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Editorial

EDITORIAL

Editorial

Lilia Koifman

Departamento de Planejamento em Saúde da Comunidade, Universidade Federal Fluminense, Editora da RBEM, Rio de Janeiro, Brasil

O Conselho de Editores de Ciência está organizando um Tema Global sobre Pobreza e Desenvolvimento Humano para outubro de 2007. Periódicos científicos de todo o mundo publicarão artigos simultaneamente sobre este tópico de interesse mundial, para elevar a consciência e estimular o interesse e a pesquisa sobre pobreza e desenvolvimento humano. Esta é uma colaboração internacional com periódicos de países em desenvolvimento e desenvolvidos.

Já foram publicados dois temas globais em periódicos biomédicos: em janeiro de 1996, mais de 200 artigos sobre Ameaças Microbianas Globais foram publicados em 36 diários de21 países; e em 1997, 97 periódicos em 31 países publicaram artigos sobre o tema Envelhecimento.

A Associação Brasileira de Educação Médica decidiu tomar parte desse esforço internacional com a convocação de pesquisadores, docentes e discentes interessados no campo acadêmico- científico da Educação Médica para participarem de um Call for Papers para a Revista Brasileira de Educação Médica sobre o tema Pobreza e Desenvolvimento Humano em nosso campo de atuação.

Quais as muitas maneiras pelas quais a Educação Médica pode contribuir nesse tema? A resposta deve ser transformada em pesquisas e artigos que descrevam como está sendo pensada e trabalhada em nossas Universidades a desejada "responsabilidade social e compromisso com a cidadania". Afinal, esse aspecto da formação está previsto no artigo 3º de nossas Diretrizes Curriculares: "O Curso de Graduação em Medicina tem como perfil do formando egresso/profissional o médico, com formação generalista, humanista, crítica e reflexiva, capacitado a atuar, pautado em princípios éticos, no processo de saúde-doença em seus diferentes níveis de atenção, com ações de promoção, prevenção, recuperação e reabilitação à saúde, na perspectiva da integralidade da assistência, com senso de responsabilidade social e compromisso com a cidadania, como promotor da saúde integral do ser humano."

Nos trabalhos apresentados nos congressos de Educação Médica dos últimos anos, notamos que a formação de recursos humanos é um dos maiores desafios do SUS. O despreparo dos profissionais recém-formados para atuarem na complexidade do sistema de saúde, compreendendo sua gestão com a ação do controle social, é uma constatação freqüente. E, ainda, o perfil dos novos profissionais repete formas inadequadas de relação com os usuários e revela pouca capacidade de cuidar de pessoas e coletivos.

A formação em saúde – mais especificamente a formação dos médicos – reproduz uma visão mais centrada nas técnicas biomédicas que nos valores da saúde coletiva ou em formas ampliadas de compreensão da saúde e do cuidado. Assim, por exemplo, as aprendizagens iniciais sobre o acolhimento dos usuários nos serviços terminam substituídas pela reprodução de uma imagem serviços de saúde com tratamento impessoal e, muitas vezes, autoritário.

Percebemos claramente, a partir do cotidiano da formação, que, apesar das diretrizes curriculares e dos vários movimentos organizados – principalmente os estímulos gerados a partir do Ministério da Saúde em 2003 e 2004 – para estimular transformações na formação dos médicos no Brasil, vemos que o estudo e a reflexão prática sobre o SUS e a Saúde Coletiva ainda ocupam um lugar de pouco prestígio nos currículos de Medicina. A concepção de saúde hospitalocêntrica e centrada em procedimentos ainda ocupa um lugar hierarquicamente superior na cultura acadêmica. Assim, constatam-se pequenas ilhas de olhar coletivo e humanizado no meio de mares de lógica instrumental, fragmentação e superespecialização e consumismo de conhecimentos. Passivos ou questionadores, formandos e docentes rumam para a aparentemente inevitável formatação individual e institucional.

Depois de formados, entretanto, é nesse Sistema de Saúde que os médicos irão, majoritariamente, desempenhar suas funções. É no mundo real da saúde – pública ou privada – que os jovens médicos irão perceber os grandes vácuos em seus saberes práticos para a gestão, a educação, a promoção e mesmo a relação com usuários e grupos.

As formas de aprender com atitudes profissionais dentro da integralidade devem ser desenvolvidas por meio do contato continuado dos profissionais com os usuários das ações e dos serviços de saúde, atuando em equipes com trabalho coletivo e co-responsável. Isso permitirá o cruzamento dos saberes e o desenvolvimento de novos perfis profissionais, mais adequados à exigência ética de atender a cada um conforme sua necessidade e levando em conta as necessidades epidemiológicas e sociais da população. É uma forma de educação pelo trabalho, tanto pela presença contínua nos locais de produção das ações, como pelo estabelecimento de estratégias de aprendizagem coletiva e em equipe multiprofissional1

Não podemos falar de formação de profissionais de saúde que possam produzir práticas integrais sem afirmar a radicalidade da ampliação de atuação do território, orientado para a qualidade dos serviços e para a integralidade do cuidado2. Portanto, não se trata de tarefa exclusiva de educadores, mas responsabilidade das instâncias e unidades técnico-políticas de gestão dos serviços de saúde e da sociedade civil3. A preocupação de fortalecer as parcerias universidade-sociedade de modo que as universidades e órgãos formadores em geral também se responsabilizem pela capacitação continuada dos profissionais de saúde durante a graduação e a pós-graduação deve fazer parte da missão institucional.

Inserindo o estudante de Medicina nesse processo desde o início do curso, se almeja garantir uma escola integrada com o serviço de saúde, com gestão democrática e horizontalizada, partilhada com o SUS, que problematize as questões de saúde de sua região, seu país e seu mundo, e que atue na proposição de mudanças com e para a sociedade por meio, por exemplo, da extensão; garantir uma escola que seja orientada para o ser humano, que produza um profissional qualificado e crítico do ponto de vista técnico-científico, humano e ético, atuante e comprometido socialmente com a luta pela saúde de seu povo; garantir uma escola que também produza conhecimento para o sistema de saúde4.

A estas estratégias práticas deverão corresponder espaços reflexivos com forte conexão com essas práticas, com esses desafios e descobertas cotidianos. Mas o espaço reflexivo não pode reproduzir as metodologias tradicionais de ensino. A organização dos centros de ensino deve orientarse também ao ensino de qualidade, pessoal e profundo, continuado e permanente. Aspectos periféricos, embora ditos centrais na formação – como subjetividade, emoções, espiritualidade e religiosidade, relação com os outros e adequação cultural, entre outros – deverão ocupar, progressivamente, espaços reais, oferecendo aos alunos condições favoráveis para refletirem e amadurecerem o que vivem e aprendem.

O perfil de médico desejado é o de sólida formação geral, contextualizada histórica e politicamente, que saiba trabalhar em equipe multiprofissional, saiba utilizar criticamente tecnologias, tenha flexibilidade para incorporar mudanças tecnológicas ou político-administrativas e com desenvolvida consciência social. Este currículo, portanto, permitirá a formação tanto de médicos gerais, quanto de especialistas.

A avaliação permanente e a participação efetiva do controle social junto à formação serão importantes também para se dimensionar a adesão dos programas e projetos aos ditames ou necessidades dos próprios usuários do SUS.

Afinal, acreditamos que um dos maiores desafios da saúde – e da Medicina em especial – é voltar a descobrir a complexidade, delicadeza e sensibilidade do mundo. Um mundo de graves desigualdades e gerador de pobreza. Um mundo que exige de forma urgente estratégias reais e profundas de desenvolvimento humano. E tanto a Pobreza quanto o Desenvolvimento Humano demandam dos profissionais envolvidos na formação – docentes e discentes – visões mais amplas do mundo, sensibilidades e solidariedades efetivas com os que sofrem e formas aprimoradas de cuidado. Estas habilidades serão construídas a partir de outros olhares e outras formas de existir no mundo. Eis o desafio urgente que deverá ser expresso nesse Tema Global.

REFERÊNCIAS

1. Ceccim, R. B. Equipe de Saúde: a perspectiva entredisciplinar na produção dos atos terapêuticos. In: Pinheiro R., Mattos R. A, orgs. Cuidado: as fronteiras da Integralidade. Rio de Janeiro: Hucitec/Abrasco; 2004. p.259-278.

2. Saippa-Oliveira, G., Koifman l. , Marins, J. J. N. A busca da integralidade nas práticas de saúde e a diversificação dos cenários de aprendizagem: o direcionamento do curso de medicina da UFF In: Pinheiro, R. , Mattos, R. A, orgs. Cuidado: as fronteiras da Integralidade. 1ª ed. Rio de Janeiro: Hucitec/ Abrasco; 2004. p. 307-319.

3. Saippa-Oliveira G. S. , Koifman L. Integralidade do currículo de medicina: inovar/transformar, um desafio para o processo de formação In: Marins J. J., Rego S., Lampert J. B., Araújo J. G. C, orgs. Educação Médica em Transformação: instrumentos para a construção de novas realidades. v.1. São Paulo: Hucitec; 2004. p. 143-164.

4. Ceccim R. B. , Ferla, A. A. Residência Integrada em Saúde: uma resposta da formação e desenvolvimento profissional para a montagem do projeto de integralidade da atenção à saúde. In: Pinheiro R., Mattos R. A.,orgs.. Construção da Integralidade: cotidiano, saberes e práticas em saúde. Rio de Janeiro: UERJ/ IMS: Abrasco; 2003. p. 211-226.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jun 2008
  • Data do Fascículo
    Dez 2006
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