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Internato Médico: o Desafio da Diversificação dos Cenários da Prática

Medical Internship: the Challenge of Diversifying Clinical Training Settings

Resumos

A formação do aluno no curso de Medicina precisa se aproximar dos campos de prática vivenciados pelo médico atualmente. Este estudo objetivou caracterizar as experiências educacionais dos internos dentro de atividades em Atenção Primária, Secundária e Terciária à saúde, com vistas a otimizá-las. Inicialmente, foi descrita a criação de um estágio em atendimento secundário, antes inexistente na instituição, e avaliada a percepção dos alunos envolvidos. Posteriormente, foram caracterizados os atendimentos prestados pelos alunos em três cenários (primário, secundário e terciário) durante 30 dias. A criação do estágio na Unidade de Pronto Atendimento foi bem recebida pelos alunos, que sentiram necessidade de investir mais carga horária neste cenário. Foram avaliadas 201 consultas realizadas por internos, sendo a maioria na Atenção Primária. Houve grande diversificação dos motivos das consultas conforme o cenário de prática, e a preceptoria do interno ocorreu em todos os atendimentos. Concluímos que os diferentes cenários realmente oferecem oportunidades de aprendizado complementares que devem ser valorizadas institucionalmente.

Currículo; Internato; Cenários de Prática; Atenção básica; Educação Médica


There is a need for undergraduate medical training to bring students closer to the real clinical settings they will face early in their professional lives. This study aims to review and improve student interns’ experience in different clinical scenarios: primary health care; secondary outpatient clinic (a new rotation) and the emergency room of a tertiary hospital. This new rotation is an opportunity for students to see acutely ill patients before they are referred to the hospital. Following a 30-day period, the students’ perceptions were surveyed and, based on student records, a list of all the patients (and diagnoses) which they saw was composed. The final result was a list of clinical conditions from these three different scenarios. Students acknowledge that the new rotation added to their clinical learning, especially because it was based on non-referred patients. They also felt that 4 hours/week is not enough and asked for more time in this rotation. During their 30 days, 7 students performed 201 consultations, most of them in the primary health care setting. There was a wide variety of clinical cases, which was possible because the students rotate among those three settings. Some experiences were only possible due to the new outpatient clinic rotation, indicating how this approach offer complementary learning opportunities which should be institutionally valued.

Curriculum; Internship; Clinical Settings; Primary Care; Medical Education


INTRODUÇÃO

O internato do curso de Medicina constitui um período em que o acadêmico deve vivenciar o aprendizado e desenvolver competência para a “práxis médica”. Assim, o currículo do internato deve ser organizado de forma a proporcionar oportunidades de aprendizagem que sejam representativas da realidade do exercício da medicina. No Brasil, atualmente existe uma grande diversidade de cenários de prática para a atuação do médico, que inclui desde serviços altamente especializados em hospitais terciários, ambulatórios de especialidades, hospitais gerais até as unidades de saúde da família e Unidades de Pronto Atendimento (UPA). Estas últimas são os principais cenários de prática acessíveis e que contratam a maioria dos médicos recém-formados. É difícil determinar a dimensão das experiências pelas quais os estudantes necessitam ser expostos para que adquiram, ao final da graduação, um nível de capacitação que inclui desde uma efetiva comunicação e compreensão do sistema de saúde até a capacidade técnica para elaborar um diagnóstico complexo, indicar e/ou realizar um procedimento cirúrgico1.Brasil. Conselho Nacional de Educação e Câmara de Educação Superior. Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina. Resolução CNE/CES nº 4, de 7 de novembro de 2001.,2.Bollela VR, Machado JLM. Internato baseado em competências: “bridging the gaps”. 1.ed. Medvance. 2010. p.45-64..

A participação dos estudantes em cenários da Atenção Básica e Secundária pode proporcionar uma vivência educacional mais próxima da realidade do exercício profissional futuro3.Blank D. A propósito de cenários e atores: de que peça estamos falando? Uma luz diferente sobre o cenário da prática dos médicos em formação. Rev Bras Edu Méd 2006; 30(1):27-31.. A exposição dos alunos a modelos de saúde que buscam a integralidade no atendimento ao paciente tem se mostrado mais eficiente do que a visão fragmentada em estágios de especialidades médicas em hospitais-escola. Os ganhos são percebidos principalmente na oportunidade de o estudante vivenciar diferentes situações da realidade médica, na capacidade de trabalhar em equipes multiprofissionais e, inclusive, nas habilidades clínicas adquiridas4.Fischer V. Integrating patients into medical education. GMS Z Med Ausbild. 2012; 29(1): 13.

.Kelly M, Bennett D, O’Flynn S. General practice: the DREEM attachment? Comparing the educational environment of hospital and general practice placements. Edu Primary Care 2012; 23: 34-40.

.O’Brien BC, Poncelet AN, Hansen L, Hirsh DA, Ogur B, Alexander EK, et al. Students’ workplace learning in two clerkship models: a multi-site observational study. Med Edu 2012; 46:613-624.
-7.McLaughlin K, Bates J, Konkin J, Woloschuk W, Suddards CA., Regehr G. A Comparison of Performance Evaluations of Students on Longitudinal Integrated Clerkships and Rotation-Based Clerkships. Acad Med 2011; 86(10):S25-9..

Hirsh et al.8.Hirsh DA, Holmboe ES, Cate OT. Time to Trust: Longitudinal Integrated Clerkships and Entrustable Professional Activities. Acad Med. 2014; 89: 1-4.advogam um desenho para o internato que denominam “internato integrado longitudinal” (LIC). Ao invés de vários rodízios clínicos de curta duração, nele seriam ofertados estágios de longa duração em que houvesse maior integração estudante-paciente, estudante-tutor, estudante-serviço de saúde, de modo a facilitar a avaliação do estudante mediante uma supervisão longitudinal e melhores oportunidades para trabalho em equipe multiprofissional. Este modelo é especialmente interessante para atividades práticas fora dos limites da universidade e dos hospitais universitários8.Hirsh DA, Holmboe ES, Cate OT. Time to Trust: Longitudinal Integrated Clerkships and Entrustable Professional Activities. Acad Med. 2014; 89: 1-4..

Dessa forma, o grande desafio para quem desenha e implementa o currículo é articular objetivos de aprendizagem e a competência esperada dos egressos com cenários de prática capazes de oferecer as oportunidades apropriadas a este aprendizado, em especial durante o internato. O objetivo deste estudo foi caracterizar a experiência educacional vivenciada por internos de Medicina no estágio de Clínica Médica e Saúde Coletiva em diversos cenários de prática. Esta informação tem subsidiado a tomada de decisão sobre a reformulação de um internato totalmente concentrado no hospital de ensino e que pretende se mover em direção a novos cenários, tais como as Unidades de Pronto Atendimento e unidades de saúde da família do município.

MÉTODOS

Foi realizado um estudo longitudinal, com intervenção, avaliação da percepção dos alunos sobre o processo e descrição da experiência educacional vivenciada nos cenários de prática. As atividades foram desenvolvidas na rede pública de saúde de Uberaba (MG), por intermédio de uma articulação com a gestão municipal. A intervenção foi criar um estágio em Unidade de Pronto Atendimento durante o internato de Clínica Médica da Universidade Federal do Triângulo Mineiro, utilizando-se quatro horas semanais dentro da programação do internato obrigatório de Clínica Médica.

Os internos e os pacientes atendidos por eles foram convidados a participar do estudo por meio do esclarecimento e, posteriormente, da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. O projeto foi aprovado no Comitê de Ética em Pesquisas com Seres Humanos da UFTM sob o protocolo 2340.

A expectativa dos alunos em relação ao estágio na UPA foi avaliada antes de o aluno iniciá-lo, e a percepção individual de ganho de competência foi aferida após a realização do mesmo. Para avaliação da expectativa, foi empregado um questionário semiestruturado com perguntas referentes a caracterização da expectativa, adequação do momento em que o estágio está inserido no curso, percepção de preparo individual para realizar o estágio, perspectiva de potenciais ganhos e dificuldades com o estágio, discriminando-os. Por dificuldades estruturais, a avaliação de ganho de habilidade foi realizada somente em parte dos alunos que concluíram o estágio. Nesta avaliação foi empregado outro instrumento semiestruturado contendo um espaço para que o estudante marcasse, numa escala de 0 a 4 pontos, sua percepção antes e depois do estágio com relação às seguintes variáveis: compreensão sobre a classificação de risco; habilidade para se comunicar com os pacientes no Pronto Atendimento; capacidade de atender um paciente na velocidade requerida pelo Pronto Atendimento; capacidade de elaborar raciocínio clínico e tomada de decisão clínica para pacientes em nível secundário; motivação para o atendimento de pacientes numa Unidade de Pronto Atendimento.

Os dados referentes ao tipo de atendimento prestado foram obtidos em três cenários de prática (hospital terciário, Unidade Básica de Saúde e pronto atendimento), com base nos relatos dos estudantes que cursavam os estágios em Atenção Primária, Secundária e Terciária do internato. Foram convidados a participar do estudo alunos do último ano do curso de Medicina. Optou-se pelo intervalo de avaliação em 30 dias, que corresponde ao tempo habitual de permanência dos alunos nos estágios. Para o registro das informações, foi utilizado um instrumento contendo os seguintes campos: dados do paciente atendido (prontuário, data de nascimento e procedência); motivo da consulta (queixa principal e diagnóstico); procedimentos e conduta (exames solicitados, conduta com o paciente, participação do aluno) e dados da preceptoria do aluno (tempo investido pelo preceptor na orientação do aluno, cargo/função do preceptor). O instrumento foi preenchido pelos pesquisadores, sendo registrados todos os pacientes atendidos por cada interno ao longo dos 30 dias de cada estágio, com base nos dados obtidos em visita às localidades descritas a seguir:

– Unidade Básica de Saúde (UBS): a unidade selecionada apresenta vinculação com a universidade, além de estrutura organizacional adequada para registro dos dados. A carga horária cumprida pelos internos neste período foi estimada em 120 horas;

– Unidade de Pronto Atendimento (UPA): para esta análise, foram consideradas apenas as 16 horas que os internos cumpriram durante o estágio da UPA (4 horas por semana);

– Pronto-Socorro do Hospital de Clínicas (PS/UFTM): a carga horária cumprida pelos internos neste período foi de 120 horas.

De acordo com as especificidades das atividades desenvolvidas em cada um dos cenários, o plano de avaliação deste estudo compreendeu diversas dimensões, relacionadas à problemática abordada em cada cenário (Tabela 1).

TABELA 1
Dimensões avaliativas utilizadas no estudo em relação a cada um dos cenários de práticas considerados

Foram realizadas análises descritivas dos dados, mediante apuração de frequências simples absolutas e percentuais para as variáveis categóricas, análise qualitativa dos textos, categorização e avaliação de frequência de respostas comuns, bem como organização dos resultados em tabelas e gráficos.

RESULTADOS

Expectativa em relação ao estágio na UPA

Dos 61 alunos convidados para avaliação da expectativa, 54 (88,5%) concordaram em participar. Destes, 49 (90,7%) referiram expectativa “positiva” ou “muito positiva” para realizar estágio na UPA. Quanto à adequação do momento da graduação no qual o estágio foi inserido, 14 (25,9%) referiram como “tardio” e 8 (14,8%) como “muito tardio”. A metade dos internos (27) referiu insegurança para realizar o estágio. Potenciais ganhos foram vislumbrados por 53 (98,1%) alunos, mas 32 (59,2%) apontaram possíveis dificuldades, sendo as mais frequentes listadas no Quadro 1.

QUADRO 1
Expectativa dos internos sobre ganhos e dificuldades com o estágio na Unidade de Pronto Atendimento

Competência referida após término do estágio na UPA

Após seis meses de estágio, a percepção de ganho de habilidades foi perguntada aos alunos que haviam efetivamente participado do estágio. Foi referido ganho de habilidade em 23 (32,9%) dos itens, sendo mais frequente no item relativo à classificação de risco do paciente na UPA. Ao final do questionário, no espaço aberto para comentários, 80% dos alunos reforçaram positivamente a iniciativa do estágio, mas reclamaram da reduzida carga horária, o que pode ter se refletido na percepção de pouco ganho de habilidade.

Caracterização da demanda nos diferentes níveis de atenção

Como resultado da caracterização da experiência educacional vivenciada pelos internos, foram registrados 117 atendimentos na Atenção Primária, 26 na Atenção Secundária e 58 na Terciária, totalizando 201 consultas médicas realizadas nos diferentes cenários. Considerando a carga horária estimada para cada cenário, foram atendidos cerca de 1 paciente/hora na Atenção Primária, 1,6 paciente/hora no pronto atendimento e 0,6 paciente/hora na Terciária.

Os diversos motivos que justificaram a procura por atendimento médico para os 117 pacientes atendidos pelos internos na Unidade Básica de Saúde se encontram naFigura 1.

FIGURA 1
Principais queixas que motivaram o atendimento médico na Atenção Primária de Saúde

Na UPA, dos 26 pacientes atendidos, 13 (50%) apresentaram queixa de dor localizada, dos quais apenas dois necessitaram de internação na própria UPA, um devido a hepatopatia alcoólica crônica e outro por pneumonia. Os demais atendimentos foram por motivos diversos e não necessitaram de encaminhamento ao hospital terciário. No nível terciário, representado pelo pronto-socorro hospitalar da UFTM, os acadêmicos atenderam 58 pacientes com as mais diversas queixas. Os principais diagnósticos dos pacientes atendidos nos três níveis de atenção estão reunidos no Quadro 2.

QUADRO 2
Principais diagnósticos referidos nos atendimentos realizados durante 30 dias em Unidade Básica de Saúde, Unidade de Pronto Atendimento e Pronto-Socorro Hospitalar

Com relação à conduta adotada para os pacientes atendidos, foram solicitados exames complementares em 38 (32,5%) dos pacientes no nível primário, 6 (23%) no nível secundário e 36 (62%) no terciário. Os internos referiram que receberam orientação a respeito do caso, discussão de hipóteses diagnósticas e conduta a ser adotada em 100% dos atendimentos. Na Atenção Primária, a orientação foi feita, em todas as ocasiões, pelo médico responsável pela Equipe de Saúde da Família (ESF). Na UPA, a orientação ficou sob a responsabilidade do professor da UFTM que coordena o estágio. Já no Pronto-Socorro, a orientação foi dada pelos médicos residentes da Clínica Médica de plantão em 46 (79,3%) atendimentos, e pelo médico clínico responsável pelo plantão em 8 (20,7%) casos. Nos três níveis de atenção, o tempo gasto na discussão dos casos não ultrapassou 15 minutos.

As atividades referidas pelos internos como realizadas durante o atendimento foram anamnese, exame físico e condução do caso (prescrição, procedimento, alta) em 84 (72%) dos atendimentos na Atenção Primária, em 26 (100%) dos ocorridos na UPA, e em 54 (93%) daqueles atendidos no PS/UFTM. Nenhum dos pacientes atendidos na UBS precisou de encaminhamento ou internação. Necessitaram de internação nas instituições onde foram originalmente atendidos 2 (7%) pacientes atendidos na UPA e 45 (80%) dos atendidos no PS/UFTM.

DISCUSSÃO

O Brasil ainda enfrenta o desafio de garantir equipes de saúde, em especial médicos, nas diversas regiões que compõem um país de dimensões continentais. Nas últimas décadas, tem havido inúmeros esforços para ampliar a oferta de serviços da Atenção Básica em saúde a todas as regiões e municípios, bem como um movimento mais recente para expansão e oferta de serviços de pronto atendimento através das UPAs, que têm sido criadas e ampliadas em todo o País. Ao mesmo tempo, cresce a discussão sobre a inclusão do ensino de urgências e emergências como atividade fundamental à formação médica na atualidade9.Pazin-Filho A, Scarpelini S. Emergency Medicine in the Medical School of Ribeirão Preto – University of São Paulo – You can run, but you can’t hide! Medicina (Ribeirão Preto) 2010;43(4):432-43.. Inclusive, existe uma proposta de revisão das diretrizes curriculares nacionais de 2001 que incluirá o aprendizado neste tema, bem como estágios mais longos na Atenção Básica como experiências requeridas para o egresso da escola médica no Brasil1010 .Brasil. Conselho Nacional de Educação. Resolução nº 3, de 20 de junho de 2014. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina e dá outras providências. Disponível em: file:///D:/usuario/Downloads/rces003_14%20(1).pdf..

Compreendendo esta necessidade e reconhecendo os desafios a serem enfrentados dentro da própria escola para uma mudança que redirecione as práticas dos graduandos para cenários fora do hospital universitário, este estudo se propôs conhecer as experiências educacionais vivenciadas pelos internos da UFTM nos três níveis de atenção, bem como qualificar experiências iniciais da escola de inserção dos estudantes em UPA e na Atenção Básica. Esta fotografia mostra uma realidade pouco conhecida das demandas realmente vivenciadas pelos estudantes expostos a atividades no Sistema Único de Saúde (SUS). Além disso, foi possível conhecer a perspectiva do estudante em relação a suas expectativas, bem como suas percepções após vivenciar estágios nestes cenários.

Estes resultados nos auxiliam na comunicação com os colegas e gestores da própria escola, bem como na reflexão necessária antes da tomada de decisão sobre como otimizar a oportunidade oferecida pelos diferentes cenários extramuros, com o intuito de melhorar a aprendizagem do interno.

É importante destacar que os movimentos em direção aos cenários da Atenção Básica não se justificam porque os estudantes não aprendem dentro do hospital-escola de alta complexidade. Certamente aprendem. Em nosso entendimento, não existe paciente “ruim” para o estudante aprender sobre a prática médica. Em todo campo de prática, há uma informação diferente a ser explorada e aprendida, com a facilitação do docente2.Bollela VR, Machado JLM. Internato baseado em competências: “bridging the gaps”. 1.ed. Medvance. 2010. p.45-64.. Entretanto, com o movimento induzido pela Organização Mundial da Saúde no sentido de uma educação baseada na comunidade, ganha espaço a ideia de que o aprendizado do estudante deva ser contextualizado e alinhado com aquele que melhor represente a realidade que irá enfrentar ao longo de sua carreira, em especial no término da graduação e residência médica1111 .World Health Organization. Regional Office for the Eastern Mediterranean. Community Based Education in Health Professions: Global Perspectives. January, 2014.. Diferentes campos de prática expõem o aluno a oportunidades de aprendizagem mais diversificadas, com maior probabilidade de aprendizado voltado para a realidade da prática médica3.Blank D. A propósito de cenários e atores: de que peça estamos falando? Uma luz diferente sobre o cenário da prática dos médicos em formação. Rev Bras Edu Méd 2006; 30(1):27-31.,5.Kelly M, Bennett D, O’Flynn S. General practice: the DREEM attachment? Comparing the educational environment of hospital and general practice placements. Edu Primary Care 2012; 23: 34-40.,1212 .Stella RCR, Abdalla IG, Lampert JB, Perim GL, Aguilar-da-Silva RH, Costa NMSC. Cenários de Prática e a Formação Médica na Assistência em Saúde. Rev Bras Edu Méd. 2009; 33 (1 Supl. 1): 63-69.. Esta percepção é compartilhada com os alunos que foram para a UPA quando referem como potencial ganho com o estágio a prática num possível campo de trabalho, o que resultaria em redução da ansiedade.

A iniciativa de criar o estágio na UPA foi considerada exitosa. No entanto, a carga horária experimentada foi considerada “insuficiente” para que resultasse na percepção de ganho de habilidade pelos estudantes. Neste ponto é interessante refletir sobre qual seria a distribuição mais adequada da carga horária segundo o cenário de prática. Não existe uma fórmula mágica para solucionar esta questão. Também é reconhecido que a carga horária de 16 horas/mês do currículo realmente parece muito pequena para efetivamente expor o aluno a um serviço de Atenção Secundária. No entanto, faltam elementos para estimar uma divisão de tempo ideal ao longo da graduação, e sobram resistências entre os professores para abrir mão do tempo que os estudantes passam em estágios dentro do hospital em detrimento de outros cenários.

Com relação aos motivos que levaram os pacientes a procurar o serviço de saúde nos três níveis de atenção, foram constatados vários aspectos a serem explorados. Primeiramente, o perfil do atendimento prestado na Atenção Primária foi concordante com outras publicações na literatura1313 .Radaelli SM, Takeda SM, Gimeno LI, Wagner MB, Kanter FJ, de Mello VM, Borges JC, Ducan BB. Demanda de serviço de saúde comunitária na periferia de área metropolitana. Rev Saude Pública. 1990; 24(3):232-40.

14 .Carvalho MS, D’Orsi E, Prates EC, Toschi WD, Shiraiwa T, Campos TP, Ell E, Garcia NL, Junqueira AP, Serrão SA, Tavares EL. Demanda Ambulatorial em Três Serviços da Rede Pública do Município do Rio de Janeiro, Brasil. Cad Saude Publica. 1994;10(1):17-29.

15 .Gusso GDF, Lotufo P, Benseñor IM. Assessment of pre-test probability in Primary Health Care using the International Classification of Primary Care – 2 (ICPC-2). Rev Bras Med Fam Comunidade. 2013;8(27):112-20.
-1616 .Landsberg GAP, Savassi LCM, Sousa AB, Freitas JMR, Nascimento JL, Azagra R. Análise de demanda em Medicina de Família no Brasil utilizando a Classificação Internacional de Atenção Primária. Ciência & Saúde Coletiva 2012; 17(11):3025-3036.. Foi marcante a progressiva elaboração dos diagnósticos em função do nível do atendimento. Na Atenção Primária, vários dos motivos registrados eram sintomas, enquanto na Terciária, os motivos mais frequentes foram diagnósticos elaborados. Neste sentido, a avaliação de algumas queixas pôde exemplificar com mais clareza esta observação. No caso das lesões dermatológicas, no atendimento primário a maioria foi caracterizada como máculas brancas ou reação alérgica localizada; no secundário, pôde ser avaliado paciente com lesão herpética; por fim, no terciário, lesões cutâneas associadas a complicações da aids. O mesmo pôde ser percebido com relação à queixa de dor, geralmente crônica e de menor intensidade no atendimento primário, localizada e mais intensa no atendimento secundário, e associada a eventos mais graves, como síndrome coronariana, no terciário. Possivelmente, os exames complementares participaram da melhor caracterização dos diagnósticos, uma vez que a solicitação deles foi bem mais frequente no serviço terciário. Neste contexto, o cenário facilitou uma diferenciação na experiência educacional vivenciada pelo interno e, por conseguinte, maior amplitude da mesma.

Na Atenção Primária, vale ressaltar o grande número de pacientes cujo motivo de atendimento era caracterizado por solicitações específicas: atestado de saúde, encaminhamento, exames complementares, laudo médico e renovação de receita. Esta observação é condizente com dados de outros estudos epidemiológicos, nos quais tais demandas representaram o motivo mais frequente de procura pelo serviço1313 .Radaelli SM, Takeda SM, Gimeno LI, Wagner MB, Kanter FJ, de Mello VM, Borges JC, Ducan BB. Demanda de serviço de saúde comunitária na periferia de área metropolitana. Rev Saude Pública. 1990; 24(3):232-40.,1616 .Landsberg GAP, Savassi LCM, Sousa AB, Freitas JMR, Nascimento JL, Azagra R. Análise de demanda em Medicina de Família no Brasil utilizando a Classificação Internacional de Atenção Primária. Ciência & Saúde Coletiva 2012; 17(11):3025-3036.. Em princípio, esta experiência para o aluno parece estar distante de qualquer objetivo educacional. Entretanto, já que se busca formar um médico generalista, cujo principal campo de trabalho seria a Atenção Primária, aprender a lidar com estas solicitações deveria fazer parte do escopo da matriz curricular. Cabe realçar que a validade deste tipo de experiência estaria diretamente relacionada com a capacidade reflexiva da equipe de saúde que acompanha este aluno, no contexto daquela comunidade.

Quanto à preceptoria dos alunos nos diversos cenários, observou-se que, no serviço terciário, a preceptoria dependeu fortemente da atuação do médico residente plantonista. Este aspecto evidencia uma contradição do discurso do corpo docente das universidades em geral. A alegação de ausência de preceptoria adequada como dificuldade para modificar o cenário do hospital universitário para fora da universidade se contrapõe à realidade do próprio hospital, no qual a preceptoria dos estudantes no pronto-socorro, local onde são atendidos em princípio os pacientes mais complexos, fica a cargo do residente, médico em formação e que também necessita de orientação1717 .Botti SHO. O Papel do Preceptor na Formação de Médicos Residentes: um estudo de residências em especialidades clínicas de um hospital de ensino. Rio de Janeiro; 2009. Tese (Doutorado) – Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca.. Dessa maneira, a experiência educacional oferecida ao estudante na Atenção Terciária poderia ser otimizada se a preceptoria fosse mais apropriada.

Por fim, pôde-se perceber com este trabalho que os internos têm uma vivência da prática médica muito rica em diversos aspectos. Tais constatações reforçam as recomendações das novas DCN, que sugerem que as escolas devam: “utilizar diferentes cenários de ensino-aprendizagem, permitindo ao aluno conhecer e vivenciar situações variadas de vida, da organização da prática e do trabalho em equipe multiprofissional” (p. 12)1010 .Brasil. Conselho Nacional de Educação. Resolução nº 3, de 20 de junho de 2014. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina e dá outras providências. Disponível em: file:///D:/usuario/Downloads/rces003_14%20(1).pdf.

Este trabalho reforça a estratégia já utilizada por outros autores de prospecção e diagnóstico em termos epidemiológicos das ocorrências mais comuns, às quais os estudantes são expostos durante sua formação no internato, que servem de guia para argumentação e revisão do currículo1818 .Chiesa D, Escalante R, Wyk JV, Bollela VR. Evaluating logbooks to improve clerkship learning experiences. Medical Education. 2013; 47:1122-23.,1919 .Machado JLM, Souza SRP, Brenna SMF, Pose RA, Bollela VR, Vieira JE. Use of epidemiological data as the basis for developing a medical curriculum. São Paulo Med J. 2012; 130(2):109-14.. No Brasil, não existe uniformidade com relação aos currículos, muito menos no que diz respeito à forma de ensinar medicina2020 .Lampert JB. Na transição paradigmática da educação médica: o que o paradigma da integralidade atende que o paradigma flexneriano deixou de lado. Cadernos da ABEM 2004; 1:23-24.. Assim, as reflexões levantadas servem para estimular melhorias neste processo de aprendizagem complexo e ao mesmo tempo fundamental chamado internato médico. É preciso assumir o protagonismo dos aspectos educacionais envolvidos nas atividades propostas aos alunos, e não assistir como espectadores a uma estimativa do que pode vir a ocorrer nos diversos ambientes.

AGRADECIMENTOS

Faimer Institute Fildélfia e Faimer Brasil: Instituto Regional de Educação para as Profissões da Saúde; Secretaria Municipal de Saúde de Uberaba (MG); Programa de Iniciação Científica/Fapemig; George Dantas.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2015

Histórico

  • Recebido
    24 Fev 2015
  • Aceito
    10 Mar 2015
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