelo biopsicossocial, diversos recursos vêm sendo utiliza­dos, como o ensino da psicologia médica55. De Marco MA. Psicologia Médica. In: De Marco MA. A face humana da medicina - do modelo biomédico ao modelo biopsicossocial São Paulo: Casa do Psicólogo; 2003.), (66. Jeammet P, Reynaud ML, Consoli ML. Psicologia Médica. 2a ed. Rio de Janeiro: Medsi; 2000., o método psicossociodramático77. Amaral GF. Como ensinar a relação médico-paciente: tra­balhando com o método psicossociodramático. In: Branco RFGR. A Relação com o Paciente -Teoria, Ensino e Pesquisa. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2003.), (88. Kaufman A. Teatro Pedagógico: bastidores da iniciação médica. São Paulo: Agora; 1992., os grupos Balint99. Balint E, Norell JS. Seis minutos para o paciente: estudos sobre as interações na consulta de clínica geral. São Paulo: MANOLE; 1986.), (1010. Missenard A, coordenador. A experiência Balint: história e atualidade. São Paulo: Casa do Psicólogo ; 1994.), (1111. Branco RFGR. Como ensinar a relação médico-paciente: trabalhando com os grupos Balint. In: Branco RFGR. A Relação com o Paciente -Teoria, Ensino e Pesquisa . Rio de Janeiro: Guanabara Koogan ; 2003., e, mais recentemente, a Medicina Narrativa1212. Charon R. Narrative Medicine. Disponível em: <Disponível em: http://litsite.alaska.edu/uaa/healing/meadicine.html >. Acesso em 04 mar. 2005.
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), (1313. Mangan KS. Behind Every Symptom, a Story. The Chronicle of Higher Education. 2004; 50 (23): A48. Disponível em <Disponível em http://chronicle.com >. Section: Notes from Academe. Acesso cm 03 jun. 2005.
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O Curso de Medicina da Escola Superior de Ciências da Saúde da Fundação de Ensino e Pesquisa em Ciências da Saúde - ESCS / FEPECS - da Secretaria de Estado de Saúde do Governo do Distrito Federal - tem como princípio “garantir e aperfeiçoar a formação geral do médico em termos técnicos, científicos e humanísticos"1414. Fundação de Ensino e Pesquisa em Ciências da Saúde. Projeto Pedagógico. Brasília, DF: (s.n.); 2001. p. 29 e 41., numa perspectiva interdisciplinar, sendo uma de suas metas formar profissionais com capacidade para "compreender as necessidades de saúde das pessoas não apenas do ponto de vista físico, mas nos contextos psicológico, familiar, laboral e comunitário"1414. Fundação de Ensino e Pesquisa em Ciências da Saúde. Projeto Pedagógico. Brasília, DF: (s.n.); 2001. p. 29 e 41.. A escola busca proporcionar nos estudante,, oportunidade para o desenvolvimento de habilidades clínicas, senso de observação, expressão oral e escrita, autoconhecimento, intuição e empatia.

A Medicina Narrativa vem sendo incorporada às atividades desenvolvidas na unidade de comunicação da 3a série, por ser considerada plenamente compatível com as metas da ESCS. O objetivo deste artigo é descrever essa experiência, buscando refletir sobre a potencialidade da abordagem no desenvolvimento de competências cm comunicação.

ESCRITOS MÉDICOS

Escutem a história que narro, com descarada sinceridade. Não tentem interpretar, escutem apenas o que eu digo... São paixões, esperanças, medos, angústias e sujeira de um homem igual a vocês. 15 15. Fellini, um Auto-Retrato. Direção de Paquito Del Bosco. Documentário produzido pela RAI. Itália, 2000. DVD, som, preto e branco.

O médico está em constante contato, ora com a fragilidade, ora com a força da vida. Julie Connel1616. Connelly J. Why write personal narratives? Disponível em: <Disponível em: http://litsite.nlaska.edu/uaa/healing/personal.html >. Acesso cm 04 jun. 2005.
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argumenta que o médico tem uma posição privilegiada para se tomar escritor, uma vez que ele tem contato com um riquíssimo material humano. Tem a oportunidade de poder observar um lado ex­tremamente frágil da vida humana: pais com filhos malformados, crianças com câncer, mulheres estéreis, jovens deformados por queimaduras e toda sorte de desgraças humanas. Por outro lado, pode presenciar o dom da vida no nascer uma criança, na ressuscitação de um paciente com parada cardíaca e na felicidade da cura de uma doença maligna. Essas diversas situações permitem um aprendizado ímpar sobre as relações humanas.

Existem muitas formas de narrativa escrita na prática médica, tais como ficção médica, artigo para leigos, autobiografia médica, crônicas da prática médica e medicina narrativa. Exemplificaremos aqui essas duas últimas formas de escritos.

O livro denominado "Por um Fio" publicado pelo médico escritor Dráuzio Varella1717. Varella D. Por um Fio. São Paulo: Companhia das Letras; 2004. p. 30. é um exemplo de crônica da prática médica, rica em detalhes e reveladora do grande impacto da convivência com a dor e com a perspectiva da morte em pacientes e familiares. O enfoque humanista de Varella é revelado por seus relatos, nos quais a função primordial da prática médica, mais do que curar a doença, passa a ser de fato aliviar o sofrimento humano.

Para esse autor, "decifrar intenções contidas no que diz a pessoa doente e seus familiares talvez seja o mais difícil na Medicina"1717. Varella D. Por um Fio. São Paulo: Companhia das Letras; 2004. p. 30. Nesse sentido, somos remetidos ao problema de ordem filosófica fundamental que deve nortear a prática e a narrativa médica. A Medicina não se deixa apreender por uma visão estritamente cartesiana, em que o mundo empírico representaria um critério absoluto de verdade: não há garantia para um saber absoluto e nada que nos imunize de enganos. A narrativa médica nos lança no terreno da subjetividade intrínseca à relação médico-paciente e ao mesmo tempo nos instrumentaliza no processo de valorização da dimensão da palavra escrita. O psicanalista Luiz Alfredo Garcia-Roza1818. Garcia-Roza LA. Palavra e verdade: na filosofia antiga e na psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 1998. p. 38. questiona a ilusão de certezas positivistas quando se lida com a intersubjetividade humana e com a palavra.

Se a palavra fosse unívoca, seríamos máquinas, ou mais rigorosamente ainda, seríamos naturais. O homem surge e instala-se no lugar do desamparo, isto é, no lugar onde não há garantia alguma da verdade do outro. O que funda a subjetividade é a opacidade, a não-transparência e, com ela, a possibilidade da mentira, do ocultamento, da distorção. Pretender um palavra que elimine o equívoco é pretender uma palavra super-humana. Essa palavra a representaria, porém, a morte do homem, seu portador seria sem falta, sem desejo, estaria de posse da garantia plena, mais próxima dos deuses do que dos homens 18 18. Garcia-Roza LA. Palavra e verdade: na filosofia antiga e na psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 1998. p. 38.

Em ensaio de Medicina Narrativa, intitulado "A Milena", Jaime Duclos H.1919. Duelos H.J. "A Milena" (Um ensayo de Medicina Narrativa). Revista Médica do Chile. 2001; 129 (6): 685-687. Disponível em: <Disponível em: http://www.scielo.cl/sciclo,php?pid=S0034- 98872001000600015&script=sci_arttext&ting=es >. Acesso cm 04 jun. 2005.
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faz uma reflexão sobre o equilíbrio que deve haver entre a medicina interna, a ciência e a compreensão do ser humano. Ele relata sua enriquecedora convivência com uma paciente durante sete anos, recém falecida. Ele descreve suas apreensões sobre o uso de formas invasivas de diagnóstico e tratamento e questiona o uso de repelidas admissões hospitalares no contexto de uma doença crônica e progressiva. Respeitando a paciente, seus temores, suas debilidades, suas crenças e seus valores, ele assumiu o compromisso de não interná-la. Compromisso esse que, acredita, deve ir além do próprio orgulho e da salvaguarda profissiona11919. Duelos H.J. "A Milena" (Um ensayo de Medicina Narrativa). Revista Médica do Chile. 2001; 129 (6): 685-687. Disponível em: <Disponível em: http://www.scielo.cl/sciclo,php?pid=S0034- 98872001000600015&script=sci_arttext&ting=es >. Acesso cm 04 jun. 2005.
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A MEDICINA NARRATIVA

A Medicina Narrativa foi proposta por Rita Charon2020. Charon, R. Narrative and Medicine. A Model for Empathy, Reflection, Profession, and Trust. JAMA. 2001; 286 (15): 1897-1902. Disponível em: <Disponível em: http://coe.stanlord.edu/curriculum/courscs/ethmedreadings04/em2penal.pdf >. Acesso em 04 jun. 2005.
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como um modelo para uma prática médica humana e efetiva. Essa autora criou o termo "Medicina Narrativa" para designar uma medicina praticada com competência narrativa e marcada por uma compreensão de situações narrativas complexas entre médicos, pacientes, colegas e o público1212. Charon R. Narrative Medicine. Disponível em: <Disponível em: http://litsite.alaska.edu/uaa/healing/meadicine.html >. Acesso em 04 mar. 2005.
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Charon considera que a doença e o ato de curar são, em parte, atos narrativos1111. Branco RFGR. Como ensinar a relação médico-paciente: trabalhando com os grupos Balint. In: Branco RFGR. A Relação com o Paciente -Teoria, Ensino e Pesquisa . Rio de Janeiro: Guanabara Koogan ; 2003.. Aqui, a doença não é vista apenas como um evento fisiopatológico - são consideradas também as sequelas pessoais, emocionais, relacionais e ontológicas da falta de saúde - e o tratamento médico é mais do que intervenções farmacológicas e cirúrgicas2222. Charon R. Letters. Annals of Internal Medicine . 2001; 135(10): 930. Disponível em: <Disponível em: www.ncbi.nlm.nih.gov/entrez/query.ícgi?cmd=Retrieve&db=PubMcd&list_uids= 11187429 &dopt=Abstracl >. Acesso em 04 jun. 2005.
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. Tais dimensões de experiências de pacientes e médicos não poderiam ser compreendidas com habilidades adquiridas apenas em treinamentos médico-científicos.

Para ajudar na compreensão da forma como médicos e pacientes vivenciam a doença, educadores médicos têm prestado crescente atenção à competência narrativa, definida como o conjunto de habilidades requerido para reconhecer, absorver, interpretar e se mobilizar com as histórias e situações de outros2020. Charon, R. Narrative and Medicine. A Model for Empathy, Reflection, Profession, and Trust. JAMA. 2001; 286 (15): 1897-1902. Disponível em: <Disponível em: http://coe.stanlord.edu/curriculum/courscs/ethmedreadings04/em2penal.pdf >. Acesso em 04 jun. 2005.
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. Essa competência requer uma combinação de habilidades textuais, criativas e afetivas. As habilidades textuais compreendem a capacidade de identificar a estrutura da história, perceber suas múltiplas perspectivas e reconhecer metáforas e alusões. As habilidades criativas referem-se à capacidade de imaginar muitas interpretações, desenvolver a curiosidade, inventar múltiplos finais. As habilidades afetivas incluem a capacidade de tolerar a incerteza do desenrolar das histórias e de entrar no clima dessas histórias. Juntas, essas habilidades fornecem recursos para a compreensão das informações contidas nas histórias e para o entendimento de seus significados2323. Charon R. Narrative ond Medicine. N Engl J Med. 2004; 350 (9): 862-864. Disponível em: <Disponível em: http://www.nejm.org >. Acesso em 25 ago. 2004.
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Alguns métodos de ensino têm sido desenvolvidos a partir da identificação de habilidades narrativas importantes para a prática médica. No Programa de Medicina Narrativa do College of Physicians and Surgeons of Columbia University, de Nova York, são ensinados aspectos específicos da competência narrativa1212. Charon R. Narrative Medicine. Disponível em: <Disponível em: http://litsite.alaska.edu/uaa/healing/meadicine.html >. Acesso em 04 mar. 2005.
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), (1313. Mangan KS. Behind Every Symptom, a Story. The Chronicle of Higher Education. 2004; 50 (23): A48. Disponível em <Disponível em http://chronicle.com >. Section: Notes from Academe. Acesso cm 03 jun. 2005.
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), (2323. Charon R. Narrative ond Medicine. N Engl J Med. 2004; 350 (9): 862-864. Disponível em: <Disponível em: http://www.nejm.org >. Acesso em 25 ago. 2004.
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. Tais treinamentos estimulam os estudantes a escrever sobre seus pacientes em linguagem não-técnica, ajudando-os a descobrir e a compreender seus próprios sentimentos e o saber dos pacientes. Esse programa fornece um treinamento em leitura de textos literários, para ajudá-los a interpretar e compreender o sentido das histórias de outros2323. Charon R. Narrative ond Medicine. N Engl J Med. 2004; 350 (9): 862-864. Disponível em: <Disponível em: http://www.nejm.org >. Acesso em 25 ago. 2004.
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. O conhecimento de obras destacadas da literatura pode ajudar o futuro médico a conhecer-se a si mesmo e aos pacientes, potencializando sua habilidade empática44. Cruchaga RW. Desarrollo de la capacidad empática a través de las humanidades. ARS Medica-Revista de Estudios Medico Humaitísticos. Universidad Católica de Chile, s/d; 2(2). Disponível em: <Disponível em: http://escuela.med.puc.d/publ/ArsMedica/ ArsMedica2/14_walker.htrnl >. Acesso em 03 jun. 2005.
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Os pacientes podem ter também um papel ativo na narrativa do médico. Charon2121. Charon R. Narrative Medicine : form, function, and ethics. Annals of Internal Medicine. 2001; 134 (1):83-87. frequentemente mostra aos pacientes o que ela escreve sobre eles. Segundo a autora, seu relato constitui uma hipótese de uma pesquisa subjetiva e somente o paciente poderia confirmar essa hipótese. Ela escreve sobre o que o paciente diz e na visita seguinte mostra-lhe a descrição, para checar sua própria compreensão sobre o relato do paciente. O procedimento pode ser repetido em várias visitas com o mesmo paciente, até que cada visita resulte num capítulo sobre sua vida.

A MEDICINA NARRATIVA COMO MÉTODO DIAGNÓSTICO E TERAPÊUTICO

O desenvolvimento tecnológico da medicina subestimou a importância diagnóstica e terapêutica de conhecer os pacientes em seu contexto de vida2121. Charon R. Narrative Medicine : form, function, and ethics. Annals of Internal Medicine. 2001; 134 (1):83-87.. A Medicina Narrativa fornece à prática médica um instrumento para compreender como 05 eventos da vida de uma pessoa influenciam o processo saúde-doença, ao mesmo tempo em que propiciam a construção e fortalecimento do vínculo terapêutico.

Não apenas a história de uma doença, mas a doença em si mesma, desenvolve-se como uma narrativa. A enfermidade tem um curso de tempo característico, uma mistura complexa de causalidade e contingência, diferenças e semelhanças com enfermidades relacionadas, uma tradição textual dentro da qual ela pode ser compreendida, e mesmo um sistema metafórico que a revela. A competência narrativa fornece ao médico recursos para compreender, tanto o paciente, quanto a doença2323. Charon R. Narrative ond Medicine. N Engl J Med. 2004; 350 (9): 862-864. Disponível em: <Disponível em: http://www.nejm.org >. Acesso em 25 ago. 2004.
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Quando um médico pratica a medicina com competência narrativa ele pode, rápida e acuradamente, ouvir e interpretar o que o paciente tenta dizer. Ele usa o tempo da interação clínica de forma eficiente, extraindo todo o conhecimento médico possível do que o paciente comunica sobre a experiência da doença2323. Charon R. Narrative ond Medicine. N Engl J Med. 2004; 350 (9): 862-864. Disponível em: <Disponível em: http://www.nejm.org >. Acesso em 25 ago. 2004.
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O desenvolvimento de habilidades narrativas pode auxiliar no estabelecimento de uma boa relação médico-paciente, no desenvolvimento da empatia, assim como no estabelecimento de uma dimensão ética, pois propicia um diálogo que relativiza crenças individuais, possibilita a elaboração de valores e desenvolve virtudes próprias orientadoras de atitude2424. Amoretti R. A bioética na orientação humanizada na assistência à saúde. In: I Jornada de Bioética do GHC - Grupo Hospitalar Conceição, 2003, Porto Alegre. Disponível em: <Disponível em: http//www.ghc.eom.br/GepNet/bioamoretli.pdf >. Acesso cm 07 jun. 2005
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. Nesse sentido, ajuda na sensibilização para as dimensões emocional e cultural do cuidado e permite a compreen­são da individualidade do paciente, de seus temores, suas debilidades, suas crenças e seus valores. Compreender o ponto de vista do paciente, imaginar o que ele está passando, deduzir o que ele necessita, numa postura de respeito pela pessoa doente, ajuda na concretização de objetivos tais como humanismo e profissionalismo.

O médico com habilidades narrativas habitualmente confirma o valor do paciente, na medida em que presta atenção seriamente ao que ele fala. Demonstrar preocupação com o paciente, concentrando-se no que ele diz, possibilita um genuíno contato intersubjetivo, necessário para uma aliança terapêutica efetiva. Tal postura frequentemente estimula o paciente a falar fluentemente sobre a doença no contexto de sua vida, o que pode gerar benefício terapêutico2323. Charon R. Narrative ond Medicine. N Engl J Med. 2004; 350 (9): 862-864. Disponível em: <Disponível em: http://www.nejm.org >. Acesso em 25 ago. 2004.
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A narrativa escrita proporciona o acesso a um conhecimento não apenas sobre os pacientes e suas patologias, mas também sobre o próprio médico. A reflexão sobre o que ele vivencia ao cuidar dos pacientes proporciona ao profissional uma maior confiança, uma capacidade de reconhecer e prevenir erros e o desenvolvimento do compromisso ético com os pacientes2121. Charon R. Narrative Medicine : form, function, and ethics. Annals of Internal Medicine. 2001; 134 (1):83-87..

A MEDICINA NARRATIVA NA ESCS

Na 3a série do Curso de Medicina da ESCS os estudantes iniciam um contato regular com os pacientes. Em duplas, acompanham cada paciente por um período de aproximadamente duas semanas, observando concomitantemente os aspectos biológicos, psicológicos, culturais e socioeconômicos envolvidos em cada situação.

Para ajudar os estudantes a desenvolverem habilidades que lhes facilitem o estabelecimento de vínculo com o paciente e que proporcionem enxergar o ser humano por trás da patologia, foi estabelecida uma metodologia de entrevista médica, intitulada 'Quem é esta pessoa?'* Acreditamos que, para de­senvolver tuna relação médico-paciente de fato produtiva, é preciso perceber integralmente a pessoa do doente e não apenas seus sintomas, notar as nuances de sua personalidade e, ao mesmo tempo, ser capaz de sensibilizar-se com as angústias e vicissitudes impostas pelo sofrimento e pela doença. Portanto, o médico precisa deixar de ser um espectador passivo e passar a utilizar atentamente os sentidos -visão, audição, olfato e tato- na análise das queixas e da história do paciente.

A metodologia "Quem é esta pessoa?"1 1 Alves, NM. “Quem é esta pessoa?”. Brasília: ESCS/FEPECS, 2004. é iniciada com a entrevista. Depois, os estudantes, reunidos em grupo, são incentivados a responder "quem é a pessoa" que foi entrevista da, buscando correlações entre a doença e a história de vida do paciente, de forma a integrar as dimensões biológica, psicológica e social. Essas reuniões são também um espaço para reflexões subjetivas: Qual o impacto emocional do caso para o estudante? Como transcorreu o processo da entrevista? Quais os modelos de entendimento da doença?2525. Trindade EMV, Almeida HO, Novaes MRCG, Versiani ER. Resgatando a Dimensão Subjetiva e Biopsicossocial da Prática Médica com Estudantes de Medicina: Relato de Caso. 2005. Rev Bras Educ Méd (No prelo)..

A partir do ano de 2004, começamos a trabalhar com esse tipo de narrativa oral, com bons resultados. Necessitávamos ainda de uma metodologia que proporcionasse ao estudante a oportunidade de aprofundar suas reflexões sobre suas dificuldades e sentimentos para com o paciente. Buscávamos também um instrumento que possibilitasse compreender o desenvolvimento de cada estudante. Foi nesse momento que nos deparamos com a abordagem da Medicina Narrativa, que pa­recia ser a sequência natural de nosso trabalho. Resolvemos então, no final do ano letivo, solicitar aos estudantes que fizes­sem narrativas escritas, como parte de sua avaliação formativa.

A avaliação de cada narrativa era realizada por dois professores da unidade, sendo fornecida uma resposta escrita ao estudante, a devolutiva. Durante a elaboração das devoluti­vas identificamos em vários trabalhos habilidades narrativas importantes no desenvolvimento: a) da observação; b) da empatia; c) do vínculo estudante-paciente; d) da compreensão das percepções do paciente; e) da capacidade de integrar as dimensões biológica, psicológica e social. Ficou evidenciado ainda que muitos estudantes foram capazes de refletir sobre a prática médica e sobre a experiência vivenciada. Avaliações dos pacientes sobre a atividade desenvolvida parecem ter sido úteis para essa reflexão.

Relataremos a seguir alguns trechos de narrativas elaboradas pelos estudantes que ilustram o resultado do trabalho realizado. As iniciais dos nomes dos pacientes foram substituídas e os dados que pudessem levar a qualquer identificação foram suprimidos.

Desenvolvendo a observação

Para uma compreensão mais aprofundada do paciente é importante o desenvolvimento da habilidade de observação. Assim, os estudantes eram instados, por meio da observação ativa, a buscar significados associados à postura, ao olhar, aos gestos, à fala, com vista a caracterizar o humor do paciente, alguns traços de personalidade e o clima predominante na entrevista. Os seguintes fragmentos de narrativas abordam esse tema:

(...) sentada na cadeira do lado da cama, comendo uma maçã uma senhora um pouco retraída sobre si mesma, com um olhar acanhado. (...). O rosto já evidenciava os sinais dos tempos, marcas dos anos que se passaram, o que me fazia pensar que já havia vivido muito mais de 38 anos.

Ele permaneceu o tempo todo deitado, de início bem quieto e posteriormente demonstrou inquietação ao ficar batendo a mão na janela incansavelmente.

Ficou tão à vontade que, durante a entrevista, resolveu deitar em decúbito lateral direito, com as duas pernas flexionadas e a mão direita apoiando a cabeça, demonstrando uma postura de descontração.

Observamos que os estudantes começam a descrever comportamentos não verbais dos pacientes, buscando seus significados. Essa habilidade pode ajudar o estudante a compre­ender não apenas a pessoa entrevistada, mas também o alcance e os limites de sua relação com o outro.

Desenvolvendo a empatia

A empatia é a capacidade de se colocar no lugar do outro. O médico que desenvolve habilidade empática é capaz de imaginar e compreender o que o paciente está sentindo, facilitando a construção e o fortalecimento do vínculo terapêutico. Os seguintes trechos de narrativa ilustram o desenvolvimento da empatia pelos estudantes.

(...) o medo que a paciente tinha de dizer a palavra “AIDS”, de certa forma também afetava, pois essa palavra traz consigo uma situação complexa e aterrorizante.

Seria uma possibilidade imaginável que a ausência de acompanhante pudesse provocar uma sensação de desproteção ou mesmo solidão por parte do paciente.

Em relação à avaliação de S. sobre a entrevista, ela disse ter gostado do tipo de abordagem. Eu, entretanto, acredito que ela foi simpática ao dizer isso, mas não acredito que eu tenha dado tempo para ela, que é uma pessoa simples e tímida, refletir e tirar suas conclusões.

Verificamos nos dois primeiros exemplos a busca de compreensão dos sentimentos do paciente com relação à sua condição de saúde ou de internação, com base nas percepções do estudante a respeito das reações emocionais demonstradas. No último exemplo, o estudante buscou ir além da declaração verbal, ao tentar imaginar como a paciente poderia estar se sentindo diante da condução da entrevista, e de que forma isso poderia ter influenciado a exposição de sua percepção.

Construindo o vínculo estudante-paciente

O primeiro contato com o paciente é fundamental para a construção do vínculo, que continua a se desenvolver durante os encontros subsequentes. O vínculo formado é um instrumento importante para obter maior cooperação do paciente, na medida em que permite o estabelecimento de uma relação de confiança. Os exemplos que se seguem ilustram o processo de aproximação entre os estudantes e os pacientes:

Inicialmente a paciente não estava muito interessada na entrevista, pois estava vendo televisão, mas, com o tempo, fui conquistando sua atenção e a conversa fluiu bem.

(...) à medida que o tempo passava, eu conquistava a confiança dele. Com o progredir da descontração foi adquirindo uma postura de “total” desarme, verificado pelo descruzar de brações e pela aproximação (...)

Aos poucos ela relata sua vida conjugal, sempre enfatizando: “Nunca tinha falado isso pra ninguém!”.

A capacidade de conquistar confiança é uma habilidade que pode ser desenvolvida pelos estudantes. Nos relatos acima podemos observar o vínculo sendo construído progressivamente durante o desenrolar da entrevista.

Integrando as dimensões biológica, psicológica e social

Para possibilitar uma compreensão do processo saúde-doença numa abordagem biopsicossocial, os estudantes eram incentivados a refletir sobre o adoecimento de seus pacientes no contexto de suas vidas de forma integral. Alguns fragmentos de narrativas tratam desse tema:

Neste um ano que ficou como dona de casa, sentia-se mais sozinho ainda, uma vez que as filhas estudavam de dia e estavam muito cansadas à noite. Houve então uma exacerbação de um quadro de cefaleia que apresentava há sete anos (...) começou a apresentar adinamia, falta de motivação para realizar suas atividades diárias, associadas à dispneia aos médios esforços, claudição intermitente e febre (...).

O prognóstico (...) não dependerá apenas da paciente, mas também do retorno no convívio social, da internação com seus familiares e com o seu marido, visto que foram os fatores desencadeantes da doença. A melhor infraestrutura de sua cidade possibilita uma recuperação mais favorável.

Como não é capaz de seguir rigidamente a dieta alimenta, a doença descompensa, sendo hospitalizada, o que lhe causa um sentimento de impotência em relação à própria doença e ao tratamento.

Os estudantes incluíram em suas narrativas descrições de condições sociais e/ou psicológicas, buscando compreen­der as relações entre essas dimensões e o processo saúde-doença, seja na gênese ou nos desdobramentos desencadeados pelo adoecimento.

Compreendendo as percepções do paciente

Para ampliar a compreensão da forma como o paciente vivencia e enfrenta sua enfermidade, estimulamos os estudan­tes a incluir a subjetividade do paciente em sua análise. Assim, solicitávamos que investigassem as percepções do paciente sobre sua doença, o tratamento e a hospitalização.

(...) ela relatou se evangélica, atribuindo esse problema de saúde a um mal maior que denominou de “inimigo” (...).

(...) procurou uma curandeira. Essa previne que não encontrariam qualquer alteração em seu organismo e que o único remédio capaz de curá-lo era um chá de canela de perdiz, muito utilizado em sua região no manejo das enfermidades. “Até agora estou aqui há 30 das e tudo o que a curandeira falou está acontecendo. Ninguém me fala o que eu tenho. Ninguém sabe de nada. Se continuarem assim, vou pedir para ir para casa. É esse chá que vai me curar” revolta-se.

(...) se sente confuso por não entender por que a demora para prescrição de alta, sendo que esse avalia muito bem em relação à evolução da doença.

Ao incluir a percepção do paciente, passamos a reconhecê-lo enquanto sujeito ativo e autônomo. A forma como o paciente percebe sua doença e seu tratamento pode influenciar a adesão às prescrições médicas e a própria evolução da enfermidade. Notamos nos relatos acima que os estudantes estão oportunizando esse diálogo com o paciente.

A avaliação das pessoas entrevistadas

Os estudantes eram orientados para, ao final da entrevista, solicitar que o paciente avaliasse o encontro ocorrido. Tal procedimento tinha por objetivo fazer com que os estudantes pudessem refletir com base no feedback dado pelo próprio sujeito de sua ação.

(...) despeço-me e pergunto o que H. achou da nossa conversa. Ela me responde, ainda retraída sobre seu corpo, com olhar de timidez, quase se escondendo, que achou a nossa conversa muito boa, interessante e importante, pois foi capaz de me falar coisas que não havia falado para nenhum profissional até então. Disse que os médicos estão sempre com muita pressa e são muito rápidos, acabam não dando muita atenção a ela.

(...) me agradeceu muito ao final, esboçando semblante aliviado e risonho. Falou-me também que estava feliz em ter contribuído para meu aprendizado. E que achou muito o interessante ver um estudante de medicina que escutasse o paciente, já que o médicos gostam de fazer as coisas bem rápido.

(...) foi uma oportunidade para que ele pudesse expressão suas dúvidas sobre o que ele tinha e sobre o que deve ser feito.

A partir do retomo recebido do paciente entrevistado os estudantes podem reconhecer e confirmar o potencial terapêutico de uma entrevista com um enfoque mais abrangente. As avaliações dos pacientes parece haver contribuído para uma reflexão sobre a prática médica e sobre a atividade desenvolvida.

Refletindo sobre a prática médica

Alguns estudantes buscaram, a partir da experiência vivenciada na atividade, refletir sobre a prática médica, o que parece indicar que começam a desenvolver uma consciência crítica a respeito do papel do médico numa abordagem humanizada.

Na enfermaria entraram 18 pessoas, O ambiente adquiriu um ar pesado e amedrontador. O residente, sem a menor cerimônia, começou a ler a história clínica do Sr. L. Ele usava termos médicos que eram de difícil entendimento para o paciente. O residente falava rápido e, pelas coisas que eu consegui entender, ele estava discutindo à beira do leito (...) se o paciente estava com uma neoplasia. Eu notei que o Sr. L. ficou muito tenso com aquela situação, fletiu ainda mais o tronco e tinha o olhar fixo para a parede.

Nesse momento, chegando ao final da entrevista, tivemos que parar, pois começaria uma reunião de residentes à beira do leito. Essa pausa durou aproximadamente 20 minutos. Como sempre, eles chegaram, falaram dos pacientes como se o leitos estivessem vazios e foram embora. Ao retomar minha entrevista, M. me falou que tem vontade de rir desses médicos, desse comportamento dele. Percebi então, que ele tinha consciência de que os “doutores” o menosprezavam (...).

(...) Por outro lado, ele não associava a interrupção do medicamento a esses sintomas, por desconhecer sua doença. Ele não fora devidamente esclarecido sobre a sua morbidade, sobre o remédio a ser tomado, efeitos adversos etc.

Os trechos relatados refletem lemas recorrentes nas discussões semanais. Frequentemente os estudantes demonstram perplexidade com algumas práticas ainda efetivadas em en­fermarias, que desconsideram o paciente como sujeito autônomo, merecedor de ser informado sobre o seu estado de saúde e enfermidade.

Refletindo sobre a experiência vivenciada

O exercido da narrativa proporciona o desenvolvimento de uma reflexão mais aprofundada sobre a riqueza e a complexidade da relação médico (ou estudante)-paciente e sobre as informações colhidas no momento do encontro entre ambos. Muitas vezes, é com o distanciamento momentâneo que é possível “olhar de fora” e compreender aspectos que passam despercebidos nas rotinas do dia-a-dia.

O conhecimento real do paciente com quem lidamos é de fundamental importância para a construção de uma raciocínio clínico correto e, mais ainda, para que uma assistência integral e completa possa ser oferecida (...) o desenvolvimento de habilidades no sentido de integrar ao máximo todas as dimensões do paciente parece importante para que, no tempo disponível, possamos realizar o melhor atendimento possível.

Passados estes três anos de estudo, tenho uma visão ampliada dos paciente. Além das doenças, sinais e sintomas, vejo pessoas com histórias diversas. Tenho certeza de que me tornei melhor, como estudante de Medicina e como pessoa também e esta última atividade só veio comprovar que hoje se tornou mais fácil abordar o paciente e relacionar sua história com o estado que ele apresenta.

Inicialmente eu estava relativamente relutante à atividade proposta depois era movida por um interesse inexplicável de desvendar e aprender com aquela pessoa desconhecida. Na verdade, acho que compreendi que a minha Ânsia por aprender, fonte de toda a minha preocupação pelos estudos pendentes, não precisaria ser suprida exclusivamente pelo livros, mas que aquele contato interpessoal seria capaz de me oferecer outras formas de conhecimentos, não descritos em nenhum livro e não ensinados por nenhum professor. Lembrava das muitas discussões da comunicação acerca desse assinto e refletia sobre a importância dessa atividade. Com efeito, a sobrecarga de tarefas impostas pela Medicina, desde a formação acadêmica, é um poderoso trator para o pleno desempenho das atividades médicas humanizadas.

Parece que as atividades desenvolvidas possibilitaram aos estudantes a reflexão sobre a importância de uma abordagem que propicie um conhecimento mais aprofundado dos pacientes, assim como as narrativas lhes permitiram meditar sobre as próprias posturas, levando a um crescimento pessoal e acadêmico que, esperamos, irá repercutir em sua futura prática profissional.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As narrativas citadas neste trabalho foram feitas como uma atividade de avaliação de um processo iniciado durante um ano de muitas discussões provocadas por inquietações sentidas pelos docentes da Unidade de Comunicação do 3° ano do curso de Medicina da ESCS.

Buscávamos uma abordagem de ensino-aprendizagem que possibilitasse aos estudantes uma ampla compreensão da relação médico-paciente e o desenvolvimento da dimensão ética dessa relação. Uma abordagem que, enfocando aspectos vivenciais e afetivos, permitisse um amadurecimento dos estudantes e promovesse uma conscientização dos papéis assumidos durante o curso. Enfim, uma abordagem que possibilitasse maior aprofundamento, engajamento e compromisso com o outro e, consequentemente, com o aprendizado.

O debate sobre a literatura relativa ao ensino médico e o compartilhamento de experiências profissionais dos próprios docentes levou à criação da metodologia que denominamos 'Quem é esta pessoa?', que, implantada, parece-nos ter sido bastante útil para proporciona,· aos estudantes o desenvolvimento de habilidades de comunicação.

As discussões, realizadas após as entrevistas com os pacientes, revelavam a tentativa de vários estudantes de compreender, de forma aprofundada, o paciente que acabavam de conhecer. Frequentemente demonstravam habilidade na abordagem biopsicossocial dos conteúdos presentes durante a prática. Alguns estudantes permitiam-se falar sobre os sentimentos que haviam sido mobilizados no contato com o paciente.

Ao final do período letivo deparamo-nos com a seguinte questão: como avaliar o desenvolvimento de cada estudante? A participação nas discussões não era homogênea; alguns deles não conseguiam expressar claramente as experiências vivenciadas. Como saber de suas dificuldades e dos sentimentos suscitados durante o processo de aprendizagem? Seria necess.1rio sistematizar a metodologia, de forma a compreender o processo de crescimento individual e coletivo.

Foi nesse momento que, baseados na Medicina Narrati­va, solicitamos aos estudantes que narrassem por escrito a atividade realizada. Surpreendemo-nos favoravelmente com o resultado, sentimo-nos confirmados e gratificados pelos tra­balhos produzidos pela maioria dos estudantes. A experiência de, após o contato com o paciente, afastar-se do lugar do encontro e, solitariamente, permitir-se um olhar "de fora", como um auto-observador, para narrar esse encontro de for­ma livre, nos pareceu profícua.

Os primeiros resultados do trabalho realizado parecem indicar a potencialidade da Medicina Narrativa para a capacitação em habilidades necessárias para o desenvolvimento de competências em comunicação.

Com essa abordagem foi possível verificar potencialidades e limitações individuais dos estudantes. Identificamos em vários trabalhos o desenvolvimento de habilidades narrativas importantes, como as relatadas no corpo deste artigo. Verificamos também algumas dificuldades, como por exemplo: estudantes que durante as discussões demonstravam capacidade empática e compreensão dos pacientes, não conseguiram narrar, de forma clara, essa experiência.

Evidenciando a necessidade de possibilitar a todos os estudantes o desenvolvimento da habilidade de organizar um relato oral e escrito consistente e coerente sobre a experiência no contato com o paciente, decidimos, no ano de 2005, utilizar a Medicina Narrativa desde as primeiras atividades. Acreditamos que essa abordagem pode proporcionar aos estudantes não apenas uma habilidade descritiva, mas também o aprofundamento da auto-reflexão e da capacidade de perceber o paciente como um sujeito autônomo, que tem uma história, valores, saberes, sentimentos, e que desenvolveu uma doença no seu contexto de vida. Essa proposta é coerente com uma formação que tem como propósito interferir de maneira substancial na prática médica, favorecendo o exercício de uma medicina qualificada e humanizada.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2005

Histórico

  • Recebido
    27 Jun 2005
  • Aceito
    14 Out 2005
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