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Pedagogia da Libertação: o caso do ensino médico

For a Pedagogy of Liberation: the case of medical education

Resumos

A redemocratização brasileira vem promovendo mudanças na educação e nas práticas médicas, que ainda se encontram aquém da realidade e das necessidades nacionais. As escolas médicas não conseguem desenvolver um novo modelo que permita superar esse estágio de insatisfação da sociedade e de seus alunos. A violência escolar perpetrada por suas práticas pedagógicas e educacionais não permite o desenvolvimento de um ambiente satisfatório ao processo ensino-aprendizagem: burocracia, excesso de regulamentações, ausência de diálogo e de instâncias participativas, imposição de conteúdos e disciplinas, arquitetura (muros, grades, catracas e sirenes) tornam professores e alunos reféns do discurso da ordem e da produtividade. Não é mais possível admitir e permitir que o cotidiano da escola opere completamente à revelia dos anseios de seus atores constitutivos. A escola, por meio de seus gestores, precisa trabalhar no fortalecimento da sua capacidade de transformação, de autocrítica e aperfeiçoamento, assim como espera de seus estudantes. Não há democracia sem emancipação, sem uma formação que permita aos sujeitos uma atuação crítica, política e ética.

Educação médica; Ética; Humanismo


The redemocratization of Brazil has led to changes in medical education and practice, which are nevertheless still out of step with the country's reality and needs. Medical schools have proven incapable of developing a new model that allows them to overcome this stage of dissatisfaction by society and their students. The violence practiced in school through its pedagogical and educational practices impedes the development of a satisfactory environment for the teaching-learning process, with excessive red tape, rules and regulations, absence of dialogue and participatory spaces, imposition of contents and disciplines, inappropriate architecture (walls, gratings, turnstiles, and sirens), leaving faculty and students hostage to the discourse of order and productivity. It is no longer conceivable to allow the school's daily routine to proceed in complete disaccord with the wishes of its various constituents. The school, through its administrators, needs to work to strengthen its capacity for change, self-criticism, and improvement, just as it expects of its students. There is no democracy without emancipation, without a pedagogy that allows subjects to act critically, politically, and ethically.

Medical education; Ethics; Humanism


ENSAIO

Pedagogia da Libertação: o caso do ensino médico

For a Pedagogy of Liberation: the case of medical education

Valdi Lopes Tutunji

Faculdade Atenas, Paracatu, Minas Gerais, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Rua Angelo Monteiro da Silva, 226. Cidade Nova - Paracatu CEP.: 38600-000 MG E-mail: antibios@antibios.org

RESUMO

A redemocratização brasileira vem promovendo mudanças na educação e nas práticas médicas, que ainda se encontram aquém da realidade e das necessidades nacionais. As escolas médicas não conseguem desenvolver um novo modelo que permita superar esse estágio de insatisfação da sociedade e de seus alunos. A violência escolar perpetrada por suas práticas pedagógicas e educacionais não permite o desenvolvimento de um ambiente satisfatório ao processo ensino-aprendizagem: burocracia, excesso de regulamentações, ausência de diálogo e de instâncias participativas, imposição de conteúdos e disciplinas, arquitetura (muros, grades, catracas e sirenes) tornam professores e alunos reféns do discurso da ordem e da produtividade. Não é mais possível admitir e permitir que o cotidiano da escola opere completamente à revelia dos anseios de seus atores constitutivos. A escola, por meio de seus gestores, precisa trabalhar no fortalecimento da sua capacidade de transformação, de autocrítica e aperfeiçoamento, assim como espera de seus estudantes. Não há democracia sem emancipação, sem uma formação que permita aos sujeitos uma atuação crítica, política e ética.

Palavras-chave: Educação médica; tendências; Ética; Humanismo

ABSTRACT

The redemocratization of Brazil has led to changes in medical education and practice, which are nevertheless still out of step with the country's reality and needs. Medical schools have proven incapable of developing a new model that allows them to overcome this stage of dissatisfaction by society and their students. The violence practiced in school through its pedagogical and educational practices impedes the development of a satisfactory environment for the teaching-learning process, with excessive red tape, rules and regulations, absence of dialogue and participatory spaces, imposition of contents and disciplines, inappropriate architecture (walls, gratings, turnstiles, and sirens), leaving faculty and students hostage to the discourse of order and productivity. It is no longer conceivable to allow the school's daily routine to proceed in complete disaccord with the wishes of its various constituents. The school, through its administrators, needs to work to strengthen its capacity for change, self-criticism, and improvement, just as it expects of its students. There is no democracy without emancipation, without a pedagogy that allows subjects to act critically, politically, and ethically.

Key words: Medical education; trends; Ethics; Humanism

O mal não está tanto em ser este ou aquele quem nos governe, mas o fato de sermos governados. Que importa que o poder emane do seio da nação, se é sempre poder? E a tirania, porque somos nós que a criamos, deixa de pesar menos por isso, de ferir, de rebaixar a nossa dignidade de homens livres? Não é pois na substituição da ditadura que está o segredo das revoluções, mas na extinção total da ditadura. A ditadura é a unidade política, a centralização dos poderes; é sistemática, legal, organizada, destruindo a ordem natural com o pretexto da ordem política, esmagando toda a iniciativa, toda a individualidade, toda a nobreza, reduzindo uma nação ao estado de um rebanho paciente e uniforme que, por única consolação, se deixa à mercê do direito de eleger o pastor que o guia e o cão que, às dentadas, o faz entrar na forma.

Antero de Quental

No contexto da redemocratização brasileira, que vem promovendo avanços na garantia dos direitos constitucionais por meio de mudanças nas relações sociais, na educação e nas práticas médicas, podemos situar o atual momento da educação médica como aquém da realidade e das necessidades sociais e políticas nacionais.

Sob esta ótica, o processo de definição das diretrizes curriculares foi um exercício de democracia, que se abriu à participação de todos os envolvidos e, baseado em uma nova dialética, estabeleceu competências para um exercício profissional não autoritário, capaz de estabelecer condutas e intervenções com a participação ativa do paciente1.

No entanto, as escolas médicas, dependentes da vontade política de seus gestores e docentes, não conseguiram desenvolver um novo modelo de formação que permitiria superar o estágio de insatisfação da sociedade e de seus alunos.

Atualmente, o discurso que permeia a ciência da educação valoriza o exercício da reflexão por parte do professor e da escola (dirigentes, supervisores, coordenadores, orientadores) principalmente sobre as consequências de suas ações no dia-a-dia escolar, que influenciam profundamente o processo ensino-aprendizagem e o indivíduo (cidadão, profissional) que se constituirá nesse processo. Observa-se, no entanto, que professores e gestores ainda não conseguem identificar as fontes de violência escolar, perpetradas por sua própria prática diária, sob o pretexto da perfeita ordem e ótima produtividade2.

Violência escolar é uma das modalidades da violência institucional que se define como "toda e qualquer ação cometida dentro de uma instituição, ou toda ausência de ação que cause ao aluno um sofrimento físico ou psicológico inútil e/ou bloqueie seu desenvolvimento posterior3.

As ciências psicológica e pedagógica, orientadoras da prática do cotidiano escolar, em muitos casos, se prestam à justificação da violência imposta aos alunos, sob o disfarce do discurso competente. Estas ciências fornecem receitas e técnicas sobre como proceder e lidar com os alunos. Mas uma técnica educativa pronta e acabada é por si só um paradoxo. Ela transforma as escolas em indústrias de ensino dependentes de interesses políticos individuais e econômicos4.

Nesse contexto, várias possibilidades se apresentam quando nos defrontamos com o fenômeno da violência escolar: burocracia, excesso de regulamentações, ausência de diálogo e de instâncias participativas, imposição de conteúdos, disciplinas e professores, arquitetura (muros, grades, catracas e sirenes)5. A exigência de ordem e disciplina que aproxima escola e indústria, mediante ações pré-programadas, obedece aos moldes das ações braçais, fragmentadas e sem sentido, destituindo o pensamento de sua dimensão necessária de liberdade4. Desse cenário conhecemos os efeitos reativos concretos: indisciplina, turbulência, apatia, confrontos, ameaças e depredação, consolidando um ambiente impróprio ao aprendizado5. Assim, por si só, pode-se inferir a importância do ambiente escolar e das relações que nele ocorrem, tornando esse processo prazeroso ou não6.

Hoje, observa-se, frequentemente, que a escola e seus atores constitutivos, principalmente o professor e os alunos, tornam-se reféns de um excesso de determinações, restando-lhes apenas sentimentos de resignação, desconforto, desinteresse e desincumbência perante os efeitos da violência no cotidiano5. Em todos os casos em que o discurso competente é imposto irrefletidamente, o processo educativo e os meios para alcançá-lo se desarticulam4.

Nesse ambiente ordenado, mas desarticulado de sua função de educar, emerge um profissional médico a quem foi negada a participação na construção de seu próprio futuro. O que esperar quando ele precisar, ao exercer sua profissão, democraticamente escutar o outro? O aluno, cidadão, precisa conhecer a realidade física, social, política e cultural em que estuda e vive. Essa articulação entre as atividades educacionais e a realidade que o cerca permitirá ao aluno compreender melhor o meio em que tem de viver e atuar7.

Vygotsky8, ao destacar a importância das interações sociais, formula a ideia da mediação e da internalização como aspectos fundamentais à aprendizagem, defendendo que a construção do conhecimento ocorre a partir de um intenso processo de interação entre as pessoas. Assim, é a partir de sua inserção no cotidiano que o aluno, por meio da interação social com as pessoas que o rodeiam, constrói uma base que alicerçará sua conduta para a vida futura. Apropriando-se das práticas vivenciadas, ele vai evoluindo. Nesse sentido, destacam-se a importância e a responsabilidade da escola não somente no processo de construção do conhecimento, mas também na constituição do próprio sujeito e de suas formas de agir.

A escola, enquanto fornecedora do ambiente onde essas relações ocorrerão, deve pensar prioritariamente no aluno como sujeito da aprendizagem, apoiado no professor como facilitador e mediador do processo ensino-aprendizagem. Esse processo participativo deve, tornando-se agradável, despertar o interesse mútuo, propiciando o crescimento de ambos. Nesse ambiente, a aula evoluirá, então, de mero encontro em um espaço físico, com frequência e duração predeterminadas, para o momento onde e quando seres humanos se defrontam, comunicando-se e se influenciando mutuamente.

O bem-estar decorrente dessas relações maduras, estabelecidas entre os diversos atores envolvidos no processo ensino-aprendizagem, em um ambiente socioemocional saudável, propicia e potencializa a assimilação dos conteúdos, possibilitando que se atinjam os objetivos da educação superior: ENSINO com participação qualificada, socialmente responsável, dotada de discernimento crítico; PESQUISA original, promovida por docentes e estudantes; EXTENSÃO voltada às necessidades da sociedade.

Essa formação médica, crítica e reflexiva, baseada na construção coletiva de práticas educacionais e pedagógicas, ultrapassa os limites da sala de aula e influencia condutas individuais, proporcionando a formação de um profissional orientado por princípios democráticos, éticos e humanistas.

Não é mais possível admitir e permitir que o cotidiano da escola opere completamente à revelia dos anseios de seus atores constitutivos. Em um mundo globalizado e democrático, sua ação não pode mais ocorrer atrelada a determinações macroestruturais abstratas5, dependentes dos interesses de oligarquias.

Conforme Guimarães9, a instituição escolar não pode mais ser vista apenas como reprodutora e perpetuadora das experiências de opressão, de violência e de conflitos, originadas fora dos seus muros. É importante saber que a escola também produz sua própria violência e sua própria indisciplina.

Qualquer instituição de ensino que realmente objetive o desenvolvimento de seus alunos deveria reconhecer que proporcionar um aprendizado com prazer e criatividade é premissa básica para desenvolver os princípios de liberdade, democracia e transformação. Pensar o ensino médico no contexto atual exige a ousadia de não se enquadrar às demandas de velhos modelos de aprendizagem e a lucidez de encontrar, em situações concretas, suas potencialidades de formação10.

A educação é um espaço natural de conflitos e de compromissos, palco das grandes batalhas sobre o que as instituições devem fazer, a quem devem servir e sobre quem deve tomar essas decisões11. Uma educação sem a participação dos indivíduos é opressiva e repressiva. A única possibilidade que existe é tornar tudo isso consciente na educação, pois o indivíduo só sobrevive enquanto núcleo impulsionador da resistência12.

A abordagem progressista da educação propõe, assim, o diálogo e a construção coletiva como fontes geradoras do aprendizado crítico e reflexivo, considerando o aluno um parceiro. A participação ativa do aluno nos processos que estabelecem suas tarefas de aprendizagem facilita a convivência comunitária e desenvolve o sentimento de confiança no grupo13.

Com as novas diretrizes curriculares em vigor, em breve esperamos fazer avançar o processo de democratização das escolas médicas, com ampla renegociação das relações de autoridade entre professores, alunos e escola. Com esta nova realidade formaremos profissionais aptos para lidar com as diferenças de gênero, etnia, cultura, valores e representações sobre o processo saúde/doença, passo indispensável à obtenção da integralidade e da equidade em saúde.

A escola, por intermédio de seus gestores, precisa trabalhar no fortalecimento da sua capacidade de transformação, de autocrítica e aperfeiçoamento, de forma análoga à que espera de seus estudantes1. Que tipo de ações essa nova escola oferecerá ao aluno para desenvolver um pensar que não se reduza à ordem imposta, que possa fazer avançar o processo educativo em direção à autonomia e ao desenvolvimento das qualidades do sujeito, permitindo-lhe o exercício da reflexão? Não há democracia sem emancipação, sem uma formação que permita aos sujeitos uma atuação crítica, política e ética12.

Recebido em: 08/11/2008

Aprovado em: 07/03/200

CONFLITO DE INTERESSES

Declarou não haver.

  • 1. Aguiar ACA. Implementando as novas diretrizes curriculares para a educação médica: o que nos ensina o caso de Harvard? Interface Comun Saúde Educ. 2001; 5(8) 161-166.
  • 2. Koehler SMF. Violência psicológica: um estudo da relação professor-aluno. Anais do Congreso Internacional sobre la nueva alfabetización: un reto para la educación del siglo XXI. Coimbra, Portugal, 2003.
  • 3. Tomkiewicz S. Violences dans les institutions pour enfantes à l'école et à l'hôpital. In: Manciaux M (org.). Enfances en danger. Paris: Fleurus 1997
  • 4. Maia AF. Notas sobre ideologia e Educação. Interface Comun Saúde Educ. 1998; 2(3)23-34.
  • 5. Aquino JG. A violência escolar e a crise da autoridade docente. Cadernos Cedes 1998; 19 (47)7-19.
  • 6. Masetto MT. Aulas vivas: tese (e prática) de livre docência. São Paulo: MG Editora, 1992.
  • 7. Nerici I. Metodologia de ensino. S.Paulo: Atlas, 1989.
  • 8. Vygotsky LS. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
  • 9. Guimarães AM. Indisciplina e violência: ambiguidade dos conflitos na escola. In: Aquino JG (org.). Indisciplina na escola: alternativas teóricas e práticas. São Paulo: Summus, 1996.
  • 10. Batista SHS. A interdisciplinariedade no ensino médico. Rev Bras Educ Méd. 2006; 30(1)39-46.
  • 11. Apple MW. "Endireitar" a educação: as escolas e a nova aliança conservadora. Currículo sem Fronteiras 2002; 2(1)55-78.
  • 12. Adorno TW. Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.
  • 13. Rodríguez CA; Neto PP; Behrens MA. Paradigmas educacionais e a formação médica. Rev Bras Educ Méd 2004; 28(3)234-241.
  • Endereço para correspondência:

    Rua Angelo Monteiro da Silva, 226.
    Cidade Nova - Paracatu
    CEP.: 38600-000 MG
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Nov 2009
    • Data do Fascículo
      Set 2009

    Histórico

    • Recebido
      08 Nov 2008
    • Aceito
      07 Mar 2000
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