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A participação da sociedade civil na democratização do setor de saúde no Brasil

Civil society's contribution to the democratization of the health sector in Brazil

Resumos

Este ensaio apresenta a trajetória da participação da sociedade civil brasileira nas conquistas do setor de saúde no período da redemocratização política no País. Autores como Carvalho², Fleury³ Paim7 e Gerschman6 auxiliam a compreensão desse caminho. Pretende-se demonstrar a importância dos movimentos sociais da saúde e suas diferentes relações com o Estado brasileiro com vista à institucionalização dos Conselhos de Saúde. Como alternativa fundamental para a concretização da democracia participativa, os avanços práticos dos mecanismos de controle social desses colegiados ainda são bastante limitados. Os autores concluem que há um verdadeiro esvaziamento político na maioria dos Conselhos de Saúde, com práticas ainda marcadas pelo passado de legitimação do poder dominante. O papel exercido outrora pelos movimentos sociais e populares de formação de conselheiros encontra-se cada vez mais distante da população, institucionalizado na representação de um controle social ainda aparentemente "figurativo". Diante da realidade vivenciada neste e em outros estudos, questiona-se a atuação dos Conselhos de Saúde como espaço público democrático.

Participação; Democratização; Conselhos de Saúde


This study shows the trajectory of the contribution of Brazilian civil society to the milestones achieved by the Brazilian health sector during the country's re-democratization. Authors such as Carvalho², Fleury³, Paim7 and Gerschman6 facilitate an understanding of the transition. The study aims to demonstrate the importance of social movements in the health field and their various relations with the Brazilian state with the view of institutionalizing Health Councils. As a fundamental alternative in the realization of a participatory democracy, the practical advances made by the social control mechanisms in these councils remain very limited. The authors conclude that most Health Boards experience a real drain of policies with practices still marked by the past's legitimizing of the dominant power. The role once played by social and popular movements for the training of counselors has become increasingly distant from the population, and institutionalized in the representation of a Social Control which is still apparently "figurative". In light of this reality uncovered in this study and in others, these Health Councils' role as a democratic public space must be questioned.

Participation; Democratization; Health Councils


ENSAIO

A participação da sociedade civil na democratização do setor de saúde no Brasil

Civil society's contribution to the democratization of the health sector in Brazil

Claudio Valdivino e SilvaI; Diego Ferreira Lima SilvaII; Elza Maria de SouzaI

IUniversidade de Brasília, Brasília, DF, Brasil

IIMinistério da Saúde, Brasília, DF, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Claudio Valdivino e Silva QE 38 Conjunto "C" - Casa 23 Guará II Brasília CEP 70070-030 - DF E-mail: claudiovaldivino@gmail.com

RESUMO

Este ensaio apresenta a trajetória da participação da sociedade civil brasileira nas conquistas do setor de saúde no período da redemocratização política no País. Autores como Carvalho2, Fleury3 Paim7 e Gerschman6 auxiliam a compreensão desse caminho. Pretende-se demonstrar a importância dos movimentos sociais da saúde e suas diferentes relações com o Estado brasileiro com vista à institucionalização dos Conselhos de Saúde. Como alternativa fundamental para a concretização da democracia participativa, os avanços práticos dos mecanismos de controle social desses colegiados ainda são bastante limitados. Os autores concluem que há um verdadeiro esvaziamento político na maioria dos Conselhos de Saúde, com práticas ainda marcadas pelo passado de legitimação do poder dominante. O papel exercido outrora pelos movimentos sociais e populares de formação de conselheiros encontra-se cada vez mais distante da população, institucionalizado na representação de um controle social ainda aparentemente "figurativo". Diante da realidade vivenciada neste e em outros estudos, questiona-se a atuação dos Conselhos de Saúde como espaço público democrático.

Palavras-chave: Participação; Democratização; Conselhos de Saúde.

ABSTRACT

This study shows the trajectory of the contribution of Brazilian civil society to the milestones achieved by the Brazilian health sector during the country's re-democratization. Authors such as Carvalho2, Fleury3, Paim7 and Gerschman6 facilitate an understanding of the transition. The study aims to demonstrate the importance of social movements in the health field and their various relations with the Brazilian state with the view of institutionalizing Health Councils. As a fundamental alternative in the realization of a participatory democracy, the practical advances made by the social control mechanisms in these councils remain very limited. The authors conclude that most Health Boards experience a real drain of policies with practices still marked by the past's legitimizing of the dominant power. The role once played by social and popular movements for the training of counselors has become increasingly distant from the population, and institutionalized in the representation of a Social Control which is still apparently "figurative". In light of this reality uncovered in this study and in others, these Health Councils' role as a democratic public space must be questioned.

Keywords: Participation; Democratization; Health Councils.

INTRODUÇÃO

A palavra participação está vinculada ao sentido de "ter parte", "tomar parte" ou "fazer parte" de algum grupo ou associação. Todavia, "fazer parte", "tomar parte" "ou ter parte" apresentam conotações diferentes, isto é, pessoas podem fazer parte de grupos, organizações ou associações, porém não tomar parte de suas decisões. Mesmo o "tomar parte" das decisões, o que já expressa uma participação, necessita ser mais bem qualificado quanto ao grau ou intensidade dessa participação, sendo fundamental para o processo participativo não o quanto, mas o como se participa. Para além da intensidade, a participação está assentada em duas bases, efetiva e instrumental, que são ao mesmo tempo diferentes e complementares. A primeira compreende o sentimento de prazer em estar e compartilhar ações ou participar de atividades conjuntas; a segunda, denominada instrumental, diz respeito à obtenção de mais efetividade e eficiência quando determinadas ações e práticas se realizam em grupo1.

A participação da sociedade civil brasileira no setor de saúde começa efetivamente no final da década de 1970 com a intenção de democratização da saúde e apoiada também pelo movimento de redemocratização do País, na ocasião sob o regime autoritário da ditadura militar.

O propósito deste artigo é delinear a trajetória histórica da participação da sociedade civil no que se refere ao setor saúde no Brasil, enfatizando a importância desse percurso na institucionalização dos Conselhos de Saúde como estratégia de participação da sociedade civil organizada no referido setor, bem como apresentar os conceitos das diversas formas de participação dos cidadãos, muitas vezes usados indistintamente como sinônimos e ainda causando certa confusão.

Carvalho2 define três tipos de participação - comunitária, popular e cidadã - , usando como critério a temporalidade e o modo, a ação e o comportamento da sociedade frente às políticas sociais no campo da saúde. O primeiro tipo de participação está relacionado à complementação das politicas de saúde propostas pelo Estado, ou seja, a sociedade participa apenas para chancelar as políticas oficiais. Já a segunda diz respeito à reação dos movimentos sociais à política estatal no campo da saúde, isto é, representa a crítica e a radicalização política da população diante do sistema dominante. Por fim, a terceira compreende a luta da sociedade para assegurar o que se compreende hoje como controle social.

Participação Comunitária: Primeiros Passos

A participação comunitária surge no início do século XX, ligada aos movimentos dos centros comunitários norte-americanos, que, de forma prática e ideológica, buscavam responder às insatisfações com relação aos aspectos sanitários e de pobreza de segmentos populacionais daquele país introduzindo a Medicina Comunitária. Esse modelo de cuidados à saúde é experimentado no Brasil em alguns centros de saúde criados com esse propósito, mas perde, por motivos diversos, algumas de suas dimensões, como a integração regional e educacional, esta última responsável pelo desenvolvimento das ações de participação comunitária2.

Nos moldes da proposta do "desenvolvimento da comunidade" das instituições americanas e numa perspectiva economicista baseada na produção de borracha da Amazônia, criam-se, no Brasil, os Serviços Especiais de Saúde Pública (Sesp), autarquia financiada principalmente pela Fundação Rockefeller dos Estados Unidos, que disseminou várias unidades de saúde pelo interior do País, conciliando ações de promoção, educação em saúde e prevenção de agravos às ações curativas. Nessa perspectiva, a comunidade era vista de forma genérica com cunho funcionalista e definida por Carvalho2 como "social e culturalmente homogênea, o que lhe confere e cria uma identidade própria e uma suposta predisposição à solidariedade, ao sentido coletivo e, por que não, ao trabalho voluntário de autoajuda" (p. 16).

A proposta da Medicina Comunitária, que surge então na década de 1960 nos Estados Unidos, encontra terreno fértil para a sua experimentação no Brasil devido principalmente a dois fatores: altos índices de exclusão social e pobreza no País e grandes desigualdades sociais em saúde. A Medicina Comunitária se ancora na proposta de extensão da cobertura da assistência médica e compatibilização de experiências inovadoras, como a valorização do trabalho comunitário, até então afastado desses "saberes" nessa área, e o estímulo à formação organizada e autônoma da população, com a manutenção da estrutura da produção da atenção à saúde2,3.

Assim, os projetos desenvolvidos, embora inovadores, preservavam as características das práticas do sistema de saúde dominantes, e, portanto, essa ambiguidade da participação popular também se fez presente em seu conceito-chave, que designa ora o campo de aplicação da proposta, ora sua inserção no sistema de saúde3.

Apesar de uma apropriação e ressignificação dos preceitos da Medicina Comunitária, que já preconizava a regionalização, a hierarquização, a descentralização e participação, ocorre no Brasil uma crítica contundente de cunho reformista do sistema de saúde vigente e que, segundo Carvalho2, consistia, entre outras, em práticas que variavam desde a transferência burocrática de informações sanitárias até pretensiosas provocações contra o monopólio do saber médico, num contexto de propostas de criação do trabalhador coletivo de saúde, propondo-se ações multidisciplinares, desencadeando um novo modelo de participação denominado participação popular.

Participação Popular: Primeiros Enfrentamentos

Da crítica ao modelo de saúde vigente e dos limites dos resultados das experiências da Medicina Comunitária cresce no Brasil um novo modelo de participação com objetivos para além de conquistas focalizadas em bens e serviços, ou seja, o da democratização no campo da saúde, reivindicando cada vez mais acesso universal e igualitário de serviços e ações nessa área.

É importante apontar que a participação popular em saúde se incorpora aos movimentos sociais urbanos, sindicais, de classes profissionais e outros em ações reivindicatórias de melhorias na qualidade de vida e da diminuição das desigualdades econômicas, políticas e sociais dos brasileiros. Nesse período, há uma mobilização na direção de conquistar as melhorias sociais por meio da pressão e, portanto, da luta e da contestação junto ao Estado. Nesse contexto, ocorre um deslocamento da dimensão técnico-sanitária típica da Medicina Comunitária para uma dimensão política. Assim, esses movimentos se fortalecem devido, sobretudo, a dois fatores: as condições sociais degradantes da população brasileira, principalmente dos que viviam nas periferias dos grandes centros urbanos, e o enfraquecimento do regime autoritário vigente à época. Essas experiências participativas, de caráter reivindicatório, proporcionaram uma potente ligação entre as demandas sociais por acesso a bens e serviços de saúde e as demandas políticas por acesso ao poder que passam a ocupar cada vez mais espaços institucionais, possibilitando uma integração nas relações entre Estado e sociedade civil2.

Ainda segundo o autor, a presença de órgãos colegiados acoplados ao aparato estatal brasileiro é histórica e evidenciada pela formação de diversos Conselhos nas mais diversas áreas da atuação estatal, tais como a comissão gestora do Instituto de Aposentadoria e Pensão (IAP), na década de 1930, composta pelo empregador, por representantes governamentais e por representantes dos trabalhadores assalariados. No campo da saúde, a articulação entre Estado e sociedade se deu com a instituição do Conselho Nacional de Saúde (CNS) em 1937, pelo então Ministério da Educação e Saúde, que tinha como atribuições assessorar esse ministério no campo do conhecimento da saúde. Reformulado na década de 1970, o CNS passa a ter como atribuição adicional examinar e emitir pareceres sobre questões da saúde e emitir opinião que, por força da lei, requer sua apreciação. Quanto a sua composição, contava com um colegiado integrado pelo presidente nato, ou seja, o ministro da pasta, e 15 conselheiros, dos quais 12 eram diretamente escolhidos pelo Poder Executivo e quatro escolhidos indiretamente por esse poder por meio de uma lista tríplice apresentada pelas instituições e entidades de classe ligadas à saúde.

Constata-se, dessa forma, que a população civil organizada não participava de forma autônoma do CNS, que constituía um colegiado legitimador e consolidador do modelo de saúde assistencial privatista vigente, por meio de mecanismos que asseguravam, de modo privilegiado, a presença de atores alinhados às demandas governamentais, e, portanto, assegurando o controle do projeto hegemônico existente no campo da saúde.

A perpetuação do modelo médico-assistencialista se dava verticalmente pelo Estado por meio da regulamentação do setor. Assim, ao longo da década de 1980 ocorreram diversas normatizações que consolidaram o Sistema Nacional de Saúde e aprofundaram o caráter técnico-administrativo do CNS, com a criação das câmaras técnicas, que tinham como atribuições examinar e propor soluções a assuntos específicos nas diversas áreas da saúde. O Conselho Nacional de Saúde sofre modificações na composição do seu colegiado com a ampliação do quadro dos membros institucionais em detrimento do segmento sociedade civil com o fortalecimento do poder das câmaras técnicas nas decisões. Com essa mudança, esse Conselho passa a contar com 23 membros, assim distribuídos: seis representantes ministeriais; seis presidentes de Câmaras Técnicas; seis membros de instituições relacionadas com a saúde e a segurança nacional, indicados pelo ministro; cinco técnicos de notória capacidade e comprovada experiência em assuntos de interesse da saúde com a mesma indicação. Nesse contexto, observa-se que, apesar das mudanças, ainda permanece um longo distanciamento entre CNS e sociedade, tendo esta apenas o caráter de representatividade controlada, e, portanto, limitada.

A deterioração das condições econômicas e sociais do País no período do "milagre econômico" na década de 1970 e a organização e mobilização dos movimentos sociais combinados com a crítica intraestatal ao modelo de saúde hegemônico explicam o aparecimento de espaços para o debate e confronto de natureza político-técnica dentro do aparelho do Estado entre os defensores do sistema previdenciário privatista e os que criticavam esse sistema. Assim, surge o Programa Nacional de Serviços Básicos de Saúde (Prev-Saúde) na década de 1980, com base nos princípios da Conferência de Alma Ata (OMS, 1978), que apresentava como uma de suas premissas a participação da comunidade para o aprimoramento da saúde. A versão original desse projeto oferecia um tratamento diferenciado à participação da população que se articulava com a proposta de redemocratização da sociedade e, portanto, contrapondo-se a uma participação meramente instrumental concebida pelo governo. Embora o Prev-Saúde não tenha sido efetivado, na prática ele gerou um debate em torno da questão saúde, propiciando a participação de novos atores e grupos que expressavam o desejo de mudanças do modelo hegemônico, agora localizado também dentro do Estado2. Com a participação popular legitimada dentro da esfera estatal, percebia-se o início do que se conhece hoje como controle social, participação cidadã.

Participação Cidadã: a Busca do Fortalecimento Social

A luta da sociedade por melhores condições de vida e de saúde se dava não mais no campo da legitimação das propostas verticais oriundas do Estado, mas nos espaços e arenas de debates políticos dos movimentos sociais que se aglutinavam em torno da democratização do País e particularmente no campo da saúde, com a bandeira "saúde, direito do cidadão e dever do Estado".

A crítica em torno do sistema de saúde vigente no Brasil se fortaleceu ainda mais com a criação, em 1976, do Centro Brasileiro de Estudos em Saúde (Cebes) e da Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (Abrasco), em 1979, que sistematizaram e ampliaram o debate político-ideológico nesse campo do conhecimento. O Cebes apresentou no I Simpósio sobre Política Nacional de Saúde, realizado em Brasília em 1979, o documento: "A questão democrática na área de Saúde", com proposições reformadoras do sistema de saúde e destacava que "a completa democratização da sociedade constitui a mais importante contribuição que pode ser dada à solução dos problemas de saúde da população brasileira no atual momento". Pontuava também a necessidade que "a condução desses problemas não pode ser apenas técnica, mas eminentemente política, compreendida como resultante dos conflitos e acordos que se estabelecem entre as múltiplas forças sociais interessadas, e não como uma decisão unilateral de governo, por mais abrangente e equitativa que possa parecer". Em 1984, o mesmo Cebes apresentou à sociedade e à comunidade acadêmica o documento "Assistência à Saúde numa sociedade democrática", em que posiciona de forma abrangente e lúcida a questão da saúde4,5.

A derrocada recessiva e o aumento do número de desempregados nesse período resultaram na diminuição acentuada de arrecadação do sistema previdenciário, levando a uma crise desse sistema. Tal crise se assentava principalmente na falta de controle institucional e social. Buscando legitimar suas ações, o governo adota uma postura político-técnica, que envolve diversos segmentos sociais, dando uma nova conformação à relação entre Estado e sociedade, abrindo espaço para a gestão compartilhada. As Ações Integradas de Saúde (AIS), desenvolvidas no interior da Previdência Social, privilegiam o financiamento público, estimulam a atenção ambulatorial em detrimento da hospitalar, propiciam a expansão da cobertura, melhorando a qualidade dos serviços e, principalmente, mesmo que de forma dependente de convênios, a criação de colegiados de gestão, como as Comissões Interinstitucionais, compostas por gestores governamentais, prestadores públicos e privados de saúde e usuários que se constituíram na primeira tentativa de descentralização do sistema de saúde6.

As Ações Integradas de Saúde representavam um grande avanço. Segundo Paim7 em sua análise das características e consequências das políticas de saúde no Brasil, há motivos para apostar nessas ações, dentre eles o de possuírem instâncias deliberativas permeáveis à negociação política com as comissões e conselhos gestores, tanto em nível central quanto no plano local. Esses conselhos, compostos por gestores, prestadores de serviços, profissionais de saúde e representantes dos usuários, passaram a desenvolver ações políticas, reconhecendo a diversidade e as peculiaridades dos demais e a possibilidade concreta de participação popular organizada. O referido autor reitera ainda que a participação no campo da saúde passa da retórica institucional para a formal, por meio de convênios, termos aditivos e termos de adesão, possibilitando a representação nas Comissões Interinstitucionais, cabendo aos movimentos organizados a pressão por sua efetivação.

Os movimentos da sociedade civil organizados, que no campo da saúde ficaram conhecidos por Movimento Sanitário, ocuparam espaços institucionais propondo mudanças na política de saúde. O Projeto da Reforma Sanitária Brasileira foi ancorado por um conceito ampliado de saúde que a compreende como um fenômeno também social e um exercício de cidadania e, portanto, é dever do Estado assegurar melhores condições de vida e saúde e prevenir os agravos que possam ameaçar a população. Para isso, esse movimento propôs a criação de um sistema único de saúde de caráter público, descentralizado e hierarquizado nas unidades de atenção à saúde, com a participação da população no controle, na organização dos serviços e na utilização dos recursos financeiros. Em linhas gerais, essas foram as propostas que se tornaram definidoras da reforma durante a VIII Conferência Nacional de Saúde6.

Com a participação de cerca de 5 mil pessoas, entre profissionais de saúde, usuários, técnicos, políticos, lideranças populares e sindicais, a VIII Conferência criou a base para as propostas de reestruturação do modelo de saúde brasileiro. Assim, as propostas de conceito ampliado de saúde e de seus determinantes defendidos e assumidos pela VIII Conferência são posteriormente incorporadas pela Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988) e pela legislação infraconstitucional, Lei 8.080/90, que regulamenta o Sistema Único de Saúde (SUS), e Lei 8.142/90 (BRASIL, 1990), que institucionaliza a participação da comunidade com a criação das Conferências e dos Conselhos de Saúde no Brasil, nos três níveis de governo, federal, estadual e municipal. As Conferências de Saúde passam, então, a ser compreendidas como espaços de discussão e formulação de políticas de saúde com a participação de diferentes atores sociais e dos Conselhos de Saúde com atribuições legais para atuar na formulação de estratégias e no controle da execução da política de saúde, incluídos os aspectos econômicos e financeiros.

Os Conselhos de Saúde constituíram uma alternativa fundamental para a concretização da democracia participativa e o desenvolvimento de parcerias importantes no processo de gestão do SUS, já que se trata de um órgão colegiado, de caráter permanente e onde a participação da comunidade se dá paritariamente com representantes da gestão, prestadores de serviços e representantes institucionais. Assim, as Conferências e os Conselhos de Saúde se consolidaram como principais formas de a sociedade civil organizada participar das decisões das políticas públicas do setor saúde com o intuito não só de controlar (fiscalizar) o Estado, mas também democratizar as decisões em saúde, isto é, exercer de fato a participação cidadã, que também pode ser compreendida como controle social.

Controle Social: Novos Desafios

Para Fleury3, o conceito de controle social integra pelo menos dois pressupostos: um, explicativo, de que nem tudo que é estatal é público; o outro diz respeito aos mecanismos de controle que a sociedade deve criar e que sejam capazes de provocar mudanças na estrutura de poder em benefício dessa sociedade.

Apesar dos esforços para consolidar essa visão moderna de participação social, nota-se que o quadro de reordenação social e política proposto ainda não experimentou um progresso sequencial dos direitos civis, políticos e sociais. O que se tem na realidade é um processo de construção lenta da cidadania como um valor coletivo, observando-se na prática uma versão híbrida e frágil dos direitos civis, marcada pela instabilidade política, social e econômica vivenciada nos últimos anos, que não contribui para o efetivo amadurecimento da cidadania plena no Brasil. Destaca-se, ainda, que esses direitos foram instituídos no País em contextos autoritários, de baixa percepção política, marcados por desigualdades entre as classes populares e os demais setores da sociedade8.

Estudos realizados sobre Conselhos de Saúde no Brasil, para compreender seja a sua funcionalidade e organização ou o grau de conhecimento de seus membros quanto a suas atribuições, de modo geral, apontam uma profunda distância entre o espírito da Lei 8.142/90 e a realidade desses colegiados.

Presoto e Westphal9 destacam que os regimentos internos dos Conselhos não têm se efetivado na prática, pois há um desconhecimento por parte dos conselheiros de suas funções legalmente definidas. Um estudo realizado por Cotta et al.8 aponta que 44,2% dos conselheiros entrevistados afirmaram que não divulgam as decisões tomadas no Conselho Municipal de Saúde (CMS) à população e que para 35,3% dos entrevistados as pautas discutidas nas reuniões são determinadas pelo secretário municipal de Saúde e 11,8% afirmam que as prioridades dos temas são determinadas apenas pelos conselheiros. Dessa forma, pode-se dizer que, a exemplo do que ocorre no CNS, a representatividade da sociedade ainda tem um caráter controlado e limitado.

Wendhausen e Caponi10 destacam as relações assimétricas entre os conselheiros usuários e os representantes dos demais segmentos. Os autores registraram que, de 77 falas dos representantes dos segmentos presentes em uma das reuniões do Conselho, 33 foram do presidente do Conselho e 20 de outros representantes governamentais, que, somadas, representam 62% de falas do segmento governamental; apenas 17 falas foram feitas pelos outros segmentos, e, destas, somente 7 eram referentes aos usuários. Esse estudo evidencia a condição hegemônica do segmento governamental.

Landerdhal et al.11, ao analisarem as resoluções de um Conselho de Saúde, constataram que grande parte das resoluções tratava da indicação de representantes, principalmente para os hospitais, convênio com a Casa de Saúde e para o Conselho Regional de Saúde.

Escorel12, ao analisar os avanços práticos dos mecanismos de controle social, avalia que ainda são bastante limitados, mas aponta as potencialidades desses colegiados desde que apresentem certas características, como: diversidade em sua composição, simetria do poder interno, representatividade de todos os participantes; deliberações democráticas, compreendidas como tempo e informações necessárias para reflexão e discussão dos temas propostos; prestação de contas à sociedade e pressão sobre o poder constituído para levar em conta as deliberações. A autora, que coordena um estudo sobre controle social no Brasil, aponta que, em 2010, período estudado, das 41 resoluções do Conselho Nacional de Saúde, 20 tratavam do funcionamento das comissões internas e apenas seis faziam referência a alguma deliberação da conferência, o que demonstra uma preocupação menor em propor e influenciar as políticas de saúde.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Foi possível sintetizar os caminhos da história recente do controle social no Brasil no campo da saúde. Percebem-se, então, as diversas faces e momentos da relação entre o Estado e a sociedade civil.

Quase 25 anos após a criação do SUS e 23 anos dos principais marcos normativos - leis 8.080 e 8.142, que criaram o SUS e institucionalizaram o controle social - , o que se vê é que, apesar dos esforços para consolidar essa visão moderna de participação social, o quadro de reordenação social e política proposto ainda não experimentou um progresso sequencial dos direitos civis, políticos e sociais. Na atual conjuntura politica de dez anos de um governo que traz como premissa as bandeiras populares, dentre elas a saúde como exercício de democracia, o que se visualiza é um esvaziamento político da maioria dos Conselhos ao longo do País, com práticas ainda marcadas pelo passado de legitimação do poder dominante. O papel exercido outrora pelos movimentos sociais e populares de formação de conselheiros cada vez mais se distancia da população, institucionalizado na representação de um controle social ainda aparentemente "figurativo". Diante dessa realidade, questiona-se a atuação dos Conselhos de Saúde como espaço público democrático.

Em suma, a democratização da saúde ainda atravessará muitos desafios, sobretudo no campo político. Parece que a dificuldade de desenvolver mecanismos que permitam a consolidação do controle social é diretamente proporcional aos desafios de consolidação do SUS, visto que não basta apenas ofertar serviços de qualidade; é preciso oferecer serviços de qualidade construídos com a participação da sociedade.

Recebido em: 11/03/2013

Aprovado em: 22/04/2013

CONFLITO DE INTERESSES: Declarou não haver.

CONTRIBUIÇÃO DOS AUTORES

Claudio Valdivino e Silva e Diego Ferreira Lima Silva participaram da concepção do artigo, pesquisa bibliográfica e redação final do texto. Elza Maria de Souza contribuiu na redação e revisão final do texto.

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  • Endereço para correspondência:
    Claudio Valdivino e Silva
    QE 38 Conjunto "C" - Casa 23 Guará II
    Brasília CEP 70070-030 - DF
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Ago 2013
    • Data do Fascículo
      Jun 2013

    Histórico

    • Recebido
      11 Mar 2013
    • Aceito
      22 Abr 2013
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