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Tradução, Adaptação Cultural e Validação do Questionário “Reação Médica à Incerteza (PRU)” na Tomada de Decisões

Translation, Cultural Adaptation and Validation of the “Physicians’ Reactions to Uncertainty (PRU)” Questionnaire

Resumos

Introdução

A incerteza influencia diretamente a tomada de decisões pelos médicos, e a inabilidade em lidar com ela pode resultar em cuidados médicos com baixo padrão de qualidade eem desperdício de recursos em saúde. A incerteza também afeta a satisfação profissional e a qualidade de vida desses profissionais. O questionário Physicians’ Reactions to Uncertainty (PRU) objetiva quantificar as reações afetivas de médicos à incerteza e suas maneiras de lidar com ela. Os objetivos deste trabalho são a tradução para o português, a adaptação cultural e a validação do questionário PRU.

Materiais e métodos

Estudo transversal analítico, que compreende a tradução, retrotradução e adaptação cultural do questionário PRU. As etapas posteriores consistiram em validação na população-alvo, seguida de avaliação de reprodutibilidade intra e interobservador, e análise da consistência interna. Na avaliação da consistência interna do instrumento foi utilizado o coeficiente alfa de Cronbach; e na análise da reprodutibilidade intra e interobservador, o coeficiente de correlação de Pearson.

Resultados

Em todos os domínios do questionário, os resultados da correlação intraobservador (test-retest) e interobservador (concordância total) pelo testede correlação de Pearson foram estatisticamente significantes, com p<0,01. De forma geral, a consistência interna do instrumento foi moderada, com um alfa de Cronbach de 0,58. Entre as várias dimensões, atingiu-se consistência moderada, com valores que oscilaram ao redor de 0,6.

Conclusões

A versão brasileira do questionário PRU tem propriedades de medida adequadas e oferece um novo instrumento nesse campo de pesquisa, possibilitando melhor compreensão da incerteza gerada na tomada de decisão clínica.

Estudos de Validação; Incerteza; Médicos; Satisfação no Emprego; Tomada de Decisões; Educação Médica


Introduction

Uncertainty directly influences physicians’ decision-making, and their inability to deal with it can result in substandard medical care and wasted health care resources. Uncertainty also affects the job satisfaction and quality of life of such professionals. The Physicians’ Reactions to Uncertainty (PRU) questionnaire aims to quantify the emotive reactions of physicians to uncertainty and their ways of dealing with it. The objectives of this study are the Portuguese translation, cultural adaptation and validation of the PRU questionnaire.

Materials and Methods

Cross-sectional analytic study involving translation, back-translation and cultural adaptation of the PRU questionnaire. The subsequent steps consisted of validation in the target population, followed by assessment of intra- and inter-observer reproducibility and internal consistency analysis. Cronbach’s alpha was used to evaluate the internal consistency of the questionnaire, and Pearson’s Correlation Coefficient was applied for the test-retest.

Results

In all areas of the questionnaire the results of the intra-observer (test-retest) and inter-observer (total agreement) correlation through Pearson’s correlation test were statistically significant, with p < 0.01. Overall, the internal consistency of the questionnaire was moderate, with a Cronbach’s alpha score of 0.58. Among the various dimensions, a moderate consistency was achieved, with values oscillating around 0.06.

Conclusions

The Brazilian version of the PRU questionnaire has demonstrated adequate measurement properties and offers a new instrument in this field of research, enabling better understanding of the uncertainty generated in clinical decision-making.

Validation Studies; Uncertainty; Physicians; Job Satisfaction; Decision-Making; Medical Education


INTRODUÇÃO

A incerteza influencia diariamente a tomada de decisões pelos médicos. A inabilidade em lidar com a incerteza pode resultar em iatrogenia e cuidados clínicos de baixo padrão de qualidade1.Bovier PA, Perneger TV. Stress from uncertainty from graduation to retirement: a population-based study of swiss physicians. J Gen Intern Med. 2007; 22(5): 632-8. DOI:10.1007/s11606-007-0159-7.,2.Gerrity MS, Earp JAL, De Vellis RF, Light DW. Uncertainty and professional work: perceptions of physicians in clinical practice. Am J Sociology. 1992; 97(4):1022-51. DOI: 10.1086/229860.. Fox3.Fox RC. Training for uncertainty. In: Merton R, Reader GC, Kendall P, editors. The student-physician: introductory studies in the sociology of medical education. Cambridge: Harvard University Press; 1957. p. 207-41.identificou ao menos três tipos de incerteza na prática medica: o primeiro é derivado de um domínio incompleto do vasto, mutável e sempre crescente campo de conhecimentos e habilidades médicas; o segundo se deve às limitações e ambiguidades próprias desse campo de conhecimento; e o terceiro se originadas dificuldades de discernimento entre os dois.

Além de influenciar a tomada de decisões pelos médicos, a incerteza também é um fator que afeta a satisfação profissional e a qualidade de vida desses profissionais. Wetterneck et al4.Wetterneck TB, Linzer M, McMurray JE, Douglas J, Schwartz MD, Bigby J, et al. Worklife and satisfaction of general internists. Arch Intern Med. 2002; 162(6): 649-56. PMID: 1191171., em estudo realizado com médicos americanos, compararam a satisfação profissional existente entre as especialidades médicas. Concluíram que o profissional generalista é aquele que experimenta os menores níveis de satisfação, porque, em sua prática diária, entra em contato com muitas fontes de incerteza –pacientes com problemas clínicos complexos, somados a problemas psicossociais e limitação de recursos de toda ordem –, que trazem dúvidas e ansiedade acerca das decisões a tomar. Afirmam ainda que, devido a esses fatores, esses médicos são os que menos recomendam sua especialidade a estudantes de Medicina. A incerteza afeta de maneira especial os médicos residentes, que, nessa fase do treinamento, assumem responsabilidades por condutas por vezes não supervisionadas, experiência distinta da fase anterior, controlada e tutorada, porquanto, durante a graduação, os alunos identificam as incertezas na tomada de decisões sem se responsabilizar diretamente por elas.

Uma vez formados, na residência, precisam aprender a lidar com as muitas fontes de ansiedade e incerteza existentes, sob o risco de não tomar as decisões cabíveis. Além disso, esses profissionais não recebem treinamento sobre como lidar de maneira construtiva com as incertezas4.Wetterneck TB, Linzer M, McMurray JE, Douglas J, Schwartz MD, Bigby J, et al. Worklife and satisfaction of general internists. Arch Intern Med. 2002; 162(6): 649-56. PMID: 1191171.. Esta parece ser uma das causas da especialização – ainda por vezes, precoce–, que restringe sua área de atuação e de conhecimentos, direção esta contrária às demandas atuais, posto que nosso sistema de saúde necessita, sobretudo, de médicos generalistas.

Outro fator relevante afetado pela incerteza na tomada de decisão médica tem relaçãocom os gastos em saúde, com maior impacto, em nosso meio, sobre o sistema público. A incerteza é uma causa importante de desperdício de recursos, uma vez que gera exames complementares desnecessários e prescrições de medicamentos sem critério. Gerrity et al.2.Gerrity MS, Earp JAL, De Vellis RF, Light DW. Uncertainty and professional work: perceptions of physicians in clinical practice. Am J Sociology. 1992; 97(4):1022-51. DOI: 10.1086/229860. desenvolveram um instrumento para avaliar a incerteza e suas repercussões na tomada de decisão médica: o questionário Physicians’ Reactions to Uncertainty (PRU). Esse instrumento objetiva quantificar as reações afetivas de médicos à incerteza e as maneiras encontradas por esses profissionais para lidar com ela. O questionário integra processos internos (cognitivos e afetivos) e influências externas (culturais e sociológicas) e tem cinco eixos principais: o paciente, a doença, o médico, as características de exames e tratamentos, e o ambiente de trabalho. Posteriormente, essa construção foi revisada pelos mesmos autores, que definiram o modelo PRU como sendo as reações emocionais e preocupações geradas nos médicos quando estes vivenciavam situações com as quais não tinham familiaridade ou eram de difícil resolução5.Gerrity MS, White KP, DeVilles RF, Dittus RS. Physicians’ reactions to uncertainty: refining the constructs and scales. Motivation and Emotion. 1995; 19(3): 175-91. DOI: 10.1007/BF02250510.. Desde então, esse questionário tem sido aplicado a profissionais médicos nos Estados Unidos5.Gerrity MS, White KP, DeVilles RF, Dittus RS. Physicians’ reactions to uncertainty: refining the constructs and scales. Motivation and Emotion. 1995; 19(3): 175-91. DOI: 10.1007/BF02250510., ajudando a elucidar vários aspectos relacionados à incerteza e ansiedade na tomada de decisão clínica, sendo considerado um bom instrumento para avaliação desses fatores. Esse questionário também foi validado na Suíça1.Bovier PA, Perneger TV. Stress from uncertainty from graduation to retirement: a population-based study of swiss physicians. J Gen Intern Med. 2007; 22(5): 632-8. DOI:10.1007/s11606-007-0159-7.. Já foi traduzido, validado e aplicado a médicos na Alemanha6.Schneider A, Szecsenyi J, Stefan B, Joest K, Rosemann T. Validation and cultural adaptation of a german version of the physicians’ reactions to uncertainty scales. BMC Health Services Research. 2007; 7(81): 01-6. DOI:10.1186/1472-6963-7-81..

O presente trabalho tem por objetivo elaborar uma versão traduzida, culturalmente adaptada e validada do questionário Physicians’ Reactions to Uncertainty, de modo a poder aplicá-lo em nosso contexto. Validações têm por objetivo permitir que instrumentos de avaliação produzidos em determinada língua e contexto culturalsejam utilizados em locais diversos, para estudar o mesmo fenômeno. Isto possibilitará melhorar a compreensão acerca das reações desses profissionais à incerteza e as maneiras encontradas por eles para lidar com esses sentimentos, lançando luz sobre esse fenômeno ainda hoje negligenciado. Seus resultados facilitarão estratégias de educação médica permanente e treinamento na área de tomada de decisões.

MATERIAL E MÉTODOS

Desenho

Estudo analítico transversal, dividido nas etapas de tradução, retrotradução, adaptação cultural e validação do questionário em inglês Physicians’ Reactions to Uncertainty.

Tradução, retrotradução e discussão em grupo focal para adaptação semântica e cultural das traduções

Na literatura, existemdiretrizes específicas, utilizadas por vários autores, acerca da metodologia a adotar na realização de estudos de tradução, adaptação cultural e validação de questionários. Guillemin et al.7.Guillermin F, Bombardier C, Beaton D. Cross-cultural adaptation of health-related quality of life measures: literature review and proposed guidelines. J ClinEpidemiol. 1993; 46(12): 1417-32. DOI: 10.1016/0895-4356(93)90142-N., ao efetuarem revisão extensa de literatura sobre o tema, padronizaram os procedimentos a adotar nos estudos de adaptação cultural e validação:

  1. Tradução: dois tradutores brasileiros, professores de inglês, independentes, traduzem o questionário original;

  2. Retrotradução: versão do questionário traduzido para a língua nativa, e sua comparação com o original. É feita por dois novos tradutores, que desconhecem o objetivo do estudo;

  3. Revisão por comitê: um comitê formado por pessoas com conhecimento ótimo do objetivo do estudo analisa as etapas prévias, modificando e porventura descartando itens impróprios, de modo a preparar os questionários para serem avaliados em grupo focal. O comitê foi formado por três médicos participantes do trabalho;

(iv) Grupo focal: busca, sobretudo, garantir a equivalência semântica e do idioma, adaptando-o à cultura do local onde será aplicado. Corresponde, por conseguinte, a um grupo formado com o intuito de adaptar os questionários trazidos do comitê, de modo a chegar à versão final do instrumento de avaliação. Para o processo, a única exigência é contar com falantes nativos da língua, aptos a realizar a chamada “adaptação cultural”, segundo os conceitos de equivalência semântica e do idioma acima citados.

O grupo focal foi realizado com 11 pessoas, estudantes de Medicina, do segundo ao quinto ano da Faculdade de Medicina de Marília, brasileiros, com diferentes experiências culturais e provenientes de regiões diversas do País, que definiram a versão final do instrumento.

Aos 11 participantes foi explicado o objetivo do trabalho e do grupo. Os participantes não conheciam o questionário original e não tinham conhecimento de nenhum aspecto do trabalho antes da realização do grupo focal. O trabalho efetuado no grupo focal gerou a versão final do questionário em língua portuguesa. Durante o trabalho do grupo, foram avaliadas as duas traduções, de modo a melhorar a compreensão do instrumento e corrigir possíveis ambiguidades. Algumas frases foram modificadas, na maior parte das vezes porque alguns termos originais em inglês eram de difícil compreensão e aplicação em nosso meio. As modificações realizadas estão descritas a seguir.

Frase 1: “Escala de Reações Médicas à Incerteza” foi alterado para “Escala de Reações Médicas frente à Incerteza”.

Frase 11: “Temo ser responsabilizado pelos limites de meus conhecimentos” foi alterada para “Temo ser julgado pelos limites de meus conhecimentos”.

Comentário: O termo modificado tinha traduções diferentes nos dois modelos trazidos para o grupo focal. Um deles trazia o termo “menosprezado”, e o outro trazia o termo “responsabilizado”. O grupo atentou para a diferença de significado contida nas traduções. “Menosprezado” teria um sentido mais pejorativo, de humilhação, devido à falta de conhecimento. Já o termo “responsabilizado” teria um sentido mais formal, que incluiria responsabilização jurídica pelos limites do conhecimento, inclusive. O grupo sugeriu usar o termo “julgado”, que contemplaria ambas as ideias, diante da dificuldade da tradução do termo original para o português (to be hold accountable).

Frase 12: “Preocupo-me com mau desempenho quando não sei o diagnóstico do paciente” foi modificado para “Preocupo-me com meu mau desempenho quando não sei o diagnóstico do paciente”.

Comentário: A frase das traduções, que trazia o termo “mau desempenho”, gerou ambiguidade de compreensão no grupo. O termo original eramalpractice, e o grupo considerou que a adaptação para “meu mau desempenho” ficava mais adequada a nossa língua.

Frase 14: “Resistência em demonstrar incerteza a pacientes” foi alterado para “Resistência em compartilhar incerteza com pacientes”.

Comentário: Na frase original de uma das traduções, o termo “demonstrar” deu a entender ao grupo que se trataria de uma comunicação involuntária, ou seja, de dar a entender ao paciente o sentimento de incerteza por meio de expressões verbais e não verbais involuntárias, como, por exemplo, usar tom de voz oscilante, titubear, exibir expressões faciais de apreensão, etc. Na outra tradução, o termo utilizado era “expor”, que dava a entender que o médico diria ao paciente sua incerteza quanto ao diagnóstico. Tendo em vista que a intenção da sentença seria a de comunicar, dividir a incerteza com o paciente, o grupo sugeriu a mudança de “demonstrar” para “compartilhar”.

Frase 20: “Resistência em demonstrar falhas a colegas médicos” mudou para “Resistência em expor falhas a outros médicos”.

Comentário: Neste caso, houve a mesma discussão sobre o significado da palavra “demonstrar” citada acima (voluntário versusinvoluntário). O grupo novamente preferiu um termo que trouxesse a ideia de expressar voluntariamente as falhas aos médicos. Neste caso, como já haviam utilizado o termo “compartilhar” acima, optou-se pelo termo “expor”. Além disso, modificaram “colegas”, que poderia gerar ambiguidade por expressar também a noção de amizade, além do significado trazido pelo jargão médico, que utiliza o termo colega para se referir a qualquer médico. No caso, trocaram “colegas” por “outros”.

PROCESSO DE VALIDAÇÃO

Realizamos o estudo com uma amostra de 40 profissionais médicos, objetivando a validação do questionário. Participaram dessa amostra médicos residentes de todas as especialidades existentes na Faculdade Estadual de Medicina e Enfermagem de Marília, e o número de residentes de cada área foi calculado de modo a corresponder a sua proporção no universo total de médicos residentes. De acordo com esse modelo, os residentes foram sorteados aleatoriamente, dentro de cada especialidade. Algumas áreas contavam com apenas um indivíduo. Convencionou-se que, nesses casos, esses médicos seriam incluídos. Dessa forma, chegamos a uma lista de 45 residentes. Foram selecionados cinco profissionais a mais que o necessário para que, se houvesse perdas, tal fato não repercutisse na metodologia. De fato, como previsto, houve perda de cinco residentes, sendo quatro devido a férias no período em que foram aplicados os questionários, e um por abandono de curso.

De acordo com a metodologia, os autores foram denominados “avaliador A” e “avaliador B”, e os questionários foram aplicados em três momentos, chamados de momentos “1”, “2” e “3”:

  • Momento 1: o residente era abordado pela primeira vez pelo avaliador A, e o questionário era aplicado pela primeira vez;

  • Momento 2: alguns minutos após a primeira etapa, o questionário era aplicado necessariamente pelo avaliador B, de modo que os momentos 1 e 2 fossem realizados sempre por avaliadores diferentes;

  • Momento 3: era realizada nova abordagem, com o mesmo questionário, entre sete e dez dias após, pelo avaliador que havia realizado a primeira entrevista.

RESULTADOS

As características demográficas dos residentes entrevistados estão descritas na Tabela 1. A tabela mostra certa predominância do sexo masculino sobre o feminino em nossa amostra. A média da idade dos residentes entrevistados foi de 27,08 anos, sendo que a maior parte era oriunda de instituições públicas de graduação (62,5%). A grande maioria era formada havia até três anos (82,5%).

TABELA 1
Características sociodemográficas dos residentes da Faculdade de Medicina de Marília entrevistados

A Tabela 2 mostra a divisão dos residentes conforme as áreas de residência médica. Na amostra estudada, as especialidades clínicas constituíram 55% da amostra, com os outros 45% pertencentes às especialidades cirúrgicas. Na comparação especialistas versusgeneralistas, houve predomínio de médicos residentes especialistas, com 72,5% do total. Na divisão por grandes áreas e subáreas, as carreiras com maior participação na amostra foram Clínica Médica e Especialidades e Cirurgia Geral e Especialidades, respectivamente, com 32,5% e 15%.

TABELA 2
Divisão dos médicos residentes da Faculdade de Medicina de Marília entrevistados, por especialidade

Os resultados do coeficiente de correlação de Pearson para a reprodutibilidade inter e intraobservador estão descritos na Tabela 3. Os resultados obtidos foram satisfatórios. Em todos os domínios do questionário, os resultados da correlação intraobservador (test-retest) e interobservador (concordância total) foram estatisticamente significantes, com p<0,01.

TABELA 3
Correlações intraobservador (test-retest) e interobservador (concordância total) obtidos na validação do questionário entre os médicos residentes entrevistados, a partir do coeficiente de correlação de Pearson, nas quatro dimensões avaliadas

Os resultados do coeficiente alfa de Cronbach para o questionário e para seus diferentes domínios estão expostos na Tabela 4. De forma geral, a consistência interna do questionário foi moderada, com um alfa de Cronbach de 0,58. Entre as várias dimensões, os resultados também foram moderados, com valores que oscilaram em torno de 0,6. A única exceção foi a dimensão “resistência em expor falhas a outros médicos”, com um valor de 0,3. No cálculo do Cronbach, se uma das dimensões fosse excluída, a consistência se mantinha ainda aceitável, com valores que variaram entre 0,66 e 0,77. Isto demonstra que nenhuma das quatro dimensões tem uma representação desproporcional em relação às outras no que diz respeito à consistência interna.

TABELA 4
Medida de consistência interna pelo coeficiente alfa de Cronbach obtido na validação do questionário entre os médicos residentes entrevistados nas quatro dimensões avaliadas e o escore total

DISCUSSÃO

Desde a publicação do questionário aqui apresentado e posterior revisãopor Gerrityet al.5.Gerrity MS, White KP, DeVilles RF, Dittus RS. Physicians’ reactions to uncertainty: refining the constructs and scales. Motivation and Emotion. 1995; 19(3): 175-91. DOI: 10.1007/BF02250510., outros autores têm utilizado esse instrumento para o estudo das variáveis envolvidas na gênese da incerteza na tomada de decisão médica, bem como das reações emocionais e comportamentais desencadeadas nos profissionais que enfrentam esse tipo de dificuldade1.Bovier PA, Perneger TV. Stress from uncertainty from graduation to retirement: a population-based study of swiss physicians. J Gen Intern Med. 2007; 22(5): 632-8. DOI:10.1007/s11606-007-0159-7.,6.Schneider A, Szecsenyi J, Stefan B, Joest K, Rosemann T. Validation and cultural adaptation of a german version of the physicians’ reactions to uncertainty scales. BMC Health Services Research. 2007; 7(81): 01-6. DOI:10.1186/1472-6963-7-81..

Para validar um questionário, suas propriedades de medida a serem mensuradas são: consistência interna, correlação intra e interobservador, validade e responsividade.

Entende-se que a consistência interna é uma forma de medir a confiabilidade de um instrumento – no caso, o questionário, seus itens e dimensões –, eliminando a influência temporal em sua aplicação, além de medir a confiabilidade com base numa única administração do teste. Numa escala com múltiplos itens, todos devem ser consistentes e medir a variável que se dispõem a medir. Essa avaliação é feita por meio da correlação dos itens do instrumento entre si e com a pontuação total, esperando que apresentem congruência de resultados, uma vez que medem o mesmo fenômeno. Essa verificação pode ser realizada mediante a utilização do coeficiente alfa de Cronbach. Segundo Gifford e Cummings8.Gifford DR, Cummings JL. Evaluating dementia screening tests – methodological standards to rate their performance. Neurology. 1999; 52: 224–227., valores de alfa de Cronbach acima de 0,8 são excelentes, superiores a 0,7 são considerados bons, e menores que 0,4 são ruins. Conforme descrito anteriormente, a consistência interna do instrumento apresentou valores moderados e aceitáveis (valor de Cronbach alfa = 0,58) menores, no entanto, que os obtidos com a validação para as línguas suíça (0,81 e 0,67), alemã (0,91 e 0,87) e o questionário original (0,73 e 0,72)1.Bovier PA, Perneger TV. Stress from uncertainty from graduation to retirement: a population-based study of swiss physicians. J Gen Intern Med. 2007; 22(5): 632-8. DOI:10.1007/s11606-007-0159-7.,5.Gerrity MS, White KP, DeVilles RF, Dittus RS. Physicians’ reactions to uncertainty: refining the constructs and scales. Motivation and Emotion. 1995; 19(3): 175-91. DOI: 10.1007/BF02250510.,6.Schneider A, Szecsenyi J, Stefan B, Joest K, Rosemann T. Validation and cultural adaptation of a german version of the physicians’ reactions to uncertainty scales. BMC Health Services Research. 2007; 7(81): 01-6. DOI:10.1186/1472-6963-7-81.. Esta moderada consistência interna obtida na média dos itens sugere não redundância e nem grande variabilidade dos itens do questionário. Portanto, infere que todos devam ser mantidos. O fato de um item isolado –“resistência em expor falhas a outros médicos”apresentar baixa consistência pode ser explicado pelo pequeno número de itens da dimensão, que acaba por não permitir ao instrumento capturar todas as faces do fenômeno que se pretende estudar. Não existe, no entanto, a recomendação de que o item deva ser excluído.

A correlação intra e interobservador foi outra propriedade de medida avaliada. A correlação intraobservador mede a capacidade do questionário de apresentar resultados semelhantes quando aplicado por um mesmo avaliador a um entrevistado, em dois momentos distintos (test-retest). Já a correlação interobservador mede a capacidade do questionário de se manter estável, quando aplicado a um entrevistado em dois momentos, por avaliadores distintos. Em última análise, verifica se o questionário tem ou não potencial de obter diferentes resultados quando aplicado por distintos observadores, avaliador-dependentes, ou seja, a influência do avaliador no resultado do escore avaliado. Segundo Willett9.Willett WC. Nutritional epidemiology. New York: Oxford University Press; 1998. e Cade et al1010 .Cade J, Thompson R, Burley V, Warm D. Development, validation and utilization of food-frequency questionnaires: a review. Public Health Nutrition. 2002; 5(4): 567-87. DOI: 10.1079/PHN2001318, o tamanho da amostra para estudos de validade deve conter entre 40 e 80 indivíduos. Esta, porém, é uma recomendação. Há na literatura estudos recentes publicados com um número variável de indivíduos, a partir de 20 sujeitos1111 .Nath SD, Huffman FG. Validation of a semiquantitative food frequency questionnaire to assess energy and macronutrient intakes of Cuban Americans. Int J Food SciNutr. 2005; 56(5):309-14. DOI 10.1080/09637480500284993. Com os 40 indivíduos utilizados no estudo, o produto pode ser considerado satisfatório. Uma amostra maior tem a característica de estreitar o intervalo de confiança, mas não de alterar a direção do efeito.

Em estudos de validação, o objeto de estudo é o instrumento (questionário), e não os respondentes. No entanto, características dos participantes do grupo focal são importantes para atingir um bom resultado.Para esse fim, foram recrutados estudantes de Medicina e médicos residentes, pois são da área de saúde e iniciados nos jargões da profissão. É importante salientar que a aparente homogeneidade do grupo não se confirma, visto que seus integrantes provêm de diferentes regiões do País e não somente do Estado de São Paulo, onde foi desenvolvido o estudo. Eles trazem consigo bagagens culturais e semânticas distintas, características da cultura nacional, facilitando incorporar essa diversidade no texto final do instrumento validado.

Neste estudo, não foi possível avaliar todas as dimensões da validade de um instrumento, mas se pôde confirmar sua boa validade de face e conteúdo. Tampouco foi possível testar sua responsividade. A validade mede a capacidade de instrumentos distintos, aplicados na intenção de avaliar um mesmo fenômeno, obterem valores semelhantes. A responsividade se refere à sensibilidade de um instrumento para identificar alterações na população estudada, depois de uma intervenção. Implica avaliação do questionário pré e pós-intervenção. Em nosso estudo, como não realizamos nenhuma intervenção com os médicos residentes, como,por exemplo, cursos ou treinamentos para a tomada de decisão clínica, não foi possível avaliar a responsividade, o que seria um motivo para outras pesquisas nessa área.

CONCLUSÃO

A versão brasileira do questionário Physicians’ Reactions to Uncertainty (PRU)– o questionário de avaliação das “Reações Médicas à Incerteza” nas tomadas de decisões – foi submetida aos processos de tradução, retrotradução e adaptação cultural, chegando-se a uma versão em língua portuguesa de fácil compreensão e aplicação. Além disso, a validação desse instrumento mostrou moderada consistência interna e excelente correlação intra e interobservador, atestadas pelos valores do coeficiente de correlação de Pearson estatisticamente significantes e pela significância estatisticamente elevada para todas as dimensões. As limitações se devem à impossibilidade de testar todas as propriedades de sua validade e sua responsividade a uma intervenção, pelos motivos já expostos.

Novos estudos podem incluir a avaliação da responsividade do questionário validado mediante sua aplicação antes e depois de uma intervenção, como, por exemplo, um módulo de treinamento médico em tomada de decisões clínicas. Novos instrumentos de avaliação desse mesmo fenômeno podem contar agora com o PRU para a averiguação de sua validade.

Este trabalho viabiliza ainda a realização de outras pesquisas na área de incerteza e ansiedade na tomada de decisão clínica, permitindo a avaliação do fenômeno da incerteza em outras populações médicas.

Em suma, a versão brasileira do questionário PRU tem propriedades de medida adequadas e é de fácil aplicação. Dessa forma, apresenta-se como um bom instrumento para medir esse fenômeno, melhor entendê-lo e potencialmente oferecer subsídios a uma prática clínica mais racional, utilizando-se de forma mais eficiente os escassos recursos disponíveis, buscando prevenir intervenções fúteis, guiadas pela ausência de critério ou pela incapacidade de decidir na incerteza. Entendê-lo permitirá, ainda, melhorar a comunicação entre os profissionais da saúde e destes com seus pacientes, oferecendo, potencialmente, qualidade de educação e formação na área.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2015

Histórico

  • Recebido
    09 Abr 2014
  • Revisado
    14 Out 2014
  • Aceito
    11 Dez 2014
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