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Roda de Conversa: uma Articulação Solidária entre Ensino, Serviço e Comunidade

Round table: a Partnership between Education, Service and Community

RESUMO

Este artigo relata uma experiência de integração entre atividades de ensino, pesquisa e extensão através de Roda de Conversa em uma Unidade de Saúde da Família (USF), articulando seus aspectos com aportes sociológicos da Teoria da Dádiva. A apreensão da percepção dos participantes sobre a vivência e suas repercussões na vida cotidiana ocorreu durante o segundo semestre de 2013. Na coleta dos dados foram utilizados registros de portfólios de aprendizagem, observação participante e anotações em diário de campo. A análise fundamentou-se nas narrativas dos participantes e em registros temáticos decorrentes das anotações feitas. Os resultados apontaram sintonia com os referenciais pedagógicos baseados na metodologia da problematização. Foi evidenciada uma contribuição para a edificação de laços de solidariedades e o estímulo a posturas interativas críticas e tolerantes com o outro. Os participantes enfatizaram a relevância cotidiana dos temas debatidos e a troca de ideias em torno de situações comuns. Concluiu-se que o diálogo entre os saberes acadêmicos e populares constitui uma oportunidade ímpar em busca do desenvolvimento de competências e habilidades, instrumentais ou comunicativas, imprescindíveis aos discentes enquanto futuros profissionais de saúde.

Serviços de Integração Docente-Assistencial; Educação em Saúde; Estratégia Saúde da Família; Educação Médica

ABSTRACT

This article describes an experience of integrating teaching, research and outreach activities through round tables in a Family Health Unit, relating its aspects to sociological contributions of the Theory of Giving. The participants’ perceptions about the experience and its impact on everyday life were captured in the second half of 2013. Learning portfolios, participant observation and notes in the field diary were used for the data collection. The analysis was based on participants’ narratives and thematic records arising from the notes taken. The results were in line with pedagogical references based on the methodology of critical questioning. In evidence was a contribution to building ties of solidarity and encouraging interactive critical stances and tolerance with others. The participants emphasized the everyday relevance of the issues discussed, the exchange of ideas regarding common situations. The conclusions inferred that the dialogue between academic and popular knowledge represents a unique opportunity to seek the development of instrumental or communicative skills and abilities, essential to students as future health professionals.

Integrated Teaching-Care Services; Health Education; Family Health Strategy; Medical Education

INTRODUÇÃO

A prática comunitária pode ser considerada um dos eixos norteadores da formação acadêmica do futuro profissional de saúde quando aproxima demandas universitárias, exigências sociais e prestação de serviços à população. Durante muito tempo, a interação entre a academia, os serviços de saúde e a comunidade foi centrada no âmbito hospitalar, com enfoque predominantemente biológico, voltado ao diagnóstico e tratamento das doenças. Isso possibilitou aos alunos dos cursos das ciências da saúde o conhecimento detalhado das patologias em detrimento da focalização na harmonia dos sujeitos no ambiente familiar, social e de trabalho.

A comunidade, em algumas situações, ainda continua sendo tratada como um objeto de estudo e não enquanto sujeito coletivo. Consequentemente, a reprodução social de práticas fragmentadas do cuidado sobressai junto aos profissionais de saúde. Apesar do constante aperfeiçoamento da consciência crítica sobre suas próprias práticas, ainda persiste uma formação profissional fragmentada e orientada aos aspectos biológicos, superespecializada e focada no cenário hospitalar11. Ribeiro IL, Medeiros Junior A. Graduação em saúde: uma reflexão sobre ensino-aprendizado. Trab. educ. saúde. 2016;14(1):33-53..

A funcionalidade dos processos de formação profissional, ocasionando a interação entre o estudante e a realidade social em que surgem os problemas de saúde, repousa sobre três pilares: a academia, com seu histórico papel no ensino, pesquisa e extensão, desenvolvendo com sua expertise novas tecnologias de abordagem intersetorial; os serviços de saúde, que revisitam ou criam novas experiências exitosas de acordo com as realidades locais; e a comunidade, que operacionaliza e desenvolve planejamentos participativos em espaços democráticos de construção coletiva para fortalecer o controle social e a gestão dos serviços públicos.

A ESF incorpora a concepção ampliada da atenção à saúde, visando a maior integralidade das ações promocionais, preventivas, curativas e de reabilitação, em conformidade com os princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS), na perspectiva da vigilância da saúde, representando uma oportunidade para os estudantes vivenciarem novos cenários de aprendizagem. É necessário superar a ideia de saúde apenas como fornecedora de medicamentos e serviços assistenciais, adaptando orientações metodológicas de articulação descentralizada de saberes no cotidiano dos serviços.

O Programa de Educação Tutorial na Saúde (PET-Saúde) viabiliza estratégias oportunas em um modelo educativo que facilita a triangulação dos componentes desta relação, tanto no planejamento como na execução de ações e atividades capazes de produzir uma diversificação dos cenários, consolidando o desenvolvimento de um processo de trabalho interdisciplinar, pelo estímulo à constituição de equipes multiprofissionais estudantis, alcançando maior abrangência e compreensão dos processos saúde-doença e ensino-aprendizagem.

Nesta dinâmica, o intercâmbio de saberes produz e reproduz espaços de encontro entre pessoas e instituições para reflexão, criação e ação, partindo do reconhecimento das diferenças de cada participante. O estabelecimento de vínculo, responsabilização e participação popular é fundamental para a organização do processo de trabalho centrado no cidadão, capaz de gerar atitudes construtivas e democráticas na mediação dos conflitos presentes no convívio entre atores sociais diversos que detêm premissas e valores diferenciados.

As ações que privilegiam as pessoas, os sujeitos, são capazes de construir uma sociabilidade solidária, onde o espaço coletivo democrático pode ser usado para expressar e reconstruir os interesses comuns, debatendo problemas e tomando deliberações, sustentando a existência de uma prática transformadora, dialética, entre a práxis, a reflexão e a capacidade de escuta e de análise22. Campos GWS. Um método para análise e co-gestão de coletivos. São Paulo: Hucitec; 2000..

Provavelmente, quem inventou a roda de conversa foi Sócrates (469-399 a.C.), que de início promovia habitualmente uma troca de ideias com seus interlocutores, estimulando a reflexão e caracterização de algumas qualidades e virtudes (dever, amizade, coragem, justiça, moderação, etc.). Em seguida, comparava as respostas obtidas com noções adequadas. Desta maneira, usava um método (aporético) baseado na dúvida e na conversação, pois iniciava com o desconhecimento (real, aparente ou alegado) do tema focalizado, partindo de uma primeira opinião, que, submetida à crítica, fazia emergir outros significados até que as concepções mais aceitáveis pudessem ser apresentadas33. Hegenberg L. Método aporético: Sócrates. In: Hegenberg L, Silva MFA. Métodos. São Paulo: EPU; 2005..

O diálogo funcionava como um recurso didático e também como um instrumento (ferramenta) real para fazer aflorar opiniões divergentes. O debate demonstrava que as noções fornecidas necessitavam de revisão constante, para desconstruir crenças falsas na intenção de obtenção de consensos, em busca de um saber prático (ações, propósitos, condutas, resoluções) fundamentado na criticidade.

No arranjo pedagógico da Roda, por meio da conversação se problematiza a realidade para que a conscientização possa ocorrer. Uma aprendizagem significativa, vista como a compreensão de significados, que se relaciona às experiências anteriores e vivências pessoais dos aprendizes, permitindo a formulação de problemas desafiantes que incentivam o aprender mais, o estabelecimento de diferentes tipos de relações entre fatos, objetos, acontecimentos, noções e conceitos, desencadeando modificações de comportamentos e contribuindo para a utilização do que é aprendido em diferentes situações44. Felipe MCP, Melo RHV, Vilar RLA. Roda de conversa: diálogo que (re)orienta a práxis. In: Brasil. Ministério da Saúde. II Mostra nacional de produção em saúde da família: trabalhos premiados. Brasília: Ministério da Saúde; 2006. p.193-202..

O aparecimento de experiências capazes de resgatar espaços democráticos pode favorecer a conscientização das pessoas como protagonistas para uma melhor qualidade de vida e, ao mesmo tempo, apreender as sabedorias vivenciais dos sujeitos que interagem com o serviço de saúde, por meio de interpretações e compreensões compartilhadas, mediante a consideração de que todos são capazes de contribuir com suas potencialidades para a realização de ações úteis e produtivas. Desta forma, somos todos educadores e educandos, pois fazemos circular saberes diversos elaborados no enfrentamento coletivo dos problemas concretos, por meio da interação comunicativa interpessoal entre equipe de saúde, usuários, discentes, tutores, preceptores, famílias e comunidade55. Carvalho MAP, Acioli S, Stotz EN. O processo de construção compartilhada do conhecimento. In: Vasconcelos EM. A saúde nas palavras e nos gestos. São Paulo: Hucitec; 2001. p.101-14..

A perspectiva da referência ao circuito virtuoso da dádiva, enquanto uma trindade compartilhada composta por três momentos – dar, receber e retribuir –, tem pertinência para o entendimento das interações nos circuitos de trocas sociais, na medida em que pode explicar os fundamentos da solidariedade e do vínculo enquanto elementos essenciais para produzir a responsabilização partilhada pelo cuidado. Dádiva ou dom (são sinônimos) é uma ação voluntária, individual ou coletiva, que pode ou não ter sido solicitada por aquele ou aqueles que a recebem. Nas interações subjetivas, os vínculos formados envolvem vivências de emoções positivas, durante os relacionamentos interpessoais, capazes de produzir e reproduzir laços sociais66. Lacerda A, Martins PH.A dádiva no trabalho dos Agentes Comunitários de Saúde: a experiência do reconhecimento do amor, do direito e da solidariedade. Revista de Estudos Anti-Utilitaristas e Pós-Coloniais. 2013; 3(1):194-213.. Assim, uma sucessão de dádivas (doação, recepção, retribuição) poderá equilibrar as hierarquias de poderes e saberes entre os sujeitos, gerando reconhecimento mútuo em relação a afetividade, confiança, respeito e estima.

Este artigo relata uma experiência inédita de integração entre atividades de ensino, pesquisa e extensão por meio de Roda de Conversa na Unidade de Saúde da Família de Cidade Praia, em Natal (RN), articulando seus aspectos com aportes sociológicos da Teoria da Dádiva77. Mauss M. Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas. In: Mauss M. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naify; 2003. p. 183-314.. E descreve a percepção dos participantes sobre a vivência da prática.

O eixo referente ao ensino envolveu a articulação entre duas disciplinas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN): a Atividade Integrada de Educação Saúde e Cidadania (Saci); e o componente curricular Programa de Orientação Tutorial para o Trabalho Integrado em Saúde (Poti). A esfera da pesquisa contemplou momentos do trabalho de campo do estudo “Análise de Redes do Cotidiano a partir do encontro entre usuários e profissionais da Estratégia Saúde da Família”, durante o curso de Mestrado Profissional em Saúde da Família (MPSF), da Rede Nordeste de Formação em Saúde da Família (Renasf), na instituição nucleadora UFRN. Por sua vez, a dimensão extensão abrangeu o projeto “Rede de Conversa: diálogo que ensina a viver”, cadastrado na UFRN.

Partimos do pressuposto de que o encontro entre sujeitos singulares (estudantes, profissionais e usuários) induz a uma interação de formas de aprendizagem durante as dinâmicas coletivas, produzindo a circulação e troca de conhecimentos e de valores éticos e afetivos, pela articulação de saberes. Desta maneira, cada pessoa poderá mobilizar aprendizagens individuais adquiridas em situações de ação individual ou coletiva, e o sentido positivo do dom pode ser capaz de desencadear mecanismos de doações simbólicas (olhares, gestos, palavras, orientações, recomendações, medicações, mediações) capazes de gerar obrigações de solidariedade entre os envolvidos na mediação do cuidar, fundantes de responsabilidade, solidariedade e justiça.

METODOLOGIA

O desenho metodológico adotado se aproxima das características de um estudo de caso descritivo de natureza qualitativa quando foca a investigação da prática pedagógica Roda de Conversa, desenvolvida na Unidade de Saúde da Família de Cidade Praia, no município de Natal (RN), por meio do enlace entre atividades de ensino, pesquisa e extensão, legitimadas pelo incentivo à integração ensino-serviço proporcionada pelo PET-Saúde (UFRN – Secretaria Municipal de Saúde de Natal/RN). A opção pela abordagem qualitativa permite trazer para o interior da análise o subjetivo e o objetivo, os atores sociais, os fatos e os significados. E o estudo de caso analisa situações em dado momento histórico, investigando pessoa, grupo, instituição ou unidade social88. Moraes R. Uma tempestade de luz: a compreensão possibilitada pela análise textual discursiva. Ciência e Educação. 2003; 9(2):191-211..

Este relato abrange os momentos de intersecção (nas disciplinas, projeto e pesquisa) entre os estudantes dos cursos de graduação da área de saúde, com usuários, profissionais e trabalhadores de saúde, ocorridos no cenário de prática comum. Os sujeitos foram: 20 discentes (11 da disciplina Saci, 9 da Poti), de idade entre 17 e 29 anos, sendo 70% do sexo feminino, graduandos dos cursos de Biomedicina, Educação Física, Enfermagem, Fonoaudiologia, Odontologia, Educação Física, Medicina, Nutrição e Serviço Social; e 15 usuários, de 19 a 57 anos, todos do sexo feminino, residentes da área de abrangência (território) da USF mencionada, participantes tanto da extensão, quanto da investigação. Os profissionais de saúde não foram caracterizados enquanto sujeitos, para o relato, por causa da participação inconstante nas atividades do projeto de extensão.

A disciplina Saci foi criada na UFRN em 2000 e passou a fazer parte do PET-Saúde no ano de 2009, por meio de edital de convênio entre Ministério da Saúde (MS), UFRN e Secretaria Municipal de Saúde (SMS) do município de Natal (RN), pelo reconhecimento institucional do seu papel estruturante de mudanças na formação dos profissionais de saúde. Trata-se de uma atividade que envolve, simultaneamente, ações de ensino, pesquisa e extensão e se coloca como iniciativa de flexibilização dos projetos pedagógicos dos cursos da área da saúde, sendo desenvolvida com um programa estruturante de educação, formalizada e integralizada nos currículos acadêmicos como uma disciplina obrigatória ou optativa e complementar, ofertada semestralmente aos alunos matriculados no primeiro ou segundo período dos cursos de saúde da UFRN99. Medeiros CCBM, Medeiros Júnior A, Reis MKS, Santos CI, Alves MSCF. As implicações das práticas pedagógicas no desenvolvimento das competências. Revista Ciência Plural. 2015; 1(1): 30-9..

A atividade Poti compõe o segundo elenco de ações desenvolvidas nos cursos da área da saúde, sendo de caráter curricular obrigatório para os cursos que integram atualmente a equipe mínima da ESF (Medicina, Enfermagem e Odontologia) e complementar para os demais cursos. Tem como propósito fortalecer o desenvolvimento do pensamento coletivo, crítico e reflexivo dos estudantes, preceptores e tutores, por meio dos fundamentos da pesquisa aplicada e em evidências que retratam a realidade social vivenciada. Pelo estabelecimento da relação educação, trabalho e saúde, os estudantes, juntamente com seus preceptores, têm a oportunidade de participar de vivências multiprofissionais e interdisciplinares na integração com a comunidade1010. Neta AA, Alves MSCF. A comunidade como local de protagonismo na integração ensino-serviço e atuação multiprofissional. Trab. educ. saúde. 2016; 14(1): 221-235..

A investigação “Análise de Redes do Cotidiano a partir do encontro entre usuários e profissionais da Estratégia Saúde da Família”1111. Melo RHV. Análise de redes do cotidiano a partir do encontro entre usuários e Profissionais de Saúde da Estratégia Saúde da Família. Natal; 2014. Mestrado [Dissertação] – Universidade Federal do Rio Grande do Norte., desenvolvida pelo MPSF da Renasf/UFRN, colaborou com o desenvolvimento dessa temática. Nesse sentido, o objetivo deste estudo foi discutir a formação de Redes Sociais no cotidiano da ESF com base em aportes da teoria sociológica sobre redes, interações, dádiva e reconhecimento, no sentido de identificar os tipos de interações sociais existentes. Sendo assim, ampliou os estudos sobre melhorias ocorridas a partir de momentos reflexivos, nos conflitos e alianças, pela percepção de si e do outro, de seus modos de tocar a vida cotidiana.

E o projeto de extensão “Rede de Conversa: diálogo que ensina a viver” foi uma experiência que estimulou vivências de práticas de promoção da saúde compartilhadas entre discentes da saúde, preceptores, profissionais da ESF e comunidade, possibilitadas por meio do trânsito por entre as redes sociais locais. Suas ações foram centradas na problematização mediante rodas de conversa, dinâmicas interativas, leitura de poesias e cordéis para reflexão sobre problemas comuns e busca por soluções e saídas. Tem sido importante campo de experimentação de alternativas metodológicas para o fortalecimento dos laços entre ensino, pesquisa, atenção, extensão, assistência e a comunidade, além de estimular os discentes na busca da valorização e alcance de competências e habilidades fundamentais para o futuro exercício profissional, a construção dialógica e uma visão crítica, tolerante, flexível de si mesmo e do outro.

Na coleta dos dados foram utilizados registros de portfólios de aprendizagem (discentes), observação participante e grupos focais (usuários). A observação de fatos, comportamentos e cenários é extremamente valorizada nas pesquisas qualitativas. Na observação participante, o observador coleta os dados por meio de sua participação na vida cotidiana do grupo ou organização que estuda, trazendo inúmeras vantagens, como identificar comportamentos não intencionais e permitir o registro dos fatos em um contexto temporal-espacial1212. Becker HS. Método de pesquisas em ciências sociais. São Paulo: Hucitec; 1994.. A importância dessa técnica reside no fato de ser possível captar uma variedade de situações ou fenômenos que não são obtidos por meio de perguntas, uma vez que, observados diretamente na própria realidade, transmitem o que há de mais imponderável e evasivo da vida real1313. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec; 2014..

O período de coleta/construção dos dados compreendeu os meses de junho a dezembro de 2013, durante nove eventos de conversação. Cada Roda foi coordenada por uma dupla (um profissional/preceptor e um monitor/bolsista do PET-Saúde), na qual um era o mediador/moderador, e o outro, o observador. O papel do mediador da conversa foi de facilitação, fazendo emergir as opiniões dos participantes, evitando a manipulação das pessoas para que elas concordem com sua visão de mundo. Ele deve conduzir a prática de modo que as discussões ocorram principalmente entre os integrantes, servindo de catalisador e tornando-se também um participante ao aparecer menos que o grupo. Já o observador tem a função de elaborar, após cada evento, um relatório do que foi comentado, tomando como guia o roteiro norteador da observação participante, registrando também os momentos de interação entre os próprios usuários (uns com os outros) e entre os usuários e os mediadores das Rodas.

Algumas questões-chave nortearam a observação participante, entre elas: quais os motivos que levaram as pessoas a participar desta conversa (Roda)? Houve estímulo à conversação? Houve respeito à opinião de cada participante e resgate da autoestima das pessoas? A palavra foi facultada a todos os participantes? Observar gestos e aspectos não verbais. Observar quais foram os assuntos e temas de maior interesse. O espaço foi adequado para que todos pudessem ver uns aos outros? Aconteceram interrupções ou interferências durante a prática? O que aconteceu de mais relevante na Roda?

Os temas debatidos nos encontros foram: humanização dos serviços de saúde; acesso aos serviços ofertados na Rede de Atenção à Saúde (RAS); uso/abuso de drogas lícitas/ilícitas pelos adolescentes; importância da saúde bucal para a pessoa; formas diversas de violência; postura preventiva frente às hepatites virais e doenças sexualmente transmitidas; papel da mulher moderna na sociedade; mitos e verdades do tratamento odontológico de gestantes; depressão enquanto sofrimento mental. Já as anotações em diário de campo foram guiadas pelas seguintes perguntas: como a atividade aconteceu? Houve compreensão acerca dos temas debatidos? Os sujeitos pactuaram novos encontros? Quais as fragilidades e/ou potencialidades? Houve debate espontâneo ou apenas após estímulo? Ocorreram manifestações de autonomia ou empoderamento?

A análise fundamentou-se nas narrativas reflexivas dos participantes e registros decorrentes das anotações feitas, com base na leitura, sistematização de conversas e inferência de proposições pela Técnica de Análise Temática de Conteúdo, sistematizada por Minayo1313. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec; 2014.. Procurou-se analisar a natureza do diálogo irrompido, identificando nos tipos de participantes suas visões de mundo e as consequências da interação, valorizando o conhecimento produzido graças ao fértil encontro das subjetividades.

Fizemos inicialmente uma análise prévia, para definição do corpus, formulação de pressupostos e leitura exaustiva dos conjuntos de textos. Na fase de exploração, codificamos os dados coletados com base nas Unidades de Registro (palavras e frases), e de Unidades de Contexto (temas, recortes de sentido e respostas), buscando a transformação sistemática em núcleos de sentido e procurando identificar convergências, divergências, complementaridades e diferenças das falas de cada sujeito.

Por sua vez, na fase de interpretação, ocorreu o tratamento dos resultados, classificando-se os elementos segundo suas semelhanças e diferenças, categorização, inferência e reagrupamento, permeados pela reflexão e confronto teórico com a realidade empírica. A abstração na Teoria da Dádiva categorizou a priori os núcleos de sentido em três eixos: a doação, procurando identificar o que se tem a dar/doar durante a vivência, a percepção e a consciência de si, do autocuidado, as habilidades apreendidas a partir da entrega de si à experiência; a recepção, representada pelo sentimento de abertura para outras possibilidades, descobertas e curiosidade para o novo, de acolhimento e integração com o grupo, novos conhecimentos; e a retribuição, pela vontade de reproduzir a prática, o desejo de continuidade da experiência, o compromisso espontâneo de incorporação das atividades nos serviços de saúde, o efeito multiplicador.

No que diz respeito aos aspectos éticos, a investigação foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) do Hospital Universitário Onofre Lopes, da UFRN, no Parecer nº 296.248, em 06/06/2013, e registrada no Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) nº 15800213.7.0000.5292, seguindo as diretrizes e normas regulamentadoras para pesquisa envolvendo seres humanos, conforme a Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde, no que se refere às suas recomendações.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Por meio da observação participante, compreendemos que as práticas de saúde centradas no diálogo, consequentes à interação dos participantes e reforço do vínculo entre equipe e população, remeteram a mediações que transcenderam a visão unidimensional do processo saúde-doença. Assim, a vivência obteve relevância por contribuir para mudanças positivas no cotidiano dos sujeitos. Nesse sentido, a Roda de Conversa, enquanto prática cotidiana, favoreceu a constituição de grupos de seguimento e o estabelecimento de vínculo entre discentes, equipes de profissionais e usuários dos serviços de saúde.

As oportunidades também permitiram a socialização e discussão em torno de projetos, campanhas e programas que estavam sendo trabalhados, debatendo as especificidades do modelo assistencial e de atenção, interligando o microcosmo da Unidade de Saúde com as demandas dos demais níveis hierárquicos do Sistema de Saúde, compartilhando informações, conhecimentos, opiniões, críticas e sentimentos num ambiente conflitante, dialógico e solidário.

É pertinente esclarecer que as informações discutidas não necessitavam de linguagem tecnicista, nem os temas foram esgotados em poucos encontros. Os assuntos foram abordados em doses homeopáticas de forma perspicaz e sem prejuízo para a autonomia dos usuários, evitando-se o monólogo tecnocrático, que vem predominando nas interações entre os profissionais e a população. Na maioria das vezes, os temas abordados estavam concatenados com o que acontecia na realidade local.

A versatilidade da prática permitiu fazer vários encontros com temas diferentes num mesmo grupo de pessoas ou abordar um mesmo tema em grupos diferentes, facilitando a diversificação dos usos. Na condução das Rodas, foi adotada a metodologia da problematização, e todos os membros do grupo tutorial participaram dos eventos, de acordo com a temática abordada ou disponibilidade de agenda, na condição de participantes, facilitadores ou mediadores.

A duração de cada evento variou de 40 minutos a uma hora e 30 minutos, dependendo da própria dinâmica da conversação, do tema abordado e do preparo e sensibilidade do mediador na condução das conversas. Um tempo fixo para início e término da prática é adequado para não interferir nas demais atividades da unidade e para não dispersar o grupo (em média, 15 participantes por evento) ou fugir do tema em pauta.

O espaço de produção de saberes ocupa todo o campo em que pessoas compartilham vivências, valores, sentidos e identidades1414. Schimith MD et al. Relações entre profissionais de saúde e usuários durante as práticas em saúde. Trab. Educ. Saúde. 2012; 9(3):479-503.. As Rodas figuram como uma possibilidade de reflexão sobre como conhecimentos são produzidos no cotidiano, um caminho para novas compreensões na tessitura de novos fios para uma rede definitivamente incompleta, mutante e em expansão. Estes aspectos foram perceptíveis nas Rodas observadas.

Em relação à análise temática dos conteúdos, no primeiro eixo da pré-categorização adotada, a doação, os participantes referiram muita satisfação em vivenciar a prática educativa. Alguns não referiram pontos negativos, como podemos observar em algumas respostas obtidas:

“Foi muito interessante, muito boa”. (Sj11)

“Foi muito produtiva, não houve pontos negativos”. (Sj02)

“Eu achei que o tempo de duração foi muito curto”. (Sj01)

Para a construção e expressão pública dos discursos em Roda, é necessário mobilizar alguns elementos fundamentais de estruturação dos acontecimentos: cognição, experiência, contexto e interação. Os sujeitos apontaram também a oportunidade para troca de ideias e o respeito à fala de cada um. Neste contexto, a teoria da reciprocidade ilumina as práticas solidárias, fazendo florescer experiências de partilha e ajuda mútua na construção da vida social. Sabourin1515. Sabourin E. Camponeses do Brasil: entre a troca mercantil e a reciprocidade. Rio de Janeiro: Garamond; 2009. define a reciprocidade como “a dinâmica de reprodução de prestações, geradora de vínculos sociais” (p.51), permitindo o reconhecimento do(s) outro(s), em função do sentimento de pertença a um grupo, formando uma identidade coletiva, pelo compartilhamento de saberes e valores. As falas seguintes evidenciam a empatia e o incremento do vínculo entre a equipe de saúde e os usuários participantes:

“O que gostei mais foi da humildade das pessoas”. (Sj14)

“Gostei muito da alegria de todos que fazem parte da Roda”. (Sj05)

“Foi muito gratificante podermos dar opiniões e informações uns aos outros”. (Sj02)

Foi importante a correspondência dos temas abordados com as situações e os problemas concretos de enfrentamento cotidiano. Este aspecto motivou o interesse dos grupos, uma vez que os assuntos discutidos tinham relação direta com a realidade, dando vida, historicidade e concretude aos conteúdos. A educação na saúde é uma prática social concreta que se estabelece entre sujeitos que atuam no interior das instituições e que, conscientemente ou não, estão imersos em práticas pedagógicas1616. Moreschi C, Siqueira D, Piexak D, Freitas P, Rangel R, Morisso T, et al. Interação profissional-usuário: apreensão do ser humano como um ser singular e multidimensional. Rev. enferm. UFSM. 2011;1(1):22-30.. A noção de continuidade do cuidado foi percebida e registrada de forma a resgatar demandas não atendidas:

“O que mais gostei foi porque estão nos ensinando coisas reais”. (Sj01)

“Os médicos e a população, frente a frente, sem ser no consultório”. (Sj05)

“Tirar dúvidas que não dá tempo de tirar em uma consulta”. (Sj03)

Em relação ao eixo recepção, as atividades participativas, através da mediação da conversa, podem ser estratégias produtoras de aspectos positivos fundamentais para a superação dos problemas percebidos. Os sujeitos reafirmam sua cidadania em interação à medida que constroem os laços sociais. Portanto, a reciprocidade se expressa por meio de formas de solidariedade em nível real (produção e partilha de bens e serviços) quando ocorre a ação, e no plano simbólico, pelo compartilhamento da linguagem (fala, verbo, canto, encanto, fé), que fornece sentido aos valores humanos. Todos reconhecem que informa, esclarece, retira dúvidas, contribuindo, assim, para mudanças no seu cotidiano, o que denota a relevância da prática:

“Adquirimos informações que necessitamos no dia a dia, vou lidar melhor com as doenças, vai me ajudar na criação do meu filho”. (Sj10)

“Acho importante saber de tudo um pouco, aprendi muito sobre o meu corpo, vai me ajudar no futuro”. (Sj07)

A ampliação dos cenários reais de práticas de ensino-aprendizagem, seus respectivos atores, protagonistas em suas vivências junto aos diversos coletivos específicos, latentes ou constituídos, permite ir além do recorte territorial de abrangência da unidade de saúde, em direção a uma área de influência de cuidado. O espaço público é capaz de criar realidades que são compartilhadas, nas quais cada pessoa, na sua singularidade e pluralidade, pode se inserir com palavras e atitudes1717. Deslandes SF. Análise do discurso oficial sobre a humanização da assistência hospitalar. Ciên Saúde Colet. 2004; 9(1):7-14.. Em relação aos discentes, apresentamos algumas reflexões:

“É grande o entusiasmo, visto que somos debutantes nesse programa que promete ser de grande valia para o sistema de ensino da saúde”. (Disc07)

“O mais interessante é um olhar mais amplo sobre a comunidade: ver o cotidiano das famílias, compartilhar do contexto socioeconômico-emocional-cultural da população”. (Disc11)

“Há um esforço para a otimização do espaço pelos profissionais do local. Assim, o serviço assume sua função precípua, de acolher, escutar e dar uma resposta positiva”. (Disc09)

Assim como a reunião à volta da mesa, o círculo de pessoas e de pontos de vista, o respeito ao pensamento do outro, a busca de consensos e o crescimento por meio da troca de ideias tornaram-se a rotina de cada dia, e as posturas figuradas na circularidade do debate transformaram a sala hierárquica em espaço de trocas, promovendo uma educação de compromisso popular em que o diálogo deixou de ser uma simples metodologia de trabalho didático para se constituir como o fim e o sentido de uma educação conscientizadora1818. Pereira ALF. As tendências pedagógicas e a prática educativa nas ciências da saúde. Cad. Saúde Pública. 2003;19(5):1527-34..

Diferentemente de outras práticas educativas, a postura dos participantes é interativa, confirmando uma via de mão dupla que, além de compreender e explicitar o saber do interlocutor popular, implicou facilitar a socialização e o debate do saber técnico, social e político que orienta as ações de saúde. Entretanto, esse diálogo é uma relação humana parcial, provisória e deve ser aperfeiçoada, pois é falível. Sua simples ocorrência não é garantia de sucesso. Essas iniciativas promovem alguma capacidade de irradiação e difusão, porém transitória, muito embora tenha grande valor no desenvolvimento de habilidades comunicativas fundamentais para levar saúde nas palavras e nos gestos1919. Simon E, Jezine E, Vasconcelos EM, Ribeiro KSQS. Metodologias ativas de ensino-aprendizagem e educação popular: encontros e desencontros no contexto da formação dos profissionais de saúde. Interface (Botucatu). 2014; 18(Supl 2):1355-1364..

Finalmente, quanto à retribuição, a prática da Roda de Conversa também se prestou como uma boa estratégia para treinar e formar multiplicadores de saúde e para troca de experiências, apoio e suporte em novos projetos, que poderão aplicar o que foi discutido e aprendido nos seus grupos de seguimento específicos:

“Vai me ajudar a melhor trabalhar na pastoral da criança”. (Sj02)

“Vou poder transmitir esses conhecimentos para outras pessoas”. (Sj06)

Disseminar ou garantir acesso à informação consiste em divulgar os dados e capacitar para o uso. Historicamente, os responsáveis pelas práticas de comunicação em saúde tinham o papel de traduzir ou decodificar a retórica técnica para uma retórica popular2020. Teixeira RR. Modelos comunicacionais e práticas de saúde. Interface (Botucatu). 1997;1(1):7-33.. Neste caso, é rompido o circuito vicioso de outrora, no qual o diálogo é previsto por comportamentos predefinidos pelos mediadores, e se estabelece outra forma de comunicação, caracterizada pela horizontalidade. Deve haver cuidado para que esta decodificação não venha a se tornar unívoca, pretendendo o moderno educar o arcaico, tornando o usuário apenas um consumidor ideal de campanhas e programas verticais.

Se a conversa constitui a substância principal das atividades do serviço de saúde, é possível tornar a rede de serviços uma rede de conversações, na qual cada nó corresponde a um encontro, um momento de conversa acontecido em cada etapa durante a passagem (fluxo) do usuário pelo serviço, ou durante o trânsito dos discentes, docentes e trabalhadores por entre as redes da comunidade. As relações entre as diferentes conversas edificam um espaço coletivo e autêntico de conversações2020. Teixeira RR. Modelos comunicacionais e práticas de saúde. Interface (Botucatu). 1997;1(1):7-33..

As Rodas de Conversa permitiram aos participantes melhor compreensão das ações coletivas, pois são estratégias de intervenção na dinâmica de um grupo, incrementando a sinergia entre as pessoas, focalizando a tessitura de uma rede social em que ideias, comportamentos e práticas podem ser promovidos e difundidos entre as pessoas. A ampliação dos espaços de interação cultural significa também uma ação que reorienta a globalidade das práticas executadas, pois toma como ponto de partida o saber anterior da população.

A postura interativa e dialógica, presente nas práticas do dia a dia, permite ao profissional de saúde o exercício de suas atribuições com mais criatividade, mediando relações entre sujeitos e saberes nas instituições de saúde. Trata-se de uma ampliação de atuação no campo, visto que a educação em saúde transcorre praticamente em todas as ações cotidianas na promoção da saúde.

A alteração dos lugares tradicionalmente reservados s usuários, profissionais, tutores, preceptores, monitores e alunos mobiliza reações diferentes em cada um, numa arena onde se disputam e negociam desejos, ansiedades e necessidades, tornando o processo educativo participante uma fonte de lições e sabedorias:

“Temos que estar de ouvidos bem abertos para ouvir de forma qualificada as queixas; temos que ter olhos críticos, buscando enxergar o que não é dito”. (Disc07)

“O que mais ela [a experiência] me ensinou não foram os termos tecnicistas que a profissão exige, mas, sim, a forma humanizada de acolher, escutar, tratar e respeitar os pacientes”. (Disc08)

As atividades foram capazes de estimular práticas interdisciplinares utilizando a problematização em situações concretas vivenciadas pelos discentes, principalmente durante o início dos cursos da área da saúde e, consequentemente, têm permitido acompanhar mais de perto as políticas públicas prioritárias. As aprendizagens coletivas, fruto da reciprocidade generalizada, dependem do envolvimento mútuo de cada sujeito durante as experiências coletivas compartilhadas, pois motivam o cumprimento de acordos, pactos e consensos, mantendo o circuito das ações em que cada participante é fortalecido pelo interesse no(s) outro(s), no projeto coletivo. Estas estruturas coletivas (regras, normas) são (deveriam ser) fundadas dialeticamente por meio de relações de reciprocidade horizontal, caracterizadas pela partilha (comunhão) e/ou rivalidade (enfrentamento):

“Pude entender um pouco do funcionamento do trabalho multidisciplinar. Percebe-se que não há uma divisão exata de tarefas”. (Disc05)

“A primeira novidade foi a vivência prática das atividades executadas por uma equipe multidisciplinar, as quais, até então, eu só conhecia teoricamente”. (Disc04)

A ambiguidade do envolvimento e do movimento de dar, receber, retribuir gera conflitos de consciência produzidos por determinantes estruturais internalizados nos sujeitos, pois os serviços de saúde são conflituosos em relação aos interesses e estratégias individuais dos parceiros de interação e aos sistemas de obrigações das regras, normas e protocolos institucionais:

“Mas, além do esperado, o que aconteceu foi um comentário espontâneo e sincero da paciente, acompanhado de um gesto simples e carregado de gratidão para a minha pessoa, um abraço apertado. Talvez não fosse eu quem o merecesse”. (Disc09)

Um dom de aliança entre anônimos, intencional, generoso, na perspectiva da valorização intersubjetiva, capaz de transformar excluído em incluído, outro em próximo, selando pactos sociais a cada movimento de liberdade e obrigação, ambivalentes, pelas doações conscientes, interessadas ou desinteressadas, estabelecidas. É importante não confundir o dom enquanto uma dádiva-partilha (recíproca) com o dom de caridade (unilateral). Quando se tem a certeza de que o outro conhece, valoriza e participa do circuito (recíproco) do dom, é possível doar livremente, seja por princípio ou para a circulação de boas práticas; logo, a dádiva é a expressão de um sentimento nascido na reciprocidade2121. Temple D. As origens antropológicas da reciprocidade. Jornal do Mauss Latino-Ibérico-americano [on line]. 2009. [capturado 07 out. 2014]; Disponível em: <http://www.jornaldomauss.org/periodico/?p=793>
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,2222. Caillé A. Reconhecimento e Sociologia. Revista Brasileira de Ciências Sociais. 2008; 23(66):151-163.,2323. Martins PH. Redes sociais como novo marco interpretativo das mobilizações coletivas contemporâneas. Caderno CRH. 2010; 23(59):401-418..

Finalmente, sobre as limitações da experiência, alguns aspectos negativos foram percebidos: baixa participação dos profissionais de saúde, principalmente os que não tinham vínculo formalizado com o PET-Saúde; interferência da gestão local (direção e administração) da unidade de saúde em alguns momentos, em função da cobrança por maior número de procedimentos clínicos (produtividade) em vez de atividades coletivas; a rotatividade dos profissionais de saúde durante os encontros dificultou o desenrolar de alguns debates, exigindo maiores habilidades do moderador/facilitador para que a conversação pudesse fluir de maneira satisfatória; a infraestrutura física da unidade de saúde também prejudicou em parte as conversas, por se tratar de uma casa pequena, alugada e adaptada para sediar uma unidade da ESF, pela precária ventilação, isolamento sonoro e espaços físicos de dimensões reduzidas; e pouca participação dos monitores/bolsistas do PET-Saúde (principalmente os graduandos de Medicina e Odontologia), que não dispunham de turno livre em virtude das grades curriculares de seus cursos de graduação.

CONCLUSÕES

Esta vivência permitiu identificar as principais contribuições da conversa, enquanto prática potente para uma articulação mais solidária no ensino na saúde, interação dos participantes e reforço do vínculo entre equipe e população. Constatamos sua relevância para os participantes, pela contribuição para as mudanças no cotidiano de suas vidas.

A ferramenta Roda de Conversa se aplica nos espaços coletivos de contato entre equipes multiprofissionais, discentes e usuários como instrumento para desenvolver atividades de promoção em saúde, favorecendo o aprendizado mútuo de forma espontânea, estimulante e inovadora. Esta experiência tem sido capaz de aprofundar a compreensão sobre a participação dos sujeitos sociais concebidos como protagonistas de seu modo de viver e produtores do seu próprio cuidado.

No campo dos serviços, a aplicação desses aspectos no processo de trabalho local pode produzir impacto no estilo de vida das pessoas, pelas aproximações dialogadas entre o saber científico e o senso comum, fortalecendo a participação comunitária, o autocuidado e a autonomia. Na dimensão da comunidade, este movimento dinâmico compartilha saberes acerca das questões gerais da vida cotidiana, levando os sujeitos a uma reflexão acerca de seu papel de mediador social, permitindo maior centralização no usuário, pela oferta de espaços de escuta, reflexão e estímulo à criticidade de si e do outro. E, na esfera da formação acadêmica, instrumentaliza os alunos na busca da valorização e alcance de competências e habilidades fundamentais para o exercício profissional, a construção dialógica e uma visão crítica, tolerante e flexível da comunidade.

A aplicação dos aportes sociológicos acerca da Teoria da Dádiva na educação e formação em saúde pode contribuir para desenvolver posturas e atitudes mais solidárias durante as interações, presenciais ou virtuais, colaborativas, equacionando as relações de poderes entre quem ensina e quem aprende, uma vez que o conhecimento também pode ser percebido, por alguns, como uma forma de acúmulo de poder.

A conversação solidifica uma prática em que são respeitadas as representações sociais num ambiente conflitivo, cooperativo e formador de consensos, minimizando resistências quanto a escuta, reflexão e análise dos problemas concretos. Nas relações distintas da vida cotidiana, estão caracterizados os aspectos peculiares de cada lugar em seu contexto histórico, político e cultural que facilitarão a apreensão de novas formas de pensar, agir, fazer e promover saúde por meio de palavras, gestos e atos.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2016

Histórico

  • Recebido
    28 Jun 2014
  • Aceito
    14 Jan 2016
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