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Gestão da escola médica: crítica e autocrítica

The management of the undergraduate medical school: criticism and self-criticism

Resumos

A administração universitária, em especial a gestão da escola médica, não é temática reconhecida e valorizada pela comunidade acadêmica. No entanto, o desenvolvimento da formação médica depende, em grande parte, de boas práticas de gestão. Isso é ainda mais relevante quando a escola está imersa em processos de mudança. Este ensaio aborda nove tópicos relacionados à gestão segundo um enfoque crítico/autocrítico: 1. Auto-suficiência médica; 2. Dicotomia acadêmica e administrativa; 3. Aprimazia do bombeiro frente ao estrategista; 4. Educação permanente de docentes; 5. Despreparo para formar e manter equipes de trabalho; 6. Parcerias incompletas; 7. Ensino multiprofissional; 8. Trabalho em rede; 9. Produção teórica. A análise visa contribuir para o sucesso das mudanças na educação médica, para melhores perspectivas de trabalho dos atuais e futuros gestores e para a melhoria das escolas médicas.

Educação Médica; Educação em saúde; Administração de Recursos Humanos


University management, and mainly that of the undergraduate medical school, has not been an issue recognized and valued by the academic community. However, medical formation depends largely on good management practices. This turns even more relevant when the school is undergoing changes. This essay addresses nine topics related to management from a critical and self-critical viewpoint: 1. Medical self-sufficiency; 2. The administrative and academic dichotomy; 3. The primacy of last-minute solutions over strategies; 4. Continuing education of teachers; 5. Lack of skills to form and maintain work teams.; 6. Incomplete partnerships; 7. Multi-professional teaching; 8. Networking; 9. Weak theoretic production. This analysis aims at contributing to better perspectives for the medical school and for the work of its current and future managers.

Medical Education; Health education; Personal Management


ENSAIO

Gestão da escola médica: crítica e autocrítica

The management of the undergraduate medical school: criticism and self-criticism

Marcio José de Almeida

Universidade Estadual de Londrina, Paraná, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Marcio José de Almeida Rua Rio de Janeiro, 1630 - apto 902 86010-150 - Londrina - Paraná marcio.almeida@uel.br

RESUMO

A administração universitária, em especial a gestão da escola médica, não é temática reconhecida e valorizada pela comunidade acadêmica. No entanto, o desenvolvimento da formação médica depende, em grande parte, de boas práticas de gestão. Isso é ainda mais relevante quando a escola está imersa em processos de mudança. Este ensaio aborda nove tópicos relacionados à gestão segundo um enfoque crítico/autocrítico:

1. Auto-suficiência médica; 2. Dicotomia acadêmica e administrativa; 3. Aprimazia do bombeiro frente ao estrategista; 4. Educação permanente de docentes; 5. Despreparo para formar e manter equipes de trabalho; 6. Parcerias incompletas; 7. Ensino multiprofissional; 8. Trabalho em rede; 9. Produção teórica.

A análise visa contribuir para o sucesso das mudanças na educação médica, para melhores perspectivas de trabalho dos atuais e futuros gestores e para a melhoria das escolas médicas.

Palavras-chave: Educação Médica; Educação em saúde; Administração de Recursos Humanos.

ABSTRACT

University management, and mainly that of the undergraduate medical school, has not been an issue recognized and valued by the academic community. However, medical formation depends largely on good management practices. This turns even more relevant when the school is undergoing changes. This essay addresses nine topics related to management from a critical and self-critical viewpoint:

1. Medical self-sufficiency; 2. The administrative and academic dichotomy; 3. The primacy of last-minute solutions over strategies; 4. Continuing education of teachers; 5. Lack of skills to form and maintain work teams.; 6. Incomplete partnerships; 7. Multi-professional teaching; 8. Networking; 9. Weak theoretic production.

This analysis aims at contributing to better perspectives for the medical school and for the work of its current and future managers.

Key words: Medical Education; Health education; Personal Management.

INTRODUÇÃO

Quanto aos rumos ou ao sentido do desenvolvimento da educação médica nacional, as Diretrizes Curriculares Nacionais dizem o que fazer. No caso do curso de Medicina da Universidade Estadual de Londrina (UEL), os Fóruns de Avaliação, realizados periodicamente, fazem a "tradução" das diretrizes para o plano local. A questão não resolvida, e tampouco equacionada, é relativa ao como fazer.

Em 2004, a Abem e a Rede Unida construíram o projeto editorial de uma coleção de livros sobre "Experiências de implantação das diretrizes curriculares nacionais". Dos cinco livros planejados, somente dois foram publicados1,2. Aquele que seria produzido por professores do curso de Medicina da UEL ficou só no projeto. Nele, há um capítulo dedicado à "gestão da mudança e do novo currículo". Nesta oportunidade, algumas de suas perguntas/provocações são retomadas.

Este ensaio foi escrito após a transmissão de cargos no Colegi-ado do Curso de Medicina (Colmed). Do início de 2004 ao início de 2008, em duas gestões consecutivas, a coordenação do curso deparou-se com os problemas acadêmico-administrativos da escola e trabalhou para seu equacionamento e solução.

Esta análise está fundamentada nessa experiência/vivência e busca registrar críticas e autocríticas sobre um campo de conhecimento e de prática - a administração universitária - muito pouco reconhecido e valorizado pela própria comunidade acadêmica, em especial os professores e estudantes de Medicina. Infelizmente, é muito comum uma leitura distorcida do conceito de autonomia universitária ou profissional médica, que rejeita qualquer iniciativa de submissão do exercício acadêmico ou profissional a uma administração superior.

Contudo, as boas práticas de gestão, como se vivenciou no Centro de Ciências da Saúde da UEL (1990-94) e na coordenação do Projeto UNI (Uma nova iniciativa na educação dos profissionais de saúde: união com a comunidade) no período 1992-94, são importantes não apenas para o bom desenvolvimento das atividades acadêmico-administrativas, mas, em especial, para conseguir sucesso nas iniciativas de mudança na formação médica e dos demais profissionais de saúde. Essas vivências, seus desafios e dilemas têm levado a estudos na intersecção das áreas de administração e educação médica3,4.

Em muitos momentos, durante os últimos quatro anos, os setores comprometidos com os processos de mudança perderam disputas com as especialidades médicas. Felizmente, há exceções e é com elas que o curso de Medicina da UEL tem contado para o seu desenvolvimento e para o árduo processo de implantação e consolidação das mudanças que protagoniza5,6,7. Entretanto, é preciso reconhecer que a gestão da escola médica ainda é muito pouco valorizada e praticamente não é profissionalizada.

Essas considerações introduzem a primeira crítica/autocrítica. Não se pretende esgotar o assunto, mas, nos limites deste ensaio, busca-se contribuir para as reflexões e a capacitação de professores que assumem funções de administração universitária ou de gestão acadêmica.

PRIMEIRA CRÍTICA/AUTOCRÍTICA: AUTO-SUFICIÊNCIA MÉDICA

Fazem parte da tradição as referências, muitas vezes folclóricas, a respeito da auto-suficiência dos médicos. Herança de um passado não muito distante em que as fronteiras do conhecimento científico delimitavam áreas passíveis de serem apropriadas e trabalhadas individualmente. Essa característica é encontrada mais freqüentemente nas relações médico-paciente, nas quais este último ainda é visto (e tratado) mais como um objeto de intervenção médica do que como um sujeito autônomo e um potente recurso terapêutico de seus próprios processos de adoecimento e cura.

Essa auto-suficiência é também bastante verificada nas relações entre o médico e os outros profissionais de saúde, encarados muitas vezes como simples profissionais "paramédicos", destituídos de saberes próprios e incapazes de contribuir para um trabalho em equipe. No campo do ensino médico são notórias as resistências dos médicos à interação com os profissionais da área de educação. Afinal, para que servem os conhecimentos sobre educação médica, sociologia, metodologia de ensino, avaliação da aprendizagem se "o médico aprende com médico e à beira do leito dos enfermos?" Da mesma forma, para que serviria buscar conhecimentos e técnicas de administração escolar, de gerência universitária, de avaliação institucional, de planejamento estratégico, de gestão da mudança e outras se o curso médico tem especificidades (como se todos os demais também não as tivessem!) e "ninguém entende mais dele do que os médicos?"

Além do não reconhecimento dos seus limites e competências teórico-práticas para enfrentar muitas das problemáticas da administração universitária, os médicos também são exageradamente auto-suficientes quando, após se conscientizarem das suas próprias deficiências, procuram saná-las por meio da apropriação personalizada dos conhecimentos das outras esferas de atuação, deixando de lado as possibilidades de incorporá-los por meio de consultorias e assessorias especializadas. Na experiência de Londrina, desde a proposta UNI até hoje, as consultorias e assessorias foram e têm sido decisivas para a solução de muitos nós críticos do desenvolvimento do curso.

SEGUNDA CRÍTICA/AUTOCRÍTICA: DICOTOMIA ACADÊMICA E ADMINISTRATIVA

O próprio título deste ensaio tem a ver com as reflexões a seguir. Mais presente nas instituições de ensino superior públicas, a separação entre as questões acadêmicas e administrativas leva, muitas vezes, a comportamentos maniqueístas e ao estabelecimento de estruturas estanques. No caso da UEL, isso é evidenciado quando, por exemplo, as atribuições dos colegiados de curso são, estatutariamente, circunscritas "às questões acadêmicas", ficando os departamentos voltados "às questões administrativas".

Embora no caso de Londrina e no da maioria das outras instituições a expressão "escola médica" não caiba formalmente, ela é a que mais se aproxima da simbiose que existe, na realidade concreta, entre as questões acadêmicas e as administrativas. Diferentemente de um colegiado de curso senso strictu, focado exclusivamente nos problemas acadêmicos, uma escola médica tende a abordar de maneira integrada as questões acadêmico-administrativas.

Contornando os limites estruturais impostos pela formalidade estatutária, isso implica criar mecanismos e canais de interação entre as esferas, estabelecendo procedimentos em que as chefias das estruturas universitárias outrora "todo-poderosas" - nos tempos do currículo mínimo e da visão disciplinar -, como os departamentos e as especialidades, voltem a se identificar com o curso e a se co-responsabilizar por sua gestão.

Este enfoque envolve sérios riscos de retrocessos em virtude da força que ainda têm na sociedade o pensamento biomédico e o paradigma flexneriano. No entanto, desde que não se tenha ilusões quanto à permanência dessas linhas de tensão e de disputa epistemológica e político-institucional, é preferível estabelecer os embates na superfície das atividades acadêmico-administrativas a mantê-las na penumbra das conversas de corredor.

TERCEIRA CRÍTICA/AUTOCRÍTICA: A PRIMAZIA DO BOMBEIRO FRENTE AO ESTRATEGISTA

A complexidade gestora de uma escola médica é muito grande, proporcional à complexidade de milhares de atividades de ensino, de pesquisa e extensão, de ações docente-assistenciais e de relações interpessoais desenvolvidas todos os dias do ano. Sem exageros, são mesmo "milhares": basta pensar em todas as ações que resultam do trabalho de dezenas (às vezes centenas) de professores e de centenas (às vezes milhares) de estudantes e de funcionários, se computarmos os que trabalham nos hospitais universitários e nos serviços de saúde que, de forma direta ou indireta, interagem com os estudantes e os professores.

Isso acontece "todos os dias do ano", não só nos dias do ano letivo, pois o curso médico é o único que funciona 365 dias por ano, como no caso da UEL, já que as férias escolares da quarta, da quinta e da sexta séries transcorrem em tempos diferentes das restantes justamente para que o internato médico não sofra interrupção. Alguns entendem que a complexidade gestora é até maior, em proporção às atividades sumariamente registradas acima. Isto porque, além das esperadas e planejadas, surgem a todo o momento atividades, ações e demandas inesperadas.

Por mais que se adotem enfoques, mecanismos e técnicas do pensamento estratégico8 e da gestão moderna9 - que são sintetizados aqui da seguinte forma: "planeja melhor quem executa" e "melhor avalia quem faz" - é ilusão pensar que a gestão da escola se resuma a ter os planos anuais de trabalho ou de ação nas mãos e a ter um ótimo sistema de avaliação que alimente e retroalimente o processo de tomada de decisões.

Não resta dúvida de que esses instrumentos/ferramentas/mecanismos são imprescindíveis. Acontece que o inesperado, o não planejado irrompe todos os dias, a todo momento, em quantidade e gravidade tanto maiores quanto menos estratégico e mais normativo-burocrático for o estilo de gestão adotado. São os "incêndios", pequenos ou grandes, que os gestores enfrentam diariamente e que exigem sua atenção e intervenção, impondo, por vezes, a necessidade de relegar a segundo plano outras ações programadas.

É o que se chama de "assumir o papel de bombeiro". São situações delicadas e com alto teor explosivo, capazes de colocar "o trem fora dos trilhos". Há que se ter capacidade de controlar os incêndios e manter a escola no rumo do seu desenvolvimento previsto. Isso implica, às vezes, certa inversão de prioridades, ainda que transitória, mas que fatalmente afeta interesses, expectativas e compromissos.

QUARTA CRÍTICA/AUTOCRÍTICA: EDUCAÇÃO PERMANENTE DE DOCENTES

Antes de 1998, durante os primeiros 30 anos de funcionamento da escola, a preparação dos professores para desempenhar sua função docente consistiu nos tradicionais "cursos de didática e metodologia de ensino", ofertados por departamentos de educação ou por núcleo de tecnologia educacional para os professores de todos os cursos.

Com a implantação do currículo integrado e a ênfase, no final da década de 1990, nas metodologias ativas de ensino-aprendi-zagem, especialmente da Aprendizagem Baseada em Problemas (PBL - Problem Based Learning), aquele formato de preparação docente ficou obsoleto. Os dirigentes do curso decidiram criar quatro comissões de apoio ao processo de mudança então iniciado: comissão de avaliação; comissão de apoio docente e discente; comissão de acompanhamento curricular e comissão de treinamento docente.

Alguém já disse que "os termos expressam as idéias subjacentes" e, no caso, pelo menos em parte, isso foi real. Ou seja, na visão do grupo renovador que assumiu a direção da escola, tratava-se de adestrar ou treinar os professores nas novas metodologias, particularmente em PBL. Como o conhecimento pedagógico preexistente era muito restrito, como a correlação de forças na política institucional era flagrantemente favorável ao grupo renovador que, além disso, encontrava-se na fase heróica inicial, ou seja, bastante dinâmico, os cursos de treinamento de tutores, realizados em grande quantidade, cerca de 40 em seis anos, tiveram um êxito razoável. Além deles, foram promovidos um ou dois workshops de tutores em cada ano.

Mas, decorrido certo tempo, em torno da metade dos anos de duração do curso, acumularam-se indícios de que novas estratégias de preparação dos professores eram necessárias. A referida comissão foi renomeada como "comissão de capacitação docente" e, logo em seguida, como "comissão de educação permanente docente". Alguns dos seus integrantes na época são responsáveis pela publicação de dois dos mais importantes trabalhos de reflexão e de sistematização da experiência acumulada10,11.

Nesse período, outras estratégias passaram a ser experimentada, entre as quais a capacitação de professores "em serviço", ou seja, durante as sessões tutoriais, e a capacitação dos professores com funções de coordenação por meio de oficinas de trabalho voltadas à avaliação das atividades desenvolvidas e/ou ao planejamento das atividades a serem desenvolvidas. Há indicadores de melhores resultados com essas últimas estratégias.

QUINTA CRÍTICA/AUTOCRÍTICA: FORMAR E MANTER EQUIPES

A implantação das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) por parte da escola médica só tem chance de sucesso se houver uma formidável capacidade de formar e manter equipes de trabalho docente, de trabalho universitário (professores e estudantes) e de trabalho interinstitucional (com os serviços de saúde e com as comunidades). Isto porque a interdisciplinaridade, a formação multiprofissional, a diversificação de cenários de ensi-no-aprendizagem e a adoção de metodologias ativas exigem esforços compartilhados por parte dos sujeitos sociais que dominam ou detêm parcelas de conhecimento e/ou de poder institucional e/ou social.

Mas quem de nós foi capacitado para formar equipes? E, mais complicado ainda, para manter equipes? Nossas vivências universitárias chegam no máximo às questões relativas às equipes de pesquisa científica ou de projetos de extensão universitária. Mesmo nestes casos, ainda muito contaminadas pela força do pensamento catedrático herdado, ao menos parcialmente, pelos professores titulares, pelos chefes de especialidades e pelos chefes de departamento. E, não há como negar, as relações entre chefias e subordinados é algo muito diferente das relações entre membros de uma equipe.

Ao longo dos últimos quatro anos aprendemos que a formação e a manutenção de verdadeiras equipes dependem: da existência/identificação de líderes mais do que da designação de chefes; de uma infinita disposição de ouvir e levar em conta pensamentos, sentimentos e manifestações; de uma enorme capacidade de diálogo, superando barreiras disciplinares e preconceitos, e estabelecendo uma autêntica relação de cooperação; de uma grande disposição para o trabalho, mantendo canais de acesso livres e desimpedidos para os membros da equipe; da eliminação de preconceitos entre as distintas áreas do saber, cuja interação é essencial para as construções coletivas, argamassa e produto das verdadeiras equipes. E estas são necessárias quando se tem em mente o desenvolvimento das atividades nos módulos, nos estágios do internato, na coordenação das séries, nas comissões de apoio e nas comissões temporárias. Isso tudo implica desprendimento e trabalho, que precisa ser feito mesmo que, com freqüência, os salários não sejam condizentes.

SEXTA CRÍTICA/AUTOCRÍTICA: PARCERIAS INCOMPLETAS

A articulação com os serviços de saúde e com as organizações comunitárias da sociedade local é uma estratégia decisiva para os processos de mudança na formação de médicos. Só contando com as forças renovadoras existentes nesses segmentos é que as forças renovadoras que atuam dentro da escola médica conseguem sobrepujar o status quo mantido pela forças conservadoras.

Essa articulação precisa alcançar progressivamente patamares mais elevados em termos de identidade de propósitos, intercâmbio de interesses e instrumentos ou mecanismos de expressão. Ou seja, as fases de aproximação, de coordenação e de interação devem ser estágios para o estabelecimento de verdadeiras parcerias: alianças entre atores diferentes para a conquista de fins comuns, constituindo uma modalidade de co-gestão, a partir da qual os vínculos entre os parceiros se dão em pé de igualdade e de maneira mais profunda.

Em Londrina, o desenvolvimento mais consistente das parcerias envolvendo os componentes acadêmicos, dos serviços e da comunidade se deu durante a execução do projeto UNI (1992-99). Não houve clareza e/ou força política para avançar e instituir instâncias oficiais de realização dessas parcerias no plano político. Por exemplo, a academia continua ausente dos conselhos locais e do Conselho Municipal de Saúde. Neste último, a representação da universidade, feita por meio da direção do hospital universitário, é um instrumento de defesa, na maior parte do tempo, dos interesses financeiros do hospital junto ao SUS. No plano operacional, a parceria entre academia e serviços continua sendo realizada no âmbito quase exclusivo dos módulos de Práticas Interdisciplinares e Multiprofissionais (PIN), que, embora existam da primeira à quarta série do curso, dizem respeito a uma pequena parte da carga horária curricular. No internato, a não ser pela experiência de atividades de ginecologia & obstetrícia realizadas na maternidade municipal, não existem outras parcerias.

Além disso, as parcerias são incompletas pelo fato de não incluírem, na maior parte das vezes, o componente da comunidade em suas ações. Apesar de estarem sempre disponíveis e dispostos a apoiar ações e intervenções docente-assistenciais, raramente os líderes comunitários são convidados pela academia para participar das decisões. Em Londrina, isto não acontece nem com relação ao HU, órgão de prestação de serviços de grande importância para a população. Que diria em relação a discutir planos de ensino ou programas curriculares! Isso acontece como resultado do distanciamento ideológico e político-social entre a maioria dos professores e estudantes em relação aos segmentos sociais de menor poder aquisitivo. Ou seja, ainda falta muito para que a escola médica, mantida predominantemente pela classe média e elites econômicas, entenda que sua relevância social só será preservada se ela estabelecer parcerias que promovam a formação de profissionais que atendam aos seus interesses e aos das demais classes e segmentos sociais.

SÉTIMA CRÍTICA/AUTOCRÍTICA: ENSINO MULTIPROFISSIONAL

O ensino multiprofissional é uma recomendação dos organismos internacionais de educação médica e das Diretrizes Curriculares Nacionais. Em Londrina, ele existiu com algum destaque durante o projeto UNI, envolvendo estudantes e professores dos cinco cursos do CCS.

Mesmo assim, aconteceu no âmbito de um projeto especial de ensino, com características extracurriculares. Foi importante para agregar professores, demandar iniciativas de capacitação docente, fomentar estudos e melhorar a compreensão sobre temas como interdisciplinaridade e trabalho em equipe. Mas não foi suficiente.

Atualmente existem dois módulos PIN, desenvolvidos nas duas primeiras séries dos cursos de Medicina e de Enfermagem. O avanço que se verificou foi a conquista do status de módulos curriculares. Mesmo assim, os professores envolvidos nesses módulos são quase exclusivamente da área de saúde coletiva.

Comparativamente ao que existia no início dos anos 199012, quando foi instituída no CCS uma comissão permanente de desenvolvimento curricular (CPDC) que reunia as coordenações dos cinco colegiados, houve um retrocesso. Embora continue existindo, a CPDC só cumpre a finalidade de facilitar análises ou encaminhamentos sobre questões que dizem respeito a mais de um curso. Não é protagonista ativa, nem é detentora de um projeto de estímulo a iniciativas de ensino multiprofissional.

Recentemente, em razão do Projeto Pró-Saúde.Medicina.Londrina, estão sendo desenvolvidas algumas ações dirigidas a estudantes e professores dos outros cursos, como é o caso do Fundo de Apoio à Pesquisa (Fapmed)13, aberto à participação de outros docentes, de profissionais e dirigentes dos serviços e de líderes ou agentes comunitários. Afinal, os processos de saúde-doença e de ensino-aprendizagem são mais bem compreendidos ou desenvolvidos se contarem com a participação de profissionais e estudantes de outras carreiras profissionais.

OITAVA CRÍTICA/AUTOCRÍTICA: TRABALHO EM REDE

O trabalho em rede é outra dimensão valorizada por vários autores que abordam as estratégias de mudança em saúde14,15. Desde as fases iniciais do processo de mudança em Londrina houve clareza sobre a importância de estabelecer relações com outras iniciativas e com os movimentos de transformação da educação médica. Já em 1991 propusemos e em 1992 sediamos o XXX Congresso Brasileiro de Educação Médica e o II Fórum Nacional de Avaliação do Ensino Médico. Também em 1992, iniciamos a participação na Rede IDA por ocasião do seu 2º Congresso Nacional, realizado em São Paulo, na Unifesp.

Alguns de nossos professores assumiram funções de liderança na Abem durante muitos anos, e desde 2001 a Rede Unida está sediada em Londrina. Neste período promoveu quatro dos seus sete congressos nacionais e consolidou-se como uma das forças políticas do movimento sanitário nacional, tendo contribuído para o fortalecimento dos movimentos de mudança.

Contudo, a participação e o envolvimento de professores do curso são muito reduzidos. A grande maioria deles continua a identificar os eventos das respectivas especialidades como os únicos merecedores de atenção e destino das suas produções acadêmicas. Pode ser registrado outro exemplo deste distanciamento da grande maioria dos professores do curso em relação às temáticas que dizem respeito ao trabalho em rede: a autora de uma tese recentemente defendida, que analisou os custos da implantação do currículo integrado do curso de Medicina da UEL, é uma professora do curso de Fisioterapia16.

Além do desinteresse da maioria dos professores em participar de atividades relacionadas ao trabalho em rede, constata-se a existência de uma subestimação da importância de transformar vivências de ensino-aprendizagem ou docente-assistenciais em produtos de conhecimento. Subestimação que é agravada pela dificuldade em realizar análises e sistematizações, o que é reflexo, em parte pelo menos, de insuficiências/inconsistências teórico-conceituais e metodológicas entre nós.

Assim, o trabalho em rede desenvolvido por alguns professores não deve ser confundido com o trabalho em rede que deveria ser desenvolvido pela escola. As oportunidades são oferecidas, e o trabalho em rede faz parte hoje do mundo dos negócios (networking) e das agendas do futuro de muitas categorias profissionais.

NONA CRÍTICA/AUTOCRÍTICA: PRODUÇÃO TEÓRICA

Embora existam importantes contribuições teóricas de autoria de alguns professores da escola, como as já citadas e as que integram esta publicação, além de outras não publicadas17,18, elas configuram um quadro pouco expressivo diante da profundidade, amplitude e duração das mudanças que estão em desenvolvimento na escola.

Ainda que exista uma linha de pesquisa sobre educação médica em um dos programas de pós-graduação da universidade e um grupo de pesquisa, cadastrado no CNPq, sobre desenvolvimento de recursos humanos em saúde, não se pode dizer que haja uma vertente de produção de conhecimento articulada com o desenvolvimento teórico-prático nas várias dimensões em que o curso se desenvolve.

A respeito do produto final do novo currículo integrado, ou seja, médicos formados com um novo perfil, só recentemente houve um estudo embrionário que efetuou comparações entre os formados pelas quatro últimas turmas do currículo anterior e as quatro primeiras séries formadas pelo atual currículo19. Esse estudo apontou a presença de percepções inovadoras nos ex-alunos do currículo integrado.

As análises não são conclusivas. Outra iniciativa foi a tese de doutorado de autoria de uma professora de outra área20, que analisou o perfil dos egressos da UEL e de outras escolas, utilizando dados do Exame Nacional de Desempenho do Estudante (Enade).

Tão importantes quanto as pesquisas de natureza biológica ou biomédica são as voltadas às temáticas da educação médica e da gestão da escola. Recentemente, o colegiado do curso aprovou a criação de quatro prêmios científicos com esse direcionamento, estratégia destinada a estimular a produção de conhecimento nesses campos. Possivelmente ocorrerá um crescimento significativo de estudos e um enriquecimento da produção teórica sobre educação médica.

TENDÊNCIAS E PERSPECTIVAS

Em termos de gestão da escola médica, eixo em torno do qual estas reflexões são produzidas, a tendência é de aprimoramento. Não só porque novos sujeitos assumem as funções de coordenação com disposição renovada, como também porque foram equacionadas a elaboração, a discussão e a aprovação do Projeto Pedagógico do Curso e da regulamentação das funções docentes e cargas horárias correspondentes nas atividades do curso21,22, que eram elementos geradores de instabilidade.

E bem verdade que existem novos elementos geradores de instabilidade, entre os quais os relativos à necessidade de adequar o internato médico as DCN. Mas isso faz parte do processo permanente de superação dos nós críticos que se sucedem em todo organismo social vivo e dinâmico. Esta é uma realidade internacional e diz respeito, em especial, às escolas médicas que promovem profundas mudanças no seu Projeto Pedagógico. Recente artigo analisa os sinais de erosão que se verificam numa das escolas pioneiras, após muitos anos de desenvolvimento de um currículo inovador23. Nele, o papel das ações de gestão na superação desses sinais é assinalado com destaque.

As perspectivas da gestão da escola dependem do sucesso que se obtenha na formação de novas lideranças, capacitadas na gestão de mudanças24 e na luta permanente pela mudança de atitudes por parte principalmente de professores e de estudantes. Ou seja, responsabilidade, compromisso e transparência podem fazer a diferença, se assumidos por muitos. Podem facilitar a gestão, mas não se pode ter a ilusão de que ela não continue sendo, por muito tempo, um terreno de disputas e conflitos diários. Que pode ser menos estressante na medida em que tenhamos noção dos seus limites e potencialidades.

Hoje, diferentemente do que se pensava na década de 1990, quando se discutiram as Diretrizes Curriculares, grande parte dos dirigentes e professores das escolas médicas tem consciência da complexidade desses processos e da importância de políticas públicas comprometidas com a construção das mudanças e com a sua sustentabilidade. Como assinalou Feuerwerker, "além da gestão dos processos dentro das escolas e do trabalho articulado com o sistema de saúde e a população, cabe aos dirigentes acadêmicos incisiva atuação no cenário dos movimentos nacionais, pois políticas públicas coerentes e articuladas favorecem a produção e a consolidação das mudanças na educação médica25". Espero que a análise crítica deste ensaio contribua para o desenvolvimento da educação médica e para uma melhor qualidade de trabalho dos seus gestores.

Recebido em: 25/03/2008

Reencaminhado em: 30/03/2008

Aprovado em: 31/03/2008

Conflitos de Interesse Declarou não haver.

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  • Endereço para correspondência:

    Marcio José de Almeida
    Rua Rio de Janeiro, 1630 - apto 902
    86010-150 - Londrina - Paraná
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Jun 2008
    • Data do Fascículo
      Jun 2008

    Histórico

    • Aceito
      31 Mar 2008
    • Recebido
      25 Mar 2008
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