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Formação para a Estratégia Saúde da Família na Graduação em Medicina

The Family Health Strategy in Undergraduate Medical Training

Resumos

A adoção da Estratégia Saúde da Família (ESF) como modelo de reorientação da Atenção Básica tornou necessário um novo tipo de profissional médico. Este estudo objetiva analisar a formação médica adquirida na graduação em Medicina para o desenvolvimento das ações exigidas pela ESF e identificar lacunas dessa formação.Foram conduzidas entrevistas semiestruturadas com 37 médicos residentes de Medicina de Família e Comunidade de unidades de saúde de Fortaleza (CE)de setembro a dezembro de 2007. Os depoimentos foram categorizados e apreciados mediante a técnica de Análise de Conteúdo. Observou-se que já ocorrem mudanças na formação médica, embora ainda haja muitas lacunas a preencher. Novos currículos,mais voltados para a Atenção Básica, permitiram que os médicos recém-formados se sentissem mais preparados para atuar na ESF, ao contrário dos profissionais formados em currículos antigos.

Medicina de Família e Comunidade; Estratégia Saúde da Família; Graduação em Medicina; Educação Médica


The adoption of the Family Health Strategy (FHS) as a model for reorientation of primary care has demanded a new kind of medical professional. Our study aims to analyze undergraduate medical training in terms of developing the actions required by the FHS, and to identify gaps in undergraduate training. We conducted semi-structured interviews with 37 resident-doctors of Family and Community Medicine at health centers in Fortaleza-CE between September and December 2007, and their statements were categorized and assessed using the content analysis method. We observed that changes are already occurring in medical training, with many gaps still to be filled, and that new curricula more focused on primary care have allowed doctors to feel more prepared to act in the FHS, in contrast to the graduates in former curricula.

Family and Community Medicine; Family Health Strategy; Medical Graduation; Medical Education


INTRODUÇÃO

A implantação da Estratégia Saúde da Família (ESF) em 1994 abriu um campo de trabalho importante para os profissionais egressos dos cursos de Medicina, provocando reformas curriculares orientadas para esta nova realidade. Até então, a educação médica do século XX era baseada nas propostas de Abraham Flexner, cujo famoso relatório lançado em 1910 serviu de base para a reforma do ensino das escolas de Medicina dos Estados Unidos e Canadá na década de 19201Marsiglia RMG. Perspectivas para o ensino das ciências sociais na graduação odontológica. In:Botazzo C, Freitas SFT. Ciências sociais e saúde bucal. São Paulo: UNESP/EDUSC;1998.p.175-96..

Com efeito, os currículos dos cursos de graduação das escolas médicas e áreas afins se estruturaram em departamentos e disciplinas isolados, com muito pouca interação,o que levou a uma fragmentação do conhecimento em especialidades, deixando à margem a abordagem da saúde e do ser humano como um todo. Outro ponto a considerar é o ensino atrelado quase exclusivamente ao hospital universitário, não havendo integração entre as universidades e os demais serviços de saúde.

Na América Latina, a reforma dos cursos da área da saúde e a implantação de novos cursos nesta área começaram na década de 1940, também com base no modelo flexneriano. Com esta breve abordagem histórica, configuram-se as raízes do modelo de ensino na área da saúde, bem como de suas práticas, que até hoje perduram em muitos países, inclusive no Brasil.

Na segunda metade do século XX, começaram a surgir tensões e questionamentos sobre o modelo de ensino até então adotado, deixando evidente que esse paradigma voltado em demasia para as especialidades não estava mais satisfazendo, e outro paradigma precisava surgir.Após longa caminhada, chegamos à adoção da ESF como modelo de reorientação da Atenção Básica no Brasil, a qual torna necessário um novo tipo de profissional, com uma visão sistêmica e integral do indivíduo, família e comunidade, que trabalhe de forma humanizada, articulando ações de promoção, de proteção específica, ações de assistência e de reabilitação. Os sistemas de saúde,contudo, não dispunham de um número suficiente de profissionais qualificados com esse novo perfil2Castro VS. Residência de Medicina de Família e Comunidade: avaliação da formação. Fortaleza; 2007. Mestrado [Dissertação] - Programa de Mestrado Acadêmico em Saúde Púbica, Universidade Estadual do Ceará..

Um estudo sobre o perfil dos médicos e enfermeiros do Programa Saúde da Família (PSF) no Brasil, conduzido por Machado3Machado MH, coord. Perfil dos médicos e enfermeiros do PSF no Brasil e grandes regiões: relatório final. Brasília: Ministério da Saúde; 2000., já assinalava que a quase totalidade desses profissionais expressava a necessidade de maior aprimoramento técnico-científico, salientando a importância dos processos de qualificação para esta nova tendência na assistência e cuidados de promoção à saúde. Capozzolo4Capozzolo AA. No olho do furacão: trabalho médico e o programa saúde da família. Campinas; 2003. Doutorado [Tese] - Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva, Universidade Estadual de Campinas. (p. 274), estudando o trabalho médico e o PSF, em tese de doutorado no município de São Paulo, constatou a existência de limites na formação dos profissionais, especialmente para a intervenção “em casos que envolviam complexa dinâmica familiar, problemas emocionais e sociais”, além de apontar “o insuficiente apoio e retaguarda de outras áreas do conhecimento”.

Mais recentemente, um estudo de Medeiros et al.5Medeiros CRG, Junqueira AGW,Schwingel G, Carreno I, Jungles LAP, Saldanha OMFL. A rotatividade de enfermeiros e médicos: um impasse na implementação da estratégia de saúde da família. Ciênc Saúde Coletiva, 2010; 15 (Supl.1), 1521-31.(p.1529) aponta alta rotatividade de médicos e enfermeiros atuantes na Estratégia de Saúde da Família, com uma tendência de aumento desta rotatividade à medida que são implantadas mais equipes da ESF, tendo como causas principais o “vínculo precário na contratação”, “dificuldades de relacionamento político entre profissional e gestor”e “realização profissional nas atividades desenvolvidas no âmbito dessa política”.

Ainda sobre o assunto, acrescenta Nogueira6Nogueira MI. As mudanças na Educação Médica Brasileira em nova perspectiva: reflexões sobre a emergência de um novo estilo de pensamento. Rev Bras Educ Méd. 2009; 33(2): 262-70. que os serviços de saúde também não se encontram devidamente preparados para a formação de pessoal na área da saúde e que tal situação representa um dos principais entraves à implementação e consolidação das mudanças na formação profissional em saúde, configurando um desafio que necessita urgentemente ser enfrentado. O mesmo autor acentua ainda que a resistência às mudanças é muito grande, e, na maioria dos casos, o currículo médico continua privilegiando a formação técnica e o conhecimento biológico, dissociado dos aspectos históricos, sociais, psicológicos e culturais que permeiam o adoecimento humano.

Embora concordemos com Briani7Briani MC. O ensino médico no Brasil está mudando? Rev Bras Educ Méd. 2001; 25(3): 73-7. em que a solução para os impasses no campo da saúde não será encontrada apenas nos projetos de mudança na educação médica, dependendo muito mais da maneira como a sociedade encara a construção da saúde, percebemos que mudanças paulatinas ocorrem no ensino médico, tanto na graduação como na pós-graduação,ensejando resultados positivos.

No plano da pós-graduação, destacamos a criação e ampliação dos Programas de Residência em Medicina de Família e Comunidade (PRMFC), que são cursos de especialização lato sensu, caracterizados pelo treinamento em serviço e considerados pela Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade como “a estratégia pedagógica ideal para a formação do especialista da integralidade”8Castro-Filho ED. A especialização em MFC e o desafio da qualificação médica para a Estratégia Saúde da Família: proposta de especialização, em larga escala, via educação à distância.Rev Bras Med Fam Com. 2007; 11(3):199-209. (p.201).Segundo Mello et al.9Mello GA, Mattos ATR, Souto BGA, Fontanella BJB, Demarzo MMP. Médico de família: ser ou não ser? Dilemas envolvidos na escolha desta carreira.Rev Bras Educ Méd. 2009; 33(3):475-82., em apenas seis anos (de 2002 a 2007), o número desses programas passou de 28 para 65, e as vagas disponíveis cresceram de 185 para 560.

Já na graduação,um importante marco na renovação do ensino médico foi a homologação, em 2001, das novas Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina1010 Brasil. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Superior. Resolução CNE/CES nº4 de 7 de novembro de 2001. Institui diretrizes curriculares nacionais do curso de graduação em Medicina. Diário Oficial da União. Brasília, 9 nov. 2001; Seção 1, p.38., que serviram de base para a modernização dos projetos político-pedagógicos das escolas médicas brasileiras ocorrida ao longo da década de 2000. Estas diretrizes, além de vincularem a formação médico-acadêmica às necessidades sociais de saúde com ênfase no SUS, delinearam o perfil ideal do profissional recém-egresso como sendo o de um médico com formação generalista, humanista, crítica e reflexiva, enfatizando a formação em atitudes voltadas para a saúde, cidadania, a comunidade e a atuação em equipe1111 Lampert JB. Tendências de mudanças na formação médica no Brasil. São Paulo: ABEM/Hucitec; 2002..

Dando continuidade ao trabalho de Castro e Nóbrega-Therrien1212 Castro VS, Nóbrega-Therrien SM. Residência de Medicina de Família e Comunidade: uma estratégia de qualificação.Rev Bras Educ Méd. 2009; 33(2):211-20.−que avaliou o PRMFC da Secretaria Municipal de Saúde de Fortaleza como estratégia de qualificação para os profissionais do Programa Saúde da Família deste município−,nosso estudo tem agora como objetivo analisar a formação médica adquirida durante a graduação em Medicina para o desenvolvimento das ações exigidas pela Estratégia Saúde da Família, além de verificar as dificuldades e facilidades enfrentadas por estes profissionais e identificar as lacunas da formação no contexto de graduação.

METODOLOGIA

Este estudo constitui uma pesquisa de abordagem predominantemente qualitativa, de natureza descritiva e exploratória. A unidade geográfica de investigação foi o município de Fortaleza (CE) no final do ano de 2007.

Os sujeitos pesquisados foram os médicos residentes de Medicina de Família e Comunidade (MFC) da Secretaria Municipal de Saúde de Fortaleza. Este Programa de Residência Médica teve início em março de 2006, e seu objetivo principal é formar médicos com as competências necessárias (conhecimentos, habilidades e atitudes) para atuar na especialidade de Medicina de Família, dentro da rede municipal de saúde de Fortaleza, compondo as Equipes de Saúde da Família e, consequentemente, aumentando a resolubilidade dos serviços de Atenção Básica, criando,assim, espaços de práticas concretos e qualificados de formação de pessoal1212 Castro VS, Nóbrega-Therrien SM. Residência de Medicina de Família e Comunidade: uma estratégia de qualificação.Rev Bras Educ Méd. 2009; 33(2):211-20..

De acordo com o programa,com duração de dois anos, as atividades dos residentes se realizavam na comunidade, na Unidade Básica de Saúde e em ambulatórios. À época da coleta dos dados,os residentes estavam realizando atividades em ambulatórios e finalizando seu primeiro ano de residência, etapa importante para uma avaliação sobre a contribuição de sua formação na graduação para o desenvolvimento das atividades então exigidas.No ambulatório e demais espaços de atendimento realizado pelos residentes, o foco se concentrava na ESF, e nossa intenção, além de conhecer a contribuição da sua formação na graduação, era identificar facilidades e dificuldades, bem como lacunas dessa formação para a realização de sua residência.

Aceitaram participar do estudo todos os 37 residentes do referido programa. Foi utilizado como instrumento de coleta de dados o questionário para entrevistas semiestruturadas, as quais foram gravadas e transcritas. Os depoimentos dos participantes foram identificados pela letra R, acompanhada de um número, significando o residente 1, 2, 3 até o residente número 37. O período da coleta ocorreu nos meses de setembro a dezembro de 2007.

Os depoimentos foram organizados em temáticas para a realização das análises,as quais foram conduzidas com a utilização da Análise de Conteúdo, de Bardin. Esta técnica consiste em descobrir os “núcleos de sentido” que compõem a comunicação e cuja presença ou frequência de aparição podem significar algo para o objetivo analítico escolhido1313 Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 1977..

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual do Ceará, sob o processo de nº 06504372-3.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A categorização das respostas é condizente com os objetivos traçados no estudo, e as categorias foram elaboradas com base nas questões norteadoras contidas no questionário aplicado aos alunos/residentes. Com esteio nesta compreensão, elaboramos cinco categorias de análise: formação na graduação x qualificação para trabalhar com a ESF;dificuldades para trabalhar em unidades de Saúde da Família; facilidades para trabalhar em unidades de Saúde da Família; graduação médica: lacunas na formação para trabalhar como médico de família; formação x contexto da medicina atual. Vejamos a seguir.

Formação na graduação x qualificação para trabalhar com a ESF

Nesta categoria, percebemos a polarização das respostas em três grandes grupos: (i) médicos formados no Brasil há mais de dois anos; (ii) médicos formados no último ano e em vigência do novo currículo de uma escola médica local;(iii) médicos formados em Cuba.

Os residentes formados há mais de dois anos responderam que não se sentiam preparados para trabalhar com a ESF. As justificativas foram:

“O currículo é fragmentado”.(R1)

“Falta ensino sobre como fazer atividades em grupo, trabalhar a prevenção e em equipe”.(R2)

“Não tive contato com disciplinas voltadas para a medicina familiar”.(R5)

“Tive uma formação voltada para o modelo hospitalar, sem contato com os postos de saúde”.(R6)

“A gente não tinha contato com as UBS [Unidades Básicas de Saúde].A formação era toda dentro de hospitais. A gente não conhecia a realidade da Atenção Básica. A faculdade prepara você mais para as especialidades e não temos a visão do todo”. (R10)

Os relatos mostram que os sujeitos se posicionam exatamente no paradigma flexneriano, caracterizado por: predominância de aulas teóricas, enfocando a doença e o conhecimento fragmentado em disciplinas;prática desenvolvida predominantemente no hospital;capacitação docente centrada unicamente na competência técnico-científica; e mercado de trabalho referido apenas pelo tradicional consultório, onde o médico domina os instrumentos diagnósticos e os encaminhamentos, e cobra seus honorários sem intervenções de terceiros1111 Lampert JB. Tendências de mudanças na formação médica no Brasil. São Paulo: ABEM/Hucitec; 2002..

Revelam-nos Ferreira et al.1414 Ferreira RC, Fiorini VML, Crivelaro E. Formação Profissional no SUS: o papel da atenção básica em saúde na perspectiva docente. Rev Bras Educ Méd. 2010; 34(2):207-15. que é na prática profissional centrada em cenários hospitalares que tradicionalmente se desenvolvemos currículos médicos e de Enfermagem, nos quais a formação profissional da saúde ampliada, humanista e generalista não é eficazmente estimulada. Assim, destaca-se a necessidade de diversificar os cenários de ensino-aprendizagem para a formulação de novos currículos e sujeitos.

É importante considerar que é na diversificação desses cenários que emergem questões sobre a abordagem integral do indivíduo, o cuidar das pessoas de forma integral. Se recebemos uma formação fragmentada, pensando o sujeito como um conjunto de órgãos, como iremos conceber na prática de serviço um ser por inteiro, socialmente construído? As instituições formadoras precisam promover um perfil profissional direcionado para a integralidade da atenção, para lidar também com os aspectos subjetivos, exigidos pelo cuidado em saúde, com foco em uma formação mais contextualizada, que associe dimensões sociais, econômicas e culturais à vida da população.Nesse sentido, Botazzo1515 Botazzo C. Integralidade da atenção e produção do cuidado: perspectivas teóricas e práticas para a clínica odontológica à luz do conceito de bucalidade. In: Lopes MGM. Saúde bucal coletiva: implementando ideias, concebendo integralidade. Rio de Janeiro: Editora Rubio; 2008. p. 3-15. assinala que devemos considerar que a integralidade tem múltiplas dimensões e que poucas se realizam na saúde ou são passíveis de concretização nos serviços ou na atuação do profissional de saúde;e que, ao pensar no homem doente, temos que pensar na sociedade, que é produtora de todas as formas de fragmentação e da fragmentação do homem nela.

No processo de aprendizagem,também é necessário que ocorram trocas entre a teoria e a prática, orientando a apreensão de saberes e tendo os docentes como facilitadores dessa relação.Observamos que o atual modelo de ensino é sustentado pela concepção de que primeiro o aprendiz domina a teoria para depois entender a prática e a realidade. Este modelo tem definido a prática como comprovação da teoria e não como sua fonte desafiadora, localizando-a, quase sempre, no final dos cursos, em forma de estágio1616 Oliveira GS, Koifman L. A integralidade do currículo de medicina: inovar/transformar um desafio para o processo de formação. In: Marins JJ, Rego S, Lampert JB, Araújo JGC. orgs. Educação médica em transformação: instrumentos para a construção de novas realidades. São Paulo: ABEM/Hucitec; 2004. p.143-64..

Dos seis residentes formados no último ano já com o novo currículo de uma escola médica local,apenas um disse não se sentir preparado, pois relata que na sua graduação não havia disciplinas que contemplassem a Medicina de Família.

“Não, não víamos disciplinas que contemplassem a medicina familiar”. (R17)

Provavelmente, este médico deve ter iniciado a graduação no currículo antigo e feito a transição para a nova estrutura curricular ao longo do curso, uma vez que seu relato está em franca contradição com os depoimentos dos demais médicos que se formaram com o novo currículo e que se expressaram da seguinte forma, quando interrogados se consideravam preparados para atuar na ESF:

“Sim, pois a minha formação baseava-se nas ações primárias de saúde”. (R28)

Sim, tive três disciplinas voltadas para a saúde comunitária”. (R29)

“Sim, pois o currículo novo já tem uma visão voltada para a Atenção Primária”.(R31)

“Sim, pois tivemos um currículo voltado para a Medicina de Família, porém eu acho que fazer uma Residência de Medicina de Família e Comunidade é indispensável”.(R32)

Os demais residentes formados em Cuba se achavam preparados para atuar com a ESF:

“Sim, pois toda a minha formação foi voltada para a atenção integral do indivíduo, da família e da comunidade”.(R24)

Nesses relatos, podemos captar uma mudança curricular na formação desses profissionais, mas talvez ainda incipiente.E nos questionamos: será que os novos currículos estão contemplando a Medicina de Família, mas em um modelo de ensino fragmentado entre teoria e prática,com a mera inclusão de disciplinas teóricas isoladas ou de breves estágios sem envolvimento dos estudantes com e na comunidade?Entendemos que é a participação na vida cotidiana da comunidade que pode levar à construção de novos conhecimentos e mudanças que se encaminhem para a melhoria da saúde das populações. Trabalhar nesses novos cenários é desafiador. Para Ferreira et al.1414 Ferreira RC, Fiorini VML, Crivelaro E. Formação Profissional no SUS: o papel da atenção básica em saúde na perspectiva docente. Rev Bras Educ Méd. 2010; 34(2):207-15., é necessária a problematização das práticas e dos saberes, incentivando a produção de conhecimento nos serviços.

Dificuldades para trabalhar em unidades de Saúde da Família

Foram apontados vários problemas que dificultam o atendimento nas unidades de Saúde da Família. A seguir destacamos os mais relevantes.

Cerca de 40% dos residentes (15) relataram problemas estruturais das unidades, como:

“Infraestrutura deficiente nas unidades de Saúde de Fortaleza”.(R2)

Aproximadamente 30% dos residentes (11) relataram baixa cobertura da ESF e consequente demanda excessiva:

“Problemas estruturais, de falta de profissionais, gerando demanda excessiva e dificultando o acompanhamento da população”.(R12).

Cerca de 27% dos residentes (10) relataram equipes incompletas e falta de agentes comunitários de saúde (ACS):

“Falta de ACS e cobertura incompleta das equipes”.(R14)

Por fim, quase 14% dos residentes (5) relataram desconhecimento da população sobre o que é a ESF:

“Falta de conhecimento por parte da população de como funciona a ESF”.(R4)

“A cultura do povo voltada para o hospital e falta de estrutura dos serviços de saúde para abraçar a mudança imposta pela ESF”.(R13)

“A população só entende a cultura da “cura” e não da “prevenção””.(R15)

As dificuldades ora apontadas constituem também fatores que levam a não atração dos profissionais de saúde para o trabalho na Estratégia Saúde da Família. Condições inadequadas de trabalho, baixos salários, equipes de trabalho incompletas, demanda excessiva, falta de estímulo ao crescimento profissional e, atrelada a isso, a falta de reconhecimento desse profissional constituem um cenário que os distancia da ESF.

Facilidades para trabalhar em unidades de Saúde da Família

Quando indagamos sobre facilidades, foi constatado que 10 residentes (27%) não responderam. Então, voltamos a nos questionar: será que é mais fácil apontar defeitos do que elogiar?Os residentes disseram que a boa relação com a equipe da unidade de saúde (5 deles −13,5%), a aproximação com a comunidade(5 deles −13,5%) e a possibilidade de cursar uma residência médica(5 deles −13,5%) são as questões que mais facilitam o trabalho nas UBS, conforme atestam as respostas seguintes:

“A boa interação com a equipe do posto”.(R4)

“É a possibilidade de nos qualificar por meio da RMFC”.(R15)

“Aproximação entre o médico e família, facilitando uma visão mais ampla dos problemas do paciente”.(R16)

A Medicina da Família tem papel relevante no reconhecimento do que representa a família e qual a sua influência no estado de saúde de seus componentes. O médico de família, por meio de um contato mais próximo com a população, percebe melhor as necessidades e demandas desta população e, portanto, pode oferecer um atendimento mais próximo da realidade de cada indivíduo.

Cabe refletir aqui também sobre a interação das equipes de trabalho. É salutar ouvir relatos dessa boa interação de profissionais, pois sabemos que em muitas equipes isso não acontece. Revelam-nos Ceccim e Capozzolo1717 Ceccim RB, Capozzolo AA. Educação dos profissionais de saúde e afirmação da vida: a prática clínica como resistência e criação. In: Marins JJ, Rego S, Lampert JB, Araújo JGC. orgs. Educação médica em transformação: instrumentos para a construção de novas realidades. São Paulo: ABEM/Hucitec; 2004. p.346-90. que o padrão predominante da atenção à saúde nos serviços constitui mais o somatório das ações dos profissionais, com pouca integração e permeabilidade do trabalho entre as profissões, de tal forma que cada profissional permaneceu restrito ao atendimento privativo de sua área, com pequeno envolvimento com o resultado final de seu trabalho.

Graduação médica: lacunas na formação para trabalhar como médico de família

Em relação a esse tema, as opiniões dos residentes focalizaram dois pontos: 17 deles (46%) opinaram que os alunos deveriam frequentar mais os postos de saúde durante a graduação, para que tivessem maior contato com a ESF; e 13 residentes (35%) disseram que faltam disciplinas que tratem de Atenção Primária e prevenção de doenças. Os relatos a seguir mostram essas opiniões:

“Ter mais atividades práticas voltadas para o PSF, nas Unidades Básicas de Saúde”.(R12).

“Os alunos deveriam passar durante todo o curso nas UBS, longitudinalmente, para que possam conhecer como funciona o PSF”. (R14)

“Os alunos deveriam ir mais às UBS para ter contato com a realidade e haver uma aproximação maior da Atenção Básica com a universidade”. (R21)

“Faltam aulas que falem de Atenção Primária e prevenção de doenças, como também [falta] preparo dos professores nessa área”. (R1)

“Faltam mais aulas teóricas e práticas sobre a Atenção Primária”. (R25)

Nesses relatos, concretiza-se o desafio de ampliar e diversificar o processo de ensino e aprendizagem na formação do médico no Brasil. Impõe-se um novo processo reformador, que requer a aproximação do alunado com sua prática profissional e esse mercado de trabalho. É essencial essa reflexão nas escolas médicas.

FORMAÇÃO XCONTEXTO DA MEDICINA ATUAL

A maioria dos profissionais relatou que, para formar um médico hoje, o currículo deve estar voltado para a Atenção Primária (16 deles – 43,2%),enfatizando ações de prevenção e promoção de doenças (5 deles– 13,5%), e que as universidades deveriam ter departamentos de Medicina de Família e Comunidade que oferecessem disciplinas de Saúde da Família (6 deles – 16,2%). Vejamos alguns relatos:

“Colocar o estudante nas unidades básicas por mais tempo, em contato com a ESF e uma formação teórica voltada mais para os programas da Atenção Básica”. (R4)

“Mais atividades práticas supervisionadas na Atenção Primária”. (R9)

“Deveriam existir grupos de discussão sobre a Medicina de Família na faculdade, mais prática nas UBS e disciplinas voltadas para o tema em questão”. (R5)

“Disciplinas e estágios que possibilitem um contato maior com a prevenção de doenças, um currículo baseado na realidade local”. (R7)

“Deveríamos ser mais preparados para a medicina preventiva”. (R15).

“Maior enfoque de ações de educação e prevenção”. (R19)

“Deve existir na universidade um departamento de MFC”. (R2)

“Deveria ter uma cadeira de Saúde da Família”. (R17)

“Primeiro preparar os professores para conhecerem o que é a Medicina de Família”. (R33)

Os cursos de Medicina devem estar organizados para prover essas e outras necessidades de seu alunado, trabalhando a integração ensino-serviço como um espaço de ensino-aprendizagem, aproximando a formação do médico das realidades de saúde e de trabalho,segundo as Diretrizes Curriculares Nacionais do curso, para a formação de um profissional competente, ético e comprometido com as necessidades de saúde da população.

Desta forma,Oliveira e Koifman1616 Oliveira GS, Koifman L. A integralidade do currículo de medicina: inovar/transformar um desafio para o processo de formação. In: Marins JJ, Rego S, Lampert JB, Araújo JGC. orgs. Educação médica em transformação: instrumentos para a construção de novas realidades. São Paulo: ABEM/Hucitec; 2004. p.143-64. consideram que a reorientação da formação do profissional em saúde deve basear-se na constituição de momentos pedagógicos que envolvam a reflexão crítica e socialmente comprometida dos docentes, dos profissionais da rede de serviços e dos alunos inseridos nesses novos contextos de aprendizagem.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por intermédio deste estudo,constatamos que, apesar de incipientes, as mudanças já estão ocorrendo na formação médica, havendo ainda muitas lacunas a preencher.Mudanças nas várias instâncias ainda precisam ocorrer, incluindo desde o aparelho formador até os espaços dos serviços e unidades de saúde.

Encontramos, embora em uma pequena a mostra de 37 residentes,a ideia de que novos currículos com mais disciplinas e estágios voltados para a Atenção Primária/Saúde Comunitária/Medicina de Família permitiram que os médicos recém-formados se sentissem mais preparados para atuar na ESF, ao contrário dos profissionais formados em currículos antigos.

As dificuldades encontradas incluem infraestrutura deficiente e inadequada nos serviços de saúde, demanda excessiva, baixa cobertura da ESF, equipes de trabalho incompletas e questões culturais que envolvem a percepção da população quanto ao médico de família e comunidade.Como facilidades, foram ressaltadas a boa interação da equipe de saúde e a aproximação entre o médico e a família e comunidade.

De forma geral, os residentes pesquisados defenderam maior aproximação entre a universidade e os serviços de Atenção Primária e mais estágios e disciplinas com este enfoque. Devemos levar em consideração, contudo, que os sujeitos desta pesquisa são residentes de MFC e que, pressupomos, devem ter grande empatia pela área. É possível que os demais estudantes de Medicina que não se identificam com a MFC/Atenção Primária não compartilhem as mesmas ideias de aproximação entre as escolas médicas e os serviços da ESF.

Por fim, ressalta-se a reflexão crítica dos estudantes sobre as facilidades e dificuldades do trabalho por eles desenvolvido, assim como a busca deformação mais adequada à realidade da população e constante qualificação para atuarem na Estratégia Saúde da Família, independentemente da formação que obtiveram na graduação.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2015

Histórico

  • Recebido
    21 Dez 2012
  • Revisado
    05 Nov 2013
  • Revisado
    14 Out 2014
  • Aceito
    17 Out 2014
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