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Situações de conflitos éticos relevantes para a discussão com estudantes de Medicina: uma visão docente

Ethically conflictive situations for discussion with medical students: a professor's view

Resumos

A formação ética e humanística dos estudantes de Medicina vem sendo bastante valorizada e questionada na atualidade. A discussão dos conflitos éticos que surgem durante o exercício da medicina é uma das estratégias de maior impacto para o desenvolvimento da competência moral dos estudantes. Com o objetivo de conhecer e analisar as situações de conflito consideradas mais relevantes para a discussão com os futuros médicos, pedimos a profissionais que exercem atividades de ensino com estudantes de Medicina na Unifesp-EPM que mencionassem até três situações importantes para discussão. Participaram da pesquisa 237 sujeitos. As respostas, registradas por itens e categorizadas por temas, foram comparadas aos assuntos abordados em cursos formais de ética das escolas médicas brasileiras e analisadas à luz da literatura especializada. Os temas que emergiram desta pesquisa podem ser explorados por diferentes estratégias de ensino-aprendizagem. Cabe às escolas médicas estimular as diversas disciplinas a abrir espaços formais para as discussões e investir na conscientização e no preparo docente para esta tarefa.

Educação Médica; Educação de Graduação em Medicina; Docente; Ética; Ética Médica


The ethical and humanistic training of medical students has been both valued and questioned in recent years. Discussion of the ethical conflicts that arise during future medical practice is one of the strategies with the greatest impact for developing students' moral skills. With the aim of identifying and analyzing the most relevant conflictive situations for discussion with future physicians, we asked faculty members working with medical students at the Unifesp-EPM School of Medicine to list three important situations for discussion. The sample included 237 participants. The answers were recorded as items and categorized thematically, and were compared to the topics covered in formal ethics courses in Brazilian medical schools, analyzed in relation to the specialized literature. The themes that emerged in this study can be explored through different teaching-learning strategies. It is up to medical schools to encourage the different disciplines and rotations to provide formal spaces for discussions and to promote awareness raising of faculty members for this task.

Medical Education; Education Medical Undergraduate; Faculty; Ethics; Ethics Medical


PESQUISA

Situações de conflitos éticos relevantes para a discussão com estudantes de Medicina: uma visão docente

Ethically conflictive situations for discussion with medical students: a professor's view

Aluisio Marçal de Barros Serodio; José Antônio Maia de Almeida

Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Aluisio Marçal de Barros Serodio Av. Borges Lagoa, 1065 - cj 115 Vila Clementino CEP.: 04038-032 - São Paulo - SP E-mail: lulabra@yahoo.com.br

RESUMO

A formação ética e humanística dos estudantes de Medicina vem sendo bastante valorizada e questionada na atualidade. A discussão dos conflitos éticos que surgem durante o exercício da medicina é uma das estratégias de maior impacto para o desenvolvimento da competência moral dos estudantes. Com o objetivo de conhecer e analisar as situações de conflito consideradas mais relevantes para a discussão com os futuros médicos, pedimos a profissionais que exercem atividades de ensino com estudantes de Medicina na Unifesp-EPM que mencionassem até três situações importantes para discussão. Participaram da pesquisa 237 sujeitos. As respostas, registradas por itens e categorizadas por temas, foram comparadas aos assuntos abordados em cursos formais de ética das escolas médicas brasileiras e analisadas à luz da literatura especializada. Os temas que emergiram desta pesquisa podem ser explorados por diferentes estratégias de ensino-aprendizagem. Cabe às escolas médicas estimular as diversas disciplinas a abrir espaços formais para as discussões e investir na conscientização e no preparo docente para esta tarefa.

Palavras-chave: Educação Médica; Educação de Graduação em Medicina; Docente; Ética; Ética Médica.

ABSTRACT

The ethical and humanistic training of medical students has been both valued and questioned in recent years. Discussion of the ethical conflicts that arise during future medical practice is one of the strategies with the greatest impact for developing students' moral skills. With the aim of identifying and analyzing the most relevant conflictive situations for discussion with future physicians, we asked faculty members working with medical students at the Unifesp-EPM School of Medicine to list three important situations for discussion. The sample included 237 participants. The answers were recorded as items and categorized thematically, and were compared to the topics covered in formal ethics courses in Brazilian medical schools, analyzed in relation to the specialized literature. The themes that emerged in this study can be explored through different teaching-learning strategies. It is up to medical schools to encourage the different disciplines and rotations to provide formal spaces for discussions and to promote awareness raising of faculty members for this task.

Key words: Medical Education; Education Medical Undergraduate; Faculty; Ethics; Ethics Medical.

INTRODUÇÃO

No século 20, o avanço vertiginoso das tecnologias biomédicas confrontou o médico com uma avalanche de informações cuja apreensão completa é virtualmente impossível. Na tentativa de acompanhar tais avanços, as escolas médicas, no esteio das conclusões do Relatório Flexner (1910), hipertrofiaram em seus currículos as ciências básicas e o treinamento prático, predominantemente hospitalar1. Tais mudanças foram, sem dúvida, importantes para melhorar a qualidade da formação médica em várias partes do mundo. Entretanto, esta aposta na especialização e numa sólida formação científica acabou deslocando para segundo plano a formação humanística dos estudantes de Medicina. A partir de então, tem sido crescente a frustração quanto à capacidade dos médicos em estar à altura das expectativas de seus pacientes no que diz respeito à comunicação, aos cuidados permanentes e à disponibilidade2.

A percepção atual é de que o médico está cada vez mais distante do paciente, priorizando excessivamente o aspecto técnico da profissão. Este processo - que se convencionou chamar de desumanização da medicina - é, na realidade, parte de um contexto social mais amplo. Médicos não vêm de Marte; eles nascem e crescem dentro de uma sociedade na qual a indiferença em relação às pessoas é a regra. Além disso, fatores inerentes ao mercado de trabalho no setor de saúde criam circunstâncias que dificultam sobremaneira o atendimento.

O fato é que a insatisfação com o preparo humanístico dos médicos é patente, sendo amiúde referida na literatura3. Assim, as Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos de Medicina4 recomendam, como perfil do profissional a ser formado, um "médico com formação generalista, humanista, crítica e reflexiva, capacitado a atuar pautado em princípios éticos". No artigo sobre competências e habilidades, o referido documento recomenda que "os profissionais devem realizar seus serviços dentro dos mais altos padrões de qualidade e dos princípios da ética/bioética". Finalmente, no que concerne à organização dos cursos, as Diretrizes prescrevem que "a estrutura do curso de graduação em Medicina deve incluir dimensões éticas e humanísticas, desenvolvendo no aluno atitudes e valores voltados para a cidadania".

Por isso, o ensino da Ética - como um ramo da Filosofia que, ao lado da História e da Literatura, integra os três pilares da educação humanista - tem sido cada vez mais valorizado e questionado5,6,7. Ainda que o exemplo docente possa ser considerado um importante fator no desenvolvimento moral dos estudantes, outras estratégias (como a discussão de situações do dia-a-dia dos estudantes) podem impactar fortemente a capacidade de raciocínio moral8. Seguindo esta linha de pensamento, a discussão dos conflitos éticos que surgem durante o exercício da medicina pode ser considerada uma estratégia muito interessante, especialmente para estudantes que já vivenciam a prática clínica. Por isso, pedimos a profissionais que exercem atividades de ensino com estudantes de Medicina que mencionassem as situações de conflitos éticos mais relevantes para a discussão com os estudantes. Os temas assim levantados podem ser objeto de exploração cuidadosa, tanto nos cursos formais de ética como em discussões em cada disciplina.

OBJETIVOS

■ Conhecer e analisar as situações de conflitos éticos consideradas, pelos docentes, como mais relevantes para a discussão com os futuros médicos.

■ Comparar as situações apontadas com os temas abordados nos cursos de Ética Médica e Bioética das escolas médicas brasileiras.

PROCEDIMENTO METODOLÓGICO

O local de coleta de dados foi a Unifesp-EPM, e os sujeitos da pesquisa foram os profissionais que exercem atividade docente na graduação em Medicina nesta instituição, incluindo-se docentes, médicos e profissionais técnico-administrativos de nível superior, pós-graduandos e residentes.

Este artigo é parte de uma pesquisa educacional que serviu de substrato para a obtenção de título de Mestre pelo Centro de Desenvolvimento do Ensino Superior em Saúde (Cedess) da Unifesp. O instrumento utilizado foi um questionário, composto de uma primeira parte que caracteriza a população estudada e uma pergunta aberta: dentro da sua área de atuação, cite até três situações de conflitos éticos que você identifica como mais importantes para uma discussão com os futuros médicos.

Na aplicação do questionário foram usadas duas estratégias. Para as disciplinas da área básica, o pesquisador conversou pessoalmente com o docente responsável pelo curso na graduação em Medicina, solicitando que ele distribuísse o questionário a seus colegas. Na área clínica, o pesquisador fez, durante reuniões clínicas das disciplinas e serviços, uma exposição sucinta da pesquisa e entregou os questionários àqueles que desejassem participar. Os questionários foram recolhidos nas secretarias dos setores.

CARACTERIZAÇÃO DA POPULAÇÃO ESTUDADA

A todos os 24 departamentos que participam do currículo nuclear do curso de graduação em Medicina da Unifesp foi apresentada a pesquisa e foram entregues questionários. Apenas de dois destes departamentos não obtivemos nenhuma devolução. Um total de 646 voluntários se dispôs a receber o questionário, dos quais 237 foram respondidos (índice de devolução de 36,7%).

Conhecemos com precisão o número total de cada categoria profissional incluída nesta pesquisa, exceto os profissionais voluntários. Nosso universo é composto por 579 professores, 64 professores visitantes, 1.534 profissionais contratados, 2.078 pós-graduandos e 496 residentes. Contudo, foi impossível determinar quantos indivíduos deste universo exercem efetivamente atividades de ensino com estudantes de Medicina, especialmente na segunda metade do curso, quando residentes, pós-graduandos e médicos contratados têm atividades cotidianas com os estudantes.

Do total de 237 participantes, 130 (54,9%) são do gênero masculino e 107 (45,1%) do feminino. Cento e quarenta (59,1%) têm mais de 40 anos de idade, 208 (86,7%) são médicos e 166 (70,1%) estão formados há mais de 10 anos. Quanto à titulação acadêmica, 147 participantes (59,1%) têm doutorado, pós-doutorado ou livre-docência.

No que se refere ao vínculo com a Unifesp (Gráfico 1), 80 indivíduos (33,8%) são profissionais contratados, 75 (31,6%) são professores, 33 (13,9%) pós-graduandos, 29 (12,2%) residentes, 17 (7,2%) profissionais voluntários e 3 (1,3%) professores visitantes. Quanto ao momento do curso no qual sua atuação é mais intensa, 126 indivíduos (53,2%) estão no quinto e sexto anos, 75 (31,6%) no terceiro e quarto, e 36 (15,2%) no primeiro e segundo anos.


Cento e sessenta e sete sujeitos da pesquisa (70,5%) têm como cenário de ensino a sala de aula, 130 (54,8%) o Ambulatório, 67 (28,3%) a Enfermaria, 56 (23,6%) o Centro Cirúrgico, 52 (21,9%) o Pronto-Socorro, 50 (21,1%) o Laboratório, 17 (7,2%) a Unidade Básica de Saúde, 14 (5,9%) a UTI, e 7 (2,9%) a comunidade.

RESULTADOS

Solicitamos aos participantes da pesquisa que citassem, dentro de sua área de atuação, até três situações de conflitos éticos que eles identificassem como mais importantes para uma discussão com os futuros médicos. Os resultados, registrados por itens e categorizados por temas9, são apresentados a seguir.

■ Relação médico-paciente (81 citações)

Relação médico-paciente (24)

Respeito com pacientes/ falta de atenção (21)

Maneira de se comunicar e orientar pacientes (14)

■ Prática médica (68 citações)

Erro médico/responsabilidade médica (15)

Uso de terapias de eficácia não comprovada (12)

Propaganda, publicidade, marketing, divulgação (9)

■ Relacionamento entre médicos (55 citações)

Julgar/criticar colega (18)

Relação com colegas (13)

Divergência de conduta entre médicos (6)

■ Fim da vida (46 citações)

Pacientes com prognóstico reservado/doente terminal (20)

Eutanásia/distanásia (14)

Reanimação/não reanimação (7)

■ Condições de trabalho (28 citações)

Falta de recursos para atendimento de qualidade (7)

Demanda excessiva /tempo escasso (5)

Privacidade no local de atendimento (4)

■ Ensino médico (26 citações)

Discussão de caso em frente ao doente (5)

Priorizar o ensino em detrimento do paciente (2)

Alunos assumindo postura de médico responsável pelo paciente (2)

■ Interesse financeiro (23 citações)

Indicação de procedimentos cirúrgicos desnecessários para ganho pessoal (7)

Ganância/ambição de muitos médicos (5)

Cobrança de honorários apropriados (2)

■ Documentos médicos (20 citações)

Atestados (5)

Preenchimento de prontuário (4)

Relatórios médicos (2)

■ Relação médico-familiares (18 citações)

Postura/relacionamento frente à família (8)

Discutir diagnóstico com familiares (3)

Explicação aos responsáveis (3)

■ Pesquisa (17 citações)

Pesquisa clínica com humanos (7)

Pesquisa x atendimento: ambulatório apenas para sujeitos de pesquisa (4)

Pesquisa com animais (3)

■ Sigilo profissional (17 citações)

Quebra do segredo profissional (12)

Notificação de casos de violência (2)

Maus-tratos em crianças (2)

■ Pacientes com doenças crônicas ou muito graves (17 citações)

Fetos/RN com malformações graves (5)

Postura para dar notícias ruins (4)

Assistência a pacientes com doenças degenerativas sem cura (2)

■ Abortamento (16 citações)

Abortamento em geral (13)

Interrupção de gestação de malformados (3)

■ Acesso aos cuidados com a saúde (15 citações)

Acesso aos serviços de saúde (7)

SUS (5)

Ação judicial para medicamentos de alto custo (1)

■ Relação com outros profissionais da saúde (13 citações)

Relação entre profissionais (9)

Respeito à equipe multidisciplinar (2)

Falta de preparo de auxiliares e enfermagem (2)

■ Baixa remuneração (13 citações)

Aceitar trabalhar com baixa remuneração (7)

Remuneração justa (3)

Tabela de honorários (2)

■ Reprodução humana (12 citações)

Descarte de embriões criopreservados (4)

Doação de gametas humanos (2)

Criopreservação de gametas (2)

■ Relação com a indústria farmacêutica (11 citações)

Relação com laboratórios farmacêuticos (5)

Prescrição de medicações (3)

Utilização de medicação por indicação de laboratório (2)

■ Biotecnologia (10 citações)

Manipulação de embriões (4)

Organismos geneticamente modificados (3)

Diagnóstico pré-natal (2)

■ Aconselhamento genético (9 citações)

Aconselhamento genético (6)

Exames preditivos de doenças genéticas (2)

Prognóstico de doenças genéticas

■ Paciente sem recursos (7 citações)

Pacientes sem recursos (3)

Não integrar a doença com o contexto social (2)

Conflito entre prescrição ideal e disponibilidade de recursos para tratamento (1)

■ Transplantes (6 citações)

Transplantes (3)

Doação de órgãos (2)

Lista de transplante (1)

■ Discriminação (6 citações)

Preconceito (2)

Diferença do tratamento dado pelos médicos para pacientes ricos e pobres (2)

Discriminação no atendimento do pronto-socorro (1)

■ Procedimentos estéticos (2 citações)

Cirurgia plástica estética (1)

Insistência de paciente para procedimentos estéticos (1)

■ Meio ambiente (1 citação)

Meio ambiente e saúde (1)

DISCUSSÃO

Muitas das categorias acima apresentadas se referem a temas tradicionalmente abordados pela Bioética, especialmente pela Ética Médica. Neste sentido, é interessante uma comparação com dados acerca dos principais temas abordados por estas disciplinas em cada uma das escolas médicas do País. Todas as categorias construídas a partir das respostas dos nossos pesquisados estão contempladas em um levantamento publicado por Muñoz e Muñoz10, exceto uma: meio ambiente. Seria interessante que este tema, sem dúvida um dos mais importantes da Bioética, fosse introduzido nos cursos formais de ética.

Por outro lado, quatro dos 15 temas mais discutidos em cursos formais de ética nas escolas médicas brasileiras não foram mencionados por nossos pesquisados:

1. exercício lícito e ilícito da medicina;

2. princípios da Bioética;

3. Comissões de Ética e Conselhos de Medicina;

4. bases filosóficas da Moral.

Podemos admitir que dois destes temas ("princípios da Bioética" e "bases filosóficas da Moral") sejam vistos pelos pesquisados como demasiadamente teóricos, sendo, por isso, mais indicados para discussão em cursos formais de ética. Isto estaria em acordo com o que encontramos na literatura acerca dos cursos de ética11, que devem apresentar ao estudante conceitos filosóficos críticos para o exercício da medicina baseado em princípios éticos, ajudando assim a desenvolver o componente cognitivo (sensibilidade e raciocínio) da conduta moral. Os outros dois temas ("exercício lícito e ilícito" e "Comissões de Ética e Conselhos de Medicina") talvez sejam vistos como estritamente ligados à esfera legal e pouco adequados à discussão prática (o que seria um profundo equívoco, especialmente no que se refere às atribuições das Comissões de Ética Hospitalar e ao funcionamento dos Conselhos Regionais e Federal de Medicina).

O tema "relação médico-paciente" foi o mais citado pelos pesquisados (81 cotações). Cabe aqui salientar a menção feita ao respeito e à falta de atenção para com o paciente. Ainda que discutido desde as origens da filosofia ocidental na Grécia Antiga, o respeito pelas pessoas foi colocado no centro da teoria moral pelo filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804) e, a partir de então, tornou-se o eixo central do humanismo moderno e um dos pilares das sociedades democráticas liberais. Em seu livro Fundamentos da Metafísica dos Costumes, Kant propõe uma célebre lei moral, à qual devemos obedecer incondicionalmente (imperativo categórico): "Age de maneira tal que trates a humanidade, tanto na tua pessoa como na de qualquer outro, sempre como um fim e nunca apenas como um meio"12. Para respeitarmos uma pessoa, para a tratarmos como um fim em si mesma, é preciso, antes de tudo, conhecê-la, atentar para suas particularidades e compreender seus objetivos. Este esforço para a compreensão, esta atenção redobrada são justamente a demonstração de respeito a que todas as pessoas, incondicionalmente, fazem jus.

Segundo o Dicionário Houaiss13, a palavra respeitar vem do latim respectare, que significa "tomar interesse em" ou "se ocupar de". Assim, no contexto desta pesquisa, respeitar poderia significar que, ao se ocupar do paciente, o médico deveria tratá-lo com civilidade, reconhecê-lo em sua alteridade como pessoa autônoma e fazer justiça a esta condição, atuando no sentido de ajudar os pacientes a consolidarem seus interesses legítimos.

Dentro da categoria temática "prática médica" (68 citações), é interessante notar um aparente paradoxo que surge com certa frequência nas discussões acerca da Medicina Baseada em Evidências14: enquanto 12 dos pesquisados se mostram preocupados com o "uso de terapias de eficácia não comprovada", outros dois indivíduos mencionam a restrição que a prática médica pode sofrer a partir do seguimento automático deguidelines, que são diretrizes para condutas clínicas baseadas nas melhores evidências científicas disponíveis. O conhecimento destas diretrizes deve ser mandatório, mas caberá sempre ao médico a responsabilidade de avaliar se determinado paciente apresenta características que possam sugerir uma conduta diferenciada. Na opinião de um de seus pioneiros15, praticar a Medicina Baseada em Evidências significa aliar a experiência individual à melhor evidência externa disponível a partir da pesquisa sistemática. Sem experiência clínica, a prática médica corre o risco de se tornar tiranizada pela evidência, já que até mesmo evidências externas excelentes podem não ser aplicáveis a determinado paciente. E sem a melhor evidência científica disponível, a prática médica corre o risco de se tornar ultrapassada, em detrimento do paciente.

Outro ponto a discutir em relação aos resultados da pesquisa é o da menção feita a situações relativas às condições de trabalho do médico. Se tomadas em conjunto, as categorias temáticas "condições de trabalho" e "baixa remuneração" somam 41 citações, o que as colocaria muito próximas às categorias mais citadas pelos pesquisados. De fato, as causas para a chamada desumanização da medicina podem ser encontradas tanto na formação médica e no declínio da filosofia humanista na sociedade contemporânea, como também em fatores inerentes ao mercado de trabalho na área da saúde16.

A ênfase dada a este tema pelos participantes da pesquisa revela, antes de tudo, certa angústia com um ambiente de trabalho inapropriado para sua atividade profissional e com uma remuneração injusta para a responsabilidade que têm os médicos. Tal angústia é, sem dúvida, justificável. Entretanto, o destaque dado às condições de trabalho como problema a ser discutido com os futuros médicos pode significar também um alerta dos pesquisados quanto a possíveis "desculpas" em relação a práticas eticamente reprováveis. Ou, ainda, uma possível justificativa dada pelos pesquisados em relação à crítica de uma medicina desumanizada. Um dos meios mais utilizados para o "desengajamento moral" (isto é, a transformação de atos francamente danosos em atos moralmente justificáveis) é exatamente o expediente de atribuir culpa às circunstâncias17. Assim, o médico poderia estar tentado a justificar certos comportamentos eticamente inadequados por meio de condições de trabalho e remuneração inapropriadas.

Contudo, o objetivo de discutir este tema com estudantes de Medicina não deve ser o de lhes fornecer desculpas antecipadas para eventuais deslizes éticos, mas, antes, o de abrir-lhes os olhos para fatores que podem limitar sua futura atuação profissional e contra os quais devem lutar não só os médicos, mas também toda a sociedade. Tais limitações, entretanto, não são impeditivas para um atendimento decente por parte do profissional. Chamar o paciente pelo nome, cumprimentá-lo com um "bom-dia" ou um aperto de mãos e olhá-lo nos olhos não toma tanto tempo e nem depende de recursos materiais adequados no ambiente de trabalho.

Se, por um lado, a menção frequente das condições de trabalho pode deixar transparecer certo corporativismo por parte dos pesquisados (lembrando que 86,7% deles são médicos), por outro lado, os participantes não hesitaram em apontar interesses financeiros escusos por parte dos médicos (23 citações) como problema ético a ser discutido com os estudantes.

Gostaríamos de salientar, ainda, o aparecimento de uma categoria que não é encontrada amiúde entre os temas discutidos pela Bioética e pela Ética Médica: o próprio ensino médico (26 citações). Este é um tema que vem sendo crescentemente discutido no mundo inteiro e, em particular, no Brasil, sendo objeto de congressos e encontros científicos patrocinados por diversas instituições, destacando-se a Associação Brasileira de Educação Médica (Abem) e os Conselhos Regionais de Medicina.

Os relacionamentos professor-paciente-aluno, professor-aluno, professor-professor e aluno-aluno foram mencionados como importantes tópicos a serem discutidos. O ambiente onde se dá o processo de ensino-aprendizagem tem grande influência na conduta moral do estudante18, e o engajamento docente pode tornar tal ambiente mais ou menos adequado à opção por atos moralmente desejáveis. Assim, se, de fato, o desenvolvimento moral ocorre durante toda a vida19, tanto os professores como os estudantes estarão vivenciando este mesmo processo. Com isso, a discussão entre professores e estudantes de aspectos relacionados ao ensino médico (como a discussão de casos em frente ao paciente e a priorização do ensino em detrimento das necessidades do paciente) pode ser uma fonte interessante para o desenvolvimento moral de ambos.

Chama a atenção o fato de temas relacionados às novas tecnologias (reprodução assistida, biotecnologia, aconselhamento genético, etc.) terem recebido relativamente poucas citações. Parece que, na opinião dos sujeitos da pesquisa, as chamadas situações persistentes da Bioética (como o relacionamento entre os diferentes atores) devem ter prioridade em relação às situações emergentes20 na discussão com os estudantes. Podemos concluir que a percepção dos pesquisados vai ao encontro da crítica feita pela sociedade quanto à deterioração da relação médico-paciente. Cabe ressaltar, entretanto, que o Brasil possui um sistema de assistência à saúde bastante complexo e que, mesmo não tendo conseguido sanar deficiências básicas, oferece de forma cada vez mais ampla tecnologias de ponta, seja na esfera pública, seja na privada. Além disso, vivemos numa superposição epidemiológica na qual temos de lidar tanto com problemas de saúde dos países desenvolvidos (doenças crônico-degenerativas) como com aqueles pertinentes apenas ao mundo subdesenvolvido (mortalidade infantil elevada, malária, etc.). Assim, a influência que as novas tecnologias devem causar em nossa sociedade não será tão diferente daquela percebida no mundo desenvolvido, sendo por isso oportuna a discussão destes temas com os estudantes a fim de melhorar a compreensão acerca do impacto sociocultural e das implicações éticas dessas novas tecnologias.

Por fim, cabe destacar que três sujeitos da pesquisa registraram uma mesma resposta para esta questão: "Área Básica: não se aplica". Outros participantes que atuam na Área Básica não deram qualquer resposta. Será, então, que os professores das ciências básicas não têm como participar de discussões éticas com os estudantes de Medicina a fim de estimular o desenvolvimento moral dos futuros médicos? Tal idéia não nos parece correta. Além da disciplina que ministram, professores da Área Básica trocam informações (explícitas ou subliminares) sobre a natureza da ciência e as ambiguidades do trabalho científico. Na medida em que a prática médica atual é fortemente centrada nos avanços da tecnociência, é imprescindível que os estudantes possam refletir acerca das diferentes concepções de ciência e de suas incertezas21. Além disso, é sempre válido lembrar que, num grupo de estudantes de Medicina, muitos se dedicarão à pesquisa e que talvez não haja ninguém mais indicado para discutir a Ética em Pesquisa ou a Ética das publicações científicas do que os professores da Área Básica.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As situações de conflitos éticos apontadas por esta pesquisa podem ser exploradas mediante diferentes estratégias de ensino-aprendizagem. Uma vez que tais situações surgiram da prática dos sujeitos da pesquisa, uma estratégia interessante seria a abertura de espaços formais para sua discussão dentro de cada disciplina ou módulo de ensino. Sem dúvida, o curso médico é rico em situações reais de conflitos éticos. A exploração dessas situações por professores devidamente sensibilizados e preparados talvez possa ser considerada o "padrão ouro" para ajudar no desenvolvimento moral dos alunos. A discussão deste tipo de situação prática (cuja resolução efetiva é uma exigência para a condução satisfatória de inúmeros casos), especialmente se realizada em pequenos grupos, é considerada ideal por boa parte da literatura especializada para promover uma aprendizagem significativa no âmbito da ética22,23.

Contudo, e apesar de algumas exceções24, estudos empíricos detectaram uma estagnação (e até mesmo uma regressão) no raciocínio moral dos estudantes de Medicina durante a graduação25,26. É possível que o conjunto de formadores não esteja suficientemente sensibilizado para explorar em profundidade as inúmeras situações de conflitos éticos que ocorrem ao longo de um curso. Ocorre que aqueles que exercem, ao mesmo tempo, funções de assistência e de docência têm uma responsabilidade particularmente maior num momento em que a sociedade demonstra insatisfação com o preparo dos médicos no âmbito da Ética e do Humanismo27. Caberia às escolas médicas estimular as diferentes disciplinas e módulos de ensino a abrirem espaços formais para estas discussões e investir na conscientização e no preparo do corpo docente para o papel central que representam na formação ético-moral dos estudantes.

Recebido em: 21/03/2007

Reencaminhado em: 23/01/2008

Aprovado em: 30/04/2008

CONFLITO DE INTERESSES: Declarou não haver

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    Aluisio Marçal de Barros Serodio
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Jun 2009
    • Data do Fascículo
      Mar 2009

    Histórico

    • Revisado
      23 Jan 2008
    • Recebido
      21 Mar 2007
    • Aceito
      30 Abr 2008
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