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Objeção de Consciência e Aborto Legal: Atitudes de Estudantes de Medicina

Conscientious Objection and Legal Abortion: Medical Students’ Attitudes

RESUMO

Introdução

No Brasil, o aborto é permitido em caso de risco de morte da mulher, gravidez decorrente de estupro e anencefalia fetal.

Objetivo

O objetivo deste trabalho foi avaliar as atitudes de estudantes de Medicina em relação à objeção de consciência ao aborto legal.

Métodos

Todos os estudantes das escolas médicas do Piauí foram convidados a responder a um questionário eletrônico e anônimo com perguntas sobre características sociodemográficas, objeção de consciência ao aborto e obrigações éticas em caso de recusa.

Resultados

A taxa de resposta foi de 66,7% (n = 1.174). Enquanto 13,2% dos estudantes apresentariam objeção de consciência por risco de morte da mulher, 31,6% objetariam quando houvesse anencefalia fetal e 50,8% em caso de estupro. Na recusa do aborto por estupro, 54% não encaminhariam a mulher a outro profissional e 72,5% não explicariam a ela as opções de tratamento. Religião foi a única característica associada à recusa para o aborto.

Conclusões

A objeção de consciência no aborto por estupro foi mais frequente do que nas outras circunstâncias previstas pela legislação brasileira. Os estudantes com religião estiveram mais associados à recusa.

Aborto Legal; Estudantes de Medicina; Conhecimentos, Atitudes e Práticas em Saúde; Educação Médica

ABSTRACT

Introduction

In Brazil abortion is permitted when the woman’s life is at risk, the pregnancy resulted from rape or in the case of fetal anencephaly.

Objective

The aim of this study was to evaluate the attitudes of medical students towards conscientious objection to abortion.

Methods

Medical students from Piauí were asked to answer an anonymous electronic questionnaire with questions about sociodemographic characteristics, conscientious objection to abortion and ethical obligations in the case of objection.

Results

The answer rate was 66.7% (n = 1,174). Whereas 13.2% of the students would have presented conscientious objection in the case of any threat to the woman’s life, 31.6% would have objected in the case of fetal anencephaly, and 50.8% in the case of rape. Among the students who would object to abortion in the case of rape, 54% would not refer the woman to another professional and 72.5% would not explain the available treatment options. Religion was the only characteristic associated with refusal.

Conclusions

Conscientious objection to abortion in the case of rape was more frequent than other circumstances foreseen by Brazilian legislation. Students with religious affiliations were more associated with refusal.

Legal Abortion; Medical Students; Health Knowledge, Attitudes and Practice; Medical Education

INTRODUÇÃO

O aborto é permitido somente em algumas circunstâncias no Brasil. De acordo com o Código Penal de 1940, ele pode ser autorizado quando a gravidez é decorrente de estupro ou quando há risco de morte da mulher11. Brasil. Ministério da Justiça. Código Penal Brasileiro. Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Artigo 128. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848.htm. Acesso em: 21 abr. 2013.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/dec...
. Em 2012, o Supremo Tribunal Federal incorporou a gravidez de feto com anencefalia como possibilidade de interrupção legal da gestação22. Brasil. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental no 54. Diário da Justiça Eletrônico no 78/2012, de 20/04/2012. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/diarioJustica/verDiarioProcesso.asp?numDj=77&dataPublicacaoDj=20/04/2012&incidente=2226954&codCapitulo=2&numMateria=10&codMateria=4. Acesso em: 21 abr. 2013.
http://www.stf.jus.br/portal/diarioJusti...
. O atendimento das mulheres nas situações previstas em lei é feito em unidades de referência públicas conhecidas como “serviços de aborto legal”33. Diniz D. Objeção de consciência e aborto: direitos e deveres dos médicos na saúde pública. Rev SaúdePública 2011; 45(5):981-5.. Atualmente, existem 65 serviços de referência para o aborto legal no País, a maioria localizada nas grandes cidades brasileiras44. Diniz S. Materno-infantilism, feminism and maternal health policy in Brazil. Reprod Health Matters 2012; 20(39):125-132..

O Ministério da Saúde estabeleceu diretrizes para o atendimento de mulheres vítimas de violência sexual e o aborto previsto em lei. Essas diretrizes normatizam que os médicos têm o direito individual de objeção de consciência à prática do aborto. A recusa de consciência não será aceita, porém, se não houver outro médico para atender a mulher, se houver risco de morte ou se a omissão do atendimento puder causar danos55. Brasil. Ministério da Saúde. Norma Técnica: Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes. 2.ed. Brasília; 2005.. No caso brasileiro, a recusa de consciência acionada por médicos pode representar uma barreira para o atendimento das mulheres, uma vez que há dependência dos serviços públicos para a interrupção segura da gestação e, em muitas cidades, existe somente um serviço disponível.

Quando alega objeção de consciência, o médico deve justificar sua recusa, informar as possibilidades de tratamento e encaminhar a mulher a outro profissional66. Savulescu J. Conscientious objection in medicine. BMJ 2006; 332(7536): 294-297.,77. Wicclair MR. Is conscientious objection incompatible with a physician’s professional obligations? Theor Med Bioeth 2008; 29(3):171–185.. Inquéritos realizados em outros países demonstraram que são os médicos do sexo masculino e com filiação religiosa os que mais frequentemente se recusam a justificar a objeção e encaminhar a paciente à assistência em saúde88. Curlin FA, Lawrence RE, Chin MH, Lantos JD. Religion, conscience, and controversial clinical practices. NEJM 2007; 356(6):593-600.,99. Rasinski KA, Yoon JD, Kalad YG, Curlin FA. Obstetrician-gynaecologists’ opinions about conscientious refusal of a request for abortion: results from a national vignette experiment. J MedEthics 2011;37(12): 711-712.. O Código de Ética Médica brasileiro garante ao médico o direito de objeção, mas impõe a ele a responsabilidade de não dificultar o acesso ao aborto previsto em lei1010. Conselho Federal de Medicina. Código de Ética Médica [internet]. Brasília; 2009 [capturado em: 7 ago. 2013]. Disponível em: http://www.cremers.org.br/pdf/codigodeetica/codigo_etica.pdf.
http://www.cremers.org.br/pdf/codigodeet...
.

As atitudes de estudantes em relação ao aborto variam dependendo das circunstâncias da gravidez. Em um levantamento realizado em 2008 entre estudantes de Medicina do Reino Unido, 19,8% afirmaram que não fariam o aborto em menor de idade vítima de estupro, 23,5% não fariam em caso de falha contraceptiva e 29,5% não fariam em feto com malformação1111. Strickland SL. Conscientious objection in medical students: a questionnaire survey. J Med Ethics 2012; 38(1):22-25.. Dados diferentes foram obtidos entre estudantes da África do Sul: 59,5% disseram que teriam disponibilidade para participar do aborto em caso de severa malformação fetal1212. Buga GAB. Attitudes of medical students to induced abortion. East Afr Med J 2002; 79(5):259-62..

Não existem dados sobre objeção de consciência ao aborto entre médicos e estudantes de Medicina no Brasil. A compreensão das atitudes dos estudantes de Medicina sobre o aborto pode permitir uma previsão do comportamento futuro dos médicos sobre o tema. Este artigo descreve as atitudes de estudantes de Medicina brasileiros em relação à objeção de consciência ao aborto. Nós perguntamos aos estudantes de Medicina se eles se recusariam a participar das três possibilidades de aborto permitidas pela lei brasileira e se, em caso de objeção, justificariam a recusa, explicariam todas as opções de tratamento às mulheres e as encaminhariam a outro profissional. Nosso objetivo secundário foi determinar se a idade e o sexo dos estudantes, o ano em que se encontravam no curso médico e a prática de religião influenciavam a objeção de consciência e as responsabilidades éticas após a recusa.

METODOLOGIA

Desenho do estudo

Realizou-se estudo descritivo e transversal com os estudantes de Medicina da Universidade Federal do Piauí, da Universidade Estadual do Piauí, do Centro Universitário Novafapi e da Faculdade Integral Diferencial, localizados na cidade de Teresina, Piauí. Todos os 1.760 alunos de todos os anos do curso médico (pré-clínico e clínico) foram contactados por e-mail institucional e convidados a participar do estudo após autorização formal das escolas médicas. A amostra foi de conveniência, uma vez que as escolas não forneceram listas de estudantes por sexo, idade ou ano do curso médico. Foram enviados convites de 1º de setembro a 31 de dezembro de 2012. Dois lembretes mensais da pesquisa foram reenviados. O Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual do Piauí aprovou o desenho do estudo quanto aos seus aspectos éticos (CAAE 02896312.9.0000.5209). O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido foi obtido eletronicamente de todos os estudantes.

Coleta de dados

Um questionário estruturado anônimo e eletrônico foi disponibilizado em website específico para o estudo. O instrumento de pesquisa foi composto por três seções, com dez questões fechadas. A seção A era composta por quatro questões sobre idade, sexo, ano do curso médico e religião. A seção B perguntou sobre objeção de consciência nas circunstâncias em que o aborto é permitido no País, com três questões avaliando se o estudante recusaria a realização do aborto em caso de estupro, de anencefalia e de risco de morte da mulher. Na seção C, foi questionado se os estudantes, em caso de objeção de consciência ao aborto, justificariam a recusa, explicariam à mulher todas as opções de tratamento e a encaminhariam a outro colega que não recusasse o atendimento. As categorias de respostas para as seções B e C foram “sim” ou “não”. O questionário foi desenhado levando em consideração estudos prévios sobre atitudes e opiniões sobre o aborto entre médicos e estudantes de Medicina88. Curlin FA, Lawrence RE, Chin MH, Lantos JD. Religion, conscience, and controversial clinical practices. NEJM 2007; 356(6):593-600.,1111. Strickland SL. Conscientious objection in medical students: a questionnaire survey. J Med Ethics 2012; 38(1):22-25.,1313. Gleeson R, Forde E, Bates E, Powell S, Eadon-Jones E, Draper H. Medical students’ attitudes towards abortion: a UK survey. J MedEthics 2008; 34 (11):783-87..

Um pré-teste do questionário foi feito com 30 estudantes (cinco para cada ano do curso médico), para avaliação do entendimento das perguntas, do tempo gasto na resposta e da adoção adequada de termos técnicos. Somente após a reformulação desencadeada pelas sugestões recebidas, o questionário foi disponibilizado eletronicamente. Todas as respostas obtidas dos estudantes no pré-teste foram descartadas.

Análise dos dados

Os dados foram tabulados em planilha do Excel 2007 e descritos sob a forma de frequências e percentuais. A análise estatística bivariada foi realizada utilizando-se o programa SPSS versão 18.0 (Inc., Chicago IL). Para determinar se havia associação entre as características demográficas e a objeção de consciência ao aborto, foi empregado o teste qui-quadrado de Pearson. O nível de significância adotado foi de 5%.

RESULTADOS

Taxa de resposta e dados demográficos

Houve obtenção de questionários completos de 1.174 estudantes, com taxa de resposta de 66,7%. A Tabela 1 mostra os dados demográficos dos estudantes. A idade variou de 17 a 39 anos (dado não mostrado na tabela), com predomínio da faixa de 21 a 25 anos (67,7%). Pouco mais da metade (51,8%) dos respondentes era do sexo masculino. A distribuição dos alunos pelos anos de curso médico foi semelhante, com pequena preponderância de estudantes nos anos pré-clínicos do curso (34,8%). Sobre a declaração de filiação religiosa, 18,6% informaram não ter religião e 69,8% eram católicos.

TABELA 1
Dados demográficos dos estudantes de Medicina. Teresina, Piauí, 2012.

Objeção de consciência ao aborto

A declaração de objeção de consciência pelos estudantes variou de acordo com as circunstâncias do aborto permitidas pela legislação brasileira (Tabela 2). Enquanto 13,2% dos estudantes informaram que recusariam realizar o aborto em caso de risco de morte da mulher, 31,6% disseram que objetariam quando houvesse anencefalia fetal, e 50,8%, em caso de estupro. Nas três situações (risco de morte, anencefalia e estupro), os estudantes que tinham religião estiveram mais associados à objeção de consciência do que os estudantes que não tinham religião (χ2 = 21,4, p < 0,000; χ2 = 54,8, p < 0,000; χ2 = 37,6, p < 0,000, respectivamente). Não houve associação significativa da objeção com sexo, idade e ano do curso.

TABELA 2
Objeção de consciência dos estudantes de Medicina ao aborto legal de acordo com as variáveis demográficas. Teresina, Piauí, 2012.

Responsabilidades éticas envolvidas com a objeção de consciência ao aborto

A Tabela 3 mostra as atitudes dos estudantes perante as obrigações éticas envolvidas com a declaração de objeção de consciência. Entre os estudantes, apenas uma minoria (4,9%) não justificaria a objeção para a paciente. Quase um terço (28%) não encaminharia a mulher a outro médico que não tivesse objeção e 38,8% não detalhariam para ela todas as opções possíveis para a realização do aborto. As respostas somente dos estudantes que declararam objeção de consciência em caso de estupro, no entanto, demonstram que 54% não encaminhariam a mulher a outro profissional e 72,5% não explicariam a ela todas as opções de tratamento. Não houve associação de sexo, idade e ano do curso com as atitudes. Por sua vez, estudantes com religião, quando comparados àqueles sem religião, mostraram associação significativa com não justificar a recusa (χ2 = 3,993, p = 0,046), não explicar todas as opções (χ2 = 7,408, p < 0,001) e não encaminhar a mulher a outro profissional (χ2 = 17,584, p < 0,001).

TABELA 3
Responsabilidades éticas envolvidas na objeção de consciência ao aborto de acordo com as variáveis demográficas.Teresina, Piauí, 2012

DISCUSSÃO

O aborto é um dos tópicos que mais provocam controvérsia moral no campo da saúde reprodutiva. Nas duas últimas décadas, com o aumento da proteção dos direitos sexuais e reprodutivos em todo o mundo, também houve maior frequência de objeção de consciência, principalmente em países onde a influência da religião é maior. Assim, a oferta de aborto seguro pode ser dificultada pela objeção de consciência alegada por médicos. Não existem dados sobre objeção de consciência entre médicos brasileiros. No entanto, como em muitos estados há somente um serviço de referência, na prática, quando um ou mais médicos recusam a realização do aborto, isso pode significar que a mulher enfrentará obstáculos para ter sua solicitação atendida. Nossa expectativa é que, por meio da observação das atitudes de estudantes de Medicina, se possa desenhar um panorama aproximado de sua futura atuação profissional na comunidade.

Observamos que os estudantes de Medicina apresentaram objeção de consciência diferenciada nas três possibilidades de aborto previstas em lei no Brasil. Chama a atenção o fato de que os estudantes são menos propensos a apresentar objeção quando há uma razão médica que o justifique, como no caso da anencefalia e de risco de morte da mulher. Por outro lado, metade dos alunos (50,8%) parece não considerar o estupro como fator moralmente relevante para a interrupção da gravidez. Outras pesquisas, realizadas em países com legislação mais liberal do que a brasileira, demonstraram que a intenção dos estudantes em participar do aborto é influenciada pelas circunstâncias da gravidez. No Reino Unido, um levantamento em 2008 mostrou que 67% dos estudantes fariam o aborto em caso de risco de morte da mulher, 59% fariam em caso de gravidez por estupro e apenas 37% o fariam em caso de gravidez indesejada1313. Gleeson R, Forde E, Bates E, Powell S, Eadon-Jones E, Draper H. Medical students’ attitudes towards abortion: a UK survey. J MedEthics 2008; 34 (11):783-87.. Dados diferentes foram obtidos entre estudantes da Espanha, entre os quais 86% disseram que teriam disponibilidade para participar do aborto por estupro1414. Rodríguez-Calvo MS, Martínez-Silva IM, Soto JL, Concheiro L, Muñoz-Barús JI. University students’ attitudes towards voluntary interruption of pregnancy. Legal Medicine 2012;14(4):209-13..

Entre os estudantes que manifestaram recusa, houve associação significativa com a filiação religiosa. A religião é um bem conhecido fator que influencia a atitude em relação ao aborto. No entanto, em um país laico, como o Brasil, as razões e crenças religiosas não devem ser definidoras para o estabelecimento das políticas públicas e da assistência em saúde. Médicos com filiação religiosa apresentam menor disponibilidade para aconselhar e participar de procedimentos no aborto eletivo88. Curlin FA, Lawrence RE, Chin MH, Lantos JD. Religion, conscience, and controversial clinical practices. NEJM 2007; 356(6):593-600.,1515. Harris LA, Cooper A, Rasinski KA, Curlin FA, Lyerly AD. Obstetrician-gynecologists’ objections to and willingness to help patients obtain an abortion. ObstetGynecol 2011; 118(4):905-12.. Pesquisa conduzida em quatro universidades do Reino Unido mostrou que 76,2% dos alunos muçulmanos entrevistados acreditam que médicos têm o direito de recusar a participação em qualquer procedimento, inclusive o aborto1111. Strickland SL. Conscientious objection in medical students: a questionnaire survey. J Med Ethics 2012; 38(1):22-25.. Apesar de o questionário não contemplar as razões para a recusa, na maior parte das vezes os argumentos de ordem religiosa para tornar o aborto inaceitável se fundamentam na crença da sacralidade da vida humana e da existência de uma pessoa desde a fecundação1515. Harris LA, Cooper A, Rasinski KA, Curlin FA, Lyerly AD. Obstetrician-gynecologists’ objections to and willingness to help patients obtain an abortion. ObstetGynecol 2011; 118(4):905-12..

Ao contrário do verificado em outras pesquisas, não observamos associações de sexo, idade e ano do curso com a recusa em participar do aborto. Há evidências de que estudantes da fase pré-clínica apresentam menor aceitação do aborto que aqueles de anos mais adiantados1616. Wheeler SA, Zullig LL, Reeve BB, Buga GA, Morroni C. Attitudes and intentions regarding abortion provision among medical school students in South Africa. Int J Perspect Sex Reprod Health 2012; 38 (3):154-63.. Parece que a oferta de conteúdos sobre aborto e outros temas de planejamento familiar durante a graduação, sob a forma tanto de discussão ética como de treinamento prático, pode influenciar as atitudes e a intenção de trabalhar com aborto no futuro1717. Shotorbani S, Zimmerman FJ, Bell JF, Ward D, Assefi N. Attitudes and intentions of future health care providers toward abortion provision. Perspec Sex Reprod Health 2004; 36(2):58-63.,1818. Pace L, Sandahl Y, Backus L, Silveira M, Steinauer J. Medical Students for Choice’s Reproductive Health Externships: impact on medical students’ knowledge, attitudes and intentions to provide abortions. Contraception 2008; 78 (1): 31-5.. Não se conhece como o tema aborto é abordado nas escolas médicas brasileiras, mas um estudo em 2005 nos Estados Unidos mostrou que 17% das escolas médicas naquele país não oferecem nenhum conteúdo1919. Espey E, Ogburn T, Chaves A, Qualls C, Leyba M. Abortion education in medical schools: a national survey. Am J ObstetGynecol 2005; 192(2):640-643.. Mesmo naquelas onde esse tema faz parte do currículo, 67% dedicam menos de duas horas à sua discussão2020. Steinauer J, Rowh M, Backus L, Sandahl Y, Foster A. First impressions: what are preclinical medical students in the US and Canada learning about sexual and reproductive health? Contraception 2009; 80(1):74-80..

Nossos dados mostraram que a maioria dos estudantes informou que seria eticamente aceitável justificar a objeção de consciência em caso de aborto. Porém, quase 40% deles julgaram que não era obrigação revelar todas as opções para o tratamento e 28% não encaminhariam a mulher a outro profissional. É importante destacar que essas atitudes foram ainda menos encontradas entre aqueles que recusariam o aborto em caso de estupro, uma vez que três em cada quatro desses estudantes não encaminhariam a mulher a outro atendimento. Esses dados divergem dos encontrados em estudos de outros países. Na África do Sul, somente 12,5% dos estudantes se recusariam a realizar o aborto e encaminhar a mulher1212. Buga GAB. Attitudes of medical students to induced abortion. East Afr Med J 2002; 79(5):259-62., ao passo que nos Estados Unidos, embora 30% dos alunos fossem contra o aborto, somente 3% afirmaram que não encaminhariam a paciente a outro profissional2121. Rosenblatt RA, Robinson KB, Larson EH, Dobie SA. Medical students’ attitudes toward abortion and other reproductive health services. Family Medicine 1999; 31(3):195-99..

Para alguns médicos, o fato de encaminhar a paciente a outro profissional que não objete o aborto pode ser considerado cumplicidade, quase comparável à prática do procedimento. Para que isso não aconteça, deve haver distinção entre as crenças pessoais e os deveres profissionais. Os médicos e estudantes de Medicina que defendem seu direito de se opor a um tratamento por questões religiosas ou morais devem ter a clareza de suas responsabilidades para garantir ou, pelo menos, não obstruir o acesso ao tratamento recusado. Quando houver objeção, os médicos deverão explicar as razões de sua objeção, fornecer todas as opções de tratamento e encaminhar a paciente a outro profissional que não recuse. O dever de proporcionar benefícios e prevenir danos à saúde antecede a objeção de consciência, e, se essas exigências éticas não forem cumpridas, a obrigação de cuidado médico estará ameaçada.

Este estudo apresenta algumas limitações. Primeiro, a amostra de conveniência pode ter causado viés de seleção, o que impede a generalização dos dados. Segundo, os estudantes podem mudar de opinião com o passar do tempo, principalmente levando em consideração experiências profissionais no futuro. Terceiro, os dados referem-se a um estudo local. As atitudes dos estudantes neste estudo podem não ser semelhantes àquelas de alunos de outros países ou mesmo de outras regiões do Brasil, com contextos religioso, educacional e cultural diversos.

CONCLUSÕES

Apesar das limitações, este é o primeiro estudo realizado no Brasil entre estudantes de Medicina sobre a objeção de consciência ao aborto. O principal achado deste estudo demonstra que pouco mais da metade dos estudantes entrevistados, principalmente os religiosos, apresenta recusa de atendimento em aborto em caso de estupro. A oferta de aborto seguro necessita da capacitação de médicos com conhecimentos, habilidades e atitudes adequadas para garantir o acesso das mulheres a esse direito em saúde. Não há como prever o impacto desses resultados na oferta de aborto no Brasil; porém, se as atitudes desses estudantes forem reproduzidas nos futuros profissionais médicos, é possível que a objeção de consciência represente uma barreira para mulheres vítimas de estupro que solicitam a interrupção da gravidez.

Independentemente de suas opiniões, estudantes de Medicina e profissionais de saúde devem compreender suas responsabilidades quando declaram objeção a um procedimento médico que, embora controverso, é permitido por lei. Nenhum estudante de Medicina ou médico é obrigado a realizar um procedimento com o qual não concorda, mas, ao mesmo tempo, aquele que alega objeção de consciência deve estar preparado para facilitar e garantir o acesso ao cuidado em saúde recusado. A explicação isenta das opções possíveis para o tratamento recusado é uma aposta na capacidade de decisão autônoma da mulher e um abandono do paternalismo médico como forma de atuação profissional. Sendo a objeção de consciência uma questão individual do médico, as mulheres não têm que ter ônus por ela. Mesmo que a recusa aconteça em caso de aborto, os estudantes de Medicina precisam ser treinados para compreender que o profissionalismo exige a oferta da melhor informação, o encaminhamento adequado e a realização do tratamento garantido pela lei. A oferta de conhecimentos e a capacitação para a assistência ao aborto legal devem fazer parte do currículo das escolas médicas como estratégia para sensibilizar os futuros médicos para o atendimento integral à saúde reprodutiva das mulheres.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2016

Histórico

  • Recebido
    15 Set 2014
  • Revisado
    29 Ago 2015
  • Aceito
    29 Ago 2015
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