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Docinhos e ensaios de não inferioridade: uma experiência pedagógica criativa

Candies in the study of non-inferiority trials: a creative pedagogic experiment

Resumos

Os novos desafios na área da educação surgem com o próprio desenvolvimento do conhecimento. Novas técnicas de pesquisa possibilitaram grandes descobertas na ciência e, com isso, uma crescente complexificação dos temas estudados. Os alunos, inseridos no universo dinâmico da internet, também evoluíram e não se encaixam mais nas prescrições da pedagogia tradicional. Para essas novas realidades, a forma de educar no século XXI exige dos educadores um esforço de criatividade para transmitir um conhecimento cada vez mais complexo. Para ilustrar essa nova situação, relatamos uma experiência pedagógica que buscou, com a criatividade de uma intervenção fictícia, favorecer o ensino dos ensaios clínicos de não inferioridade. A experiência demonstra a utilidade de tais ensaios clínicos quando se necessita testar a eficácia de tratamentos. A utilização dos docinhos e a participação dos alunos como sujeitos do ensaio configuraram-se como uma metodologia ativa, de aproximação entre os educandos e seu objeto de estudo. O exercício realizado está de acordo com os modelos pedagógicos sugeridos pela teoria da aprendizagem significativa e pode servir de referência para iniciativas semelhantes.

Ensaios Clínicos; Educação; Educação Médica; Metodologia Ativa; Aprendizagem Significativa


New challenges in education parallel with knowledge expansion. New research techniques have enabled major discoveries in science, together with a growing complexity of the studied themes. Students, part of the dynamic universe of the Internet, have also evolved and no longer fit the requirements of traditional pedagogy. For these new realities the way to educate in the twenty-first century requires a creative effort from educators, in order to convey knowledge that is increasingly complex. As an illustration of this new situation, we bring the report of a pedagogical experiment that sought, with the creativity of a fictitious intervention, to support the teaching of non-inferiority clinical trials. The experiment managed to show the usefulness of such clinical trials when there is the need to test the efficacy of treatments. The use of sweets and the participation of students as the test subjects constitute an active methodology, bringing students closer to their subject of study. The exercise conducted is in line with the pedagogical models suggested by the meaningful learning theory and can be used as a benchmark for similar initiatives.

Clinical Trials; Education; Medical Education; Active Methodology; Meaningful Learning


RELATO DE EXPERIÊNCIA

Docinhos e ensaios de não inferioridade: uma experiência pedagógica criativa

Candies in the study of non-inferiority trials: a creative pedagogic experiment

David William MoraesI; Daniel Medeiros MoreiraII; Jefferson Luís VieiraIII; Antonio Luiz Piccoli Jr.IV; Lucia Campos PellandaV

IUniversidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre, Porto Alegre, RS, Brasil

IIUniversidade do Sul de Santa Catarina, Palhoça, SC, Brasil

IIIUniversidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil

IVFundação Universitária de Cardiologia, Porto Alegre, RS, Brasil

VFundação Universitária de Cardiologia; Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre; Porto Alegre, RS, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Lucia Campos Pellanda Av. Princesa Isabel, 370 Santana - Porto Alegre CEP 90620-000 - RS E-mail: pellanda.pesquisa@gmail.com

RESUMO

Os novos desafios na área da educação surgem com o próprio desenvolvimento do conhecimento. Novas técnicas de pesquisa possibilitaram grandes descobertas na ciência e, com isso, uma crescente complexificação dos temas estudados. Os alunos, inseridos no universo dinâmico da internet, também evoluíram e não se encaixam mais nas prescrições da pedagogia tradicional. Para essas novas realidades, a forma de educar no século XXI exige dos educadores um esforço de criatividade para transmitir um conhecimento cada vez mais complexo. Para ilustrar essa nova situação, relatamos uma experiência pedagógica que buscou, com a criatividade de uma intervenção fictícia, favorecer o ensino dos ensaios clínicos de não inferioridade. A experiência demonstra a utilidade de tais ensaios clínicos quando se necessita testar a eficácia de tratamentos. A utilização dos docinhos e a participação dos alunos como sujeitos do ensaio configuraram-se como uma metodologia ativa, de aproximação entre os educandos e seu objeto de estudo. O exercício realizado está de acordo com os modelos pedagógicos sugeridos pela teoria da aprendizagem significativa e pode servir de referência para iniciativas semelhantes.

Palavras-chave: Ensaios Clínicos; Educação; Educação Médica; Metodologia Ativa; Aprendizagem Significativa.

ABSTRACT

New challenges in education parallel with knowledge expansion. New research techniques have enabled major discoveries in science, together with a growing complexity of the studied themes. Students, part of the dynamic universe of the Internet, have also evolved and no longer fit the requirements of traditional pedagogy. For these new realities the way to educate in the twenty-first century requires a creative effort from educators, in order to convey knowledge that is increasingly complex. As an illustration of this new situation, we bring the report of a pedagogical experiment that sought, with the creativity of a fictitious intervention, to support the teaching of non-inferiority clinical trials. The experiment managed to show the usefulness of such clinical trials when there is the need to test the efficacy of treatments. The use of sweets and the participation of students as the test subjects constitute an active methodology, bringing students closer to their subject of study. The exercise conducted is in line with the pedagogical models suggested by the meaningful learning theory and can be used as a benchmark for similar initiatives.

Keywords: Clinical Trials; Education; Medical Education; Active Methodology; Meaningful Learning.

INTRODUÇÃO

A criação de metodologias de ensino eficazes é uma preocupação recorrente que acompanha a própria geração do conhecimento, já que o progresso científico, sendo um processo contínuo, depende da capacidade de produzir, transmitir e preservar o conhecimento. Esse tema torna-se ainda mais relevante em sociedades como a brasileira, que carecem de reformas estruturais no seu sistema educacional para vencer os desafios do baixo desempenho educacional e científico. Por essa razão, o presente estudo tem por objetivo discutir a relevância da adoção de métodos educacionais que se estabeleçam como alternativas aos correntes métodos tradicionais de difusão do conhecimento. Mais especificamente, propõe-se examinar a utilização de abordagens criativas na difusão de conhecimento, de maneira a aproximar os objetos de estudo da realidade cotidiana dos educandos, permitindo a correlação do conhecimento com sua aplicabilidade na vida das pessoas.

Os conhecimentos da área da saúde, dada a sua importância para a atuação do futuro profissional em benefício da sociedade, são de importância especial nessa forma de ensinar mais inclusiva e correlacionada. A própria experiência pedagógica tem o potencial de se converter em dividendos diretos para a sociedade quando, por exemplo, campanhas de conscientização sobre a importância da doação de órgãos nascem da integração do aluno ao seu processo de aprendizagem.

Um dos maiores desafios para o educador é encontrar os meios de aproximar o educando do objeto de estudo, fazendo com que ele desenvolva a relação sujeito-objeto, necessária no processo cognitivo de geração do conhecimento1. Ocorre que a exigência de assimilar conhecimentos para a aprovação em testes muitas vezes coloca o sujeito e o objeto numa situação de antagonismo, ao invés de aproximação. É neste aspecto que a aprendizagem significativa, conceito primeiramente elaborado por David Ausubel, tem muito a contribuir2. Para Ausubel e seus seguidores, há uma distinção clara entre as formas de aprendizado, sendo uma delas baseada em simples memorização, na qual o conhecimento é assimilado de forma arbitrária, sem a devida análise e hierarquização de importância; e a aprendizagem verdadeira, chamada pelo autor de aprendizagem significativa, na qual um conhecimento recém-adquirido passa a fazer parte do repertório de conhecimentos prévios do educando, tornando-se parte de um mapa mental mais complexo2.

Neste aspecto de "mapas conceituais", outro autor da mesma linha de Ausubel, Joseph Novak, muito contribuiu na busca de fórmulas de aprendizagem mais eficazes. Nos mapas conceituais, parte-se do princípio de que a assimilação de novos conhecimentos deve se pautar justamente por uma hierarquização destes junto aos conhecimentos que já fazem parte do repertório do aluno. Mais ainda, esses novos conhecimentos devem chegar por meio da aprendizagem significativa, aquela que verdadeiramente se internaliza e se alicerça na estrutura cognitiva do educando. Contudo, utilizar esta forma de aquisição do conhecimento deve partir da aceitação e escolha do estudante por aprender de forma significativa2. Daí, a importância de adotar estratégias pedagógicas que visem a maior integração do educando em seu processo de aprendizagem.

O grande problema nessa abordagem é sua dependência de conhecimentos prévios, que nem sempre estão corretos e que dão origem aos "equívocos", "conceitos alternativos", "noções ingênuas" e "noções pré-científicas"2. Uma vez que novas informações dependem de uma estrutura cognitiva preexistente, repleta de conceitos já internalizados pelo aluno, o aprendizado torna-se comprometido se o plano de base ou a raiz cognitiva estiverem corrompidos. Daqui, Novak levanta aquela que talvez seja a única característica positiva da aprendizagem por memorização. Como ela não depende de conceitos preestabelecidos, sendo meramente um exercício de memorização, a informação decorada não se torna corrompida por conceitos previamente assimilados2. Por outro lado, a questão suscita a grande responsabilidade do educador em garantir que seus alunos de fato compreendam de forma conceitualmente correta as informações que devem ser integradas ao seu repertório intelectual.

Outra problematização indispensável é a limitação do conhecimento memorizado em transitar por contextos distintos daquele original em que foi assimilado2. Na aprendizagem médica, essa questão torna-se ainda mais preocupante, já que se espera do estudante, e futuro profissional de saúde, que consiga justamente transpor conhecimentos de uma esfera para outra, bem como associá-los entre si. Aqui, Gomes e colegas nos alertam:

A integração de novas informações, com a aprendizagem significativa, facilita a aplicação do conhecimento em atividades mais complexas, como, por exemplo, na apreciação de casos clínicos, importantes para os estudos na área de saúde1 (p. 107).

E vão além, abordando ainda a correlação do conhecimento com a prática:

A aprendizagem significativa deve incentivar o estudante a aplicar a informação de forma prática; ela, assim, integra-se mais facilmente - e de forma mais completa -, sendo valorizada de acordo com seu significado1 (p.107) .

Motivados por esse desafio pedagógico, alunos da disciplina de Metodologia Científica do curso de pós-graduação em Ciências da Saúde: Cardiologia, da Fundação Universitária de Cardiologia do RS, foram solicitados a realizar uma tarefa de intervenção fictícia: criar uma atividade que acrescentasse um instrumental pedagógico ao ensino dos ensaios de não inferioridade, de forma a chamar a atenção dos alunos e envolvê-los nos domínios do assunto, assim como aproximar o tema por meio de uma abordagem mais cotidiana e familiar.

Com este objetivo, os alunos escolheram verificar o efeito de docinhos sobre o humor dos colegas. Para melhor compreensão dessa experiência e de seus objetivos, faremos uma breve exposição sobre os ensaios de não inferioridade, para então relatar a experiência pedagógica auxiliar criada pelos alunos e, por fim, estabelecer os possíveis benefícios correspondentes.

OS ENSAIOS DE NÃO INFERIORIDADE

Os ensaios de não inferioridade referem-se a testes e pesquisas realizados com o intuito de analisar comparativamente a eficácia de tratamentos. O problema se orienta da seguinte maneira: partindo-se da existência de um medicamento de referência adotado no tratamento de determinada doença, deseja-se testar a eficácia de um fármaco ou tratamento alternativos. Porém, como se trata de um teste voltado a conhecer o efeito do tratamento sobre uma condição para a qual já há um tratamento-padrão, a conduta ética e o procedimento clínico descartam imediatamente a possibilidade de realizar um teste de eficácia ministrando-se placebos ao grupo de controle da pesquisa. A implicação ética é bastante simples de compreender, já que não seria aceitável sujeitar o grupo controle a um placebo, uma vez que já se conhece um tratamento de referência que é eficaz3.

Essa questão enseja um problema: uma vez descartado o uso do placebo, como manejar o grupo controle para verificar a eficácia do medicamento que se quer testar? Os ensaios de não inferioridade surgem para responder a essa questão, adotando o tratamento de referência como grupo controle. Um novo tratamento, surgido desses ensaios, será recomendado se for similar ou melhor que aquele já existente, mas não se for pior que certo limite pré-estipulado (diferença clínica relevante)4.

O conceito dos ensaios de não inferioridade parece bastante simples se colocado dessa maneira. Mas a verdade é que esses ensaios envolvem informações estatísticas complexas e, para serem legítimos, precisam partir de um direcionamento adequado das questões a serem formuladas como fundamentos da pesquisa de não inferioridade. De maneira mais prática, ao compararmos dois fármacos com o intuito de decidir se um é não inferior ao outro, corremos o risco de chegar a uma resposta negativa, que desconsidera certas nuances possíveis em qualquer comparação3. Em outras palavras, um fármaco pode ser similar a outro, porém isto não significa necessariamente que ambos sejam efetivos.

Posto dessa forma, vemos que os ensaios de não inferioridade são mais intrincados do que se poderia pensar à primeira vista, já que comparações demasiadamente simplistas podem conduzir a respostas equivocadas. Neste aspecto, Haynes e colegas nos apontam que "Não apenas os autores, mas também os editores e sobretudo os leitores caem regularmente na armadilha de concluir que a 'ausência de prova de uma diferença' entre dois tratamentos constitui uma 'prova da ausência de diferença entre eles'"3(p.220) . Ou seja, o fato de a pesquisa, da maneira como foi formulada, não apontar diferenças entre dois tratamentos não significa que essa diferença não exista, mas tão somente que com base na metologia utilizada não foi possível identificar essa diferença.

De forma geral, ensaios de não inferioridade apresentam dois riscos importantes: o primeiro deles, conhecido como erro do tipo I, refere-se à aprovação equivocada de um novo tratamento, quando de fato ele é inferior ao tratamento de referência; o segundo, conhecido como erro do tipo II, refere-se à rejeição - ou reprovação no teste - de um tratamento que, de fato, é não inferior ao de referência4. Para minimizar as chances de ocorrência desses erros, os principais critérios a considerar como proteção são o cálculo da margem de diferença tolerada e o tamanho da amostra que irá compor o ensaio5. Além dos erros aleatórios descritos, há a possibilidade concreta de erro sistemático. Como os ensaios de não inferioridade têm a hipótese de que não existe diferença importante entre os dois tratamentos, o viés causado pela contaminação entre os grupos pode levar a uma diluição das diferenças e, consequentemente, à conclusão errônea de que não existem diferenças, quando, na realidade, elas existem.

Ensaios de não inferioridade são um mecanismo de prospecção de novas drogas ou terapias clínicas em que o tratamento de referência se torna um parâmetro de comparação para o grau mínimo aceitável de eficácia do objeto testado6. O objetivo é demonstrar que a hipótese terapêutica considerada preserva ao menos parte da capacidade de ação do tratamento de referência, eventualmente agregando benefícios novos, como custo ou facilidade de utilização. Embora a pergunta faça sentido clinicamente, os aspectos metodológicos complexos - incluindo elementos de um estudo histórico no qual a efetividade de cada um dos tratamentos não é testada diretamente - têm gerado controvérsias na literatura.

Em face do exposto, depreende-se a dificuldade em discutir esses conceitos no contexto de uma disciplina de metodologia científica, sendo necessário buscar alternativas de ensino que envolvam o aluno na construção desse conhecimento.

MÉTODOS: A EXPERIÊNCIA DOS DOCINHOS

Empenhados na tarefa de criar uma abordagem correlacionada e criativa nos estudos dos ensaios de não inferioridade, alunos da disciplina de Metodologia Científica tiveram a ideia de reproduzir um ensaio de não inferioridade recorrendo a uma intervenção fictícia: monitorar o efeito que certos docinhos teriam sobre o humor de seus colegas durante a aula.

Nessa intervenção, foram realizados dois ensaios clínicos randomizados abertos, ambos incluindo toda a turma da disciplina de Metodologia Científica (20 alunos). No primeiro deles, estruturou-se um ensaio clínico controlado com placebo, em que se testou a hipótese de que o doce "beijinho" melhoraria o humor dos alunos no período pós-prandial. O grupo "beijinho" recebeu o doce de leite condensado e coco, ao passo que o grupo "placebo" recebeu um placebo de beijinho, com maisena e leite, com a mesma aparência, tamanho e cheiro do primeiro. Através de um software específico, realizou-se a randomização dos grupos em blocos de quatro pessoas por grupo. Os doces foram distribuídos de forma sequencial de acordo com a ordem gerada pelo software, que estava de posse de um dos idealizadores da experiência. O desfecho avaliado neste estudo foi a "melhora subjetiva do humor", avaliada aproximadamente cinco minutos após o consumo do doce (ou placebo).

No segundo ensaio, testou-se o efeito do doce "brigadeiro", comparado ao beijinho. Sendo provada a superioridade do beijinho no primeiro ensaio, não seria ético testá-lo contra o placebo e, desta forma, esse segundo ensaio avaliaria o potencial de não inferioridade do brigadeiro sobre o beijinho. Assim como no primeiro ensaio clínico, o grupo "beijinho" recebeu o doce de leite condensado e coco, ao passo que o grupo "brigadeiro" recebeu o doce de leite condensado e chocolate, que, por motivos lógicos, não poderia apresentar a mesma aparência do primeiro. Procedeu-se à randomização em blocos de quatro pessoas por grupo, e os doces foram distribuídos de forma sequencial de acordo com a ordem gerada pelo software. Da mesma forma, avaliou-se o desfecho da "melhora subjetiva do humor" após aproximadamente cinco minutos do consumo do respectivo doce.

Em ambos os ensaios, a análise estatística foi realizada por meio do teste exato de Fisher imediatamente após a degustação do respectivo docinho (ou placebo). Foram considerados significativos valores de p < 0,05.

RESULTADOS

No primeiro "ensaio clínico", o beijinho mostrou-se significativamente superior ao placebo na melhora do humor dos alunos (RR: 0,11 p < 0,01). No segundo ensaio, não houve diferença significativa. Propositalmente, após a apreciação gastronômica, realizou-se o cálculo do tamanho amostral necessário a cada um dos ensaios clínicos. No primeiro caso, supondo-se que 90% daqueles que receberam o beijinho melhorariam o humor, ao passo que a melhora aconteceria apenas em 10% dos que receberam placebo, assumindo um poder de 80% e um alfa de 5% para um teste exato de Fisher bicaudal, a amostra deveria ser de 16 pessoas, que foi alcançada com os 20 alunos. No segundo caso, todavia, para que se encontrasse uma diferença que não fosse superior a 5% entre os grupos (arbitrariamente considerada margem de inferioridade), com um poder de 80% e um alfa de 5% para um teste exato de Fisher unicaudal, a amostra deveria ser de 1.160 pessoas - o que reforça o conceito de que a ausência de evidência não é evidência de ausência.

Dessa forma, a experiência serviu para que se concluísse que, quando uma classe de drogas está estabelecida como padrão de tratamento, não é possível testá-la contra placebo. Os estudos de não inferioridade são realizados quando é esperada uma frequência semelhante de desfechos maiores entre duas drogas muito semelhantes (por exemplo, da mesma classe) com possíveis vantagens em algum outro aspecto, como famacocinética. No entanto, o raciocínio de teste de hipóteses unicaudal subjacente a esses estudos é de difícil transposição imediata para o raciocínio científico bicaudal usual. A atividade prática de realização de ensaios teve significativo impacto sobre a compreensão dos estudantes e pode ser adotada em outros contextos, para esclarecimento dos clínicos sobre estes importantes conceitos.

DISCUSSÃO

Ao se discutir a educação, é de significativa importância avaliar os métodos mais eficazes para o aprendizado. Dada a complexidade de certos assuntos e a diversa capacidade de abstração dos alunos, a formulação de metodologias alternativas às tradicionais formas expositivas de conteúdo inspira especial atenção. Dentre essas metodologias, aquelas que visam aproximar o aluno do seu objeto de estudo, colocando-o como protagonista de experimentos e, assim, cooperador ativo da construção do seu conhecimento, apresentam um papel pedagógico relevante e, por vezes, subvalorizado.

Parece cristalizada no ensino uma visão excludente do conhecimento em que assuntos são hierarquizados e valorizados por seu grau de complexidade. Assim, temas considerados difíceis permanecem amarrados pedagogicamente, como se meios alternativos e mais criativos de disseminar o conhecimento fossem contaminar o objeto e destituí-lo de valor. Como resultado, perpetua-se a restrição do conhecimento e o afastamento dos alunos de assuntos fundamentais, porém de difícil compreensão, como o cálculo, nas ciências exatas, e o Ciclo de Krebs, nas biológicas, apenas para citar dois exemplos. Antes de serem destituídos de seu status de importância, por ora fundamentado no seu grau de complexidade, esses tipos de objeto têm muito a ganhar em relevância uma vez que sejam mais bem compreendidos pelos alunos por meio de abordagens pedagógicas mais criativas, interessantes e estimulantes.

À parte da dimensão do valor associado ao grau de dificuldade, muitos assuntos da esfera do conhecimento humano foram restritos ao universo acadêmico, afastando certos conteúdos do contato com não especialistas. Por essa mesma restrição de público, parece que se negligencia a busca por metodologias de ensino mais palatáveis ao aluno, já que tradicionalmente se presume que o cientista não é mais aluno e, portanto, dispensa facilitadores para sua assimilação de conhecimento. Evidentemente, tal assunção é falha, já que o cientista não é outro senão um constante aprendiz.

Além da questão da assimilação, a didática adequada na condução do ensino permite aproximar o aluno do objeto, recuperando este último de sua dimensão meramente abstrata. Ao posicioná-lo junto ao cotidiano do aluno, o objeto ganha utilidade imediata e, assim, a devida atenção e consideração necessária, ajudando a romper a barreira do grau de dificuldade que talvez envolva o assunto.

Por outro lado, a adoção de métodos didáticos de ensino não se traduz na abolição das práticas tradicionais da exposição e da leitura. Trata-se mais de uma associação de metodologias do que de uma substituição, já que o oposto faria incorrer no risco de, por um lado, manter a inacessibilidade a certos conteúdos e, por outro, simplificar excessivamente e de maneira insuficiente a análise de um objeto, prejudicando sua compreensão mais abrangente. Tomem-se, como ilustração, as disciplinas de currículo teórico e prático, em que uma aula não substitui a outra, mas mutuamente se complementam para melhor compreensão de um objeto de estudo. Neste aspecto, o educador Paulo Freire assim sintetiza:

Outra virtude [do educador] é a de viver intensamente a relação profunda entre a prática e a teoria, não como superposição, mas como unidade contraditória. Viver esta relação de tal maneira que a prática não possa prescindir da teoria [...] Não há por que negar o papel fundamental da teoria. Entretanto, a teoria deixa de ter qualquer repercussão se não existir uma prática que a motive7 (p.6) .

Há ainda que se mencionar um possível benefício na capacidade de retenção do aprendizado baseado na utilização de um recurso experimental na metodologia de ensino. Um dos grandes desafios de qualquer método de ensino-aprendizagem é justamente possibilitar a criação de um conhecimento duradouro, o aprendizado significativo de Ausubel1, que vá além de uma memorização circunscrita à esfera da preparação para, por exemplo, uma prova e que vença a tão corriqueira experiência do "já estudei sobre isso, mas não me lembro bem do que se trata" ou então "eu ainda me lembro da fórmula, só não sei para que serve". A criação de uma memória oriunda de um experimento realizado como ilustração para determinado conteúdo parece colaborar nesse sentido, reforçando o valor de uma metodologia mais criativa na educação. Na dedicatória de seu famoso livro de anatomia, os autores Keith L. Moore e Arthur F. Dalley trazem um aforismo que resume de maneira primorosa essa ideia: "Aos nossos alunos: vocês lembrarão um pouco do que ouviram, muito do que leram, mais do que viram e, sobretudo, do que experimentaram e amplamente compreenderam"8(p.IX) .

Toda essa discussão, embora extremamente atual, não é nova ou negligenciada historicamente. Ao contrário, ela é alvo de constantes formulações teóricas e de tentativas de elaboração de manuais voltados à educação e sua reforma. Considerando apenas dois extremos, podemos tomar duas abordagens pedagógicas já amplamente problematizadas: a tendência da pedagogia tradicional, pautada pelo método expositivo e autoritário de ensino, centrado no professor e desassociado das realidades externas e cotidianas dos objetos de estudo; e uma tendência mais nova, chamada de pedagogia da problematização, que busca efetivamente inserir o educando no processo educativo, transformando-o em membro ativo da construção de seu aprendizado e criando uma intersecção entre o objeto de estudo e a realidade externa9. Essa segunda tendência parece preferível na educação em saúde, já que os objetos dessa área não podem se dissociar da observação constante do cotidiano mutável das realidades sociais. Ademais, sendo a educação em saúde uma instrumentalização para práticas de intervenção futura, nada mais natural que ensinar de maneira também interveniente e participativa, fazendo com que o ensinamento seja sempre baseado no exercício constante do questionamento e da adaptação a realidades momentâneas, e não em um arcabouço engessado de prescrições alheias às realidades pontuais.

CONTRIBUIÇÃO DOS AUTORES

Todos os autores participaram igualmente da confecção do artigo.

CONFLITO DE INTERESSES

Os autores declaram que não possuem conflito de interesses.

Recebido em: 09/07/2013

Reencaminhado em: 07/12/2013

Reencaminhado em: 16/02/2014

Aprovado em: 27/02/2014

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  • Endereço para correspondência:
    Lucia Campos Pellanda
    Av. Princesa Isabel, 370
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    CEP 90620-000 - RS
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Set 2014
    • Data do Fascículo
      Set 2014

    Histórico

    • Recebido
      09 Jul 2013
    • Aceito
      27 Fev 2014
    • Revisado
      16 Fev 2014
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