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Tutoria como Estratégia para Aprendizagem Significativa do Estudante de Medicina

Tutorial Groups as a Strategy for Meaningful Learning among Medical Students

RESUMO

Esta pesquisa teve como objetivo analisar a estratégia da Tutoria inserida em um currículo médico com tendência ao tradicional, não orientado por problemas, utilizando as falas de estudantes de Medicina de uma instituição de ensino superior brasileira. Para a compreensão do campo-tema, optou-se por desenvolver uma pesquisa com abordagem qualitativa. Os referenciais teórico-metodológicos utilizados discutem os processos de ensino-aprendizagem e da área de linguagem e análise de discurso. Como procedimentos metodológicos foram utilizadas as técnicas de Roda de Conversa, diário de campo e observações. Foram identificados os repertórios linguísticos das falas dos sujeitos, com foco nas controvérsias do discurso, que conformaram sete conjuntos de sentidos. Conclui-se que, com base nas falas dos estudantes, a inserção da estratégia da Tutoria, de inspiração na Aprendizagem Baseada em Problemas, em currículos mais tradicionais pode ser uma alternativa para iniciar processos de mudança curricular no caminho da construção de uma aprendizagem significativa, desde que haja planejamento coerente com a proposta pedagógica do curso, resultando no desenvolvimento de autonomia, criticidade, respeito e aprendizado com as diferenças, que são competências importantes a serem desenvolvidas pelo futuro médico.

Tutoria; Educação Médica; Aprendizagem Significativa; Aprendizagem Baseada em Problemas; Currículo

ABSTRACT

This research project aimed to analyze the strategy of usingtutorial groupsas part of a medical degree curriculum mostly traditional in style instead of problem-guided, according to views expressed orally by medical students at a Brazilianhigher education institution. To better understand the subject, we chose to developqualitative research. The theoretical and methodological references used are authors who discuss the teaching-learning and language area processes, as well as discourse analysis. Instruments employed includeconversation circle techniques, field diaries and observations. Language repertoires were identified from the students’ comments, with a focus on the controversies of the speech, which formed seven sets of directions. Based on the students’ opinions, our conclusion is that the use of atutoring strategy inspired by Problem-Based Learning in more traditional curricula may serve as an alternative for instigating curricular change processes in order to build more meaningful learning, provided there is coherent planning with the course’s teaching goals, resulting in the development of autonomy, critical thinking, respect and learning from differences, which are important skills to be developed by future doctors.

Tutorial Group; Medical Education; Meaningful Learning; Problem-Based Learning; Curriculum

INTRODUÇÃO

Historicamente, a medicina vem sofrendo transformações, refletindo as alterações sociais no Brasil e no mundo. No século XIX, a Revolução Industrial e o avanço científico trouxeram à tona uma compreensão biomédica da medicina, que culminou na fragmentação do indivíduo e intensa especialização do profissional, marcadas pela publicação do Relatório Flexner, com forte influência na formação médica11. Mamede S, Penaforte JC. Aprendizagem Baseada em Problemas: anatomia de uma nova abordagem educacional. Fortaleza: Hucitec; 2001.. O ensino na área da saúde focou a doença, os órgãos e os sistemas, relegando as dimensões psicológicas, culturais e sociais22. Ceccim RB. Mudança na graduação das profissões de saúde sob o eixo da integralidade. Cadernos de Saúde Pública, set-out 2004; 20(5):1400-1410..

A partir dos anos 1960, há um despertar de pensamentos que leva a contextualizar e globalizar saberes, articulando disciplinas de modo mais fecundo33. Morin E. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2011.. Nesse período,instituições de educação médica buscaram transformações curriculares, orientadas para novas e mais adequadas estratégias educacionais para o uso na educação de adultos. De forma prioritária, estabeleceu-se o princípio da educação centrada no estudante, que culminou com o surgimento da Aprendizagem Baseada em Problemas (ABP ou PBL, sigla em inglês de Problem-Based Learning)11. Mamede S, Penaforte JC. Aprendizagem Baseada em Problemas: anatomia de uma nova abordagem educacional. Fortaleza: Hucitec; 2001.,44. Venturelli J. Educación Medica: nuevos enfoques, metas y métodos. Organización Panamericana de la Salud; 1997. e de outras propostas que utilizam metodologias ativas de ensino-aprendizagem em diversos países.

No Brasil, várias conformações curriculares têm sido empregadas nas graduações em Medicina, com focos na ABP ena problematização, mas também com a manutenção de organizações mais tradicionais. Os movimentos favorecem a construção de currículos mais condizentes com as necessidades de saúde e em consonância com as Diretrizes Curriculares Nacionais dos Cursos de Medicina no Brasil, que estabelecem uma formação: generalista, humanista, crítica, reflexiva e ética; centrada no processo de saúde-doença em seus diferentes níveis de atenção, com ações de promoção, prevenção, recuperação e reabilitação à saúde, na perspectiva da integralidade da assistência e responsabilidade social55. Brasil. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina. Câmara de Educação Superior. Resolução CNE/CES 4/2001. Diário Oficial da União, Brasília, 9 de novembro de 2001.,66. Brasil. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educção. Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação de Medicina. Câmara de Educação Superior. Resolução CNE/CES 03 de 20 de junho de 2014..

Estratégia bastante utilizada nos cursos de Medicina em que há planejamento de metodologias tradicionais conjuntamente a propostas mais ativas de ensino-aprendizagem, a Tutoria foi uma atividade concebida no currículo de orientação por problemas, mas que adentrou em outras conformações curriculares. Neste caso, a lógica disciplinar conteudista permanece, mas é integrada em Situações-Problema (SP) nas Tutorias.

Desta forma, esta pesquisa teve como objetivo analisar a Tutoria em um currículo médico por meio das falas de estudantes de um curso de Medicina. A pesquisa buscou compreender como a Tutoria está relacionada ao processo de aprendizagem, identificando especificidades, limites e possibilidades de sua utilização em um currículo tradicional. Esta pesquisa envolve práticas inovadoras ao ler os fatores envolvidos na análise da Tutoria de forma complexa, o que influenciou diretamente as escolhas das abordagens metodológicas77. Ringsted C, Hodges B, Scherpbier A. “The research compass”: an introduction to research in medical education: AMEE Guide No. 56. MedicalTeacher, 2011; 33(9):695-709., neste caso as práticas discursivas e a produção de sentidos88. Spink MJ, Menegon VM. A pesquisa como prática discursiva: superando os horrores metodológicos. In: Spink MJ, org. Práticas Discursivas e Produção de Sentidos no Cotidiano: aproximações teóricas e metodológicas. São Paulo: Cortez, 1999..

O PROCESSO DE ENSINO-APRENDIZAGEM NA TUTORIA

Há diferentes atividades nomeadas como Tutoria, porém todas próximas a concepções de aprendizagem em grupo, centradas no estudante, visando desenvolver conhecimentos, habilidades e atitudes. Os tipos de Tutoria que mais se desenvolvem nas graduações de Medicina no Brasil são: na ABP99. Wood DF. Problem-Based Learning. BMJ 2003; 326(7384):3 28-330., estruturante em currículos orientados por problemas; Tutoria de inspiração na ABP, mas inserida em outras conformações curriculares; Tutoria Mentoring1010. Chaves LJ, Gonçalves ECQ, Ladeira LR, Ribeiro MS, Costa MB, Ramos AAM. A tutoria como estratégia educacional no ensino médico. Rev. bras. educ. méd, 38(4), 2014. 532-541., que busca oferecer suporte e apoio ao estudante; Tutoria em práticas de preceptoria nos serviços de saúde; e a Tutoria no Ensino à Distância11. Mamede S, Penaforte JC. Aprendizagem Baseada em Problemas: anatomia de uma nova abordagem educacional. Fortaleza: Hucitec; 2001..No caso desta pesquisa, o foco é dado à Tutoria inspirada na ABP, inserida numa conformação curricular não orientada por problemas.

Os princípios da Tutoria trazem aproximações com as teorias de alguns autores, entre elas a Aprendizagem Significativa de David Ausubel, que se caracteriza pela interação cognitiva entre o novo e o prévio conhecimento. O conhecimento prévio é, isoladamente, a variável que mais influencia a aprendizagem1111. Moreira MA, org. Aprendizagem Significativa: a teoria e os textos complementares. São Paulo: Editora Livraria da Física; 2011., o que fortalece a necessidade de realizar problematização no contato com uma situação-problema (SP). Neste prisma, o aprendiz não é um receptor passivo, mas deve fazer uso dos significados que já internalizou, de maneira substantiva e não arbitrária1111. Moreira MA, org. Aprendizagem Significativa: a teoria e os textos complementares. São Paulo: Editora Livraria da Física; 2011.. Essa forma de aprendizagem traz estreita relação com a forma de se trabalhar na Tutoria, com valorização do saber do estudante e estímulo para que possa “aprender a aprender”.

Relaciona-se, também,com a Teoria Sociocultural de Lev Vygotsky, na defesa do aprendizado como processo pelo qual o indivíduo adquire informações, habilidades e atitudes a partir de seu contato com a realidade, com as outras pessoas e com o meio ambiente1212. Oliveira MK. Vygotsky - Aprendizado e desenvolvimento: Um processo sócio-histórico. São Paulo: Ed. São Paulo; 1997..

Nas conformações curriculares que propiciam o uso de metodologias ativas de ensino-aprendizagem, os estudantes e professores compartilham as responsabilidades pelo aprendizado, produzindo maior autonomia no educando1313. Bate E, Hommes J, Duvivier R, Taylor DCM. Problem-based learning (PBL): Getting the most out of your students-Their roles and responsibilities: AMEE Guide, n. 84. Medical Teacher, 2013; 36(1):1-12..

Na revisãoda literatura, foram encontradas publicações sobre a Tutoria no currículo orientado por problemas1414. Silva NC. Aplicação do tutorial no método ABP no curso de graduação em medicina da UNESC. Rev. Pesq. Extens. Saúde. 2007;3(1).,1515. Prates MEVDO. O processo tutorial no método de aprendizagem baseada em problemas (ABP) no curso de Medicina da UESB: a compreensão dos estudantes. Salvador; 2009. Mestrado [Dissertação] – Universidade Federal da Bahia.,1616. Smolka MLRM, Gomes AP, Batista RS. Autonomia no contexto pedagógico: percepção de estudantes de medicina acerca da aprendizagem baseada em problemas. Rev. bras. educ. med.[online]. 2014;38(1):5-14., mas em currículos tradicionais de Medicina há escassez de pesquisas, que se restringem aos projetos pedagógicos, resumos em eventos científicos e ementas de disciplinas. Dessa forma, a opção foi dialogar com autores da educação e com algumas publicações sobre a Tutoria na ABP.

A TUTORIA NO CURSO DE MEDICINA

Esta pesquisa foi realizada em um curso de Medicina de uma instituição privada, localizada em uma capital brasileira. Na busca do perfil generalista do egresso, a graduação foi planejada sob uma lógica que possibilitasse a integração das diversas dimensões do conhecimento em módulos, proporcionando maior relação entre os conteúdos disciplinares. O curso, iniciado em 2004, está organizado em três eixos temáticos: Desenvolvimento Pessoal Profissional, relativo a ética e humanismo; Interação Ensino-Serviço-Comunidade, relativo ao compromisso social e de práticas de atenção à saúde; e o eixo Técnico-Científico. As metodologias utilizadas para as práticas de ensino-aprendizagem são diversas. Entretanto, de acordo com a avaliação dos currículos realizada por Lampert1717. Lampert JB, Silva RHA, Perim GL, Stella RCR, Abdalla IG, Costa NMSC. Projeto de avaliação de tendências de mudanças no curso de graduação nas escolas médicas brasileiras. Rev. bras. educ. med., 2009; 33 (1)., a proposta pedagógica deste curso talvez esteja mais próxima de uma estrutura curricular com abordagem pedagógica inovadora nos primeiros semestres e tendências tradicionais no restante do curso.

Uma das estratégias de integração dos conhecimentos teóricos e práticos dos três eixos temáticos e desenvolvimento de habilidades e atitudes foi a implantação da Tutoria, a partir de 2008. As situações-problema são desenvolvidas neste ambiente simulado e permitem exploração do conhecimento prévio dos estudantes, raciocínio clínico e epidemiológico, formulação de hipóteses, busca e análise crítica de informações, e formulação de planos de cuidado individuais e coletivos. O móduloé oferecido nos três primeiros semestres do curso, em sessões semanais de três horas,com grupos constituídos de forma aleatória por até dez estudantes e um tutor, utilizando-se uma adaptação dos Passos da Tutoria99. Wood DF. Problem-Based Learning. BMJ 2003; 326(7384):3 28-330..

MÉTODO

Esta pesquisa foi realizada entre junho e novembro de 2014, após aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa. O campo nesta pesquisa não é compreendido como separado e distante do pesquisador, mas como campo-tema em que o pesquisador e os sujeitos se relacionam, estando juntos em momentos específicos de investigação, bem como em conversas e eventos do cotidiano que foram descritos no diário de campo, sempre considerando as questões éticas envolvidas1818. Spink MJ, org. Linguagem e produção de sentidos no cotidiano. Porto Alegre: EDIPUCRS; 2004.. O campo-tema é a temática da pesquisa em si e, portanto, a todo o momento o pesquisador “está em campo”.

Como referencial teórico-metodológico foi utilizado o das práticas discursivas e produção de sentidos88. Spink MJ, Menegon VM. A pesquisa como prática discursiva: superando os horrores metodológicos. In: Spink MJ, org. Práticas Discursivas e Produção de Sentidos no Cotidiano: aproximações teóricas e metodológicas. São Paulo: Cortez, 1999., que busca a produção de sentidos por meio da linguagem ordinária e conversas do dia a dia.

Os procedimentos metodológicos utilizados foram: escrita (diário de campo), o olhar (observações) e o percurso (caminhos da pesquisa)1919. Diehl R, Maraschin C, Tittoni J. Ferramentas para uma psicologia social. Psicol. estud., Maringá, Aug. 2006; 11(2).. Com os estudantes foi realizada a Roda de Conversa.

A escrita do diário de campo possibilitou ultrapassar os limites da mera descrição, implicando o observador no contexto da pesquisa1919. Diehl R, Maraschin C, Tittoni J. Ferramentas para uma psicologia social. Psicol. estud., Maringá, Aug. 2006; 11(2).. Foi produzido durante a participação habitual do pesquisador como tutor de um grupo da Tutoria, constituído de anotações, impressões e ocorrências no campo relacionadas à pesquisa. Por meio do escrever, o diário de campo possibilita revivenciar as situações e ressignificá-las.

O olhar é uma ferramenta em que o observador se considera implicado naquilo que observa1919. Diehl R, Maraschin C, Tittoni J. Ferramentas para uma psicologia social. Psicol. estud., Maringá, Aug. 2006; 11(2).. Assim, o observador possui limitações, pois abandona a busca de uma realidade imparcial e passa a significá-la como coletivamente construída. Mas se o limite restringe, também possibilita, pois o olhar passa a ser um modo de autoria, com reconhecimento de nuanças antes invisíveis.

Já o percorrer1919. Diehl R, Maraschin C, Tittoni J. Ferramentas para uma psicologia social. Psicol. estud., Maringá, Aug. 2006; 11(2).comporta os deslocamentos e as paradas, permitindo questionar os lugares ocupados nos coletivos, os pontos de onde partimos e transitamos, numa experiência de estranhamento de lugares distantes e, simultaneamente, próximos.

A opção pela Roda de Conversa deu-se pela proximidade com a dinâmica da própria atividade investigada, a Tutoria, em que alguns dos pontos principais são o trabalho em grupo e a horizontalidade no diálogo. Esta técnica possibilita compreender a inserção do pesquisador em seu campo-tema e o trabalho com sua população, o que potencializa a pesquisa do cotidiano, já que não há um roteiro de perguntas preestabelecidas, mas, sim, um espaço de conversas espontâneas2020. Spink PK. O pesquisador conversador no cotidiano. Psicologia & Sociedade. 2008; 20 (spe)., recurso que possibilita maior intercâmbio de informações entre pesquisador e participantes. De forma geral, quando utilizada como técnica de pesquisa, inicia-se com a exposição de um tema pelo pesquisador ao grupo e, a partir daí, as pessoas apresentam suas elaborações, discutindo e posicionando-se de forma dialógica neste espaço2121. Méllo RP, Silva AA, Lima MLC, Di Paolo AF. Construcionismo, práticas discursivas e possibilidades de pesquisa em psicologia social. Psicologia & Sociedade, 2007; 19(3):26-32..

A Roda de Conversa tem seus princípios baseados nos Círculos de Cultura, propostos por Paulo Freire2222. Freire P. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1980.e pensados a partir da lógica da Educação Popular, que trabalham de forma dialógica, orientados para a construção coletiva do aprendizado e da cultura. Outra fundamentação teórica das Rodas de Conversa éo Método da Roda, de Gastão Campos, utilizado na cogestão de coletivos. O autor propõe que nos espaços de grupo há necessidade de fortalecer a autonomia do sujeito e do coletivo, por meio da solidariedade, integração e aprendizado, possibilitando a identificação de necessidades e a construção compartilhada de estratégias de superação2323. Campos GWS. Um método para análise e co-festão de coletivos: a constituição do sujeito, a produção de valor de uso e a democracia em instituições: o método da roda. São Paulo: Hucitec; 2000..

Dessa forma, a Roda de Conversa é compreendida como possibilidade de técnica de pesquisa, pois há interesse em que os sujeitos sejam ativos na produção do conhecimento, podendo participar de todo o processo da pesquisa: do planejamento, à execução e à interpretação/análise das informações2424. Batista NCS, Bernardes JS, Menegon VSM. Conversas no cotidiano: um dedo de prosa na pesquisa. In: Spink MJ, Brigagão JIM, Nascimento, VLV, Cordeiro, MP, orgs. A produção da informação na pesquisa social: compartilhando ferramentas. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais; 2014.. Portanto, neste contexto, o pesquisador é visto como um conversador, que faz parte do cotidiano e está imerso no campo-tema2020. Spink PK. O pesquisador conversador no cotidiano. Psicologia & Sociedade. 2008; 20 (spe)..

Nesta pesquisa, foi realizada uma Roda de Conversa com dez estudantes de Medicina que cursavam o Módulo de Tutoria, com condução do pesquisador principal e de um cofacilitador, além de um relator. Para a constituição deste grupo, foram convidados 12 estudantes, quatro de cada semestre do curso, participantes ativos do processo de Tutoria, segundo avaliação dos respectivos tutores. Foram excluídos os estudantes que se transferiram para o curso depois de iniciada a graduação em outra instituição, os que foram dispensados de outros módulos, bem como aqueles que tinham como tutor o pesquisador principal.

No início, foram explicados os objetivos da pesquisa, reforçando-se a voluntariedade de participação, além da necessidade de concordarem com o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. A partir da provocação inicial, sugerindo que os participantes avaliassem a Tutoria, identificando potencialidades, limites e relações com a aprendizagem, o grupo discutiu a temática proposta de forma autônoma, trazendo seus entendimentos, questionamentos, convergindo e divergindo seus posicionamentos, com pequenas intervenções dos dois facilitadores. Esta Roda teve 1h23min de duração.

Após análise inicial, foi realizada nova Roda de Conversa com o mesmo grupo, com duração de 1h34min. O objetivo foi apresentar a conversa inicial a fim de democratizar a análise com a participação dos sujeitos. Tratou-se de procedimento metodológico e ético, salientando-se aqui que o objetivo não foi chegar a consensos em relação à análise, mas enriquecer o processo e seus resultados, o que reforça o compromisso da pesquisa com o bem coletivo.

As duas Rodas de Conversa foram gravadas em áudio, e o pesquisador realizou transcrições sequenciais e integrais2525. Nascimento VLV, Tavanti RM, Pereira CCQ. O uso de mapas dialógicos como recurso analítico em pesquisas científicas. In: Spink MJ, Brigagão JIM, Nascimento, VLV, Cordeiro, MP,orgs. A produção da informação na pesquisa social: compartilhando ferramentas. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais; 2014., substituindo os nomes dos participantes por códigos, garantindo o sigilo das identidades.Os materiais das transcrições foram utilizados para a elaboração dos Mapas Dialógicos, ferramenta pré-analítica que organiza as falas, conferindo visibilidade àinteranimação dialógica,às negociações de sentidos, disputas e posicionamentos2525. Nascimento VLV, Tavanti RM, Pereira CCQ. O uso de mapas dialógicos como recurso analítico em pesquisas científicas. In: Spink MJ, Brigagão JIM, Nascimento, VLV, Cordeiro, MP,orgs. A produção da informação na pesquisa social: compartilhando ferramentas. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais; 2014.. O Mapa Dialógico éum quadro onde as colunas são definidas por categorias relacionadas aos objetivos da pesquisa, entrecruzadas com as falas dos sujeitos dispostas nas linhas, sendo que sua escolha se fundamenta no referencial teórico-metodológico utilizado, pois permite a identificação dos repertórios linguísticos2525. Nascimento VLV, Tavanti RM, Pereira CCQ. O uso de mapas dialógicos como recurso analítico em pesquisas científicas. In: Spink MJ, Brigagão JIM, Nascimento, VLV, Cordeiro, MP,orgs. A produção da informação na pesquisa social: compartilhando ferramentas. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais; 2014..

A análise de cada coluna permite a produção de conjuntos de sentidos, para identificação dos repertórios linguísticos, que são, em linhas gerais, a primeira unidade de análise do discurso. Os repertórios linguísticos são os conjuntos de termos, descrições, lugares-comuns e figuras de linguagem que demarcam as diversas construções discursivas do grupo de sujeitos, tendo como parâmetro o contexto em que são produzidas88. Spink MJ, Menegon VM. A pesquisa como prática discursiva: superando os horrores metodológicos. In: Spink MJ, org. Práticas Discursivas e Produção de Sentidos no Cotidiano: aproximações teóricas e metodológicas. São Paulo: Cortez, 1999.. Os conjuntos iniciais foram apresentados na segunda Roda de Conversa, sendo reelaborados após este momento com base nos posicionamentos dos sujeitos da pesquisa.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A análise dos repertórios linguísticos provenientes dos mapas dialógicos possibilitou identificar e compreender as múltiplas maneiras de se falar sobre a Tutoria, o que possibilitou focar as controvérsias daí decorrentes. Definimos sete conjuntos de sentidos relacionados ao processo da Tutoria: (1)relações com o currículo; (2)autonomia do estudante; (3) aproximações entre teoria e prática; (4)aprendizado em e com o grupo; (5)sentimentos e afetos; (6)participação do tutor;(7) processos de avaliação. A seguir, as reflexões sobre estes conjuntos de centidos:

Conjunto de sentidos 1 – relações com o currículo: “invente o caminho e vá mais fundo”

As falas dos estudantes trazem as controvérsias nas comparações entre as aulas tradicionais em sala e a Tutoria, com concepções de aprendizado diferentes, associando à primeira termos como:

“esquece; memoriza; decora; não associa; dar aula; desenrolar de algum jeito; decoreba; receber tudo pronto; tipo aula.”

Já a Tutoria é associada a termos como:

“aprendizagem; estímulo; prática; aprofundar; capacidade criativa e até lúdica; aprende mais e mais fácil; a gente crie; deixar mais livre; invente o caminho e vai mais fundo; amplia mais; sedimentar o conhecimento; desafio; debater; despertar; surpreender.”

São vistos pelos estudantes como espaços diferentes, sendo o aprendizado na sala de aula descrito com maior proximidade do processo de transmissão do conhecimento, e a Tutoria, à sua construção. No discurso, parece haver prioridade para o estudo dos conteúdos de sala de aula, mas o aprendizado construído na Tutoria é mais resgatado quando necessário. O choque entre os dois modelos aparece bastante nas falas, o que indica a necessidade de planejamento específico para buscar equilíbrio entre as propostas pedagógicas e de avaliação.

Ah...a Tutoria eu deixo para última hora... será que sou só eu? Daí quando a gente conversa assim a gente vê que muita gente deixa.

Sempre acontece de a gente dizer: eu vi isso na Tutoria. Nunca acontece de a gente dizer: eu vi isso na aula de [...].

David Ausubel, na discussão da aprendizagem significativa, apresenta a definição de subsunçor ou ideia-âncora, que se refere ao conhecimento prévio, que permite dar significado a um novo conhecimento apresentado1111. Moreira MA, org. Aprendizagem Significativa: a teoria e os textos complementares. São Paulo: Editora Livraria da Física; 2011.. Assim, os conteúdos desenvolvidos tanto nas aulas, como na Tutoria possibilitarão maior aprendizado se estiverem relacionados, pois funcionam como subsunçores no processo de interação não arbitrária com o novo conhecimento, adquirindo novos significados.

Como vivenciam a Tutoria em um currículo que não é orientado por problemas, os alunos fazem comentários e questionamentos sobre como seria toda uma graduação utilizando apenas a ABP, apresentando certa hesitação e receio em ter um currículo todo construído com metodologia ativa.

“[a Tutoria] sozinha eu acho que não funcionaria bem; só o PBL não seria tão proveitoso; não tem que ser só PBL e não tem que ser só aula.”

“Depois, a Tutoria já fica mais fácil porque a gente tem mais casos clínicos nas aulas; tem muita gente que fica cansado de Tutoria no terceiro período.”

Essas falas se devem ao estranhamento inicial eao desafio de desenvolver uma atividade centrada nos estudantes e não no professor, como tradicionalmente vivenciada no processo histórico pessoal por grande parte dos acadêmicos, no qual o aprendizado é associado à transmissão do conhecimento. Em pesquisas realizadas com estudantes de Medicina de instituições que utilizam a ABP como orientação curricular no Brasil, a fala dos estudantes também converge nesse sentido1414. Silva NC. Aplicação do tutorial no método ABP no curso de graduação em medicina da UNESC. Rev. Pesq. Extens. Saúde. 2007;3(1).,1515. Prates MEVDO. O processo tutorial no método de aprendizagem baseada em problemas (ABP) no curso de Medicina da UESB: a compreensão dos estudantes. Salvador; 2009. Mestrado [Dissertação] – Universidade Federal da Bahia..

Conjunto de sentidos 2 – autonomia do estudante: “por que a pedra está em tal canto?”

Neste outro conjunto de sentidos, aflora o aprendizado centrado no estudante, colocado como autor dessa construção. Os estudantes defendem que, apesar de certa insegurança, o movimento de realizar as próprias buscas, a partir de suas necessidades, favorece a maior elaboração dos conhecimentos e o desenvolvimento pessoal. Todavia, demonstram incertezas em assumir a autoria do próprio processo de aprender a aprender, já que não estão habituados com a corresponsabilização pelo processo de aprendizado.

“tivemos uma experiência de se cobrar mais; mas é preciso saber se o aluno está preparado e tem essa responsabilidade de construir o seu conhecimento.”

A autonomia dos sujeitos é desenvolvida por meio de sua participação nos espaços coletivos, quando o poder é compartilhado através do diálogo e da coprodução de subjetividades1919. Diehl R, Maraschin C, Tittoni J. Ferramentas para uma psicologia social. Psicol. estud., Maringá, Aug. 2006; 11(2).:

“não tem a resposta pronta; aprender a filtrar; o raciocínio flui de uma vez, no caminho certo; fazer hipóteses; certa expectativa; o que será que vai acontecer?; curiosidade; caminho não tão determinado.”

O raciocínio e a problematização são evidenciados nas falas por um conjunto de expressões, entre elas vários verbos relacionados ao aprendizado:

“indagar; raciocinar; opinar; contrapor; arriscar; investigar; perguntar;levantar uma hipótese; articular as ideias; desenrolar as ideias; por que aquela pedra estáem tal canto?”

Os acadêmicos ressaltam, ainda, a melhoria de habilidades, como a objetividade, a busca de fontes seguras e a humildade para reconhecer as próprias limitações. No entanto, afirmam que, quanto mais utilizam fontes seguras e evidências científicas, mais podem se distanciar da criticidade de construção de suas próprias opiniões e apontamentos:

“sintetizar e enxugar num texto mais curto; saber buscar informações e procurar artigos em fontes seguras de estudo; pegar o livro certo; um tapa para você aprender como é que você devia aprender; pesquisar antes para não dizer bobagem; o livro sabe e eu não sei.”

Um estudo de Moreira e Manfroi2626. Moreira MB, Manfroi W. O papel da aprendizagem baseada em problemas nas mudanças no ensino médico no Brasil. Rev. HCPA & Fac. Med. Univ. Fed. Rio Gd. do Sul. 2011; 31(4):477-481. indica que talvez o ponto mais importante e determinante do currículo com ABP seja o desenvolvimento da habilidade de aprender a aprender.No estudo de Smolka et al.1616. Smolka MLRM, Gomes AP, Batista RS. Autonomia no contexto pedagógico: percepção de estudantes de medicina acerca da aprendizagem baseada em problemas. Rev. bras. educ. med.[online]. 2014;38(1):5-14., os estudantes que vivenciam um currículo de ABP se percebem mais ativos na construção da aprendizagem, mas permanecem dúvidas se há mais autonomia no contexto pedagógico ou apenas adaptação ao método. Esse movimento dos estudantes em busca da construção do aprendizado também acontece na Tutoria inserida no currículo tradicional.

Uma controvérsia suscitada pela fala dos estudantes leva a discutir onde está o conhecimento: no professor, no estudante ou no livro? O que nos leva a argumentar que o conhecimento é produto do diálogo entre estes sujeitos, que possuem saberes que se tornam mais potentes por meio do encontro crítico das diferenças quando as pessoas estão disponíveis para criar, recriar e decidir2727. Freire P. Pedagogia da Autonomia: Saberes Necessário à Prática Educativa. São Paulo: Paz e Terra; 1996..

Gomes et al.2828. Gomes R, Brino RF, Aquilante AG, Avó LRS. Aprendizagem Baseada em Problemas na formação médica e o currículo tradicional de Medicina: uma revisão bibliográfica. Rev. bras. educ. med.2009;33(3):433-440., em análises de estudos sobre ABP, argumentam que graduandos de cursos ABP foram mais bem avaliados pelos supervisores que os graduandos de cursos tradicionais, principalmente no que diz respeito a competências vinculadas às dimensões sociais (comunicação, relações interpessoais, lidar com pacientes de culturasdiferentes, atuar em equipe, entre outras). E, também, mais bem avaliados em: autoaprendizagem e busca por conhecimento; iniciativa; lidar com a crítica e com limites pessoais; aceitar responsabilidade; lidar com a incerteza e lidar com a saúde pessoal e bem-estar,destacando-se as capacidades de responsabilidade, lidar com a incerteza e lidar com a saúde pessoal e bem-estar. Tal argumentação corrobora as falas aqui apresentadas no sentido de valorizar a autonomia e a corresponsabilização do estudante pelo seu próprio processo formativo.

Conjunto de sentidos 3 – aproximações entre teoria e prática:”daí tudo flui muito rapidinho, e a gente vai longe”

As relações entre teoria e prática possibilitam aprendizagens significativas, sendo necessárias duas condições principais: disponibilidade de material de aprendizagem potencialmente significativo, no caso as situações-problema; predisposição do aprendiz para aprender, o que seria representado pelos aprendizados em vivências anteriores, em espaços tanto formais como não formais de educação2929. Ausubel DP. Aquisição e retenção de conhecimentos: uma perspectiva cognitiva. Lisboa: Plátano; 2003.. As falas ainda apresentam aproximações com o futuro ambiente de trabalho:

“torna-se mais interessante porque já viveu aquilo; nem sempre acontece de você ter a presença daquele problema no seu dia a dia, mas quando acontece...e é algo que não dá para controlar, daí tudo flui muito rapidinho, e a gente vai longe; deixa a Tutoria mais viva;antecipa situações que a gente vai viver daqui a alguns anos; vai cuidar de vidas.”

Algumas vezes, foi citada a valorização das visões mais integralizadoras do processo saúde-doença, para além do modelo biomédico:

“enxergar vários fatores que envolvem a doença: a família, os fatores psicológicos; se encaixam na realidade do paciente; a oportunidade de enxergar os sentimentos das pessoas e criar uma sensibilidade.”

Também argumentaram, contudo, que os aspectos da saúde não biomédicos são mais difíceis de desenvolver:

“pensamentos ficavam travados quando envolviam temas sociais ou relacionados ao sistema de saúde; agora, quando eram temas mais médicos, de coisas que a gente viu na sala, fluía super-rápido.”

Conjunto de sentidos 4 –aprendizado em e com o grupo:”eu mesmo nunca me senti empacado porque alguém sabia menos”

Neste conjunto, os estudantes desenvolvem a ideia de construção coletiva e colaborativa do aprendizado e falam do grupo como unidade:

“o grupo começa a conversar; o grupo vai pensando, todo mundo junto; vai aprendendo um pouquinho com cada um; em roda; constrói o conhecimento com ajuda dos outros;nunca vai saber de tudo sobre o corpo humano sozinho; passar o conhecimento para os outros.”

Todo o aprendizado acontece por meio das interações e é mediado por algo, que pode ser um professor, um livro, outro estudante, familiares ou as situações-problema apresentadas2929. Ausubel DP. Aquisição e retenção de conhecimentos: uma perspectiva cognitiva. Lisboa: Plátano; 2003.. As falas trazem críticas aos estudantes que querem assumir uma postura de transmissão de informação para os outros e valorizam o trabalho coletivo, com equilíbrio entre fala e escuta:

“resolver o negócio sozinho; não querer ouvir; vomitar o conteúdo; é bom enxergar coisas e pontos diferentes; tem que deixar o outro falar; dividir a experiência que cada um tem.”

Os estudantes discutem sobre a diversidade no grupo, refletindo que há heterogeneidade e que isso potencializa o aprendizado:

“pessoas diferentes, pensando em grupos diferentes; têm coisas parecidas e diferentes; saber a opinião dos outros.”

Este foi um dos conjuntos de sentidos que os estudantes tentaram resgatar durante a segunda Roda, pois disseram ter sentido falta de maior ênfase na síntese apresentada. Trouxeram as dificuldades de trabalhar com as diferenças, tanto em vivências anteriores, como com os conhecimentos específicos da Medicina. Alguns levantaram as dificuldades de ter no grupo a presença de estudantes que já tenham formação anterior, principalmente na área da saúde. Outros trazem estratégias de como lidar com essas diferenças, sugerindo a problematização:

“um não sabia e o outro sabia; no início, prejudicava quando tinha um enfermeiro no grupo; prejudicava quem sabia menos, que era o restante do grupo, e agora prejudica os outros que sabem mais; agora, nesse ponto de jáser formado, eu particularmente não gosto muito; eu mesmo nunca me senti empacado porque alguém sabia menos; espaço certo para quem precisa mais; tem que problematizar, [...] daí a gente consegue aproveitar o que os outros sabem.”

As dificuldades em trabalhar no grupo são apontadas, sendo algumas coletivas e outras individuais:

“grupo que sempre faz as mesmas perguntas; o grupo ficava meio que sem saber o que fazer; não respeitar o espaço do outro; quer passar por cima; obstáculo de falar em público; dificuldade de se colocar no grupo; ficava completamente nervosa.”

Em resposta, alguns se posicionam de forma diferente, destacando que há aprendizado da habilidade de lidar com a diferença:

“aprendemos a compartilhar com o outro, a ouvir, a esperar; criar oportunidade; respeitar; ter jogo de cintura; dar espaço; liberdade de falar diferente.”

Conjunto de sentidos 5 –sentimentos e afetos:”aprende melhor quando enxerga primeiro o errado”

Este conjunto de sentidos apresenta a questão do saber e do não saber, evidenciando em várias falas a importância do erro no processo de aprender. Todavia, são geradas angústias e frustrações.

“o primeiro sentimento é de frustração! Por ter errado; ficava chutando; nem sei nada; aprende melhor quando enxerga primeiro o errado.”

Esses sentimentos estão relacionados às diferentes formas de aprender na Tutoria, pois neste processo o aprendizado é construído pelo estudante e não apenas recepcionado por ele, o que reitera a incompletude dos diferentes saberes. Assim, essa superação dos limites estabelecidos pelos processos de transmissão de informações gera desconforto, mas também é um estímulo à busca e à compreensão mais complexa das situações de saúde. Nesse mesmo ambiente, é interessante o jogo que trazem entre falar e não falar, o que suscita ansiedades e inseguranças que vão sendo superadas ao longo do tempo:

“Ai, meu Deus, eu tenho que falar alguma coisa!; não fluir; medo de falar besteira; insegurança muito grande; você trava; angustiada; cheio de dúvidas.”

Os primeiros contatos com a Tutoria são descritos como difíceis e imersos em dúvidas e algum sofrimento, tanto na compreensão do método, como na superação das dificuldades de se colocar e discutir em grupo.

“e aí o começo do primeiro período foi muito ruim, mas aí chegou no segundo eu fui perdendo [a timidez]; ficava todo mundo tenso, assim, nas duas primeiras semanas; tive dificuldade no início; acaba se acostumando.”

O início das atividades da Tutoria ocorre logo na entrada na graduação de Medicina, sendo acompanhado de incertezas e dificuldades devido às várias mudanças na estrutura de vida dos acadêmicos (cidades, saída da casa dos pais, aumento nos gastos, expectativas familiares). Assim, na Tutoria, os estudantes podem falar sobre essas inquietações e compartilhar com os outros alunos e com o tutor, em um espaço de acolhimento:

“como se fosse um grupo de amigos, de pessoas mais próximas; empatia; troca com as pessoas; os outros me ajudavam nos meus problemas; o tutor sabia o que eu estava passando; eu me sentia mais à vontade.”

Em um currículo não orientado por problemas, como o estudado, há numerosas disciplinas paralelas à Tutoria, sendo que esta, por ser centrada no estudante, demanda planejamento para o estudo individual. Assim, nem sempre há tempo para um estudo com afinco para a Tutoria, pois muitas vezes as aulas mais tradicionais são mais valorizadas, pois estão associadas a uma grande quantidade de conteúdos que serão “cobrados” nas provas, gerando conflitos sobre o que priorizar nos tempos de estudo.

“Eu acho que eu devia estudar mais para a Tutoria, mas fico preocupado com as notas e com o que vai ser cobrado na prova; a gente sabe que tem muita gente que não estuda direito e fica angustiado; eu sofria porque tinha que dar conta de duas coisas... no fim eu dava um jeito.”

Neste conjunto de sentidos, há visibilidade da vinculação e da inclusão de conflitos, o que favorece a valorização das subjetividades dos estudantes e potencializa o desenvolvimento de competências afetivas no contato com o outro. Na Tutoria, os alunos demonstram ser protagonistas nesse diálogo para compartilhar sentimentos e as próprias fragilidades, pois vivenciam experiências e dificuldades diferentes.

Conjunto de sentidos 6 – participação do tutor: “o tutor é um professor melhorado”

Neste campo, os participantes relacionaram o próprio aprendizado com a mediação do tutor. Nas falas, há dois perfis de tutores: aqueles mais envolvidos com o método e os que colaboram menos para o aprendizado do aluno.

“o tutor é fundamental;estimula a gente a pensar e criar vários questionamentos; como se dissesse: vai, está coerente; não estimulava tanto; amarrava muito; não falava nada; não deve dar as respostas; deixava a gente livre; pedia para ser criativo; não que ela desse as respostas.”

Ainda permanece uma postura de medo do estudante em demonstrar suas fragilidades, o que revela uma relação ainda não tão horizontal no processo.

“e o que ele [estudante] sabe ele acaba achando que é besteira; a gente já pensa que a tutora jáfica pensando...ah, esse rapaz é muito burro, olha o que ele está pensando!”

Os estudantes fazem também comparações entre o docente na sala de aula tradicional e na Tutoria, sendo que o tutor éassociado a estar mais aberto para aprender, enquanto o professor da sala de aula tem as respostas prontas:

“o tutor não sabe de tudo; a gente levava conhecimento para a tutora; o professor não aceita o que está no livro, só o que ele disse na sala de aula; o tutor é um professor melhorado; tem o papel de passar segurança para quem tem as ferramentas na mão, mas que não está sabendo usar.”

Nesse conjunto, a controvérsia entre as perguntas e as respostas desloca o tutor para a responsabilidade de provocar as perguntas, sendo as respostas construídas pelos estudantes. Nesse ínterim, o tutor faz o papel de mediador, colaborando na ressignificação das aprendizagens, pois são necessárias interações entre as disciplinas, as vivências anteriores, os saberes prévios, resultando em novos conhecimentos para ações futuras3030. Vygotsky LS. A Formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. Cole M, John-Steiner V, Scribner S, Souberman E, orgs.Tradução: Neto JC, Barreto LSM, Afeche SC. 7.ed. São Paulo: Martins Fontes; 2007..

Conjunto de sentidos 7 – processos avaliativos:”daí você se liga e percebe que tem que mudar”

Este conjunto de sentidos não integravaas questões quando foi apresentada a síntese da análise da primeira Roda aos sujeitos da pesquisa. Durante a segunda Roda de Conversa, os participantes entenderam como uma lacuna a ausência deste conjunto de sentidos, o que nos levou a destacá-lo nos resultados, analisando seu repertório linguístico.

Os estudantes discutiram sobre as formas de avaliação da aprendizagem na Tutoria, falaram das dificuldades em fazer uma boa síntese, bem como em elaborar um portfólio reflexivo. Falaram das avaliações que os tutores realizam, afirmando que, algumas vezes, não compreendem bem quais os critérios utilizados:

“mas eu acho que talvez o portfólio realmente ajude para você aprender a fazer a pesquisa; mas eu tinha dificuldade, não de escrever, mas na questão de formular o portfólio; eu não entendo direito como ele avalia.”

As controvérsias nos modelos de avaliação na Tutoria estão presentes no repertório linguístico e são percebidas quando alguns falam da avaliação como quantificação de conteúdo e resultados, enquanto outros trazem uma compreensão mais construtiva, formativa e como componente do processo de aprendizagem.

“o que a gente quer é tirar dez; eu acho que às vezes a nota é injusta; porque é bomquando alguém diz que você deixou a desejar, e fazer essa devolutiva em partes é muito bom; eu acho que é muito relativa a questão da avaliação porque se tem alguém que fala pouco, não quer dizer que ela não saiba; tanto da nota como da avaliação oral, falando da participação.”

No campo da avaliação, esta experiência de Tutoria tem instrumentos de construção da aprendizagem, como o portfólio, a síntese reflexiva, a avaliação formativa ao final dos encontros.Porém, devido à estrutura avaliativa do currículo, são mantidas as notas quantitativas, ao invés dos conceitos utilizados nos currículos orientados por problemas, propiciando mais um desconforto aos estudantes ao buscarem compreender os processos avaliativos, ora como somativos, ora como processo de aprendizagem.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na fala dos estudantes, várias controvérsias estiveram presentes quando avaliaram o módulo Tutoria. Isto reflete os conflitos decorrentes da forma problematizadora de pensar a aprendizagem com uso de metodologias ativas e deflagrados pelas características deste currículo, que é composto em parte por um modelo mais tradicionale em parte por algumas atividades mais inovadoras.

Neste encontro de dois modelos, os estudantes trazem reflexões e questionamentos sobre onde está o conhecimento, havendo apontamentos em direção ao professor, ao estudante e aos textos científicos, mas também ao resultado do diálogo entre esses diversos atores. Os alunos fazem elaborações sobre onde aprendem, relacionando os saberes prévios aos aprendizados desenvolvidos na faculdade, tanto individualmente, como em grupo, e ligando a teoria e a prática.

Na diversidade de saberes, trazem as controvérsias da construção coletiva, identificando dificuldades e potencialidades desse encontro de diferentes sujeitos. Entre esses diferentes está o tutor, imerso nos desafios de ensinar e aprender, sendo visto às vezes como detentor do conhecimento, às vezes como mediador da aprendizagem.Nesse encontro, há desenvolvimento de autonomia, criticidade, respeito e aprendizado com as diferenças, que são competências importantes a serem desenvolvidas pelo futuro médico.

A inserção da Tutoria inspirada na ABP em currículos mais tradicionais pode ser uma alternativa para iniciar processos de integração interdisciplinar e mudanças no sentido da aprendizagem significativa, desde que haja coerência com a proposta pedagógica do curso e avaliação e planejamento permanentes, com o comprometimento de todos os envolvidos.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    04 Maio 2015
  • Aceito
    21 Jan 2016
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