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Avaliação de um programa pedagógico para internos de pediatria em atuação comunitária

Evaluation of a learning program for pediatrics interns in community activities

Resumos

OBJETIVO: Avaliar a opinião do interno de Medicina sobre o seu aprendizado e a importância de ter participado do "Programa de aprendizado médico através de visitas domiciliares junto aos agentes comunitários da região de Capuava". MÉTODO: Estudo quali-quantitativo prospectivo, com avaliação feita por meio de questionários de autopreenchimento, relatórios de experiências relevantes, discussões abertas e observação participante. RESULTADOS: Na opinião dos alunos, a contribuição da visita domiciliar ao seu conhecimento foi considerada: ruim (2,8%), regular (14,1%), boa (50,7%) e ótima (32,5%). Houve contribuição das visitas ao componente afetivo em 91,3%, ao cognitivo em 62% e ao psicomotor em 56,3%. O aspecto positivo mais citado foi o fato de essas visitas mostrarem a realidade da população (70,8%); e o mais negativo foi o pequeno tempo de estágio (19,4%). Os internos expressaram suas percepções em relação à comunidade, ao valor do agente comunitário e às falhas do ensino médico tradicional. CONCLUSÕES: Na opinião dos alunos, as visitas domiciliares contribuíram para seu conhecimento da prática médica. Essa contribuição foi mais expressiva no que se refere ao domínio afetivo. As percepções sobre a comunidade podem auxiliar na futura atuação médica.

Educação Médica; Avaliação; Internato e residência; Saúde da Família


OBJECTIVE: Evaluate the opinion of medical students about their learning process and about the importance of having participated in a program involving household visits together with health agents in the community of Capuava, a district of Santo André. METHOD: Qualitative-quantitative prospective study. Data were generated by means of questionnaires and reports of important experiences made during internship, discussions and observation. RESULTS: In the opinion of the students the contribution of community health activities to their medical education was poor (2.8%), regular (14.1%), good (50.7%) and very good (32.5%). 91.3%, believe that the visits contributed to the emotional, 62% to the cognitive and 56,3% to the psychomotor component. The aspect considered the most positive was that the visits showed the real living conditions of the population (70.8%) and the aspect considered most negative was the short duration of this experience (19.4%). CONCLUSIONS: The students realized that their participation in household visits contributed to their medical knowledge. This contribution seems to be more substantial with regard to the emotional component. Their perception of the community should contribute to their practicing medicine in the future.

Education,Medical; Evaluation; Internship and residency; Family Health


RELATO DE EXPERIÊNCIA

Avaliação de um programa pedagógico para internos de pediatria em atuação comunitária

Evaluation of a learning program for pediatrics interns in community activities

Lúcia Emy Saiki Van OnselenI; Gilberto D'EliaII

IFaculdade de Medicina do ABC, São Paulo, Brasil

IIUniversidade de São Paulo, Faculdade de Medicina do ABC, São Paulo, Brasil

RESUMO

OBJETIVO: Avaliar a opinião do interno de Medicina sobre o seu aprendizado e a importância de ter participado do "Programa de aprendizado médico através de visitas domiciliares junto aos agentes comunitários da região de Capuava".

MÉTODO: Estudo quali-quantitativo prospectivo, com avaliação feita por meio de questionários de autopreenchimento, relatórios de experiências relevantes, discussões abertas e observação participante.

RESULTADOS: Na opinião dos alunos, a contribuição da visita domiciliar ao seu conhecimento foi considerada: ruim (2,8%), regular (14,1%), boa (50,7%) e ótima (32,5%). Houve contribuição das visitas ao componente afetivo em 91,3%, ao cognitivo em 62% e ao psicomotor em 56,3%. O aspecto positivo mais citado foi o fato de essas visitas mostrarem a realidade da população (70,8%); e o mais negativo foi o pequeno tempo de estágio (19,4%). Os internos expressaram suas percepções em relação à comunidade, ao valor do agente comunitário e às falhas do ensino médico tradicional.

CONCLUSÕES: Na opinião dos alunos, as visitas domiciliares contribuíram para seu conhecimento da prática médica. Essa contribuição foi mais expressiva no que se refere ao domínio afetivo. As percepções sobre a comunidade podem auxiliar na futura atuação médica.

Palavras-chave: Educação Médica; Avaliação; Internato e residência; Saúde da Família.

ABSTRACT

OBJECTIVE: Evaluate the opinion of medical students about their learning process and about the importance of having participated in a program involving household visits together with health agents in the community of Capuava, a district of Santo André.

METHOD: Qualitative-quantitative prospective study. Data were generated by means of questionnaires and reports of important experiences made during internship, discussions and observation.

RESULTS: In the opinion of the students the contribution of community health activities to their medical education was poor (2.8%), regular (14.1%), good (50.7%) and very good (32.5%). 91.3%, believe that the visits contributed to the emotional, 62% to the cognitive and 56,3% to the psychomotor component. The aspect considered the most positive was that the visits showed the real living conditions of the population (70.8%) and the aspect considered most negative was the short duration of this experience (19.4%).

CONCLUSIONS: The students realized that their participation in household visits contributed to their medical knowledge. This contribution seems to be more substantial with regard to the emotional component. Their perception of the community should contribute to their practicing medicine in the future.

Key-words: Education, Medical; Evaluation; Internship and residency; Family Health.

INTRODUÇÃO

Desde a sua fundação, em 1946, a Organização Mundial de Saúde (OMS) declara que a saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, que é direito fundamental, de responsabilidade governamental e que pode ser cumprida com a adoção de medidas sanitárias e sociais adequadas1.

A conferência de Alma-Ata, em 1978, prioriza a atenção primária à saúde como estratégia para "Saúde para todos no ano 2000"2. Ela impulsiona o Programa IDA – Integração Docente- Assistencial (que tenta integrar o hospital universitário ao sistema de saúde)3,4 e o Silos – Sistemas Locais de Saúde (que prioriza a atenção primária de saúde e integração assistência-docênciapesquisa)5 . Essas experiências de Medicina Comunitária, os Programas IDA e o plano AIS (que visava atuar de forma regionalizada e descentralizada) não tiveram o sucesso esperado, entre outras causas, por contarem somente com participação restrita e segmentar das faculdades e não se integrarem à comunidade6,7.

Ocorrem conferências internacionais sobre Promoção à Saúde, a primeira delas em Ottawa, em 19868.

Surgem movimentos de tentativa de reorganizar o ensino médico. No XVIII Congresso da Associação Brasileira de Educação Médica, realizado em 1985, firma-se o compromisso das escolas médicas com a "formação geral do médico" e não mais com a "formação do médico geral"3. O projeto EMA – Educação Médica nas Américas estimula discussões para a 1ª Conferência Mundial de Educação Médica em 1988, em Edimburgo, na Escócia, que propõe várias mudanças no ensino médico (priorizar a promoção da saúde e prevenção de doenças, organizar novo currículo mais voltado à realidade social, atuar em equipe, estimular o estudo mais independente e autodirigido)9.

Na década de 1990, firma-se o paradigma da Integralidade10. Por iniciativa da Fundação Kellogs, é criado o Programa UNI, cujo objetivo é a união com a comunidade, atendimento multiprofissional, aplicação de aprendizagem baseada em problemas, pesquisa. Vários projetos são aprovados. A união e o aprimoramento deles formarão a Rede Unida11. Inicia-se em 1991 a implantação do Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PAC), e em 1994, com sua ampliação, o Programa Saúde da Família (PSF). A Norma Operacional Básica de 1996 (NOB – SUS 01/96) estabelece os incentivos a esses programas. O PSF prioriza as ações de promoção, proteção e recuperação da saúde de forma integral e contínua. Em Santo André, o PAC iniciou-se em 199912,13.

Nessa mesma década, iniciam-se avaliações do Ensino Médico (Provão e Cinaem), que resultam, em 2002, no Promed – Programa de Incentivo às Mudanças Curriculares dos Cursos de Medicina, que segue as orientações das Diretrizes Curriculares Nacionais.

Um estudo sobre educação da Unesco, em 1996, preconiza: "aprender a conhecer", aprender a conviver", "aprender a fazer" e "aprender a ser"14.

Tendo como base diversos documentos – como a Lei Orgânica do SUS, a declaração resultante da Conferência Mundial sobre Ensino Superior promovida pela Unesco em 1998, o relatório final da 11ª Conferência Nacional de Saúde 2000, documentos da Opas, OMS, Rede Unida, etc. –, foram elaboradas novas Diretrizes Curriculares, que visam à formação de médicos com base sólida, competentes e hábeis, com visão integral da atenção à saúde, que valorizem a humanização do atendimento e sejam capazes de atuar com qualidade, eficácia e resolutividade no SUS. Para tanto, preconizam a integração dos currículos, a diversidade dos locais de ensino (não restritos a hospitais) e a Aprendizagem Baseada em Problemas, de modo a promover no estudante a competência do desenvolvimento intelectual e profissional autônomo e permanente.

Vivemos, neste século, a preocupação com a qualidade do ensino médico, agravada pela ampla abertura de escolas médicas, ocorrida a partir de 1990, quando havia 80 escolas médicas, que aumentaram para 115 em 2003. Temos, em 2002, no Brasil, um médico para cada 606 habitantes, sendo que a OMS preconiza 1/1.000.

Atuação comunitária contribui para o aprendizado de estudantes de Medicina?

Análise de novos métodos de ensino são fundamentais para o entendimento de todo o contexto de mudanças, possibilitando melhorias no ensino e na assistência médica.

A atividade de visita domiciliar foi inovadora nesta faculdade e surgiu em decorrência dos movimentos preocupados em adequar o ensino médico e a prática médica, para atingir maior integração com a comunidade e maior efetividade de suas ações.

A avaliação objetivou, além de criticar a validade do programa pedagógico, verificar mudança de atitude do aluno e provocar reflexão. Desta forma, não caberia só uma análise quantitativa com questões de múltipla escolha. Realizou-se também uma análise qualitativa com questões abertas, de autoavaliação e discussões em grupo, em que no ato de construção de uma resposta emergem os valores, os aspectos subjetivos, a reflexão, o autoconhecimento e o amadurecimento da personalidade15. Para Depresbiris, a reflexão concorre para o autoconhecimento, que é o principal desencadeador de mudança de natureza social16.

MÉTODO

Com uso de metodologia quali-quantitativa, foram aplicados questionários de autopreenchimento aos internos de 5º ano do curso de Medicina da FMABC, durante o estágio de Pediatria, em visitas comunitárias aos agentes comunitários de Capuava (Santo André), no período de um ano letivo. Foram 102 alunos, com mediana de idade, no início deste trabalho, de 23 anos (mínima de 20 anos e máxima de 33 anos). Trinta e nove alunos (38,2%) são do sexo masculino, e 63 (61,8%) do sexo feminino. A categoria social dos acadêmicos contrasta com a da comunidade (favela) visitada, já que a anuidade do curso no ano da realização deste trabalho foi de R$ 10.191,84, e o curso é de período integral, dificultando a possibilidade de emprego concomitante.

O núcleo de Capuava é formado por oito microáreas, que englobam 1.426 famílias (5.507 pessoas). Foram visitadas 360 famílias, com freqüência semanal, em grupos de 4-5 alunos e 4-5 agentes comunitários, de modo que cada aluno participasse um ou dois dias (acompanhando o trabalho de um agente comunitário), realizando, em média, 4-5 visitas ao dia. Os alunos foram orientados a observar o ambiente das casas (tipo de construção, higiene e ventilação), a higiene das pessoas, o relacionamento afetivo entre os familiares, inquirir sobre aleitamento materno e alimentação geral, vacinação, opinião sobre o posto e seguimento neste, presença de doenças, tratamento e acompanhamento das doenças. A coordenadora do programa sempre acompanhava a ida do grupo ao núcleo para orientar dúvidas, apoiar e observar a atuação. Ao término das visitas, o grupo todo se reunia e voltava ao Centro de Saúde.

Pediu-se a colaboração para preenchimento de um questionário, observando que ele era individualizado, anônimo, sigiloso, não obrigatório e sem qualquer vínculo com nota de aproveitamento no curso de Pediatria. Também foi pedido um relatório escrito de experiências que o aluno julgasse importantes.

O questionário era voltado para avaliar as opiniões do aluno acerca de seu aprendizado no setor afetivo. Portanto, foram incluídas perguntas que envolviam sistema de valores (você acha que as visitas domiciliares colaboraram para mostrar a realidade da população?); atitude (as visitas domiciliares colaboraram para o relacionamento médico-paciente? Para humanizar o atendimento médico?); responsabilidade (as visitas domiciliares colaboraram para orientar condutas eficientes de acordo com a realidade do paciente?). Avaliou-se também a opinião sobre o aprendizado da parte cognitiva (na pergunta sobre estímulo à aquisição de conhecimentos teóricos) e o domínio psicomotor (na questão sobre aquisição de conhecimentos práticos de Medicina). O aluno também opinou sobre se a visita contribuiu para melhorar as condições de saúde da população. Optou-se por acrescentar "questões abertas" para obter informações espontâneas e percepções do aluno sobre o programa (qual o aspecto mais positivo, qual o mais negativo, comentários, sugestões, críticas).

Alguns dias após a visita, os alunos se reuniam com a coordenadora do projeto e discutiam sobre este tipo de atividade.

A análise do questionário de avaliação do agente comunitário sobre a troca de experiências agente comunitário/aluno e atuação aluno/população forneceu informações que contribuíram para análise da atuação e aprendizado dos alunos.

Foram utilizadas Análise Descritiva (nos dados colhidos com perguntas fechadas), Análise de Conteúdo com emprego de técnica de análise temática (nas respostas às perguntas abertas do questionário e nos relatórios) e observação participante (com coleta de depoimentos em reuniões efetuadas durante e após as visitas).

A tabulação e a análise dos dados foram feitas com o auxílio do programa Excel®(Microsoft). O projeto foi analisado e aprovado pela Comissão de Ética da Faculdade de Medicina da FUABC.

RESULTADOS

Foram respondidos 72 questionários, sendo que a idade mediana dos alunos foi de 23 anos (20-33), com predominância do sexo feminino (61,8%). A maioria refere que a visita domiciliar contribuiu para o seu conhecimento da prática médica (Figura 1).


Para analisarmos o tipo de aprendizado obtido nas visitas domiciliares, agrupamos as respostas relativas às áreas afetiva, cognitiva e psicomotora. Observamos que, de acordo com os alunos, as visitas domiciliares contribuem para o aprendizado em todos os setores (78%), sendo mais expressivo no setor afetivo (91,3%) do que no cognitivo (62%) e no psicomotor (56,3) (Figura 2).


Sessenta e um alunos (87,1%) consideraram que a visita domiciliar contribuiu para melhorar as condições de saúde da população e 68 (95,8%) afirmaram que o médico deveria participar de programas comunitários.

Houve vários aspectos positivos assinalados na visita domiciliar, como mostra a Figura 3, sendo que, para 51 (70,8%), destaca-se o fato de ela mostrar a realidade dessa população, para 5 (6,9%) a sua ação preventiva, e para 3 (4,2%) ela possibilita adequar a orientação terapêutica às condições de vida do paciente.


Quanto aos aspectos negativos do programa, a maior queixa se referiu ao pouco tempo de estágio (n = 14, 19,4%). Para 11 alunos (15,3%), não houve aspecto negativo, e 8 (11,1%) citaram que ela foi pouco eficaz para a população (Figura 4).


Muitos alunos comentaram que se deveria dedicar mais tempo a essa atividade; alguns acharam que isto deveria ser realizado também em anos mais precoces; outros, quando eles tivessem mais conhecimentos e pudessem atuar mais. Há sugestões de participação de outros especialistas. Houve pedidos de ampliação das discussões sobre as visitas e de maior orientação prévia sobre as situações que enfrentarão, capacitando- os melhor para o fornecimento de orientações e ampliação de sua atuação. Em muitos alunos, nota-se a preocupação com a prevenção, e alguns sugerem que sejam feitas mais palestras à população.

Durante a realização deste projeto pedagógico, havia a prática de discussões em grupo após as visitas domiciliares. Estas discussões foram muito enriquecedoras porque mostraram informações de percepções, de sensações, de insights dos alunos de Medicina. Citamos a seguir as principais:

  1. Percepção de necessidades em saúde sentidas pelas pessoas da comunidade As necessidades de saúde sentidas pelas pessoas da comunidade eram diferentes das dos estudantes, já que a população não se notava desnutrida ou anêmica, e a vacinação, muitas vezes, era esquecida. Também não era valorizada a baixa escolaridade.

  2. Percepção de atitudes e práticas das pessoas da comunidade em relação à saúde As atitudes e práticas de ações que promovem a saúde foram traduzidas nas falas: "Fiquei impressionada porque a família tinha filtro em casa; no entanto, a criança tomou água da torneira. Eu não sabia como abordar esta questão. Fiquei com medo de ofender"; "O pai jogou o cigarro no chão do barraco, quando me viu ficou sem graça"; "Vi um rato passando e fiquei assustada, mas a família não ligou. A mãe explicou que se batesse no rato ele ficaria bravo e atacaria, pois eles estão sempre voltando. Eu fiquei surpresa e entendi que o rato passa a ser um animal de estimação!!!".

  3. Percepção de aceitação e rejeição dos profissionais de saúde pela comunidade e vice-versa

    Vários alunos se sentiram aceitos pela comunidade: "eles são receptivos"; "eles são simpáticos"; "querem agradar, oferecem cafezinho ou suco, eu não sabia se devia aceitar, não queria ofender, mas fiquei com medo..."; "achei que as pessoas não iriam dar valor à nossa visita, mas elas deram, acham que estamos dando atenção, gostam, podemos orientar várias coisas".

  4. Percepção de quem são e como vivem as pessoas visitadas "De repente eu percebi que bem próximo a mim estão pessoas semelhantes a esse pessoal da favela, como meu porteiro e minha empregada doméstica. Agora eu olho para eles com outros olhos. Tenho um pouco mais de compreensão das dificuldades que eles passam. De repente posso exigir menos deles".

    "Eu tinha a impressão de que a maioria dos moradores de uma favela era marginal. Entendi que eles são pessoas como nós, trabalhadores; porém pobres".

    "Eu adquiri noção de cidadania. Eu achava que a favela era desorganizada, com determinadas pessoas morando.

    Não sabia que tinha gente trabalhadora, batalhadora e respeitadora. Acho que há muito preconceito sobre favela, é um bairro normal".

    "Há casas superlimpas e organizadas, e barracos sujos e bagunçados".

    "Eu nem imaginava como era um barraco; eu mal cabia lá dentro!!!".

    "A gente tem noção do que falar e pra quem a gente fala".

  5. Percepção dos alunos em relação ao trabalho conjunto com os agentes comunitários

    "A população gosta muito dos agentes"; "Os agentes resolvem problemas médicos sem ciência, com bom senso".

  6. Percepção das falhas do ensino médico tradicional "Nós aprendemos a fazer medicina para a classe média, não sabemos orientar os extremos: o rico e o pobre"; "Não sei responder às perguntas que fazem"; "Quero ser treinada na maneira correta de explicar para atingir a população, pois percebi que as orientações que damos no consultório muitas vezes não são passíveis da população seguir".

A análise do questionário e das discussões abertas com os agentes comunitários nos mostra que houve troca positiva de experiências com os alunos:

"É importante a presença deles junto às famílias para que elas tenham mais confiança nos futuros médicos"; "As visitas são importantes para se conhecer as condições de moradia, financeira e de saneamento básico"; "Eles nos ajudam a resolver os problemas que não conseguimos resolver sozinhos"; "O trabalho de orientação e informação para as famílias fica melhor".

DISCUSSÃO

A maioria dos estudos feitos em atividades comunitárias avalia somente o seu aspecto estrutural, as dificuldades de implantação, a produtividade das consultas e do serviço, ou realiza análise de aprendizagem cognitiva. Houve dificuldade em encontrar avaliações baseadas nos aspectos afetivos do aprendizado por parte dos alunos. Citamos o estudo de Gonçalves e Moraes17 com estudantes do primeiro ano de Medicina, em contato com Posto de Saúde e Hospital, que revelou a importância que o acadêmico dispensa a conhecer a realidade da profissão e dos pacientes, o despertar da consciência do papel social e político do médico e o incentivo para ampliar o conhecimento médico17. Estes aspectos também foram observados por nossos alunos.

A entrega de vários relatórios com respostas extensas e a ampla participação dos estudantes nas reuniões de discussão sobre a visita domiciliar sugerem uma demanda reprimida de diálogo e reflexão sobre a população assistida e a profissão médica.Estudo de Sayd, Silva e Ribeiro18 também sugere haver demanda reprimida de diálogo e reflexão sobre o curso de Semiologia e o seu aprendizado18. Rego19 refere que "praticamente inexistem discussões que envolvam a livre opinião sobre temas relacionados com as relações interpessoais na faculdade"19. Outro estudo (Franco et al)20 referiu que os estagiários a todo instante clamam por "serem ouvidos" e detectou ausência de espaços institucionais para elaboração dos vários conflitos surgidos ao longo do curso20.

Considerando que "a aprendizagem resulta, realmente, em certa modificação no comportamento de quem aprende" 21, podemos afirmar, com base nos resultados apresentados, que obtivemos sucesso. É nossa preocupação que o aluno cultive, conforme os preceitos bioéticos, valores e atitudes como solidariedade, paciência, tolerância, disponibilidade, compreensão, apoio e generosidade, que sustentam uma relação profissional-paciente de amizade, cumplicidade e confiança, tornando-a uma relação de crescimento e felicidade para ambos22.

Vários autores e entidades médicas enfatizam a necessidade de uma reformulação do ensino médico centrada numa educação humanística, dialógica e voltada para as verdadeiras necessidades do País. O ensino e o aprendizado médico, realizados de maneira progressiva e efetiva na comunidade, podem satisfazer essas necessidades.

Várias regiões do País estão implantando programas de atuação comunitária e cada vez mais se valoriza a atuação do médico generalista. As faculdades de Medicina começam a criar residências médicas de "Médico de Família". Portanto, a avaliação da implantação de um programa de visita domiciliar poderá contribuir para nortear novos cursos médicos ou aprimorar os existentes.

Analisando a primeira resposta sobre os aspectos mais positivos do programa, percebemos que a grande maioria dos alunos considerou benéfico conhecer a realidade dessa população, que é diferente da sua própria realidade, daquela percebida por eles no consultório ou da que aparece nos jornais e canais de televisão. Conhecer essa realidade sensibiliza quanto às necessidades e dificuldades da população e cria uma compreensão que melhora a relação médico-paciente, pois possibilita que o futuro médico adapte as condutas e orientações às reais possibilidades deste, utilizando também uma linguagem mais apropriada, criando mais vínculos e confiança mútua, e menos cobrança de atitudes impossíveis. O estudante é estimulado a tentar modificar a situação encontrada e a refletir mais, a ter mais consciência da realidade do País, da importância de medidas de prevenção, dos enfoques mais necessários. Nota-se também que alguns alunos se sentiram mais estimulados a adquirir conhecimentos básicos e epidemiológicos.

Nas respostas sobre o aspecto negativo do programa, inferimos que a queixa de pouco tempo de estágio (19,4%) pode ser considerada favorável ao programa. Isto é referendado pela parcela considerável que respondeu que não houve aspecto negativo (15,9%) ou não respondeu essa questão (6,9%). Alguns se sentiram despreparados para atuar no programa e orientar adequadamente quando solicitados; outros se ressentiram de não ter havido oportunidade de aprendizado teórico e/ou prático. As referências a perigo e insegurança da atividade ao entrar em favela foram consideradas pequenas (5,6%).

CONCLUSÕES

  1. A maioria dos alunos referiu que as visitas domiciliares contribuíram no seu conhecimento para a prática médica.

  2. A contribuição das visitas domiciliares foi mais valorizada pelos alunos no que se refere ao domínio afetivo (91,3%), a seguir ao cognitivo (62%) e depois ao psicomotor.

  3. A partir do contato com a realidade desta população, o aluno pôde perceber as necessidades, possibilidades e motivações desta. Esta percepção pode contribuir para o estabelecimento de significados e objetivos da sua futura atuação médica.

  4. Frente às dificuldades surgidas para atuar nesta "realidade diferente", os alunos questionam o ensino médico tradicional.

  5. A grande maioria dos alunos (87,1%) respondeu que as visitas domiciliares feitas por eles e pelos agentes de saúde colaboraram para melhorar as condições de saúde da população e 95,8% afirmaram que o médico deve participar de programas comunitários.

PROPOSIÇÃO

Propomos que os estudantes atuem na comunidade durante todo o curso de Medicina, realizando diversas tarefas, gradativamente mais complexas, supervisionados por diferentes profissionais de saúde (Quadro 1).


  • O aluno do primeiro ano deve adquirir noção do funcionamento do sistema de saúde e, com o agente comunitário, estabelecer um primeiro contato com a comunidade, realizando as visitas de rotina mensal e dos recém- nascidos e puérperas; assim, perceberá uma realidade diferente da sua e poderá detectar algumas necessidades básicas de saúde.

  • No segundo ano do curso, deve (previamente orientado por seu professor) participar, ao lado do auxiliar de enfermagem, de grupos de orientação de educação em saúde à população (higiênica, nutricional, de prevenção de doenças, de cuidados com doenças crônicas, etc.).

  • No terceiro ano, atuando com o enfermeiro, deve fazer curativos e atividade de vigilância epidemiológica.

  • No quarto ano, deve realizar visitas domiciliares aos doentes crônicos e terminais, com o médico generalista e/ou com o residente de Medicina; deste modo, aprenderá semiologia médica e terá contato com patologias freqüentes na população.

  • No internato, deve prestar atendimento geral no Centro de Saúde Escola junto ao professor.

Assistente social, fisioterapeuta e terapeuta ocupacional devem ser inseridos neste trabalho de visita domiciliar e de promoção à saúde de acordo com as necessidades da população.

Salientamos a necessidade de que cada etapa de ensinoaprendizagem seja amplamente dialogada, para permitir a elaboração dos conflitos e o autoconhecimento e crescimento pessoal e profissional.

Em vista do pequeno número de estudos que avaliam a opinião do aluno em atividades comunitárias, acreditamos que novas pesquisas podem contribuir para esclarecer diferentes aspectos desse novo método de ensino.

Agradecimentos

Ao Dr. Marco Ackerman, pelo apoio e estímulo; aos alunos da 29ª turma da Faculdade de Medicina do ABC; à Disciplina de Pediatria da FMABC; e à equipe do PAC de Capuava.

Projeto aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da FMABC, protocolado sob o número 0066/2003.

Recebido em: 25/10/2004

Reencaminhado em: 04/04/2006

Aprovado em: 21/06/2006

Conflito de Interesse: Declarou não haver.

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  • Endereço para correspondência
    Lúcia Emy Saiki Van Onselen
    Rua Miguel Couto, 277 – apto 4 – Vila Pires
    09195-530 – Santo André – SP
    e-mail:
    Gilberto D'Elia
    e-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Abr 2008
    • Data do Fascículo
      Dez 2006

    Histórico

    • Aceito
      21 Jun 2006
    • Recebido
      15 Out 2004
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