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Ensino de atenção primária à saúde na graduação: fatores que influenciam a satisfação do aluno

Teaching primary health care in undergraduate medicine: factors influencing student satisfaction

Resumos

Formar profissionais capazes de trabalhar no Sistema Único de Saúde (SUS), na Atenção Primária à Saúde (APS), tem motivado mudanças curriculares e projetos tais como o Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde (PET-Saúde). Sob essa perspectiva, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a disciplina Métodos de Abordagem em Saúde Comunitária (Masc), que discute o SUS e oferece ao estudante a oportunidade de participar do trabalho da Estratégia Saúde da Família (ESF), foi deslocada da 3ª para a 1ª etapa semestral em 2008 e passou a contar com o PET-Saúde em 2009. Com o objetivo de verificar se estas mudanças tiveram repercussões na satisfação dos alunos com a disciplina, foram estudados os seus instrumentos de avaliação nesse período de transição de semestre e implantação do PET-Saúde. As respostas dos 339 estudantes avaliados mostraram que as intervenções foram exitosas, pois melhoraram a opinião dos alunos em relação o ensino de APS, principalmente no que diz respeito à inserção precoce na ESF. A boa impressão inicial pode ser útil para uma avaliação mais positiva do SUS por esses futuros profissionais.

Programa de Educação para o Trabalho em Saúde; Educação Médica; Atenção Primária à Saúde


Training professionals to work in Primary Healthcare (PHC) in the Unified National Health System (SUS) has driven curricular changes and projects like the Educational Program for Health Work (PET-Saúde). With this perspective, in the Federal University in Rio Grande do Sul (UFRGS), the course entitled "Methods for Approaching Community Health" (which discusses the SUS and gives students the opportunity to participate in activities under the Family Health Strategy) was shifted from the third to the first semester in 2008, and since 2009 it has been supported by the PET-Saúde project. In order to verify whether these changes had an impact on students' satisfaction with the course, this study focused on course assessment instruments during this semester transition period and since implementation of the PET-Saúde project. The answers from 339 students showed that interventions, especially early integration into health services in the first semester, were successful in improving students' opinions of the course. A good initial impression may be useful for a more positive opinion towards the National Health System among future professionals.

Educational Program for Health Work; Medical Education; Primary Health Care


PESQUISA

Ensino de atenção primária à saúde na graduação: fatores que influenciam a satisfação do aluno

Teaching primary health care in undergraduate medicine: factors influencing student satisfaction

Cristina Rolim Neumann; Camila Zamban de Miranda

Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Cristina Rolim Neumann Rua Fatima 344 Parternon - Porto Alegre CEP. 90620-250 RS E-mail: cristinaneumann@via-rs.net

RESUMO

Formar profissionais capazes de trabalhar no Sistema Único de Saúde (SUS), na Atenção Primária à Saúde (APS), tem motivado mudanças curriculares e projetos tais como o Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde (PET-Saúde). Sob essa perspectiva, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a disciplina Métodos de Abordagem em Saúde Comunitária (Masc), que discute o SUS e oferece ao estudante a oportunidade de participar do trabalho da Estratégia Saúde da Família (ESF), foi deslocada da 3ª para a 1ª etapa semestral em 2008 e passou a contar com o PET-Saúde em 2009. Com o objetivo de verificar se estas mudanças tiveram repercussões na satisfação dos alunos com a disciplina, foram estudados os seus instrumentos de avaliação nesse período de transição de semestre e implantação do PET-Saúde. As respostas dos 339 estudantes avaliados mostraram que as intervenções foram exitosas, pois melhoraram a opinião dos alunos em relação o ensino de APS, principalmente no que diz respeito à inserção precoce na ESF. A boa impressão inicial pode ser útil para uma avaliação mais positiva do SUS por esses futuros profissionais.

Palavras-chave: Programa de Educação para o Trabalho em Saúde. Educação Médica. Atenção Primária à Saúde.

ABSTRACT

Training professionals to work in Primary Healthcare (PHC) in the Unified National Health System (SUS) has driven curricular changes and projects like the Educational Program for Health Work (PET-Saúde). With this perspective, in the Federal University in Rio Grande do Sul (UFRGS), the course entitled "Methods for Approaching Community Health" (which discusses the SUS and gives students the opportunity to participate in activities under the Family Health Strategy) was shifted from the third to the first semester in 2008, and since 2009 it has been supported by the PET-Saúde project. In order to verify whether these changes had an impact on students' satisfaction with the course, this study focused on course assessment instruments during this semester transition period and since implementation of the PET-Saúde project. The answers from 339 students showed that interventions, especially early integration into health services in the first semester, were successful in improving students' opinions of the course. A good initial impression may be useful for a more positive opinion towards the National Health System among future professionals.

Keywords: Educational Program for Health Work. Medical Education. Primary Health Care.

INTRODUÇÃO

Com a Reforma Sanitária Brasileira e a criação do SUS, observou-se a necessidade da qualificação dos profissionais da saúde para a superação dos desafios desse sistema. Assim, a mudança na formação dos recursos humanos em saúde tem sido discutida para o aprimoramento das práticas e da relação profissional com os usuários, as comunidades e a instituição, contribuindo para a construção e consolidação de um sistema mais justo e orientado para as necessidades das pessoas e da sociedade1, 2.

A nova lógica do SUS estabelece a APS como estratégia de organização e integração do sistema de saúde, sendo a Estratégia Saúde da Família (ESF) a porta de entrada preferencial do sistema. Entretanto, a atenção básica exige recursos humanos diferenciados e ainda escassos. Um sistema de saúde com base na atenção primária funcionando sem os recursos humanos apropriados frustra as expectativas da população, como salienta Cunha: "muda-se o modelo de atenção, referencia-se a clientela, organizam-se reuniões, gerencia-se com foco direcionado mais aos resultados do que aos procedimentos, e nem sempre isso transforma a clínica da forma que precisamos"2.

O hospital ainda é o espaço hegemônico de formação dos profissionais da saúde. Essa presença marca as competências dos profissionais, mesmo quando se encontram trabalhando na Atenção Básica2. Para Foucault3, em O nascimento da clínica, o hospital herdou da instituição militar padrões autoritários de relação entre profissional da saúde e doente.

Poderíamos comparar o atendimento dentro de um hospital ao estudo de um fármaco em tubo de ensaio. Prepara-se o ambiente no tubo de acordo com as variáveis em investigação e são obtidos resultados possíveis diante das variáveis apresentadas. Como é sabido, o resultado "no tubo" pode não ter nenhuma relação com os efeitos do fármaco em ambiente não controlado, ou seja, no organismo.

Embora a clínica na Atenção Básica seja muito complexa, não só pela necessidade de entender o sujeito, mas também pela necessidade de negociação da terapêutica, as corporações tendem a negar essa complexidade2.

Os Ministérios da Saúde e da Educação, por meio das Diretrizes Curriculares4 para os cursos de Medicina e de programas como Promed5, Pró-Saúde6 e PET-Saúde7, têm salientado a importância da reformulação do ensino médico de forma a adequá-lo às necessidades do SUS. Essas políticas têm estimulado a importância da maior vinculação do estudante de Medicina com a dinâmica comunitária de adoecimento e da luta pela saúde, além de inserir o aprendizado do estudante na lógica da APS, que estimula a clínica centrada na pessoa. Portanto, busca-se complementar o aprendizado hospitalar realizado no modelo biomédico, que fragmenta o indivíduo, centra-se nas doenças e ignora a comunidade. É sabido que na maior parte das escolas de Medicina essas reformas não têm conseguido ainda alterar a concepção educacional tradicional, que se caracteriza pelo aprendizado centrado nos professores, nas doenças e fragmentado em aulas que pouco se relacionam entre si, pela avaliação numérica do aluno a partir de testes e pela relação de "distanciamento objetivo" entre o médico e o seu cliente.

PANORAMA INSTITUCIONAL

Na UFRGS, a atenção primária é abordada formalmente em duas disciplinas obrigatórias: a disciplina Métodos de Abordagem em Saúde Comunitária (Masc), que discutiremos mais detalhadamente, e o Internato de Medicina Social, que é cursado por três meses em horário integral, com o aluno atuando em uma Unidade Básica de Saúde ou unidade da Estratégia Saúde da Família. A disciplina Masc se destina a mostrar ao aluno o caráter social e coletivo do processo saúde-doença, a evolução histórica da abordagem comunitária em saúde, as características de um sistema de saúde e do modelo de saúde brasileiro e, finalmente, o funcionamento de uma unidade do programa de Saúde da Família. Essa disciplina foi introduzida no currículo em 1989, e em seu modelo inicial tratava-se de uma disciplina de três créditos, com encontros semanais de três horas de duração cada um. Os encontros eram ocupados na parte introdutória por sete aulas teóricas em grande grupo e, na parte prática, a turma era dividida em grupos de 15 a 20 alunos, os quais se alternam em visitas aos postos da ESF em grupos de dois ou três alunos em cada posto. Em uma semana eram realizados esses grupos, e na semana posterior ocorriam seminários de temas da atenção primária; ao todo se realizavam cinco seminários e cinco visitas aos postos. Os postos eram definidos pela prefeitura no início do semestre e havia bastante rotatividade entre eles e nenhum treinamento dos profissionais que recebiam os alunos. O coordenador do posto (enfermeira ou médico) recebia de sua supervisora uma listagem dos alunos e, ao final do semestre, enviava um relatório sucinto sobre a atividade que estes efetuavam no posto. Diante desse quadro, foram introduzidas modificações, as quais são descritas a seguir.

No ano de 2008, a disciplina saiu do 3º semestre e passou para o 1º. Nesse ano, houve turmas de alunos de ambos os semestres. As aulas teóricas foram reduzidas para um total de quatro no primeiro bloco, no qual se passou a exibir o documentário Sicko, de Michael Moore.; as visitas e os seminários passaram a um total de seis cada um. A situação dos postos, no entanto, não se modificou.

No ano de 2009, houve o início do projeto PET-Saúde, a partir do qual a UFRGS passou a desenvolver todas as suas atividades na região do distrito Glória-Cruzeiro Cristal, elegendo 12 postos da Estratégia Saúde da Família como unidades docente-assistenciais. Nessas unidades, os profissionais de nível superior (médicos e enfermeiros) passaram a receber remuneração para a orientação dos alunos, e, no caso da disciplina Masc, foi feito um treinamento que reuniu médicos preceptores dos postos, professores tutores e alunos bolsistas do PET que já haviam cursado a disciplina em semestres anteriores. Nesse treinamento, discutiu-se as experiências dos alunos e as possibilidades de sua participação nas atividades dos postos, os objetivos da disciplina e as expectativas de todo o grupo. A partir daí, os monitores, preceptores e tutores passaram a ter contato regular desenvolvendo projetos conjuntos, que culminaram na participação em eventos científicos do PET e da Atenção Básica. Essas atividades podem ter motivado os preceptores para as atividades didáticas. Além disso, foram mantidas as alterações na primeira parte da disciplina.

O objetivo deste estudo foi avaliar se as mudanças implementadas no currículo da Medicina relacionadas à disciplina Masc - mudança de semestre e inclusão no projeto PET-Saúde - produziram diferenças na percepção dos alunos sobre a disciplina. Para tanto foi utilizado um instrumento padronizado de avaliação das disciplinas do Departamento de Medicina Social.

MATERIAL E MÉTODOS

Foram estudadas as opiniões dos estudantes sobre a disciplina expressas em um documento de avaliação da disciplina preenchido na última reunião do semestre. Foram avaliados três grupos de alunos: (1) que cursou a disciplina no 3º semestre do curso (no ano de 2007 e 2008); (2) que cursou a disciplina no 1o semestre do curso, mas ainda sem o apoio do programa PET-Saúde (ano de 2008); e (3) que cursou a disciplina no primeiros semestre do curso com o apoio do programa PET-Saúde (ano de 2009). O instrumento de avaliação foi constituído de questões em escala de Liquert com três a cinco opções, sendo duas questões sobre autoavaliação, as quais geravam um escore de 0-8; quatro questões sobre avaliação da disciplina, gerando um escore de 0-16; 11 questões sobre avaliação dos professores, gerando um escore de 0-40; e quatro questões sobre a infraestrutura e o material didático, gerando um escore de 0-16.

No que diz respeito à autoavaliação, as perguntas foram sobre a leitura do material indicado e sobre a pontualidade e assiduidade. A avaliação das questões foram relativas à importância do aprendizado e à relevância do conteúdo para a prática profissional - se os objetivos propostos foram atingidos e as leituras indicadas estavam apropriadas. Sobre a atuação dos professores, foi perguntado se o professor domina o conteúdo, está atualizado na área, foi pontual e assíduo, incentiva a participação na aula, parece gostar de ensinar, estimula o aprendizado, usa recursos didáticos apropriados, esclarece regras e critérios para notas, e se apresenta os objetivos das aulas. No que se refere à infraestrutura, os alunos avaliaram as condições das salas de aula, a utilização de recursos audiovisuais e a disponibilidade de livros relacionados à disciplina na biblioteca. Em 2009, foi introduzida uma pergunta sobre as condições dos postos de saúde visitados e ainda havia uma questão sobre a carga de estudos e a avaliação geral da disciplina e dos professores. Em todos os questionários havia um espaço para opiniões discursivas. Os instrumentos foram preenchidos sem identificação e voluntariamente. Não foi solicitado consentimento informado por se tratar de um instrumento do departamento utilizado por várias disciplinas.

Para análise, os sujeitos foram divididos em três grupos: 3º semestre; 1º semestre sem PET-Saúde; e 1º semestre com PET-Saúde. Os itens da avaliação foram analisados separadamente e foram somados para compor escores. As respostas individuais em escala ordinal foram comparadas por análise de variância não paramétrica (teste de Kruscal-Wallis) com análise post hoc LSD, apresentadas em número e percentual. As comparações entre o 1º e o 3º semestres foram feitas pelo teste de Mann-Whitney. Por fim, foi construído um modelo de regressão logística para avaliar a independência do efeito do programa PET-Saúde e o ano em que foi cursada a disciplina sobre a avaliação do aluno. Para tanto, a avaliação do aluno foi caracterizada de forma dicotômica como boa/ótima ou regular/ruim. As análises foram feitas em PASW Statistics v18 e o nível de significância foi de 5%. As respostas discursivas foram digitadas e categorizadas, conforme os padrões identificados nas respostas, e examinadas por meio da síntese da análise de conteúdo. As categorias foram analisadas por qui-quadrado.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Foram analisadas respostas de 102 alunos do 3º semestre; 104 alunos do 1º semestre sem projeto PET-Saúde; e 133 com projeto PET-Saúde. Todos os alunos foram convidados a preencher a avaliação voluntariamente.

As opiniões quantitativas são descritas em tabelas e figuras. Na tabela 1, são apresentadas as respostas divididas nos quatro principais domínios dos questionários: autoavaliação; avaliação da disciplina; avaliação da infraestrutura; e avaliação dos professores. Nessa tabela, observa-se uma maior satisfação dos alunos do 1º semestre em relação aos do 3º em todos os parâmetros, exceto autoavaliação. Na figura 1, verifica-se a avaliação geral da disciplina nos três grupos considerados, a partir da qual se observa as diferenças entre o grupo do 3º semestre e os demais (Kruskal Wallis p < 0,001). Na figura 2, está a autoavaliação da participação nos postos de saúde, em que se vê uma diferença mostrando maior participação após o PET-Saúde (p < 0,002). Essa pergunta não foi feita aos alunos do 3º semestre, porque não estava incluída no questionário.



A partir de um modelo de regressão logística, avaliou-se a satisfação geral com a disciplina em relação ao semestre do curso em que foi cursada e à presença do PET-Saúde. Os resultados apresentados na tabela 2 mostram o efeito desses dois fatores analisados isoladamente e ajustados. A presença do PET-Saúde foi associada a uma razão de chances de 3,0 (IC 95% 1,3-6,7) para avaliar a disciplina como boa ou ótima; enquanto que cursá-la no 1º semestre em relação ao 3º mostra uma RC de 5,0 (IC 95% 2,5-9,92). Entretanto, quando esses fatores foram analisados em conjunto, somente cursar a disciplina no 1º semestre se manteve com significância, RC de 4,6 (IC 95% 2,0-11,2).

Um total de 135 (39,4%) alunos, sendo 42 (41,2%) do 3º semestre, 35 (33,5%) do 1º semestre sem Pet-Saúde e 58 (43,6%) do 1º semestre com PET-Saúde emitiram algum tipo de opinião discursiva; o percentual refere-se à proporção de respondentes em cada grupo. Na análise das questões discursivas, as respostas foram categorizadas conforme o conteúdo em três tópicos principais: impressão geral sobre a disciplina; sugestões; e avaliação dos postos. A impressão geral sobre a disciplina foi categorizada como ruim, boa ou neutra. As sugestões de mudanças mais frequentes foram: redução de aulas teóricas (20,9%) e sugestões sobre mudanças dos textos para leitura (21,6%). Sobre a atuação nos postos, identificou-se três padrões de respostas: elogios ao trabalhos nos postos e sugestões de aumento da carga horária nessa atividade, críticas ao funcionamento dos postos ou à recepção dos alunos e sugestões para maior participação em atividades práticas ou um roteiro de atividades práticas para que o aluno se integre na equipe. As respostas assim categorizadas por grupo são descritas na tabela 3. A análise dessas respostas mostra maior satisfação dos alunos no período do PET-Saúde, mas é importante lembrar que se trata de respostas de um menor número de alunos.

Os resultados dos dados quantitativos demonstram que, de forma geral, os alunos do 3º semestre avaliaram pior a disciplina do que os alunos do 1º semestre com PET-Saúde e 1º semestre sem PET-Saúde, exceto no item autoavaliação. Isso demonstra principalmente a satisfação do aluno com a inserção na APS no início do curso de Medicina. Além disso, na análise por regressão logística, encontra-se que, quando a presença do PET-Saúde é analisada em conjunto com cursar a disciplina no 1º semestre do currículo, esta variável mantém-se muito mais influente na satisfação dos estudantes. Tal impressão é reforçada no discurso de estudantes do 1º semestre dos dois grupos:

"... A disciplina cumpriu completamente seus objetivos e nos aproximou daquilo que mais nos interessa na Medicina, a prática médica. Foi provavelmente a cadeira mais divertida e interessante do semestre."

"Gostei muito da disciplina, já que é uma das poucas que temos no início da faculdade focada na prática médica. Isso é muito incentivador, pois a carga das outras cadeiras é muito grande e fora desse contexto médico."

Nestas falas, os estudantes demonstram a expectativa que existe por parte de quem ingressa na universidade de entrar em contato com aquilo que escolheu como profissão, citada como prática médica. O que encontram, na maioria das vezes, é uma carga enorme de disciplinas biológicas teóricas, que ficam dissociadas da realidade médica e do ser humano como um todo. "As outras cadeiras fora desse contexto médico", as do campo básico, como Anatomia, Fisiologia, Histologia, entre outras, não se comunicam com o "contexto médico", que, para os estudantes, relaciona-se mais diretamente com o cuidado das pessoas.

Inicia-se a formação estudando o ser humano a partir de órgãos e células apenas, e continua-se estudando com pacientes internados em hospitais de atenção terciária e ambulatórios de subespecialidades, onde se enxerga o doente e, mais especificamente, o órgão doente, e não a pessoa ou a família que adoeceu no meio em que vive. Assim, o ser humano é estudado e "ensinado" de forma mecanicista e artificial, fora do contexto em que vive, onde adoeceu e onde será cuidado.

A disciplina Masc no 1º semestre vem tendo um papel importante na inserção do aluno na comunidade e o tem colocado em contato com as pessoas no contexto em que vivem, com suas peculiaridades e dificuldades, contrapondo o já habitual contato com corpos em laboratórios de Anatomia no 1º semestre da faculdade. Assim, encara-se também o ser humano como o ser social que é, não apenas indivíduos reduzidos a um corpo físico. Dessa forma, além de valorizar a anatomia e a fisiologia do corpo humano, o aluno pode também aprender com as vivências e experiências do homem na comunidade.

"A disciplina foi bastante útil, pois ofereceu um primeiro contato com uma realidade bem diversa da nossa, além de ser a única disciplina do 1o semestre que oferecia algum contato com o trabalho médico, muitas vezes estimulando o estudo das demais disciplinas do 1º semestre que são excessivamente teóricas."

Aqui o estudante, além de também expressar a satisfação de entrar em "contato com o trabalho médico", reforça o quanto isso é importante para estimular o estudo das demais disciplinas. Na verdade, a visão integral de ser humano que esse contato propicia leva o aluno a gostar e a ressignificar as disciplinas biológicas a serem estudadas.

Isso traz também ao estudante a oportunidade de se identificar com o outro com quem entra em contato, levando a um olhar mais humanizado e integral durante toda a sua formação, como sugere o aluno a seguir, falando de sua relação com um professor da disciplina:

"... Adorei o professor X. Suas aulas foram muito boas, seus comentários foram sempre em boa hora. Ele me passou uma visão da Medicina da Família que eu realmente não conhecia e que eu adorei. Seu modo de interpretar a relação médico-paciente 'além dos medicamentos', dando muito valor ao psicológico, foi o que eu mais me interessei. Tenho certeza que vou levar isso comigo no decorrer do curso."

"A disciplina foi excelente; na minha opinião foi uma das melhores do semestre, pois é a oportunidade de obtermos contato com a realidade brasileira, não apenas a fantasia do mundo que nos cerca..."

Além disso, nesta última fala se observa que a "realidade brasileira" citada é a realidade popular, das comunidades carentes e não simplesmente o contato inicial com a prática médica hegemônica de grandes hospitais, que já se tem ao longo da maioria do curso. Essa inserção no mundo popular vai marcando a formação do estudante, que muda desde o início a intencionalidade da sua formação médica e desperta a vontade de um aprendizado prático que faça diferença no dia a dia.

"As visitas ao posto foram um dos pontos altos do semestre na minha opinião, bem como a discussão em aula e o aprendizado sobre a atenção primária em saúde. Acho extremamente válida essa iniciativa já no 1º semestre, certamente terá um importante impacto na nossa formação como médicos."

O desejo de participar das atividades também aparece em muitas manifestações, principalmente entre alunos do 1o semestre, bem como a expectativa de um melhor aproveitamento prático:

"Acho que os postos deveriam receber um programa que contivesse tópicos que deveriam ser ensinados a nós, que deveríamos sair sabendo como aferir TA, dar injeções, fazer exame HGT..., pois achei que, embora a oportunidade de ir nos postos foi produtiva em vários aspectos (principalmente para entender essa realidade que não faz parte do nosso dia a dia), faltou um pouco de aprendizado mais prático."

"Acredito que os PSFs possam estar mais habilitados a receber alunos no próximo semestre. Todas as pessoas que trabalham no posto deveriam estar a par de que estamos no 1º semestre e que queremos aprender procedimentos básicos."

Os alunos do 3º semestre avaliaram que os temas discutidos na disciplina foram relevantes, mas diante deles os alunos demonstravam pouco conhecimento e motivação, diferentemente dos alunos do 1º semestre. Mesmo opiniões que destacavam aspectos positivos, relatavam também insatisfação com as aulas teóricas e com a falta de motivação dos alunos.

"... Gostaria apenas de ressaltar que apesar de achar a disciplina importante, não acho que os alunos estejam suficientemente estimulados à participação..."

Este estudo demonstra, à semelhança de outros que discutem a inserção dos alunos em serviços de saúde no 1º ano do curso de Medicina8,9, uma maior satisfação do estudante nessa prática. No entanto, relata diferenças na percepção de uma mesma experiência quando proporcionada no 1o ou 2o ano. Os achados reforçam a ideia do benefício de um contato precoce do estudante com as práticas clínicas, ao mesmo tempo em que refutam o pensamento de que a imaturidade do estudante o impede de usufruir da participação em serviços de atenção primária10. Tal compreensão ainda persistente em muitos professores, fazendo com que as atividades práticas para alunos do 1º ano sejam percebidas como inúteis, já que os alunos seriam "incompetentes para realizá-las, despreparados para compreender a realidade social e perderiam tempo de estudar"11.

Na verdade, a prática continuada de inserção na comunidade rapidamente se esgota se forem mantidas apenas atividades de observação e levantamento de problemas12, pois a equipe de saúde e a comunidade esperam ver algumas de suas demandas resolvidas ao longo do tempo. Se isso não ocorrer, a recepção ao estudante tende a perder a qualidade. A falta de clareza sobre o papel do aluno no serviço e o real aproveitamento das oportunidades de aprendizado são muitas vezes citadas, principalmente por alunos do 1º semestre:

"... Em alguns momentos, os postos de saúde visitados não se mostraram tão receptivos, parecíamos estar 'atrapalhando', como se houvesse pouco lugar para muita gente..."

"Fiquei um tanto quanto decepcionado com o meu posto de saúde, pois eu tinha grande interesse de aprender e aproveitar ao máximo esse nosso primeiro contato com pessoas (pacientes no caso). O dia (sexta-feira) foi inapropriado para as visitas, pois o médico não estava sempre presente. O que eu fiz no posto foi acompanhar duas consultas, poucos curativos. Fiquei, sinceramente, muito triste e desanimado com isso, pois eu esperava ter várias experiências novas e não tive. Não se pode deixar que isso aconteça com outros alunos. Fiquei muito chateado."

A tarefa da disciplina Masc nos próximos semestres deve ser ampliar a participação do aluno na equipe visando a integrá-lo aos cuidados prestados e, dessa forma, integrar a universidade como instrumento de melhora da qualidade dos serviços do SUS.

As mudanças aqui descritas não aumentaram a carga horária de ensino nesse cenário de prática, mas pretenderam qualificar o acolhimento do aluno, principalmente com relação ao PET-Saúde, fazendo-o perceber o SUS como um local qualificado de ensino. É possível que isso tenha implicações em suas escolhas profissionais futuras. Foi verificado que o estágio curricular em atenção básica provoca mudanças na percepção do aluno sobre a sua forma de atender, valorizando os aspectos biológicos, psíquicos e sociais, aumentando a habilidade, segurança e paciência, melhorando a relação médico-paciente e a capacidade de seguimento do paciente13.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Programa de Incentivo às Mudanças Curriculares nas Escolas de Medicina (Promed), criado pelos Ministérios da Saúde e da Educação, em 2002, apresentava três eixos para o desenvolvimento de modificações curriculares: orientação teórica; abordagem pedagógica; e cenários de prática. Para cada um desses vetores, o Promed apresentava um sistema de classificação de três estágios, partindo, no estágio 1, da situação curricular mais conservadora até chegar no estágio 3, a situação de inovação educacional efetivamente concretizada, de acordo com os objetivos do programa. Dentro desse modelo, a Faculdade de Medicina da UFRGS pode ser considerada predominantemente no estágio 2, o qual se descreve a seguir em seus três vetores14. Conforme o vetor de mudança pedagógica, o currículo do curso de Medicina desta instituição inclui inovações pedagógicas experimentais e pontuais com a adoção de pequenos grupos, processos de avaliação interativos, mas ainda restritos a menos de 20% da carga horária. No vetor de integração ciclo básico/ciclo profissional, o curso conta com disciplinas integradoras nos dois primeiros anos do curso, mas mantém ainda organização por disciplinas e separação dos conteúdos básicos e clínicos. Porém, no vetor de diversificação de cenários e do processo de ensino, o curso se situa entre o estágio 2 e 3, pois além de atividades extramuros isoladas com predominância na área da Saúde Coletiva, correspondendo a menos de 10% da carga horária, características do estágio 2; a Universidade está ampliando os cenários de prática dentro do SUS e desenvolvendo um distrito docente-assistencial na área da Glória-Cruzeiro-Cristal, em Porto Alegre. No que se refere ao Internato de Medicina Social (atividade obrigatória, em tempo integral e com três meses de duração), as atividades ocorrem totalmente em serviços do SUS. É interessante salientar que a disciplina Masc já era desenvolvida nos espaços do SUS desde a sua criação, em 1989.

Este estudo apresenta limitações próprias dos estudos observacionais: os professores e bolsistas envolvidos com a coleta das observações esperavam observar resultados positivos, não existem grupos para controle, as técnicas de ensino vem sendo aprimoradas e os professores estavam motivados para melhorar a disciplina. Entretanto, entende-se que as observações são acuradas com relação às diferenças entre os alunos que cursaram a disciplina no 1º e no 3º semestres do curso, pois, no ano de 2008, esses dois grupos cursaram a disciplina com a mesma estrutura e com o mesmo grupo de professores. Além disso, a análise de regressão logística permitiu inferir que os efeitos observados sejam mais relacionados ao semestre do que ao PET-Saúde, contrariando a premissa inicial. Essa indicação da análise estatística associada às impressões fornecidas pela análise das questões discursivas dos estudantes, que mostram ainda dificuldades de integração com a equipe e desejo de uma participação maior dentro dela, reforçam a impressão de que o PET-Saúde ainda não provocou todas as modificações esperadas nesses cenários de prática. É possível que receber continuadamente estudantes nos postos possa permitir adaptações que resultem em uma maior inclusão deles dentro das rotinas de serviço, mas isso ainda não foi possível em dois semestres de projeto PET-Saúde. O treinamento para a docência entre os profissionais que recebem alunos é um dos desafios que surgem desses dados. Finalmente, o exercício da avaliação crítica dessa disciplina propiciou ao grupo de professores a oportunidade de aprimorar a prática de ensino.

CONFLITO DE INTERESSES

Declarou não haver.

Recebido em: 12/09/2010

Aprovado em: 30/11/2010

CONTRIBUIÇÃO DOS AUTORES

Cristina Rolim Neumann contribuiu na concepção e desenho do estudo, análise e interpretação dos dados auxilio na interpretação dos dados e na redação final. Camila Zamban de Miranda contribuiu na concepção e desenho do estudo, preparo do banco de dados, auxilio na interpretação dos dados e na redação final.

  • 1. Ferreira JR. Das diretrizes curriculares ao Pro-Saúde. In: Os desafios do ensino da Atenção Básica. Brasília: MS; 2007. p. 3-9.
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  • 3. Foucault M. O nascimento da clínica. 6. ed. Rio de Janeiro: Ed Forense Universitária; 2004.
  • 4
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  • 5
    Brasil. Ministério da saúde. Ministério da educação. Secretaria de políticas de saúde. Secretaria do ensino superior: Programa de incentivo a mudanças curriculares nos cursos de medicina: uma nova escola médica para um novo sistema de saúde. Brasília; 2002.
  • 6
    Brasil. Ministério da Saúde. Ministério da Educação. Pro-saúde: programa nacional de reorientação da formação profissional em saúde. Brasília; 2005. Disponível em: http://www.prosaude.org/legislacao/4-Edital_Pr%F3-Sa%FAde.pdfProsaude Acesso em 16 ago 2010.
  • 7
    Brasil. Ministério da saúde. Portaria interministerial n° 1507, de 22 de junho de 2007. Institui o programa de educação pelo trabalho para a saúde Pet-saúde. Diário oficial da União. Brasília; 2007; Seção 1, p 56.
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  • Endereço para correspondência
    Cristina Rolim Neumann
    Rua Fatima 344
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Ago 2012
    • Data do Fascículo
      Mar 2012

    Histórico

    • Recebido
      12 Set 2010
    • Aceito
      30 Nov 2010
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