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Transtornos emocionais e a formação em Medicina: um estudo longitudinal

Emotional disorders during medical training: a longitudinal study

Resumos

Transtornos emocionais como ansiedade, estresse e até mesmo burnout têm sido apontados em estudantes de Medicina durante o período de formação. Esta pesquisa investiga a ocorrência destes transtornos em 18 alunos ao longo dos seis anos de um curso de Medicina. Além de um questionário sociodemográfico, foram aplicados diversos instrumentos de avaliação (Idate, MBI, BAI e ISE), uma ou mais vezes em anos subsequentes. Os resultados evidenciaram que os transtornos foram mais intensos no terceiro e quarto anos. O sentimento de realização pessoal foi aumentando no transcorrer do curso, assim como as atitudes de desumanização. A exaustão emocional, por sua vez, apresentou decréscimo no final do curso. Sugere-se um estudo dos fatores de maior pressão, principalmente os relativos aos terceiro e quarto anos do curso, no sentido de modificá-los e/ou minimizar suas consequências nos estudantes. Por outro lado, disciplinas que promovam maior conhecimento do ser humano e, portanto, atitudes de humanização, devem ser implementadas e/ou receber mais destaque. A ênfase do curso deve ser pautada não só na capacitação técnica e desenvolvimento de habilidades, mas, especialmente, no conhecimento do ser humano e nas relações interpessoais e afetivas.

Estudantes de medicina; Estresse; Esgotamento profissional; Ansiedade; Depressão; Educação médica


Emotional disorders such as anxiety, stress, and even burnout have been detected in medical students during their training. This study investigates the occurrence of such disorders in 18 Brazilian students over the course of their six years in medical school. In addition to a socio-demographic questionnaire, various evaluation instruments were applied (Idate, MBI, BAI, and ISE), once or several times in subsequent years. According to the findings, disorders were more intense in the third and fourth years. The feeling of personal fulfillment increased during the course, as did attitudes of dehumanization. Meanwhile, emotional exhaustion decreased at the end of the course. We recommend further research on the strongest pressure factors, especially those related to the third and fourth years, in order to modify them or minimize their consequences for students. In addition, the disciplines in medical school that foster greater knowledge of the human being and thus attitudes of humanization should be implemented and/or receive greater emphasis. The course focus should be based not only on technical training and development of skills, but especially on knowledge of human beings and interpersonal and affective relations.

Students, Medical; Stress; Burnout, professional; Anxiety; Depression; Medical education


PESQUISA

Transtornos emocionais e a formação em Medicina: um estudo longitudinal

Emotional disorders during medical training: a longitudinal study

Ana Maria T. Benevides-Pereira; Maria Bernadete Gonçalves

Universidade Estadual de Maringá, Paraná, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Ana Maria T. Benevides-Pereira Rua Bragança, 630 - apto 601 Jardim Universitário CEP.: 87020-220 Maringá - PR E-mail: anamariabenevides@hotmail.com

RESUMO

Transtornos emocionais como ansiedade, estresse e até mesmo burnout têm sido apontados em estudantes de Medicina durante o período de formação. Esta pesquisa investiga a ocorrência destes transtornos em 18 alunos ao longo dos seis anos de um curso de Medicina. Além de um questionário sociodemográfico, foram aplicados diversos instrumentos de avaliação (Idate, MBI, BAI e ISE), uma ou mais vezes em anos subsequentes. Os resultados evidenciaram que os transtornos foram mais intensos no terceiro e quarto anos. O sentimento de realização pessoal foi aumentando no transcorrer do curso, assim como as atitudes de desumanização. A exaustão emocional, por sua vez, apresentou decréscimo no final do curso. Sugere-se um estudo dos fatores de maior pressão, principalmente os relativos aos terceiro e quarto anos do curso, no sentido de modificá-los e/ou minimizar suas consequências nos estudantes. Por outro lado, disciplinas que promovam maior conhecimento do ser humano e, portanto, atitudes de humanização, devem ser implementadas e/ou receber mais destaque. A ênfase do curso deve ser pautada não só na capacitação técnica e desenvolvimento de habilidades, mas, especialmente, no conhecimento do ser humano e nas relações interpessoais e afetivas.

Palavras-chave: Estudantes de medicina; Estresse; Esgotamento profissional; Ansiedade; Depressão; Educação médica.

ABSTRACT

Emotional disorders such as anxiety, stress, and even burnout have been detected in medical students during their training. This study investigates the occurrence of such disorders in 18 Brazilian students over the course of their six years in medical school. In addition to a socio-demographic questionnaire, various evaluation instruments were applied (Idate, MBI, BAI, and ISE), once or several times in subsequent years. According to the findings, disorders were more intense in the third and fourth years. The feeling of personal fulfillment increased during the course, as did attitudes of dehumanization. Meanwhile, emotional exhaustion decreased at the end of the course. We recommend further research on the strongest pressure factors, especially those related to the third and fourth years, in order to modify them or minimize their consequences for students. In addition, the disciplines in medical school that foster greater knowledge of the human being and thus attitudes of humanization should be implemented and/or receive greater emphasis. The course focus should be based not only on technical training and development of skills, but especially on knowledge of human beings and interpersonal and affective relations.

Key words:Students, Medical; Stress; Burnout, professional; Anxiety; Depression; Medical education.

INTRODUÇÃO

Tradicionalmente, o curso de Medicina é aceito como um dos mais difíceis e/ou dos mais trabalhosos, por exigir demais dos alunos: dedicação, esforço, sacrifício e, sobretudo, resistência física e emocional. A associação entre estudar medicina e desenvolver estresse é mundialmente conhecida1-3.

A análise do que deve ser cumprido ano a ano de estudos durante o período de graduação já induz nos alunos a tendência a superdimensionar o que os espera, acrescido das informações verbais transmitidas por seus pares veteranos.

A medicina é uma carreira que exige algumas características e expõe seus aspirantes a numerosas situações de estresse que muitos não têm condições de enfrentar, por características pessoais, falta de preparo ou por motivos e situações diversas, inclusive inerentes ao próprio curso2,4-6. A vocação médica é uma questão que tem despertado o interesse de alguns estudiosos em todo o mundo, havendo uma discussão sobre a necessidade de ampliar os critérios de seleção dos candidatos aos cursos de Medicina, incluindo, além das aptidões física, sensorial ou intelectual, aquelas expressas por respeito, bom senso, objetividade, responsabilidade e estofo moral, entre outras7.

No primeiro ano, os alunos vivenciam um momento de extrema duplicidade de sentimentos: por um lado, convivem com o deslumbramento de terem sido aprovados, de estarem caminhando para a realização de um sonho muito almejado, o de "vou ser médico!" Por outro, se deparam com uma realidade que não esperavam: estão diante de um curso eminentemente teórico, em muito semelhante ao colégio de onde vieram, enfrentando aulas longas, cansativas, ricas em conteúdo, mas vazias de significado. Muitos não compreendem por que necessitam estudar todo o conteúdo programático para que venham a ser médicos. Além dessa frustração, os estudantes se deparam com professores que, inadvertidamente, os apavoram, repetindo o discurso de que as brincadeiras acabaram; que precisam estudar 24 horas por dia caso queiram ser bons profissionais. Assim, estes vão assimilando o discurso de que ser médico é abdicar da vida social e pessoal, o que implica essencialmente sacrifícios8.

Quando recebem os primeiros resultados dos exames, vem a frustração maior: como encarar as notas baixas, frequentes no início do curso, se sempre foram os primeiros da classe durante todo o ensino fundamental e médio? Como fazer para recuperar essas notas? E a autoestima? Percebem que precisam reaprender a estudar. Além disso, os alunos enfrentam a necessidade de se adaptar ao novo ambiente, aos novos colegas. Muitos moram fora de casa e assumem responsabilidades que nunca tiveram, como cuidar de casa, pagamentos, alimentação; a esse quadro se alia a angústia de dependerem dos pais, de não poderem trabalhar como outros adolescentes de sua idade. Durante todo o curso, o aluno se depara com a competição, iniciada no vestibular, com a criação de verdadeiros feudos na faculdade. Surgem as crises de desistências que os acompanharão nos anos pré-clínicos, quando a sobrecarga de informações é bem maior, e pouco sobra de tempo livre, sendo difícil sua superação.

Finalmente, no internato, o atendimento ao paciente, a dedicação integral fazem com que os alunos repensem sua escolha profissional: aumentam a angústia e a falta de tempo, e surge a necessidade de escolher uma especialidade. Assim, o internato provoca no aluno: desânimo, depressão, sentimento de impotência9. Também há que se considerar que a comunicação com doentes graves, por vezes de conduta difícil, o lidar com o sofrimento, o desespero e a morte, bem como com situações de dor e frustração, corroem a autoestima do aluno ainda em formação10.

Por outro lado, o processo de treinamento nas escolas médicas tem sido visto como abusivo aos estudantes, podendo ser caracterizado, em muitos casos, como assédio psicológico. É frequente a observação de gritos, humilhações, agressão física, importunação sexual pelo poder, seja médico, residente ou outro, durante o treinamento11-13, com as consequências mais diversas.

Estudos relatam obsessividade, perfeccionismo e autoexigência como um traço comum da personalidade entre estudantes de Medicina. Assim, é frequente o relato de ansiedade, drogadição, depressão e até mesmo casos de suicídio em maior número entre estudantes e profissionais médicos do que na população geral3,8,14-16.

O estresse ocupacional crônico resulta na síndrome multidimensional denominada burnout; na verdade, esta seria uma forma de adaptação, mesmo que inadequada, ao enfrentamento das dificuldades. A maior parte dos autores admite que o burnout compreende basicamente três dimensões: a exaustão emocional (EE), a desumanização (ou despersonalização - DE) e a reduzida realização profissional (rRP).

O processo de exaustão emocional surge naqueles que não conseguem superar as adversidades, caracterizando-se pela sensação de não poder dar mais de si mesmo/a, pela sensação de haver chegado ao próprio limite. Os indivíduos se tornam ansiosos, estudam mais e mais, dormem pouco, têm pouco tempo livre, perdem oportunidades de ter relações sociais e recreações, tornando-se mais vulneráveis aos distúrbios mentais. Na tentativa de distanciamento, de minimizar a exaustão, começam a tratar os demais com indiferença, com impessoalidade, adotando atitudes irônicas ou cínicas, caracterizando o que vem sendo chamado de desumanização. Essa questão tem sido bastante enfatizada nos anos recentes, devido à observação da acentuação de atitudes céticas e da diminuição dos sentimentos humanísticos em muitos estudantes13,16,17.

Finalmente, vem a sensação do fracasso decorrente do fato de que as atividades ocupacionais perdem o sentido e se tornam um peso, motivo de insatisfação17-23.

Os sintomas do burnout podem ser agrupados em categorias, como: físicos (fadiga constante e progressiva, distúrbios do sono, dificuldade de relaxar, dores musculares, cefaléia e/ou enxaqueca; crises de sudorese, palpitações, distúrbios gastrointestinais, transtornos alimentares, imunodeficiência); psíquicos (dificuldade para se concentrar; diminuição da memória; tendência a ruminar pensamentos, lentidão do pensamento); emocionais (irritação, agressividade, desânimo, ansiedade, depressão); comportamentais (perda da iniciativa, inibição, desinteresse, tendência ao isolamento, negligência ou escrupulosidade excessiva, falta de interesse pelo trabalho e/ou lazer, adoção de uma rotina cada vez mais estreita, falta de flexibilidade). É comum o sentimento de autodepreciação, de culpa, ou a adoção de uma compensação mediante um processo inverso, adotando uma conduta de superioridade e/ou onipotência, pela queda da autoestima e da confiança em si mesmo. Devido às dificuldades sentidas, o profissional evita o meio gerador dos sintomas, aumentando o absenteísmo, sinal precoce do burnout. Também é comum o aparecimento ou o aumento do comportamento de fumar, do consumo de bebidas alcoólicas, café e drogas tranquilizantes17,22,23.

Autores descrevem burnout como o índice de deslocação entre o que a pessoa está fazendo e o que esperava fazer. Burnout representa uma deterioração dos valores, da dignidade, do espírito e do prazer (vontade). Seria como a "erosão da alma". A síndrome se espalha gradual e continuamente sobre o tempo, envolvendo as pessoas a tal ponto que a recuperação se torna um processo difícil, quase impossível19.

A doença pode desencadear outros processos patológicos, como hipertensão arterial, úlceras duodenais, doenças coronarianas e quadros depressivos.

Acredita-se que a semente do burnout pode estar sendo plantada durante a formação médica, quando a fadiga e a exaustão emocional passam a ser a norma, e uma série de condições estruturais adversas costuma estar presente22,24.

Embora existam trabalhos com amostras representativas, indicando alto nível de estresse entre os alunos de Medicina16,25, poucos são os estudos longitudinais que investigam os possíveis precursores do processo que poderiam permitir prevenção e/ou intervenção.

Assim, o presente estudo avalia alunos de um curso de Medicina de uma universidade do interior do Paraná, acompanhando-os do primeiro ao último ano. Desta forma, mediante comparação dos resultados entre si e com os de outras investigações semelhantes, pretendeu-se obter uma noção da realidade vivenciada pelos participantes deste estudo e propor diretrizes para minimizar as dificuldades, promovendo melhor formação dos futuros profissionais da área.

METODOLOGIA

Procedimento

Em 1996, os alunos do primeiro ano de Medicina foram contatados e informados do projeto de pesquisa sobre ansiedade e estresse durante o período de formação em Medicina, com a finalidade de detectar possíveis dificuldades durante o curso. Tomaram ciência de que a participação na pesquisa seria voluntária e que suas respostas seriam do conhecimento apenas da equipe de pesquisadores. Os que viessem a colaborar poderiam utilizar o próprio nome ou um pseudônimo, possibilitando o seguimento de cada participante durante o curso e o fornecimento do resultado individual aos interessados.

Ao final de cada ano letivo, os alunos eram convidados a responder um questionário. Para isso, os pesquisadores iam pessoalmente à sala de aulas e acompanhavam a turma durante o período de aplicação dos testes.

A análise dos dados coletados, para efeito de pesquisa, seria em grupo, preservando-se a identidade dos colaboradores e garantindo o sigilo dos mesmos.

Amostra

A amostra foi constituída por 18 dos 20 alunos matriculados no primeiro ano de Medicina da Universidade Estadual de Maringá em 1996 e que até 2001 (sexto ano) estiveram presentes em dois ou mais momentos das avaliações realizadas.

Instrumentos

Para que não houvesse saturação e acomodação das respostas aos questionários, alguns instrumentos de avaliação foram intercalados com outros.

a) Questionário sociodemográfico, elaborado pela equipe de pesquisadores, constituído por dados de identificação pessoal e familiar, sociabilidade, vida conjugal e/ou relacionamentos interpessoais, autopercepção do curso, saúde. Foi aplicado em 1986 e 2001, no primeiro e sexto anos do curso.

b) Idate - Inventário de Ansiedade Traço-Estado, de Spielberger, Gorsich e Lushene (1979), traduzido por Biagio e Natalício, da editora Cepa26. É um instrumento de autoinforme, constituído por 40 itens, distribuído em 20 itens para A-estado e outros 20 para A-traço e deve ser respondido por meio de uma escala Likert de 4 pontos, indo de 1 para "absolutamente não" a 4 "muitíssimo" para A-estado e de 1 como "quase nunca" a 4 como "quase sempre" para A-traço.

Esse instrumento foi aplicado em 1996, primeiro ano do curso, e reaplicado em 1998 e em 2001, terceiro e sexto anos, respectivamente.

Conforme indicado no manual, a amplitude de escores possíveis para o formulário do Idate varia de um mínimo de 20 a um máximo de 80, tanto na subescala de A-estado como na de A-traço; O estudo nacional em amostra de estudantes universitários apresentou alfas de Crombach de 0,90 no sexo masculino (N = 235) e de 0,89 no feminino (N = 231) para a escala de A-estado. Para a escala de A-traço, os alfas foram iguais nos dois sexos, 0,89, demonstrando bons coeficientes de fidedignidade.

c) MBI - Maslach Burnout Inventory (1986)27, traduzido e adaptado para estudantes pelo Gepeb - Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Estresse e Burnout da UEM28. É um questionário de autoinforme que abarca as três dimensões clássicas do burnout: EE - exaustão emocional; DE - desumanização ou despersonalização; RP - realização pessoal. Ao todo, são 22 itens, divididos em 9 para EE, 5 para DE e 8 para RP.

O questionário foi aplicado em 1998 (terceiro ano), em 1999 (quarto ano) e em 2001 (sexto ano).

Em estudo para adaptação nacional utilizando-se o MBI, Benevides-Pereira28 encontrou as médias para EE de 16 a 25, DE de 3 a 8, e RP de 34 a 42. O MBI reproduziu a mesma estrutura fatorial do instrumento original, apresentando, numa amostra de 595 pessoas, alfas de Crombach de 0,76 para RP, 0,84 para EE e 0,57 para DE, desta forma com níveis de fidedignidade aceitáveis.

d) Escala de Sintomatologia de Cecília Penacoba29, aplicada em 1999, quarto ano.

e) BAI - Inventário de Ansiedade de Beck, versão brasileira de J. A. Cunha, editado pela Casa do Psicólogo30. Instrumento traduzido e adaptado do original inglês BAI (Beck Anxiety Inventory), Beck 7 Steer, 1993, que denotou correlação significativa com o Idate, tanto para A-traço (r = 0,78; p < 0,001) como para A-estado (r = 0,76; p < 0,001). É um instrumento de autorrelato, constando de 21 sentenças para serem respondidas por uma escala de intensidade que vai de 1 como "absolutamente não" a 4 como "gravemente, dificilmente pude suportar".

Esse instrumento foi aplicado apenas em 1999, quarto ano.

Parte da amostra estudada para adaptação nacional foi constituída por 1.733 universitários, que apresentaram média de 7,54 (DP = 6,88) com alfa de 0,82, denotando bom nível de fidedignidade.

f) ISE - Inventário de Sintomatologia de Estresse de Benevides-Pereira e Moreno-Jiménez31. Instrumento composto por 27 afirmações concernentes a sintomas frequentemente referenciados pela literatura como indicativos de estresse, subdivididos em SF - sintomatologia física (7 itens) e SP - sintomatologia psíquica (20 itens), respondíveis por uma escala Likert de 5 pontos, sendo o valor 0 correspondente a "nunca" e o 4 a "assiduamente". O ISE foi aplicado em 2001, sexto ano do curso.

Em amostra constituída de 1.114 pessoas, a análise da escala de itens do ISE apresentou 40,487% da variância acumulada explicada, sendo que os itens do fator de sintomas psicológicos apresentaram saturações entre 0,754 e 0,390, e a física de 0,725 a 0,330 com alfas de Cronbach de α = 0,9236 e α = 0,7697, respectivamente, revelando adequada consistência interna, bem como validade de constructo. Os valores médios foram estimados entre: SF de 4 a 8, e SP de 16 a 27.

Os alunos participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, conforme determina a Resolução nº 169/1996 do CNS.

A avaliação dos instrumentou deu-se segundo as instruções do manual, no caso do Idate26 e do Inventário de Sintomatologia de Beck30. Para o MBI, foram utilizados os padrões do Gepeb (Benevides-Pereira28, 2001 e Benevides-Pereira17, 2002), assim como para o ISE (Benevides-Pereira e Moreno Jimenez31, 2000). A Escala de Sintomatologia de Penacoba, como não possui padrões nacionais, foi analisada qualitativamente e comparada com os demais instrumentos.

Tratamento estatístico

No tratamento estatístico foi utilizado o Programa SPSS 13.0, empregando-se análise descritiva dos dados: média, desvio padrão; comparação de médias: t de Student e Anova, bem como correlação de Pearson.

RESULTADOS

Apesar da possibilidade de utilizar um pseudônimo, a maioria dos estudantes empregou seu próprio nome na identificação dos questionários respondidos (80%).

a) Análise descritiva do questionário sociodemográfico.

a.1) no primeiro ano do curso - 1996.

Entre os 18 alunos participantes, 11 (61,1%) eram do sexo masculino e igual númer° ko tinha entre 19 e 20 anos de idade (Tabela 1) quando no primeiro ano do curso, a idade variando entre 17 e 22 anos com média de 19,11 (DP = 1,18). Na ocasião, todos eram solteiros, não tinham filhos e não trabalhavam fora. A maioria era do Estado do Paraná (N = 16; 88,9%), dos quais 11 de Maringá e apenas 2 do Estado de São Paulo (11,1%).

Dos respondentes, 14 (77,8%) moravam com a família. Entre os que não viviam em família, 2 afirmavam visitar os pais uma vez ao mês e 1 a cada dois meses. Houve apenas um caso em que os pais estavam separados (5,6%).

Quanto à profissão paterna, 5 (25,8%) eram comerciantes, 2 (11,1) aposentados, e os demais tinham outras ocupações. Entre as mães, 5 (27,8%) eram donas de casa, 3 (16,7%) comerciantes, e as outras tinham ocupações diversas. Nenhum dos respondentes era filho de médico, mas 8 (44,4%) possuíam algum parente nessa profissão: em 2 casos, um tio (11,1%), em 5 casos, primo/as (27,8%), e um outro com tios e primos (5,6%).

Quanto ao relacionamento social, o grupo se distribuía igualmente entre os que referiam ter muitos amigos, os que afirmavam ter poucos, mas com uma amizade profunda, e os que acreditavam que tinham muitos colegas, mas poucos amigos (N = 6; 33,33%). A maioria não namorava (N = 12; 66,7%) e 3 relataram ter dificuldades amorosas (33,3%). Dos participantes, 12 (66,7%) saiam apenas nos finais de semana e 5 (27,8%) muito raramente, sendo que 1 (5,6%) relatou ir sempre a bares. O lazer chegava a aliviar a tensão para 15 (83,3%) dos respondentes. Ter horas livres, fazer esportes ou namorar (N = 4; 22,22% para cada item) foram as atividades mais mencionadas como as preferidas para conseguir relaxar. A maioria ficava entre 11 e 12 horas por dia em casa (N = 10; 55,55%) e não possuía um grupo de relacionamento fora da universidade (N = 11; 61,1%).

Atividade física era praticada por 11 respondentes (61,1%), sendo que o futebol era o esporte que apresentava maior frequência (N = 3; 16,7%), seguido por basquete e vôlei (N = 2; 11,1 cada um). Ainda quanto a hábitos saudáveis de vida, a maioria não fumava (N = 17; 94,4%), 8 não bebiam (44,4%) e 9 o faziam apenas socialmente (50,0%).

Sintomas alérgicos foram referidos por 4 (22,2%) dos respondentes, 1 (5,6%) fazia psicoterapia psicanalítica e 2 outros gostariam de passar por tratamento psiquiátrico (11,1%).

Nenhum dos participantes trabalhava fora, sendo que 6 (33,3%) já haviam tido alguma atividade ocupacional antes do curso, como professor e outras. Dois dos respondentes haviam concluído outro curso superior (11,1%).

Quanto ao curso de Medicina, 13 alunos (72,2%) referiram que a falta de tempo era a maior dificuldade, sendo que para 5 (27,8%), os professores também o eram, enquanto o mesmo percentual indicou como regular o relacionamento com estes. Como dificuldade para a aprendizagem, 11 integrantes (61,1%) apontaram a sobrecarga de atividades, sendo que 2 também assinalaram a organização do curso. A relação com o departamento foi caracterizada como indiferente por 13 (72,2%) dos respondentes, enquanto outros 3 (16,7%) como participante/comunicativo. Dois alunos relataram que gostariam de participar mais junto ao departamento.

Para as atividades do curso, 7 preferiam trabalhar sozinhos (38,9%) e igual número em grupo, mas isso dependia da matéria a ser estudada.

As sugestões para melhorias no curso foram bastante variadas, abrangendo várias áreas, desde a didática dos professores, grade curricular, maior integração das disciplinas, revisão da carga horária e melhoria nos laboratórios.

O receio quanto ao futuro na medicina foi apontado por 11 participantes (61,1%), transparecendo como medo de não corresponder às próprias expectativas em 6 casos (33,33%) e também de errar (N = 3; 16,7%). O erro médico como fator isolado foi motivo de preocupação em 2 casos (11,1%) e 1 aluno também indicou o medo de não ser valorizado e não conseguir trabalho (5,6%).

Quanto às futuras especializações, a maioria ainda não havia se definido (N = 9; 50,0%) e 2 (11,1%) gostariam de ser cirurgiões. De suas expectativas, 6 (33,3%) pretendiam adquirir boa formação profissional, 5 (28,7%) pretendiam obter sucesso profissional e 2 (11,11%), além dos dois anseios citados, também sucesso financeiro.

a.2) no sexto ano do curso - 2001.

Em 2001, a maioria dos estudantes participantes continuava morando com a família (n = 15, 77,8%), sendo que, dos 3 restantes, 2 viviam com parentes (11,1%) e apenas 1 em república (5,6%).

Diferentemente do primeiro ano, em que nenhum dos estudantes trabalhava, no sexto ano 2 alunos exerciam uma atividade profissional (11,1%) (Tabela 2). No tocante ao relacionamento afetivo estável, houve mudanças, sendo que 11 (61,1%) relatavam tê-lo no momento.

Quanto ao curso, enquanto 11,1% (N = 2) afirmavam que o primeiro ou segundo ano do curso foi o mais difícil, 8 (44,4%) acreditavam que o terceiro ano foi o pior e 6 (33,3%) indicavam o quarto ano. Os motivos mais alegados foram "passagem das matérias básicas para as clínicas" (N = 6; 33,3%), "excesso de conteúdo/provas e escassez de tempo" (N = 3; 16,7%).

Das disciplinas e atividades do curso, 5 estudantes assinalaram o estágio/internato como o que mais contribuiu para a formação (27,8%); a disciplina de semiologia foi apontada por 4 participantes (22,2%) e a de pediatria por 2 (11,1%); 2 alunos afirmaram que todas foram importantes (11,1%), e 2 não responderam. A correlação entre teoria e prática (N = 3; 16,7%) e a relação médico-paciente (N = 2; 11,1%) foram os motivos mais aludidos para a escolha, entre outros bastante variados.

Como era de esperar, enquanto no primeiro ano havia dificuldade na definição de uma especialidade, no sexto ano, para 16 alunos (88,9%) já estava clara a opção, sendo a cirurgia a de maior escolha (N = 5; 27,8%), seguida pela pediatria (N = 3; 16,7%) e psiquiatria (N = 2; 11,1%). A aptidão e a afinidade fundamentaram a escolha em 7 casos (38,9%), gosto pessoal em 3 (16,7%) e o fato de lembrar "vida, alegria" levou 2 estudantes (11,1%) a se inclinarem pela opção.

Quanto ao fato de haver obtido uma bagagem suficiente para a futura atuação, 12 alunos responderam afirmativamente (66,7%) e 11 destes (91,7%) revelaram sentir tranquilidade quanto ao futuro profissional.

b)Análise descritiva das escalas de avaliação psicológica

b.1) Idate - No presente estudo, os alunos do primeiro ano do curso de Medicina (1996) apresentaram uma média grupal de 41,72 (DP = 8,68) para A-estado, e de 43,06 (DP = 9,07) para A-traço (Tabela 3).

Desta forma, considerando os pontos de corte para universitários, o Idate apresentou 27,8% (N = 5) de ansiedade, tanto estado como traço, acima da média, com 72,2% (N = 13) de valores dentro dos padrões médios. Não houve casos de ansiedade reduzida.

Os alunos que praticavam esporte (N = 11, média = 39,45, dp = 7,38) revelaram médias significativamente inferiores aos que não praticavam (N = 7, média = 48,71, dp = 9,01; t = - 2,384, p =0 ,030).

No terceiro ano do curso (1998), os alunos apresentaram a média grupal de 46,88 (DP = 3,38) para A-estado e de 48,33 (DP = 2,63) para A-traço. Pode-se observar, na Tabela 3, que as médias se elevaram entre o primeiro e terceiro anos, apesar de haverem diminuído os valores máximos encontrados, bem como o intervalo do desvio padrão. Usando-se a prova t para amostras relacionadas, a diferença das médias foi significativa tanto para ansiedade estado (t =0,275; p = 0,015) como para ansiedade traço (t = 2.675, p =0,016). Considerando os pontos de corte, a diferença entre o primeiro e terceiro anos fica ainda mais evidente. Nesta segunda avaliação, 72,2% (N = 13) do grupo refletiam ansiedade-traço acima da média, sendo de 66,7% a de ansiedade-estado (N = 12), quando, antes, no primeiro ano, o percentual estava em 27,8%. Quando os alunos foram comparados por sexo, não houve diferença significativa entre as médias, tanto na primeira como na segunda avaliação.

No sexto ano (2001), o grupo apresentou médias significativamente diferentes quando comparadas com as médias apresentadas no terceiro ano do curso (t = - 4,123; p = 0,001) no que diz respeito a ansiedade-traço 48,33 (DP = 2,63) e 39,59 (DP = 9,90), mas não para ansiedade-estado, 46,89 (DP = 3,38) e 42,33 (DP = 8,68), respectivamente (Tabela 3).

b.2) MBI - Maslach Burnout Inventory.

Quando da aplicação do MBI, em 1998, apenas 7 estudantes estavam presentes (Tabela 3). Vale destacar que não houve diferenças significativas de médias em relação ao sexo dos participantes, mas, para o item DE (despersonalização ou desumanização), as médias foram significativamente maiores entre os que não praticavam esporte (N = 3, média = 10,0, dp = 3,0) do que entre os demais (N = 4, média = 2,0, dp = 3,0; t = - 3,273, p = 0,022).

Ponderando-se estes valores pelo número de itens, invertendo-se os valores de RP para podemos comparar melhor estes índices entre si, conforme o que dispõe a concepção teórica, uma vez que o burnout é aferido pela reduzida realização pessoal no trabalho, temos o que pode ser observado no Gráfico 1: a EE (exaustão emocional) é o fator mais acentuado, seguido por rRP (reduzida realização pessoal). O nível de DE (desumanização) é comparativamente menor que os dois primeiros.


No mesmo teste aplicado no ano seguinte, 1999, quando os estudantes cursavam o quarto ano, 11 dos 18 estudantes incluídos no estudo estavam presentes. Confrontando-se as médias encontradas no terceiro ano com as obtidas no quarto ano, percebe-se que não houve diferenças significativas nas dimensões de EE e DE, mas houve um aumento significativo quanto à realização pessoal (t = - 4,751, p =0,003).

Ponderando-se os resultados para a comparação entre as dimensões, temos o que é expresso no Gráfico 1. A média de exaustão emocional, como no ano anterior, é a mais proeminente das três, seguida pela de reduzida realização pessoal no trabalho.

Em 2001, sexto ano do curso, os 18 alunos estiveram presentes quando da aplicação do MBI. Os resultados estão descritos na Tabela 3. Ao comparar-se com a avaliação anterior, observa-se que houve diminuição das médias de exaustão emocional (de 24,85 para 20,94) e de realização pessoal (de 36,91 para 35,11), assim como aumento na média de desumanização (de 7,00 para 8,94). Há que se notar que o valor máximo de EE, que era de 38, passou para 42, e o de DE, que era de 12, foi para 16, indicando que, embora a diferença de médias não seja significativa, houve um aumento na amplitude, revelando valores mais altos que na avaliação anterior.

Para comparar melhor estes resultados entre si, o Gráfico 1 mostra os valores ponderados pelo número de itens. Diferentemente do que havia ocorrido no quarto ano, a desumanização passou a ser a segunda dimensão mais relevante entre as três. Exaustão emocional continuou a ser o fator de maior evidência no grupo, apesar de apresentar média menor que na avaliação anterior. Os estudantes revelaram-se levemente mais realizados (médias ponderadas de rRP) neste final de curso, quando comparados com o ano anterior, mas com diferença mais acentuada em relação à primeira avaliação. Nota-se que a média de EE (exaustão emocional) vai decrescendo até o final do curso, e a de DE (desumanização) vai aumentando. Não houve diferença significativa entre as médias das dimensões do quarto e sexto anos do curso quando utilizada a t de Student para amostras relacionadas.

Ao se confrontarem os resultados obtidos em 1998 com os valores médios estabelecidos, temos que 57% dos participantes evidenciaram médias acima da média padrão para EE, 28,6% para DE e 85,7% indicavam reduzida realização pessoal nas atividades desenvolvidas. Considerando os resultados encontrados na avaliação dos alunos no ano seguinte, 1999, temos que 36,4% dos estudantes apresentavam valores elevados para EE como também para DE, sendo que 24,3% se sentiam pouco realizados.

No sexto ano, ao distribuirmos os valores pelas faixas obtidas pelos pontos de corte, encontramos que 27,8% de casos estavam acima da média para EE e 61,1% para DE. Apesar de a média grupal do RP estar dentro da média esperada, quando se analisam os resultados individuais temos que o grupo denotou 44,4% de casos com rebaixamento na realização pessoal.

b.3) Escala de Sintomatologia de Peñacoba

Aplicada em 1999, quarto ano do curso. Na ocasião da aplicação do teste, apenas 11 dos alunos estavam presentes; dos sintomas psicossomáticos, os que se apresentaram como mais expressivos foram: tensão, que 54,5% (N = 6) afirmavam sentir algumas vezes, sendo que 36,3% (N = 4) se referiam como tensos frequentemente. Apenas 18,1% dos participantes apresentavam dor de cabeça algumas vezes (N = 2), e 1 revelava dificuldade de conciliar ou manter o sono. Fadiga e conflito no relacionamento com outras pessoas foram referidos em 36,3% (N = 4) e 27,2% (N = 3) dos casos, respectivamente.

b.4) BAI - Inventário de ansiedade de Beck. O inventário de ansiedade BAI, para os 11 alunos presentes na ocasião do teste, denotou média de 28,18 (DP = 2,483 - Tabela 3). Empregando-se os pontos de cortes estabelecidos pelo manual, não houve nenhum caso dentro da categoria de ansiedade mínima ou leve, havendo 9 alunos na categoria "moderada" (81,8%) e 2 na "grave" (18,2%).

b.5) ISE - Inventário de Sintomatologia de Estresse. Todos os 18 alunos da amostra responderam esse inventário em 2001. Os resultados podem ser vistos na Tabela 3. Como o fator sintomatologia psicológica (SP) do inventário possui mais itens do que o fator sintomatologia física (SF), no gráfico obtém-se uma comparação mais precisa entre os dois fatores, quando as pontuações foram ponderadas pelo número de itens de cada fator (Gráfico 2). Percebe-se que, nesse grupo, a sintomatologia psicológica predominou significativamente sobre a física.


Ao correlacionarmos os resultados das escalas do MBI com as do ISE, obtidas entre os alunos no sexto ano do curso, utilizando-se o método de Pearson, notamos que SP e SF se correlacionaram positiva e significativamente com EE, sendo que para SF de forma ainda mais acentuada (r = 0,580 , p = 0,012 e r - 0,603, p = 0,0008 respectivamente).

Distribuindo-se os valores entre as faixas elevada, moderada e reduzida, os resultados revelam que, assim como a sintomatologia física, a psicológica apresentou 27,8% de casos acima da média.

DISCUSSÃO

No grupo de alunos estudado, observa-se que a maioria era do sexo masculino. Tradicionalmente, esta era uma tendência entre os profissionais da área médica32, embora nos últimos anos uma presença feminina maior seja realidade nos cursos de Medicina33.

O fato de a grande maioria dos estudantes ser do Estado do Paraná, principalmente da cidade de Maringá, revela que a universidade local tem absorvido os alunos do seu entorno, cumprindo sua função social. Além disso, é um fator positivo porque estes alunos puderam contar com o apoio de seus familiares durante o curso, o que minimiza o isolamento social característico dos estudantes de Medicina, pela necessidade de dedicação intensa para poder ingressar e permanecer no curso8,34,. Pode-se verificar que a maioria dos universitários tinha sua vida social restrita à família e à própria universidade. É importante lembrar que o fato de poder contar com pessoas com quem seja possível dividir dúvidas e/ou opiniões e obter suporte, incentivo ou contribuição é tido como um elemento importante para retardar ou reter os processos de estresse e burnout17,20.

A profissão dos progenitores, com raras exceções, indica que estes estudantes eram provenientes de famílias de classe média e não de camadas mais abastadas da sociedade, como é comum ser denunciado pela mídia, que frequentemente afirma que as vagas das universidades públicas são preenchidas por alunos oriundos da classe socioeconômica superior33,35. Também a crença de que estudantes de Medicina em geral são filhos de médicos não correspondeu aos achados nesse grupo de alunos.

A falta de tempo livre - que possibilitaria aos alunos se dedicar a outras atividades ou mesmo fazer maior reflexão sobre as disciplinas cursadas, bem como cultivar a relação entre eles mesmos - foi o maior fator de dificuldade apontado pelos estudantes pesquisados e tem sido citado por outros autores34. As dificuldades de relacionamento com professores, variável indicada como relevante na construção do conhecimento11,25, também foi apontada por esses alunos.

Com o transcorrer dos anos, observa-se que os alunos puderam adquirir segurança e confiança em seu futuro profissional, evidenciando que as dificuldades apontadas foram superadas, sendo que o terceiro e quarto anos do curso foram assinalados como os mais penosos. Estudos semelhantes descritos na literatura, embora a maioria transversais, verificaram que, além do primeiro ano do curso, seriam mais estressantes o terceiro e o quarto anos11,16,25,36. Acreditamos que nesse período do curso há um acúmulo de disciplinas, em decorrência da idéia dominante dos gestores dos cursos de graduação de inserir nos cursos a maior bagagem de informações possível, atendendo ao surgimento de novas especialidades médicas e novas tecnologias de investigação e terapêutica. Além disso, na maioria dos cursos foi ampliado o período de estágio (internato) de um para dois anos, sem redução da carga horária das disciplinas já existentes, o que fatalmente levou à sobrecarga tão referida pelos alunos.

Ao examinarmos os resultados dos instrumentos de avaliação para estresse e burnout (Idate, ISE, MBI, BAI), constatamos que, de fato, estes foram os anos em que os alunos registraram, comparativamente, maiores índices de transtornos, tanto entre si - em relação aos anos anteriores ou posteriores - como quando os relacionamos com as normas nacionais.

Com base nos resultados dos testes, pode-se notar que, já no primeiro ano, os participantes deste estudo denotavam médias mais elevadas para estresse e burnout em se considerando os padrões nacionais. Um estudo de 199536 entre alunos do primeiro ano do curso de Medicina de uma escola no norte da Inglaterra mostrou que 36% apresentavam testes positivos para distúrbios psicológicos e 50% dos alunos descreveram pelo menos um incidente estressante nesse primeiro ano do curso; os autores sugerem a necessidade de rever as metodologias de ensino e o relacionamento aluno-docente para minimizar esse problema. Acreditamos que, além dos aspectos inerentes ao curso, os resultados dos testes podem ser reflexo da situação recém-assumida de aluno de Medicina, bem como da apreensão quanto ao futuro e da avaliação extremamente desgastante que foi o vestibular, no qual a concorrência é a maior entre todas as demais carreiras21,37, chegando ao absurdo de 195 candidatos por vaga38.

Nos alunos pesquisados, nota-se um aumento gradativo, ano a ano, da ansiedade, estresse e burnout, culminando no quarto ano do curso e decrescendo posteriormente. Alunos do terceiro ano de Medicina de uma escola no Mississipi revelaram níveis clínicos de depressão em 23% dos estudantes e altos níveis de distúrbios somáticos em 57%16. Na avaliação do nível de estresse em alunos do quarto ano de Medicina em universidades britânicas, foram encontrados distúrbios emocionais em 31,2%, sendo que o escore médio foi maior do que o de outros grupos na população geral25.

Alguns estudos recentes realizados no Brasil têm mostrado resultados semelhantes entre si: altos índices de sintomas depressivos em estudantes de Medicina com referência a um comprometimento maior no sexo feminino39,40.

A literatura tem apontado um aumento da ansiedade entre as mulheres quando comparadas aos homens4,30,39,40. Neste estudo isto não ocorreu em nenhum dos momentos avaliados, resultados concordantes com outras investigações25,36. Também a variável idade não foi relevante, como várias pesquisas têm demonstrado. No entanto, a prática de atividades físicas se correlacionou positiva e significativamente com baixos níveis de estresse e burnout, o que mostra a efetividade da mesma, sendo algo importante a indicar e/ou implementar na prevenção destes processos. Não encontramos na literatura nenhuma referência específica a estudantes de Medicina, porém sabe-se de há muito da importância da prática de esportes e de outras atividades físicas na promoção do bem-estar físico e mental.

O estudo realizado em Joinville, em Santa Catarina, não revelou diferença significativa entre as séries do curso39, enquanto o estudo realizado no Ceará refere maior percentual de estresse entre os alunos do terceiro ano40.

A realização pessoal foi aumentando pouco a pouco durante o curso, indicando a satisfação e o sentimento de suficiência para com as atividades desenvolvidas. Em geral, os alunos conseguem superar as dificuldades e, a cada ano, sentem que estão ultrapassando etapas, o que certamente os deixa mais satisfeitos consigo mesmos e com o curso.

É interessante e lamentável observar que, como já apontavam outros autores8,13, os níveis de desumanização se elevam no transcorrer do curso, indicando que estes estudantes foram ficando mais insensíveis e até mesmo cínicos e irônicos no trato com os demais. De acordo com a literatura, esse comportamento acontece, em especial, com os profissionais e internos no trato com os pacientes2,10,41.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por meio dos instrumentos de avaliação psicológica e do depoimento dos alunos, o terceiro e quarto anos do curso foram considerados os mais difíceis. Sugere-se uma análise minuciosa da carga horária e da forma como estão estruturadas e ministradas as disciplinas, para minimizar as consequências deste período de estudos.

A prática, aliada aos conceitos teóricos, foi um elemento importante referenciado pelos estudantes e que mereceria maior atenção dos coordenadores e docentes.

A adoção de disciplinas psicossociais, já referenciada por outros autores, poderia ser uma alternativa relevante, com o intuito de propiciar uma reflexão sobre a conduta com o paciente por meio da discussão de temas como as relações interpessoais no trabalho e, sobretudo, médico-paciente, destacando-se a importância de uma boa relação no processo de recuperação da saúde.

Tem sido sugerido o emprego de psicoterapia preventiva e interventiva, associada a outras condutas, incluindo a criação de centros especializados para exames médico-psicológicos, no sentido de propiciar assistência psicológica aos estudantes.

Os alunos devem ser estimulados a desenvolver estratégias de adaptação e enfrentamento de situações estressantes que lhes servirão durante a formação e, posteriormente, durante sua carreira profissional. Devem aprender sobre a fisiologia do estresse, técnicas de relaxamento, traços de personalidade com potencial adaptativo e mal-adaptativo, assim como sobre o desenvolvimento de relações interpessoais efetivas, reconhecimento e manejo do estresse no meio médico, e aprender a desvincular sua vida profissional da pessoal9,16.

Na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), em 1983, foi criado um grupo de apoio e assistência psicológica ao aluno de Medicina (Graapal), com o objetivo de diminuir os riscos de depressão e suicídio entre alunos de graduação e pós-graduação15. Várias outras escolas vêm criando núcleos de apoio ao estudante de Medicina, e algumas inclusive possibilitam o atendimento dos alunos na área da saúde, a fim minimizar os efeitos do estresse ocasionado pelo curso.

CONCLUSÕES

Nos testes aplicados já no primeiro ano do curso, os participantes deste estudo denotavam médias mais elevadas para estresse e burnout em relação aos padrões nacionais.

Por meio dos instrumentos de avaliação psicológica e do depoimento dos alunos, o terceiro e quarto anos do curso foram considerados os mais difíceis.

A prática, aliada aos conceitos teóricos, foi um elemento importante referenciado pelos estudantes e que mereceria maior atenção dos coordenadores e docentes.

É interessante e lamentável observar que, como já apontavam outros autores8,13, os níveis de desumanização aumentam no transcorrer do curso.

Nos alunos pesquisados, nota-se um aumento gradativo, ano a ano, da ansiedade, estresse e burnout, culminando no quarto ano do curso e decrescendo posteriormente.

Recebido em: 27/11/2007

Reencaminhado em: 06/02/2008

Aprovado em: 10/03/2008

CONFLITO DE INTERESSES: Declarou não haver

Projeto desenvolvido na Universidade Estadual de Maringá (UEM); Proc. nº 345/06 PPG.

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Jun 2009
    • Data do Fascículo
      Mar 2009

    Histórico

    • Aceito
      10 Mar 2008
    • Revisado
      06 Fev 2008
    • Recebido
      27 Nov 2007
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