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Implicações cognitivas, filosóficas e educativas do trabalho do patologista

Resumos

O estabelecimento do diagnóstico anatomopatológico envolve processos mentais complexos, incluindo atenção, percepção, memória, planificação e linguagem, nem sempre claramente compreendidos pelos próprios patologistas. Pouca importância tem sido dada a esses aspectos da prática em patologia, não obstante suas profundas implicações não apenas na educação e ensino da patologia, mas também no entendimento da natureza dos intricados processos envolvidos no diagnóstico patológico. Neste trabalho, elaboramos uma base teórica para o processo diagnóstico. Na descrição dos processos mentais cognitivos, utilizamos a concepção de Luria e Vygotsky, salientando suas origens culturais, na maneira como esses processos são mediados pela linguagem. A questão da dicotomia entre objetividade e subjetividade é abordada por meio da biologia do conhecer, de Humberto Maturana. A partir dessas concepções, apresentamos um modelo teórico de planificação cognitiva do processo diagnóstico, levando em conta os aspectos cognitivos, comunicativos e normativos, além da própria atuação do patologista em relação ao caso, ao paciente e ao médico assistente. As implicações educativas decorrentes desse modelo são também apresentadas.

Educação Médica; Patologia; Diagnóstico


Establishing a pathological diagnosis requires complex mental processes including attention, perception, memory, planning and language, not always clearly understood by the pathologists themselves. Little importance has been given to these important aspects of the pathological practice in spite of its profound implications for understanding the intricate processes involved in pathological diagnosis. In this paper, we present a theoretical basis for the diagnostic process. In the description of the cognitive mental processes such as attention, perception and memory we employ the concepts of Luria and Vygotskyy, emphasizing the cultural origins of these processes largely mediated by the language. The dichotomy between objectivity and subjectivity is approached through Maturana's biology of knowledge. Based on these concepts we present a theoretical planning strategy considering cognitive, communicative, and normative aspects as well as the performance of the pathologist in relation to the case, to the patient and to the assistant physician. Finally, we present the educational implications arising from this model.

Education, Medical; Pathology; Diagnosis


ENSAIO

Implicações cognitivas, filosóficas e educativas do trabalho do patologista* * Trabalho desenvolvido no Serviço de Anatomia Patológica do Hospital Felício Rocho - Belo Horizonte - MG. Apresentado no XXV Congresso Brasileiro de Patologia, Natal, outubro de 2005.

Cognitive, philosophical and educational implications of the work of the pathologist

Gil Patrus PenaI; José de Souza Andrade-FilhoI,II

IServiço de Anatomia Patológica do Hospital Felício Rocho, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil

IIDisciplina de Patologia, Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Gil Patrus Pena Rua Uberaba, 418 - sala 102 30180-080 - Belo Horizonte - MG e-mail: gilpena@gold.com.br

RESUMO

O estabelecimento do diagnóstico anatomopatológico envolve processos mentais complexos, incluindo atenção, percepção, memória, planificação e linguagem, nem sempre claramente compreendidos pelos próprios patologistas. Pouca importância tem sido dada a esses aspectos da prática em patologia, não obstante suas profundas implicações não apenas na educação e ensino da patologia, mas também no entendimento da natureza dos intricados processos envolvidos no diagnóstico patológico. Neste trabalho, elaboramos uma base teórica para o processo diagnóstico. Na descrição dos processos mentais cognitivos, utilizamos a concepção de Luria e Vygotsky, salientando suas origens culturais, na maneira como esses processos são mediados pela linguagem. A questão da dicotomia entre objetividade e subjetividade é abordada por meio da biologia do conhecer, de Humberto Maturana. A partir dessas concepções, apresentamos um modelo teórico de planificação cognitiva do processo diagnóstico, levando em conta os aspectos cognitivos, comunicativos e normativos, além da própria atuação do patologista em relação ao caso, ao paciente e ao médico assistente. As implicações educativas decorrentes desse modelo são também apresentadas.

Palavras-chave: Educação Médica; Patologia; Diagnóstico.

ABSTRACT

Establishing a pathological diagnosis requires complex mental processes including attention, perception, memory, planning and language, not always clearly understood by the pathologists themselves. Little importance has been given to these important aspects of the pathological practice in spite of its profound implications for understanding the intricate processes involved in pathological diagnosis. In this paper, we present a theoretical basis for the diagnostic process. In the description of the cognitive mental processes such as attention, perception and memory we employ the concepts of Luria and Vygotskyy, emphasizing the cultural origins of these processes largely mediated by the language. The dichotomy between objectivity and subjectivity is approached through Maturana's biology of knowledge. Based on these concepts we present a theoretical planning strategy considering cognitive, communicative, and normative aspects as well as the performance of the pathologist in relation to the case, to the patient and to the assistant physician. Finally, we present the educational implications arising from this model.

Key-words: Education, Medical; Pathology; Diagnosis.

INTRODUÇÃO

Elaborar um diagnóstico patológico é um processo mental complexo, nem sempre claramente compreendido pelos próprios patologistas e que envolve atividades mentais como atenção, percepção, planificação e linguagem. Um aspecto fundamental do trabalho do patologista é que deve ser exercido um controle consciente sobre essas atividades durante todo o processo diagnóstico. Percepções, pensamentos e itinerários ou estratégias mentais dos patologistas, como seres humanos, estão sujeitos a aspectos tanto biológicos como culturais. Pouca importância tem sido dada a esses aspectos da prática em Patologia, apesar de suas importantes implicações não apenas na educação e ensino da Patologia, mas também na compreensão da natureza dos processos envolvidos no diagnóstico patológico. Como esses processos são pouco discutidos, pode ser que as estratégias dos patologistas para chegar ao diagnóstico final variem individualmente, levando ou contribuindo para a bem conhecida variabilidade na interpretação de determinado caso.

Nesse trabalho, apresentamos uma base teórica para os processos psicológicos envolvidos na atividade diagnóstica. Discutiremos brevemente as funções mentais de percepção, atenção, memória e busca. Lançaremos mão do pensamento de Humberto Maturana, na tentativa de abordar o dilema entre a objetividade e a subjetividade, e, dentro da concepção desse autor, situar o diagnóstico patológico como uma explicação científica. Apresentaremos um modelo teórico de planificação do diagnóstico, compreendendo aspectos (1) cognitivos, (2) comunicativos, (3) de respeito às normas e à ética e (4) da ação/atuação médica - do próprio patologista e dos médicos assistentes - decorrentes do processo diagnóstico. Finalmente, serão discutidas as implicações educativas e profissionais dessas proposições.

PERCEPÇÃO

A atividade do patologista está intimamente ligada a sua percepção visual. O processo de percepção não constitui apenas a impressão passiva do estímulo externo sobre a retina e depois no córtex visual, onde são formadas estruturas absolutamente idênticas com o estímulo primário. Quando avaliamos uma lâmina ao microscópio, os elementos que percebemos não são apenas uma "projeção" do objeto avaliado. O processo de percepção tem um caráter ativo, de busca da informação, de distinção dos aspectos essenciais do objeto, de comparação de um aspecto com outro, de criação de hipóteses para o que percebemos e de checagem dessas hipóteses com os elementos percebidos.

Esse processo, portanto, é evidentemente complexo. Inicia-se com a análise da estrutura percebida, em diferentes componentes ou pistas, que são subseqüentemente codificados ou sintetizados, e depois adequados em esquemas ou sistemas móveis. A seleção e codificação de aspectos é um processo ativo e ocorre sob a influência direta das tarefas enfrentadas pelo indivíduo. Em geral, usamos códigos de linguagem para situar a estrutura percebida em seu sistema apropriado e para lhe dar um caráter geral ou categórico. Finalmente, ocorre um processo de comparação do efeito da hipótese original ou um processo de verificação da atividade de percepção.

O processo de percepção depende fortemente da experiência prévia. Durante a percepção de estruturas familiares, firmemente estabelecidas na experiência passada, esse processo é naturalmente contraído e abreviado. Na percepção de estruturas novas, não familiares ou complexas, o processo ocorre em todas as suas etapas. O processo de percepção ocorre com a participação do discurso: a atividade perceptual humana não ocorre sem a participação direta da linguagem1.

A intricada relação entre códigos de linguagem e a percepção pode ser ilustrada nas palavras que usamos para descrever os aspectos histológicos. Imagens histológicas podem ser descritas, categorizadas e relacionadas entre si por meio de palavras. Assim, quando examinamos uma biópsia colonoscópica, reconhecemos o órgão avaliado e imediatamente lhe atribuímos o nome de mucosa colônica. Outras estruturas são vistas, como criptas, lâmina própria, linfócitos, células caliciformes, células epiteliais absortivas, e o processo de percepção e nomeação é quase simultâneo. Outras caracterizações são dadas, também usando códigos de linguagem: criptas podem estar alongadas, tortuosas; as células epiteliais podem estar estratificadas; os linfócitos podem estar aumentados em número. Embora possam existir patologistas que pensem por imagens, é mais esperado que patologistas usem mais palavras que imagens na organização de seu pensamento.

A correspondência entre a estrutura percebida e a percepção da estrutura nem sempre é direta. A percepção da estrutura tem de ser compreendida como uma construção mental, e nesse processo de construção são importantes a relação atribuída aos diferentes componentes da estrutura e a interpretação dada aos componentes individualmente e à estrutura como um todo. Isso pode ser mais bem compreendido quando se avalia a figura humana apresentada na Figura 1. Dependendo da construção que lhe damos e do significado que atribuímos a seus componentes, podemos perceber a figura de uma jovem ou de uma velha. A Figura 2 nos apresenta elementos conhecidos de nossa experiência, como sombras e tabuleiro de damas. Talvez seja essa familiaridade com os elementos que nos leva à percepção de que o quadro A é mais escuro que o quadro B. As relações dos componentes de determinada estrutura, entre si e em relação à estrutura como um todo, são, portanto, fundamentais na construção do significado que atribuímos aos componentes individuais e à própria estrutura como um todo.



ATENÇÃO

Toda atividade mental humana organizada possui algum grau de diretividade e seletividade1. Dos inúmeros estímulos que nos alcançam, respondemos apenas àqueles especialmente fortes ou que nos parecem particularmente importantes e correspondem a nossos interesses, intenções ou tarefas imediatas. Chamamos de atenção essa capacidade diretiva e seletiva dos processos mentais. A atenção também tem forte relação com a linguagem, na medida em que a atividade mental humana pode ser orientada pelo discurso.

Ao examinar uma lâmina, o patologista orienta sua atenção para os elementos necessários ao diagnóstico, de acordo com a proposição diagnóstica que tem em mente, dando menor importância a outros aspectos do campo microscópico. O patologista pode ater-se a um nucléolo proeminente, um vacúolo citoplasmático ou um arranjo arquitetural peculiar das células. Pode também dirigir sua atenção além do campo perceptual do momento, tanto espacial, como temporalmente. Dessa maneira, o patologista pode buscar um achado inicialmente não detectado (por meio de um escrutínio mais cuidadoso ou solicitando cortes adicionais, por exemplo) e também é capaz de combinar outros achados relevantes (dermatológicos, radiológicos, estudo patológico prévio, etc.) na avaliação de um caso. Uma lâmina de histologia pode apresentar uma complexidade de achados muito grande, nem todos diretamente implicados com o diagnóstico histopatológico. A Figura 3 ilustra como a atenção dada a determinados componentes do quadro histológico pode traduzir-se em diagnósticos diferentes.


MEMÓRIA

A memória pode ser caracterizada como a retenção direta, não mediada, de estímulos sensoriais ou de experiências reais por meio de traços mnemônicos1. Esse tipo de memória é muito próximo da percepção, porque surge da influência direta dos estímulos externos sobre as pessoas e, portanto, tem caráter imediato. Há, contudo, uma forma de memória derivada de uma linha de desenvolvimento distinta. O hábito de fazer uma marca a caneta numa das mãos para lembrar-se de algo, o aparecimento da escrita e ferramentas simples de memória demonstram uma organização culturalmente elaborada do comportamento humano. Essas operações simples marcam a extensão da memória humana além de seus limites naturais, incorporando estímulos, chamados sinais, que podem ser originados internamente.

As formas elementares de comportamento pressupõem uma reação direta à tarefa posta ao indivíduo, que pode ser expressa por uma fórmula simples:

Estímulo ® Resposta

Se utiliza sinais auxiliares, o indivíduo constrói, de maneira ativa, uma ligação intermediária, um estímulo de segunda ordem, entre o estímulo e a resposta2. Conseqüentemente, o processo simples de estímulo e resposta é substituído por um ato complexo, mediado, que pode ser ilustrado como:

Estímulo ® X ® Resposta

Neste novo processo, o impulso de reação direta é inibido, e um estímulo auxiliar (X), que participa da consecução da operação, é incorporado. Este estímulo pode ser externo - como no caso de fazer uma marca a caneta na mão, em que se fala em uma mediação externa - ou interno. Com o desenvolvimento de estratégias para a elaboração e a internalização dessas ferramentas, a memória passa a ter um caráter lógico, profundamente relacionado a outras funções psicológicas. Lembrar passa a ser estabelecer e encontrar relações lógicas. Reconhecer consiste na descoberta de quais elementos indicados pela atividade devem ser encontrados.

A memória do patologista é um recurso que não pode ser subestimado. Há uma quase infinidade de achados histológicos que, em combinações distintas, possuem diferentes significados diagnósticos. Memorizar diretamente cada aspecto histológico e relacioná-lo a determinada entidade, sem a participação de elementos auxiliares, certamente constitui uma tarefa difícil para a maioria dos patologistas. Os sistemas de conexão, a partir dos quais são introduzidos os traços de informação que chegam ao indivíduo, são codificados em relação a diferentes sinais, formando matrizes multidimensionais, das quais o indivíduo deve selecionar, a cada momento, o sistema que formará a base para a codificação.

O processo de memorização e de uso da memória para determinada pessoa que deseja se lembrar de determinado item de informação, portanto, exibe uma estratégia, com escolha de determinados significados, distinguindo sinais importantes e inibindo sinais desnecessários, na dependência do propósito da tarefa, dos componentes sensoriais e lógicos do material armazenado e de sua adequação a sistemas apropriados.

Um exemplo de sinal mediado, freqüentemente empregado por patologistas, e de inestimável valor mnemônico são as analogias em medicina3. Esse elemento adicional, suscitado pela percepção sensorial, leva o patologista a lembrar de determinada condição, contribuindo para o diagnóstico (Figura 4).


A elaboração de algoritmos mentais constitui outra ferramenta freqüentemente empregada por patologistas. Particularmente relevantes são as proposições de Ackerman4 para a patologia de pele e a de Nathwani5 para a patologia do sistema hemolinfopoético. Nestas estratégias, diferentes padrões morfológicos são codificados e inseridos em determinados esquemas, auxiliando o patologista a dirigir o diagnóstico a partir dos achados morfológicos.

Também como ferramenta auxiliar, como abordagem final em casos particularmente difíceis, o patologista pode buscar a solução do caso mediante a codificação deste em determinados sistemas de categorias, como "benigno" ou "maligno", "inflamatório" ou "neoplásico". Embora o processo mental do diagnóstico seja lógico, em princípio, a inserção do caso numa categoria pode ter como conseqüência a exclusão de determinadas entidades do campo de pensamento, impedindo que essa possibilidade diagnóstica seja verificada pelo patologista (Figura 5).


Grande valor é atribuído à memória visual do patologista, em que os estímulos percebidos são convertidos em imagens visuais. Essa conversão, entretanto, não é uma simples conversão do estímulo sensorial numa imagem visual de mesmo valor, mas pressupõe a seleção de uma imagem apropriada, das muitas possíveis. Podemos interpretar essa conversão como um processamento e codificação do estímulo recebido, como base para a codificação dos traços e sua inclusão num sistema de categorias. Assim, a memória visual, mesmo de elementos firmemente estabelecidos na experiência, sempre implica percepção dos elementos individuais da imagem, sua codificação e sua avaliação dentro de um sistema de categorias.

A contraposição das imagens percebidas com aquelas armazenadas mentalmente constitui, contudo, apenas um estágio inicial do processo de memória ou do diagnóstico propriamente dito. O patologista experiente ainda confronta essa experiência visual com seus traços e elementos dentro de um sistema de categorias. O nevo melanocítico intradérmico, por exemplo, uma lesão vista no dia-a-dia do patologista, é prontamente reconhecido como tal no momento em que o patologista o vê. Embora seja reconhecido como tal quase imediatamente, o patologista firma o diagnóstico somente quando reconhece os traços mais distintivos da lesão, como ausência de atipias e maturação em profundidade, e avalia possíveis variantes, como o nevo lipomatoso ou neuróide. Nesse processo de inserção dos elementos dentro de sistemas de categorias, o diagnóstico diferencial é checado com as informações recebidas, verificando-se se tais elementos poderiam estar relacionados a outras entidades, como o melanoma nevóide ou o neuroma encapsulado em paliçada.

BUSCA

Ao avaliar determinado caso, o patologista confronta-se freqüentemente com a tarefa de buscar determinado elemento ou achado morfológico. Essa busca, por si só, pode representar a finalidade primária do exame, como no caso de rastreamento do câncer de colo uterino por meio de esfregaços cérvico-vaginais. Nessa situação, o objetivo do exame é a busca de células epiteliais displásicas ou neoplásicas. Outro exemplo é a busca por micrometástases em linfonodos regionais. Em outras situações, o objeto da busca é determinado pela hipótese elaborada pelo patologista, como na procura por elementos parasitários, inclusões virais, focos de invasão tumoral, pesquisa de mitoses, etc. A busca é considerada uma atividade entediante e intelectualmente pouco desafiadora. Essa atividade tão rotineira na prática do patologista é, contudo, pouco compreendida em sua natureza.

Para a compreensão do processo de busca, é importante conhecer a natureza dos elementos-alvo (aqueles que procuramos) e dos elementos distrativos (os elementos presentes que não buscamos). Na Figuras 6 e 7, apresentamos esquematicamente duas situações. Na primeira (Figura 6), os elementos-alvo (letras formando a palavra PATOLOGIA, em diferentes direções) são da mesma natureza dos elementos distrativos (letras aleatórias). Na segunda situação (Figura 7), os elementos-alvo (letras formando a palavra PATOLOGIA, em diferentes direções) são de natureza distinta dos elementos distrativos (números aleatórios). A primeira situação nos exige considerável esforço para encontrar as três palavras PATOLOGIA presentes no diagrama. Na segunda situação, a tarefa pode ser cumprida mais rapidamente e com menor esforço.



Nos casos em que os elementos distrativos são de natureza distinta, a busca é chamada automática6. Quando os elementos distrativos são da mesma natureza, a busca é denominada controlada. No exercício da patologia, há muitas situações de busca controlada e poucas de busca automática. Todos com experiência no escrutínio de esfregaços cérvico-vaginais reconhecem que há esfregaços de fácil escrutínio, com fundo limpo e predomínio de células superficiais maduras, de núcleos picnóticos. Nessa situação, os núcleos aumentados das células displásicas são mais facilmente detectados, por sua natureza distinta dos elementos distrativos presentes. Já na avaliação de esfregaços mais reativos, com células metaplásicas ou regenerativas, ou em amostras hipercoradas, a busca se torna mais trabalhosa, já que os elementos distrativos se mostram qualitativamente mais parecidos com os elementos-alvo.

Nesta situação, não basta eliminar o elemento distrativo, como não-alvo, como ocorre na busca automática. A busca controlada, de certo modo, exige a identificação do elemento distrativo, para que efetivamente seja rotulado como não-alvo. Muitas técnicas cito-histológicas e de imuno-histoquímica têm o propósito de transformar uma busca controlada numa busca automática. Quando utilizamos técnicas de monocamada ou citologia de base líquida, procuramos eliminar os elementos distrativos, como células inflamatórias, além de dispor os elementos-alvo e distrativos sem sobreposição, facilitando sua distinção. O mesmo ocorre com colorações especiais para fungos. Embora freqüentemente visíveis ao H&E, sua identificação pode ser feita com menor esforço quando eles se destacam dos elementos distrativos. O emprego da imuno-histoquímica na pesquisa de células metastáticas isoladas em linfonodo sentinela é também uma tentativa de tornar automática uma busca controlada.

Com o aumento da experiência na identificação e nomeação dos elementos, o patologista desempenha com maior rapidez e resolutividade as atividades de busca. Como princípio, contudo, o patologista deve considerar toda busca por determinado elemento como uma busca controlada, que exige esforço, atenção e dedicação de tempo ao estudo das amostras. A falha em encontrar um elemento-alvo pode estar relacionada não à ausência de busca, mas à natureza da busca realizada.

OBJETIVIDADE x SUBJETIVIDADE

Ao avaliar um caso e emitir um parecer sobre ele, o patologista nos apresenta uma reformulação da experiência. Essa reformulação deriva diretamente do seu observar ao microscópio, descrevendo as estruturas ali vistas. Há, contudo, duas maneiras de aceitar as reformulações da experiência que nos são apresentadas pelo patologista7. Numa delas, ilustrada à esquerda do diagrama da Figura 8, o patologista se comporta como possuidor de determinadas habilidades, como se elas fossem constitutivas dele. Essas habilidades são cognitivas, como a percepção e a razão, e lhe permitem dizer que a alteração histológica está lá. Como ele sabe que há uma alteração histológica? Porque ele a vê. O patologista tem a capacidade de ver. Mas ele não pode se equivocar? Sim, poderia, mas a razão lhe permite discernir sobre essa situação. A razão lhe possibilita fazer uma referência a determinado diagnóstico, de maneira independente. E essa razão, de onde ela surgiu? A razão é uma propriedade humana, e o patologista é uma pessoa possuidora de razão naquilo que executa.


Nesse caminho, não perguntamos pelo patologista ou pelo operar do patologista para chegar ao diagnóstico. Esse caminho explicativo é o caminho da objetividade. O diagnóstico definido pelo patologista existe independentemente do patologista e de seu processo de diagnosticar. Os elementos histológicos podem ser percebidos como se o patologista fosse um instrumento e detivesse essa capacidade instrumental. Se perguntarmos a ele como chegou ao diagnóstico, poderá nos responder que viu o que está na lâmina. O diagnóstico está na lâmina e precede a distinção.

Acontece freqüentemente, entretanto, que patologistas diferentes chegam a diagnósticos distintos quando avaliam o mesmo caso. E esse fato é mesmo estudado e descrito na literatura como concordância interobservador. Curiosamente, até o mesmo patologista, em dias diferentes, pode dar diagnósticos diferentes, fato também estudado na literatura médica e descrito como concordância intraobservador. O caminho explicativo da objetividade pura e simples nos permite compreender esses fatos apenas pelo caminho dos erros de percepção. Se a realidade permanece inalterada e lhe damos diferentes explicações, quando há discordância inter- ou intraobservador, há erros na percepção dessa realidade por parte de algum observador ou em determinado momento de determinado observador.

O outro caminho explicativo nos possibilita fazer uma pergunta ao patologista: Como? Como sabe que é esse o diagnóstico? A dificuldade não está na experiência de ver as estruturas microscópicas. O problema está em explicar as operações de distinção realizadas pelo patologista. No caminho indicado à direita, o patologista tem de explicar como faz o diagnóstico, e a realidade percebida não existe independentemente dele. As explicações que oferece para essa realidade dependem do seu operar como patologista. Maturana refere-se a esse caminho explicativo como o caminho da objetividade, entre parênteses. Ao colocar a objetividade entre parênteses, o patologista assume que não pode fazer referência a entidades independentes dele para construir seu diagnóstico.

Esses dois caminhos explicativos têm conseqüências no espaço das relações humanas, entre os próprios patologistas, entre os patologistas e os médicos assistentes, e entre os médicos e os pacientes. No momento em que o patologista assume que tem acesso privilegiado à realidade independente dele, e pode usar esse acesso como um argumento explicativo, os que não concordam com ele estão errados, não possuem a capacidade de ver, são limitados.

No outro caminho explicativo, o da objetividade entre parênteses, não se pretende ter um acesso privilegiado à realidade. O diagnóstico se valida no contexto das coerências que o constituem como diagnóstico válido.

O DIAGNÓSTICO PATOLÓGICO COMO EXPLICAÇÃO CIENTÍFICA

Optando pelo caminho explicativo da objetividade entre parênteses, perdemos a segurança da existência de uma realidade externa, independente. Assim, diante de um caso de carcinoma papilar da tireóide, com seus elementos típicos, por que teríamos dúvida em afirmar o diagnóstico, assim, objetivamente? O diagnóstico patológico deve ser compreendido como explicação científica, no sentido de dar uma explicação para a experiência. Maturana nos apresenta critérios de validação para uma explicação que se pretenda científica7:

1) Apresentação da experiência (o fenômeno) a ser explicada, em termos daquilo que um observador-padrão deve fazer em seu domínio de experiências para experienciá-la;

2) A reformulação da experiência (o fenômeno) a ser explicada, sob a forma de um mecanismo gerativo, que, se realizado por um observador-padrão, em seu domínio de experiências, lhe permite ter em seu domínio de experiências a experiência a ser explicada, como apresentada no item (1);

3) A dedução de outras experiências a partir da operação do mecanismo gerativo proposto em (2), com coerências operacionais no domínio de experiências do observador-padrão e das operações que ele deve realizar em seu domínio para tê-las;

4) A experiência das experiências deduzidas em (3) por meio da realização das operações também deduzidas em (3).

A experiência do diagnóstico histológico, morfológico, cumpre esses critérios, sem que tenhamos que nos ocupar com a natureza objetiva ou subjetiva da experiência. Ao descrever uma entidade, o patologista:

• Apresenta a experiência de diagnosticar de maneira que essa experiência possa ser compreendida por outro patologista;

• Apresenta as operações necessárias de modo que outro patologista seja capaz de assimilar e compreender as operações propostas para a experiência do diagnosticar;

• Permite a dedução de outras experiências e operações necessárias, de modo que as operações propostas e assimiladas em (2) permitam que os patologistas sejam capazes de realizar a experiência do diagnóstico em outros casos, dentro de coerências operacionais relacionadas a esse domínio (diagnóstico morfológico) e a outros domínios de experiência (testes moleculares, comportamento biológico, evolução clínica, etc.);

• Consegue que outros patologistas efetivamente vivam a experiência de estabelecer o diagnóstico, com base nas experiências e operações deduzidas em (3).

É particularmente agradável perceber que a patologia está de tal forma cientificamente fundada, que, apesar das críticas feitas às suas limitações pela "subjetividade", "variação inter- e intraobservador", e natureza artesanal, o diagnóstico morfológico permanece como explicação científica válida, continuando a oferecer explicações para os fenômenos (experiências), mesmo com os avanços recentes de outros domínios de experiência, como exames moleculares8.

A PLANIFICAÇÃO DO DIAGNÓSTICO PATOLÓGICO

O diagnóstico patológico, como descrito nas seções prévias deste trabalho, envolve não apenas atividades mentais cognitivas complexas, mas requer que esse diagnóstico seja comunicado ao médico assistente. Várias regras devem ser respeitadas na condução do caso, não apenas regras técnicas, como também valores éticos e de respeito ao ser humano. Finalmente, o patologista tem de avaliar seu diagnóstico em relação à necessidade de estudos adicionais, de consulta a colegas e em relação à conduta médica dele decorrente1 1 O modelo apresentado se baseia na proposição pedagógica do professor Miguel López Melero. Faculdad de Educación, Univesidad de Málaga, Espanha. .

O modelo de planificação apresentado resgata a prática da patologia como prática médica e, antes de tudo, humana (Figura 9). De modo geral, hipertrofiamos nossa capacidade diagnóstico-cognitiva em detrimento dos outros aspectos da prática. Embora, na concepção de Maturana, o laudo anatomopatológico possa ser descrito como uma experiência perceptiva, essa experiência permanece válida como explicação científica se atentarmos para as operações de distinção propostas para as experiências diagnósticas que realizamos, tendo em mente a coerência com outros domínios de experiências.


Patologistas cometem enganos, se compreendemos enganos como uma ação feita na aceitação honesta de sua validade, no momento em que é feita, e que depois é reavaliada como erro, em relação a outra ação cuja validade é aceita sem dúvida. A natureza do engano é sempre posterior à ação, quando comparamos ações realizadas em momentos sucessivos5. O modelo de planificação proposto entende o diagnóstico patológico como sujeito à reflexão, a partir de ações desencadeadas posteriormente. Em certo sentido, não podemos nos assegurar de que o diagnóstico que apresentamos permanecerá válido, pois não sabemos se posteriormente pensaremos nessa afirmação como um engano. Um "engano" pode estar relacionado às diferentes dimensões apresentadas (cognitiva, comunicativa, normas e conduta). Deste modo, é necessário que o diagnóstico patológico, como processo mental humano, contemple outras dimensões que não somente a elaboração diagnóstica, cognitiva.

Essa visão contrasta com a figura do patologista como um instrumento para aferir diagnósticos, visão freqüentemente patrocinada tanto para os pacientes, como para os demais médicos. Nessa desmistificação do trabalho do patologista, importa reconhecer a natureza humana de seu trabalho, valorizando não somente seus aspectos cognitivos, mas também outras habilidades e valores humanos. Mesmo sujeito a ter de reformular alguns diagnósticos, pela existência de ações futuras que questionem sua validade, o médico patologista assume a responsabilidade técnica pela interpretação diagnóstica que elabora. Essa responsabilidade em relação ao diagnóstico está diretamente ligada à dimensão da ação e conduta médica decorrente desse diagnóstico. Esse talvez seja o ponto mais crítico na distinção entre o diagnóstico médico e o diagnóstico não médico. Ao exercer a atividade médica profissional, o indivíduo assume-se conhecedor das implicações práticas de seu diagnóstico, admitindo a responsabilidade pelas ações dele decorrentes.

ESTRATÉGIAS EDUCATIVAS

O modelo proposto permite sugerir algumas estratégias educativas, na formação e educação continuada de patologistas. Nessa linha, algumas sugestões são apresentadas a seguir.

O uso da fotografia, hoje muito facilitado pela tecnologia digital, deve ser incentivado durante as atividades de treinamento11. Pela fotografia, os aspectos relevantes de cada caso podem ser documentados e avaliados. Essa documentação pode atuar também como facilitadora do processo de memória visual. O recurso digital também permite mais facilmente que essa documentação histológica se acompanhe do código escrito, de modo que os dois códigos (visual e de linguagem) possam ser trabalhados em conjunto. Nas figuras de livro e apresentações de casos em reuniões, podem ser empregadas palavras que correspondam sucintamente ao achado histológico ou diagnóstico, como estratégia para facilitar a aquisição de ambos os códigos.

O uso de analogias como estratégia didática possibilita incorporar elementos da experiência ao processo de aprendizagem12, facilitando e mediando os processos de memória.

Pode-se iniciar o treinamento pelas tarefas mais simples, em que os erros estão associados a conseqüências de menor monta. Um aprendiz de alfaiate, por exemplo, inicia o treinamento com atividades de costura e não de corte do tecido. Nesse sentido, as atividades de microscopia deveriam preceder as de macroscopia no treinamento em serviço.

Estabelecer formatos de ação conjunta: no processo de aprendizagem, a supervisão deve fazer-se presente, tornando-se menos necessária à medida que o residente adquira autonomia. A natureza da supervisão pode ser comparada à de um andaime. Seu uso é necessário no processo da construção, tornando-se desnecessário à medida que se conclui o processo. O preceptor e o residente devem estabelecer formatos de ação conjunta. Nesses formatos, parte da tarefa é dividida entre ambos. Assim, o residente conta com auxílio para elaborar o diagnóstico de um caso mais complexo, mas assume a tarefa de elaborar um laudo. Em outro momento, o preceptor o incentiva a elaborar o diagnóstico, mas auxilia na redação do laudo. E assim para as outras atividades: conversar ao telefone com o médico assistente, atender o paciente ou seus familiares, preparar o caso para reunião de casos, apresentar o caso, etc., tendo em sempre em mente as dimensões envolvidas na atividade diagnóstica (cognitivas, comunicativas, normas/regras, ação/conduta). À medida que o residente adquire autonomia nas tarefas, deve paulatinamente desempenhá-las de maneira autônoma.

Ao tomar conhecimento de uma nova entidade, por meio de seminários de lâminas, palestras, leitura de artigos, etc., o patologista deve atentar para as operações de distinção que devem ser realizadas para se chegar ao diagnóstico. Ao apresentar casos em reuniões, artigos ou palestras, também deve ressaltar essas operações de distinção. Ao tomar consciência de seu processo diagnóstico, da participação do discurso nesse processo, o patologista pode transmitir e assimilar as operações de distinção necessárias para realizar diagnósticos semelhantes.

Recebido em: 13/01/2006

Aprovado:07/04/2006

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  • 12. Alves R. Ao professor, com meu carinho. Campinas (SP): Verus; 2004.
  • Endereço para correspondência:
    Gil Patrus Pena
    Rua Uberaba, 418 - sala 102
    30180-080 - Belo Horizonte - MG
    e-mail:
  • *
    Trabalho desenvolvido no Serviço de Anatomia Patológica do Hospital Felício Rocho - Belo Horizonte - MG. Apresentado no XXV Congresso Brasileiro de Patologia, Natal, outubro de 2005.
  • 1
    O modelo apresentado se baseia na proposição pedagógica do professor Miguel López Melero. Faculdad de Educación, Univesidad de Málaga, Espanha.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      20 Dez 2006
    • Data do Fascículo
      2006

    Histórico

    • Aceito
      07 Abr 2006
    • Recebido
      13 Jan 2006
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