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Identidades profissionais na implantação de novas práticas assistenciais

Professional Identities in the construction of new health service practices

Resumos

A necessidade de mudanças nos processos de trabalho, na gestão e na formação de recursos humanos é amplamente reconhecida e acompanhada de críticas à inércia do aparelho formador, particularmente às universidades, onde existe grande resistência e dificuldade de mudanças, e onde permanecem sendo formados profissionais que realimentam modelos assistenciais que algumas reformas buscaram superar. Em sociedades com a presença de um mercado de trabalho regulamentado e onde o sistema de saúde e a organização profissional são complexos e estruturados, as modalidades assistenciais, as competências profissionais e a organização tecnológica do trabalho são fatores delimitadores da inserção profissional. Este trabalho analisa a identidade profissional médica e sua construção, o papel que a formação médica desempenha neste contexto e a importância da prática profissional na complementação e consolidação desta identidade.

Certificação; formação de recursos humanos; educação médica; prática profissional; profissões em saúde


The need for changes in labor processes and in the management and training of human resources is widely recognized and the inertia of the educational institutions in this context is being criticized. This is particularly true for universities and medical schools, which present difficulties and strong resistance against changes and continue graduating professionals who nourish health service models that several reforms have sought to overcome. In societies with regulated work markets and where health care systems and professional organizations are complex and structured, different kinds of health services, professional knowledge and technological organization of work are essential components of professional insertion. This study analyzes the identity of the medical professional and its construction, the role that medical education plays in this context and the importance of professional practice in the complementation and consolidation of this identity.

Certification; models educational; education medical; professional practice; health professions


ARTIGOS NOVOS

ENSAIO

Identidades profissionais na implantação de novas práticas assistenciais

Professional Identities in the construction of new health service practices

Maristela Chitto Sisson

Universidade Federal de Santa Catarina. Hospital Universitário Ernani Polydoro São Thiago, Santa Catarina, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Maristela Chitto Sisson Tv. Erotides Maria Oliveira, 116 Lagoa da Conceição CEP. 88062-170 – Florianópolis – SC E-mail: mcs@mbox1.ufsc.br

RESUMO

A necessidade de mudanças nos processos de trabalho, na gestão e na formação de recursos humanos é amplamente reconhecida e acompanhada de críticas à inércia do aparelho formador, particularmente às universidades, onde existe grande resistência e dificuldade de mudanças, e onde permanecem sendo formados profissionais que realimentam modelos assistenciais que algumas reformas buscaram superar. Em sociedades com a presença de um mercado de trabalho regulamentado e onde o sistema de saúde e a organização profissional são complexos e estruturados, as modalidades assistenciais, as competências profissionais e a organização tecnológica do trabalho são fatores delimitadores da inserção profissional. Este trabalho analisa a identidade profissional médica e sua construção, o papel que a formação médica desempenha neste contexto e a importância da prática profissional na complementação e consolidação desta identidade.

Palavras-chave: Certificação; formação de recursos humanos; educação médica; prática profissional; profissões em saúde.

ABSTRACT

The need for changes in labor processes and in the management and training of human resources is widely recognized and the inertia of the educational institutions in this context is being criticized. This is particularly true for universities and medical schools, which present difficulties and strong resistance against changes and continue graduating professionals who nourish health service models that several reforms have sought to overcome. In societies with regulated work markets and where health care systems and professional organizations are complex and structured, different kinds of health services, professional knowledge and technological organization of work are essential components of professional insertion. This study analyzes the identity of the medical professional and its construction, the role that medical education plays in this context and the importance of professional practice in the complementation and consolidation of this identity.

Keywords: Certification; models educational; education medical; professional practice; health professions.

INTRODUÇÃO

Múltiplas forças sociais, atuando desde perspectivas diversas, constituem o espaço dinâmico e complexo que é o campo do desenvolvimento de recursos humanos em saúde, constituído por dois componentes fundamentais e estreitamente relacionados: o da formação e o do trabalho em saúde.

A necessidade de mudanças nos processos de trabalho, na gestão e na formação de recursos humanos é amplamente reconhecida e acompanhada de críticas à inércia do aparelho formador, particularmente às universidades, onde existe grande resistência e dificuldade de mudanças, e onde permanecem sendo formados profissionais que realimentam modelos assistenciais que algumas reformas buscaram superar. As críticas concentram-se na educação médica, embora digam respeito também à formação dos demais profissionais1.

Apesar de estas críticas se dirigirem notadamente ao sistema de ensino, produtor formal de mão-de-obra para o mercado de trabalho, o serviço de saúde, como natural e maior empregador desse contingente, desempenha relevante papel na determinação das necessidades de profissionais competentes. Em decorrência disso, a escassez no mercado de trabalho de profissionais com perfil de formação compatível com as exigências dos novos modelos de atenção à saúde (como, por exemplo, no caso do Brasil, o Programa de Saúde da Família2,3), geradores de reorganização nos serviços, impõe projetos educacionais voltados à superação dos problemas encontrados ou surgidos no cotidiano do exercício profissional. Tais problemas não podem ficar a cargo exclusivo do Sistema de Saúde, mas devem ser compartilhados pelas escolas e universidades4.

Na medida em que, no País, a constituição do Sistema Único de Saúde (SUS) representa uma estratégia de transformação do Sistema de Saúde, é necessário direcionar o processo e definir as grandes políticas e estratégias em atenção ao modelo escolhido. O investimento em políticas de Recursos Humanos deve criar condições para a mudança no Sistema de Saúde e para aumentar a capacidade crítica e analítica dos profissionais, a fim de definir a prática técnica que melhor possa atender aos problemas de saúde da população.

A análise dos processos de reformas de sistemas e serviços de saúde mostra que o objetivo da maioria delas é a adequação quantitativa e qualitativa da formação e capacitação de recursos humanos (técnicos e gerenciais) para atender novas realidades dos serviços saúde5. A deficiência de profissionais com perfil adequado ao enfrentamento das novas necessidades do setor saúde e a falta de integração estrutural que impede a formação de recursos apropriados são apontados por alguns como problemas centrais das reformas6.

Na região das Américas, o setor educacional e as universidades, em particular, continuam desvinculados da reorganização dos serviços, da redefinição das práticas de atenção e dos processos de reforma. No entanto, ou há demonstrações de ausência, por parte do próprio setor de serviços de saúde, de propostas consistentes de mudança na formação de recursos humanos, ou as propostas têm baixa visibilidade e impacto.

Mais recentemente, se está ampliando e aprofundando o campo do desenvolvimento de recursos humanos em saúde. Isto vem ocorrendo por meio da incorporação de questões que anteriormente não eram consideradas de maior relevância, como as relativas aos processos de trabalho e de gestão. O aprofundamento vem se dando mediante a concepção de recursos humanos como sujeito social, situado historicamente no interior de complexas estruturas sanitárias e sociais.

No que diz respeito à prática médica, considerada central, com exceção de recentes avanços no Brasil, não aparecem propostas de intervenção consistentes a esse respeito nas agendas das reformas dos serviços de saúde da maioria dos países latino-americanos. Isto, apesar de autores apontarem a influência decisiva e até mesmo determinante da ação da categoria junto às esferas de decisão das políticas de saúde e nos próprios processos de trabalho de um mercado heterogêneo onde os médicos criam e recriam suas condições de autonomia7-9.

Uma questão importante refere-se ao aparelho formador, ou seja, à universidade, que deveria comprometer-se, seja por meio da participação ativa no sistema de saúde, seja por meio da formação de recursos humanos para a realidade sanitária do País, seja para as necessidades do Sistema Único.

Nesse sentido, houve uma sucessão de debates em torno da convocação da I Conferência Mundial de Educação Médica, realizada em 1988, em Edimburgo. A Conferência, convocada em 1985 pela Federação Mundial de Educação Médica, considerava que sem o apoio ativo dos médicos é inconcebível realizar as mudanças nos sistemas de saúde preconizados pela estratégia da APS. E que o problema central das instituições formadoras e dos educadores médicos estava em como preparar os médicos para o papel que desempenharão em sistemas de saúde em transformação10.

Além deste, dois outros importantes eventos/processos internacionais no campo da educação médica – a Conferência Mundial de Educação Médica de Havana, em 1991, e a de Edimburgo, em 1993 – serviram para acumular conhecimentos e recursos de poder por parte de atores do movimento latino-americano de educação médica. Trata-se de acontecimentos que serviram como oportunidade para a construção e/ou divulgação das propostas de mudança11.

No Brasil, nos últimos anos, tem-se caminhado em direção a mudanças mais consistentes. Apesar de uma situação nitidamente desfavorável às universidades públicas, a conjuntura política na educação tem mostrado também alguns elementos favoráveis às mudanças. Em 2001, após três anos de discussão, o Conselho Nacional de Saúde aprovou as Diretrizes Curriculares Nacionais dos Cursos de Enfermagem, Medicina e Nutrição, e, em outubro do mesmo ano, foram homologadas as diretrizes para os cursos de Medicina.

A partir daí, cresceu um movimento de ativação de processos de mudança curricular, em busca da formação profissional ideal.

As bases destas mudanças passaram do domínio de políticas voltadas à gestão de recursos humanos, com uma visão de que o mercado de trabalho exclusivamente condiciona e determina as características do aparelho formador, particularmente da medicina, para uma visão que considera as várias interfaces entre mercado de trabalho ou prática profissional e estrutura acadêmico-administrativa dos cursos ou prática educativa.

Nos processos europeus de mudança na formação profissional, o profissionalismo e a autonomia médica estão contemplados entre os principais temas das agendas dos países. Já na América Latina, há abundância de prescrições a respeito do que políticas de reforma devem introduzir no campo de formação de recursos humanos, mas pouca atenção é dada a como os países vão levar estas questões adiante. A este respeito, alguns autores12 assinalam um alerta, apontando que muitas políticas de saúde concentram sua atenção no conteúdo da reforma e negligenciam os sujeitos sociais, os processos e os contextos em que as reformas são desenvolvidas. Um olhar sobre estas questões é fundamental para seu entendimento e operacionalização.

PROFISSÃO E IDENTIDADE PROFISSIONAL

Os modelos assistenciais implantados nos diferentes sistemas de saúde nas sociedades contemporâneas são influenciados e influenciam a organização das corporações profissionais, determinando a forma como os profissionais e as equipes se organizam e dividem seu trabalho e as práticas profissionais. Nesse sentido, em sociedades com a presença de um mercado de trabalho regulamentado e onde o sistema de saúde e a organização profissional são complexos e estruturados, as modalidades assistenciais, as competências profissionais e a organização tecnológica do trabalho são fatores delimitadores da inserção profissional. Sendo assim, quando ocorrem novas modalidades de serviços de saúde, a execução de novas propostas de práticas – a exemplo do PSF – exige "novos profissionais", novas construções identitárias.

A questão da identidade dos indivíduos e grupos sociais, na qual o processo de formação de identidades profissionais é um dos elementos de composição, tem se destacado como uma questão central nas discussões contemporâneas, no contexto das reconstruções globais das identidades nacionais e étnicas, e de emergência de novos movimentos sociais. As mudanças não ocorrem somente em escala global ou nacional e na arena política; a formação da identidade também ocorre nos níveis local e pessoal13.

No campo da identidade profissional, há autores que detectam um "renascimento do profissionalismo", como movimento de nova configuração das profissões na sociedade atual14.

O conceito de identidade, da perspectiva dos estudos culturais, pode ser extrapolado, em função de suas características, aos vários setores da vida em sociedade. Não é um conceito essencialista, no qual pertencer a determinado grupo é visto como fixo e imutável. É, antes, um conceito estratégico e posicional, ou seja, não assinala aquele núcleo estável do "eu" ou do sujeito que passa, do início ao fim da vida, sem qualquer mudança, ou de um "eu" coletivo capaz de ser uma "unidade" imutável que se sobrepõe a todas as outras diferenças – supostamente superficiais. Essa concepção aceita que as identidades nunca são unificadas: elas são, na modernidade tardia, cada vez mais fragmentadas e fraturadas; elas não são, nunca, singulares, mas multiplamente construídas ao longo de discursos, práticas e posições que se podem cruzar ou ser antagônicos. Estão sujeitas a uma historização radical, estando constantemente em processo de mudança e transformação15.

As identidades estão também vinculadas a condições sociais e materiais e se constroem e se mantêm por meio do processo social e da dimensão simbólica. Necessitam de explicação de abrangência psíquica para entender por que as pessoas assumem suas posições de identidade e se identificam com elas13.

Existe atualmente um processo de recomposição de identidades profissionais, e estas também não são categorias adquiridas para sempre: elas se constroem nas e pelas interações ao longo da vida. Elas se elaboram a partir de um percurso, de uma trajetória que desborda os limites do trabalho. Por isso, em uma mesma instituição, pessoas que realizam o mesmo trabalho podem construir identidades diferentes16.

Atualmente, autores convergem ao apontarem uma ampliação na explicação sociológica das profissões e das identidades profissionais, estendendo a análise à dimensão da participação humana na formação e transformação das relações e instituições sociais, a par de seus determinantes macrossociais. As sociedades modernas produzem uma pluralidade de centros, onde novas identidades podem emergir, novos sujeitos podem se expressar, e mudanças na natureza da prática profissional podem influenciar na construção destas identidades. A forma como os profissionais constroem essas identidades e se inserem em novas propostas de práticas envolve dimensões relativas a sua organização profissional.

A PROFISSÃO MÉDICA

Considerada uma profissão dominante, a medicina é avaliada por vários autores como protótipo do profissionalismo, se constituindo em anseio de todas as outras ocupações na área da saúde.

A noção tradicional da medicina como profissão, estudada desta forma desde os anos 1930 e compreendida até os anos 1970, era a de uma realidade estruturada com base nas características de seus profissionais, ou seja, como uma "especial" disposição pessoal de seus agentes – os médicos –, por isso não constituída num trabalho e num domínio de conhecimentos "especiais". Uma aproximação mais estrutural, a partir de então, está representada nos clássicos estudos de Freidson, de 1970, que abordam a autoridade médica, na qual a profissão adquire caráter de organização grupal e onde se desenvolvem questões de poder e de desigualdades nas relações.

O domínio da profissão médica representa uma interessante combinação entre conhecimento e poder, relativos a um consumo não informado de serviços médicos por um paciente passivo. O poder profissional depende, ao menos em parte, da habilidade de legitimar o valor científico de seu trabalho, proporcionando garantias de efetividade. Por outro lado, a forma pela qual as categorias de doenças são socialmente construídas é de fundamental importância para o status e o papel profissional na sociedade atual. A profissão médica tem se tornado a guardiã moral da sociedade contemporânea, por ter o domínio legítimo das categorias da normalidade e do desvio17.

Para Lain Entralgo18, a medicina moderna tem dois conceitos de doença – desordem orgânica e modo de viver – e não consegue unificar o conhecimento científico que vem obtendo a partir dessas duas concepções. Canguillem19 ao analisar estas dificuldades, aponta para o cuidado que é preciso ter quando se tomam como sinônimos normal e saúde, patológico e doença, pois, a rigor, normal é estar dentro das normas vitais definidas como adequadas àquele sujeito, inclusive a possibilidade de ficar doente e se recuperar.

A medicina moderna, se de um lado e como discurso dominante, afirma-se capaz de curar e prevenir as doenças, não consegue mais ignorar que só isso (que, no entanto, não é pouco) não será suficiente para realizar os objetivos que anuncia. Mas, justamente por sua forma de articulação social, refletida em seu corpo conceitual, não tem como pensar o biológico e o subjetivo historicamente, a não ser de forma desarticulada20.

As determinações históricas do saber médico e as condições de realização de sua prática é que determinam as suas variações. Mas a historicidade da medicina não pode ser reduzida a um ou outro elemento e deve ser tomada no seu conjunto, que se compõe pela forma de prestação de assistência, pela conformação do objeto ao qual se aplica, pelos meios de trabalho que utiliza para operar e pelo tipo e destino dos seus produtos21.

Freidson, ao analisar o domínio profissional médico, se baseia nas características de status e poder profissionais concedidos ao médico, aos quais se agregam as habilidades para usar o que se denomina "liberdade clínica". Destaca que estes atributos influenciam a organização de serviços de saúde e suas práticas. Apresenta o conhecimento e a autonomia profissionais como fatores que garantem o poder das profissões. O domínio profissional se dá claramente pela apropriação de um corpo de conhecimentos, aspecto fundamental do exercício do poder profissional, que permite suficiente escopo para interpretação do resultado, em relação ao qual o paciente ou cliente permanece relativamente ignorante e subordinado.

Existem diferenças entre as práticas médicas conforme a forma de atuação. O médico com prática de atendimento isolado constrói seu mundo particular de experiências clínicas e assume responsabilidade pessoal e individual pelo manejo de seus casos, baseado em uma mentalidade clínica caracterizada pelo individualismo como aspecto central na orientação e no comportamento profissional. Em decorrência disso, usa padrões próprios de avaliação de seu trabalho, com preponderância do papel que o cliente desempenha na relação com o profissional, em detrimento das normas atribuídas ao profissionalismo.

Por outro lado, os médicos de carreira mais acadêmica ou científica dão relevância ao conjunto de valores pautados na expertise – como a universalidade, a orientação coletivista e os méritos advindos da publicação de seus trabalhos – e na avaliação feita pelos pares. Os desempenhos profissionais, em função destas diferenças, serão regulados por valores variáveis conforme o tipo de trabalho desenvolvido pelo profissional e seus valores gerais, ao invés de utilizar um padrão uniforme de condutas internalizadas durante a socialização universitária de conteúdo altruísta. Em geral, a supervisão e a regulamentação são mais reconhecidas pelos que não trabalham com uma clientela leiga, como os acadêmicos.

Em suas pesquisas, o autor encontrou tensão e conflito nas relações entre médicos e clientes, em vez da imagem funcionalista de harmonia e complementaridade. Os médicos adotam posturas de afastamento em relação aos doentes e, ao mesmo tempo, pregam a indispensabilidade da cooperação destes com o tratamento. Os clientes prefeririam estar com profissionais mais envolvidos com seus problemas, além de obter mais informações sobre suas doenças, que os médicos relutam em fornecer. A posição social do cliente e o tipo de organização da prática médica são relevantes nos resultados obtidos nas negociações que caracterizam a relação médico-paciente.

Atualmente, são apontadas outras questões na prática profissional no que se refere às formas de controle da autonomia médica. Uma primeira tendência diz respeito à emergência de elites técnicas e administrativas; e a segunda se relaciona à emergência da aferição da efetividade das práticas médicas, assentadas em protocolos22.

A partir destes eixos, existe um questionamento sobre a centralidade da autonomia médica como baliza para se entender a dinâmica profissional, pelo abuso de suas prerrogativas, pelas falhas em controlar o próprio trabalho e pelos protestos dos usuários, e a constituição resultante do movimento de avaliação da qualidade dos serviços clínicos e de guias de condutas e protocolos, que podem facilitar a perda do controle sobre as atividades clínicas. Além disso, há questões relacionadas ao "ambiente regulatório" da prática, ou seja, das normas prescritas pelo governo e que atingem o médico. E também existem as questões da reconfiguração das várias profissões da saúde.

A FORMAÇÃO MÉDICA

Na discussão sobre a profissão médica, a questão da formação profissional desempenha um importante papel como fator de construção da identidade do profissional médico.

O debate sobre esta formação vai além da discussão sobre as bases técnicas de sua prática e inclui, além de aspectos inerentes às necessidades intersubjetivas de seu relacionamento com os clientes, valores, idéias e padrões adquiridos e compartilhados com a corporação a que pertencem e que orientarão sua atuação profissional futura23.

No marco teórico da educação médica apresentado por Garcia24, e com base em seus estudos, se confirma a teoria que valoriza a estrutura das relações que surgem no processo de ensino como fundamento de toda transformação educacional profunda.

Na medida em que a maneira de formar os médicos orienta a ordem institucional, se espera que mudanças neste modo de formação levem a transformações efetivas na maneira de organização da prática médica, apesar de se reconhecerem as influências que as características da escola possam ter, mesmo que de forma limitada, sobre o processo de produção de médicos. Este processo, porém, não é isolado, encontrando-se ainda estreitamente relacionado à estrutura econômica predominante na sociedade, em articulação e interação com outros processos, em especial com a prática médica.

A socialização de adultos ultrapassa os limites da educação e do treinamento e se desenvolve por meio de duas vias principais: aprendizado direto, mediante ensino didático de um ou outro tipo, e indireto, no qual atitudes, valores, padrões de comportamento são adquiridos como subprodutos do contato com instrutores e pares, com pacientes e com membros da equipe de saúde, fazendo da escola médica uma organização social que pode transmitir a forma mais duradoura de aprendizado25.

Para conhecer o processo de socialização profissional dos estudantes de Medicina, é preciso também examinar, de forma atenta, o aprendizado prático do aluno como componente essencial da transformação do aluno em médico, pois é na busca da experiência clínica que o aluno mais fortemente se mobiliza durante sua formação, para adquirir um conhecimento que lhe assegure uma boa prática futura.

Nos estágios e atividades práticas oferecidos, o estudante adquire segurança e é forjado como profissional; seu "eu-profissional" se desenvolve, incorporando valores, características, atitudes, conhecimentos e habilidades que irão orientar seu comportamento no enfrentamento da ampla variedade de situações que podem se apresentar na prática diária.

A procura ansiosa por estágios extracurriculares e a importante valorização do internato médico residem na necessidade de buscar segurança na prática, e é explicada pelo entendimento do conceito de experiência clínica, que se refere à "verdadeira" experiência de lidar com pacientes e doenças, em contraposição ao aprendizado em livros: "Experiência clínica, na visão adotada para este termo, confere ao médico um conhecimento que ainda não foi sistematizado e verificado cientificamente"26. Este conhecimento só pode ser adquirido na realização do fenômeno clínico e em seu manejo direto, ou seja, apreendido com a prática, algo que desde cedo os estudantes aprendem a valorizar.

A aquisição de conteúdos e habilidades técnicas que se dá na formação profissional passa pela apreensão do cenário social onde se realiza a prática assistencial – neste caso, a instituição – e pela busca de uma identificação com seu professor. Sendo assim, é principalmente nas atividades realizadas em ambulatórios e enfermarias que o aluno vai construindo sua identidade profissional, adquirindo os valores sociais de uma prática com implicações pelo modo de ser vivenciada e realizada.

A situação no Brasil, porém, é de uma prática introduzida tardiamente, pela forma como se estruturou o ensino médico, que se dá em função da separação entre o ciclo básico e o ciclo clínico, uma herança dos princípios incorporados no País pela influência da Reforma Flexner nos Estados Unidos.

Mais recentemente, há um amplo debate nas instituições médicas nacionais que procura reverter esta situação. Todavia, estas tentativas – entre as quais se incluem as mudanças curriculares, que têm como fundamento principal a promoção de metodologias centradas no aluno, a resolução de problemas e o aprendizado contínuo – estão ainda no início, carecendo de reflexão e práticas mais aprofundadas27.

Mesmo quando os alunos entram no ciclo clínico, é no hospital que desenvolvem a maior parte de suas atividades. É no hospital, por meio de suas práticas assistenciais progressivamente custosas do ponto de vista econômico e historicamente excludentes sob o aspecto social, que se concentram as experiências marcantes e definidoras na formação médica.

Mudanças de comportamento na prática da medicina têm uma relação bastante próxima com o processo de educação médica vivenciado28. Nesse sentido, se desenvolve também o pressuposto nuclear de ensinar no "mundo real", em que a aprendizagem no nível básico da atenção à saúde tem sido proposta como forma de se aproximar da concepção da necessidade da aprendizagem em cenários diversificados, além dos ambientes hospitalares, na tentativa de reproduzir o mundo real no ensino, para um aprimoramento profissional que leve em conta as determinações sociais do processo saúde-doença.

Nos cursos que oferecem experiências de ensino articulado aos serviços públicos de saúde, o deslocamento de estudantes aos centros de saúde ou à comunidade com uma programação construída unilateralmente pelo professor é radicalmente diferente do deslocamento realizado com base em um plano conjunto, que leva em conta os interesses dos serviços de saúde e da comunidade e não apenas os de ensino-aprendizagem29. A participação da comunidade a ser atendida na definição das atividades a serem oferecidas modifica substancialmente a forma habitual como estas se desenvolvem, na qual é a população que deve se adaptar totalmente ao que é oferecido, e não o contrário.

Davini30 assinala que a socialização profissional efetiva de uma categoria profissional, relativa a modos de pensar e de atuar, individual ou coletivamente, completa-se e se consolida no âmbito da prática profissional. Aponta que as formas de relação social (hegemonia, processo decisório, conflito, controle do saber) e as práticas técnicas (divisão do trabalho, circuitos operativos, saber fazer) são construídas historicamente e funcionam como matriz de aprendizagem nos locais de trabalho, com uma importância maior do que qualquer coisa aprendida no processo escolar formal.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para que o Sistema Único de Saúde (SUS) represente efetivamente uma estratégia de transformação do sistema de saúde, é fundamental identificar e trabalhar os fatores que podem determinar mudanças positivas nas práticas profissionais.

As propostas políticas e programas são vivenciados pelos profissionais em diferentes locais, situações e momentos históricos. Portanto, há sempre uma reconstrução do perfil profissional, uma vez que existem diferentes concepções sobre a definição de suas práticas e variações sobre a expectativa de impacto de suas ações e interações31.

Na medida em que o tipo de desempenho no contexto de novos modelos assistenciais e a socialização representada pela oferta da experiência pela universidade são fatores explicativos potentes para compreender a incorporação de identidades, podem-se pensar estratégias para a educação médica. O sistema de saúde como cenário de exercício de práticas e tutores com uma prática assistencial moldada no sistema público, e não somente com uma atuação docente, podem ter maior força estruturadora no processo de socialização do aluno.

Recebido em: 19/10/2007

Reencaminhado em: 28/12/2007

Aprovado em: 27/02/2008

CONFLITOS DE INTERESSE

Declarou não haver

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  • Endereço para correspondência:

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Jun 2009
    • Data do Fascículo
      2009

    Histórico

    • Recebido
      19 Out 2007
    • Aceito
      27 Fev 2008
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