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Nova Metodologia de Ensino do ECG: Desmistificando a Teoria na Prática – Ensino Prático do ECG

New ECG Training Methodology: Demystifying Theory in Practice – Practical Teaching of ECG

RESUMO

O eletrocardiograma é um método diagnóstico de simples execução, de grande utilidade nos diagnósticos das doenças cardiovasculares, sobretudo as agudas, como as arritmias e o infarto agudo do miocárdio. O seu entendimento não é claro, provavelmente porque a base da explicação é voltada para conceitos básicos da física, atrelado ao ensinamento mais teórico que prático aos estudantes de medicina. A presente experiência mostra o modelo criado e adotado para explicar um método de ensino desenvolvido com os devidos materiais fornecidos à população alvo do ensino: estudantes de medicina e médicos residentes de cardiologia e outras especialidades clínicas, que fazem prática de estágio obrigatório dos seus respectivos programas de aprendizagem em uma emergência cardiológica de um hospital universitário em Recife/PE.

Eletrocardiograma; Educação de Graduação em Medicina; Educação Médica

ABSTRACT

The electrocardiogram is a straightforward diagnostic method, which is very useful to diagnose cardiovascular diseases, particularly acute ones, such as arrhythmias and acute myocardial infarction. Its understanding is unclear, probably because the basis of the explanation is focused on basic concepts of physics, bound to a more theoretical than practical teaching approach for the medical students. This experience shows the model created and adopted to explain a teaching method developed with the proper materials provided to the target group: medical students and medical residents in cardiology and other clinical specialties that require the student to undertake practical training in a cardiac emergency unit of a teaching hospital in Recife / PE.

Electrocardiogram; Practical Learning; Medical Education

INTRODUÇÃO

O eletrocardiograma (ECG) é uma ferramenta diagnóstica necessária à Cardiologia. Sua utilidade baseia-se no grau de efetividade da interpretação pelo médico, o que depende, em primeira instância, da forma como esta foi aprendida. O método utilizado para este fim parece influenciar diretamente o entendimento inicial do aprendiz11. Patuwo TP, Wagner GS, Ajijola OA. Comparison of Teaching Basic Electrocardiographic Concepts with and without ECGSIM, an Interactive Program for Electrocardiography. Computers in Cardiology 2007; 34:61−64.. Por outro lado, estudos têm mostrado que o nível de competência para interpretação do ECG é baixo entre médicos residentes22. Berger JS, Elsen L, Nozard V, et al. Competency in electrocardiogram interpretation among internal medicine and emergency medicine residents. Am J Med 2005; 118(8):873-80.,33. Jager J, Wallis L, Maritz D. ECG interpretation skills of South African Emergency Medicine residents. Int J Emerg Med 2010; 3:309–314..

Na maioria dos programas de pós-graduação não há um treinamento formal, nem uma avaliação da competência de interpretação do ECG44. Pines JM, Perina DG, Brady WJ. Electrocardiogram interpretation training and competency assessment in emergency medicine residency programs. Acad Emerg Med 2004; 11:982-4.. Esta habilidade em interpretar o ECG pode ser perdida em função do tempo sem contato com esta prática55. Paul B, Baranchuk A. Electrocardiography Teaching in Canadian Family Medicine Residency Programs: A National Survey. Fam Med 2011;43 (4):267-71.. Isto justifica as diferenças significativas na interpretação de um mesmo traçado de ECG entre graduandos, residentes e médicos plantonistas, levando a diagnósticos incorretos de doenças agudas graves, como infarto e arritmias66. Sur DK, Kaye L, Mikus M, Goad J, Morena A. Accuracy of electrocardiogram reading by family practice residents. Fam Med 2000; 32:315-9.. Há vários livros-textos sobre o assunto, e a transmissão do conhecimento apresenta certa heterogeneidade, às vezes com foco na física, o que afasta o leitor interessado no tema –estudantes de Medicina e Enfermagem –, provavelmente porque sua escolha profissional está mais distante das ciências exatas77. Carneiro EF. O Eletrocardiograma: 10 Anos Depois. 5ª ed.. Rio de Janeiro, RJ; 1987.,88. Wagner GS, Lim TH, Strauss DG, Simlund J. Marriott’s Practical electrocardiography. 13 th ed. Lippincott Williams and Wilkins Philadelphia, PA; 2014..

Entendendo a necessidade de explicar os eventos elétricos registrados no ECG, assim como suas variações normais, pela representação vetorial, os autores desenvolveram um método teórico e prático que estimula a aceitação das convenções adotadas, explorando neste modelo as variações biológicas encontradas na literatura. Com base no modelo teórico adotado, o traçado é contextualizado de modo a sedimentar o aprendizado e poder ser resgatado em situações clínicas semelhantes no futuro. É neste sentido que os autores têm desenvolvido com estudantes do quinto e sexto ano de Medicina e residentes do primeiro e segundo ano de várias especialidades médicas uma nova técnica de ensino dos princípios básicos de interpretação do ECG normal e patológico, fundamentada no conceito da Aprendizagem Baseada em Problemas (ABP).

A escolha da metodologia da ABP tomou por base estudos que mostram maior habilidade dos graduandos na interpretação do ECG quando formados em escolas com currículos baseados nessa metodologia99. Koh GCH, Khoo HE, Wong ML, Koh D. The effects of problem-based learning during medical school on physician competency: a systematic review. Can Med Assoc J 2008; 178 (1):34-41.

10. Jones A, McArdles PJ, O’Neill PAO. Perceptions of how well graduates are prepared for the role of pre-registration house officer: a comparison of outcomes from a traditional and an integrated PBL curriculum. Med Educ 2002;36 (1):16-25.
-1111. Watmough S, Taylor DC, Garden A. Educational supervisors’ views on the competencies of pre-registration house officers. Br J Hosp Med 2006;67 (2):92-5.. Durante quatro anos a técnica de ensino foi desenvolvida e aprimorada, levando em conta a vivência com os alunos e suas observações, sugestões e críticas. Assim, relata-se um método novo de ensino do eletrocardiograma (ECG) no Pronto-Socorro Cardiológico de Pernambuco Professor Luís Tavares (Procape), Universidade de Pernambuco (UPE), Recife (PE), Brasil.

RELATO DE EXPERIÊNCIA

Internos do quinto e sexto períodos de Medicina da UPE e residentes de Cardiologia da instituição têm estágio curricular de um mês na Emergência Cardiológica do Procape. O rodízio mensal oferece também vagas a outros internos das universidades locais e a residentes de Clínica Médica, Cardiologia, Neurologia e Anestesiologia dos programas de residência médica do Estado de Pernambuco e instituições de estados circunvizinhos que solicitavam uma vaga extra.

De 2010 a dezembro de 2014, o período de estágio mensal na Emergência Cardiológica do Procape era composto por atividade teórica de ensino do eletrocardiograma, contextualizada com os casos atendidos no setor. Material didático era oferecido a cada estudante e residente.

A turma era composta por 20 a 25 alunos, com a média de 16 internos e oito residentes médicos de especialidades clínicas. No primeiro dia, era realizado um pré-teste com seis perguntas sobre os conceitos básicos do ECG normal e um acrônimo para ajudar a sequência da interpretação desenvolvida pelo grupo de pesquisa. O material didático fornecido constava de: (a) lâminas plastificadas (réguas), para consulta durante o atendimento ao doente, nas quais havia considerações do ECG normal e os principais conceitos e critérios de anormalidade do método (Anexo 1); (b) um livreto de introdução ao ECG normal e algumas anormalidades, e um outro, de entendimento do ECG e bloqueio em rimas (Anexo 2). O livreto de introdução ao ECG normal continha lacunas no texto que deviam ser preenchidas por cada estudante e corrigidas nos dois dias subsequentes às duas aulas expositivas/interativas ministradas a partir do segundo e terceiro dia do estágio. Após o preenchimento deste livreto, eram fornecidos exercícios impressos em 12 folhas A4, para serem realizados em casa, com a correção feita no dia subsequente, uma folha por dia.

Uma leitura prévia de introdução ao ECG normal era recomendada antes da aula teórica sobre o novo método de ensino, desenvolvido com base na exploração do sistema hexaxial de Bayley e na variação normal do processo elétrico numa população previamente estudada dentro deste sistema. Desta forma se estimulava a memorização apenas da variação da angulação normal dos processos elétricos cardíacos no sistema hexaxial, que são captados pelo aparelho e registrados no papel do eletrocardiograma, ou seja, a despolarização atrial, ventricular e a repolarização ventricular, e as convenções adotadas das polaridades dos ângulos no sistema hexaxial e alguns princípios da física para entender a representação vetorial da atividade elétrica do coração. Neste modelo, a apresentação oral era feita inicialmente, explicando o que é o ECG, como é composto, as convenções adotadas para sua interpretação, a posição dos eletrodos para captar o evento elétrico, a designação da linha que une os dois eletrodos (derivação), o número de derivações e planos definidos para captar a atividade elétrica do coração na superfície corpórea e o papel que é registrado, assim como a padronização da voltagem e a velocidade de captação.

Após a introdução do modo como é realizado o método e dos conceitos necessários à interpretação de cada onda visualizada no traçado (P, QRS e T) em pessoas normais, a pergunta a ser respondida era: como entender a polaridade de cada uma destas ondas nas 12 derivações (linha imaginária que une dois eletrodos) do ECG? A única forma encontrada para entender a variação da polaridade sem simplesmente decorar a polaridade das três ondas do ECG nas derivações foi explorar o sistema hexaxial e a angulação normal de cada evento elétrico detectado na superfície corpórea, despolarização atrial (onda P de 0° a +75°), despolarização ventricular (complexo QRS de -30° a +90°) e onda T (repolarização ventricular de -10° a +90°). Consideramos como referência para o normal os livros-textos internacionais sobre eletrocardiografia e Cardiologia88. Wagner GS, Lim TH, Strauss DG, Simlund J. Marriott’s Practical electrocardiography. 13 th ed. Lippincott Williams and Wilkins Philadelphia, PA; 2014.,1212. Goldberger AL. The normal ECG. In Clinical Electrocardiography a simplified approach.7.ed. Philadelphia: Elsevier; 2006.,1313. Mirvis DM, Goldberger AL. Electrocardiogram. In: Braunwalds heart disease: a textbook of cardiovascular medicine. Edited by Bonow RO, Mann DL, Zipes DP and Libby P. 9 th ed. 2012..

Desta forma, é possível entender a razão da variação da polaridade em cada derivação no papel milimetrado do ECG e entender por que a onda P, em pessoas normais, deve ser positiva nas derivações D1 e D2 e de V4 a V6. A maior parte da literatura consultada descreve a polaridade normal de cada onda sem detalhar sua enorme utilidade para aprender o método. Provavelmente, esta é uma das maiores dificuldades no entendimento deste valioso método para urgentistas e intensivistas. Entender por que as ondas do ECG podem ser positivas, negativas ou isodifásicas em relação à linha de base do ECG mostrou nesta experiência, pelos relatos dos alunos, que é um método que vale a pena validar.

Para repassar esta informação de forma didática e quebrar o conceito estabelecido de que o entendimento do ECG é de difícil acesso e deve ser aprendido numa especialização, foram desenvolvidas figuras explicativas do sistema hexaxial para cada derivação do plano frontal (Anexo 3), figuras do plano horizontal na perspectiva fornecidas no livreto (Anexo 2) e o sistema hexaxial foi fabricado em madeira e fixado na parede para consulta durante a atividade prática (Anexo 4). Cada evento elétrico era representado didaticamente por vetor e, com base nos conceitos físicos discutidos previamente, como poderia ser a projeção de cada evento em cada derivação quando se aproximava ou se afastava do polo positivo da metade da circunferência de uma dada derivação e o seu resultado a partir da variação encontrada na população dentro do sistema hexaxial. Reitera-se que o conceito da representação vetorial do processo elétrico do coração é simplesmente didático. Alguns autores representam a despolarização ventricular por dois, três e até quatro vetores. Talvez esta seja uma das causas da dificuldade do processo de aprendizado do método. Reforça-se que no coração não há vetor, utiliza-se este ente matemático porque ele tem direção, sentido e grandeza, assim como atividade elétrica.

Ensina-se o conceito de que cada derivação é dividida ao meio no sistema hexaxial em uma parte positiva e outra negativa, conforme a posição dos eletrodos positivo e negativo. Se a corrente elétrica do coração se dirige para o polo positivo de cada derivação, a onda no traçado é positiva; se ela se afasta, será negativa (Anexo 5). Desta forma, enfatizam-se os três princípios básicos da eletrocardiografia referidos por Goldenberg1212. Goldberger AL. The normal ECG. In Clinical Electrocardiography a simplified approach.7.ed. Philadelphia: Elsevier; 2006.: (1) a deflexão (onda) será positiva se a corrente da atividade elétrica do coração se dirigir para o polo positivo da derivação; (2) uma onda será negativa se o evento elétrico se dirigir para o polo negativo; (3) se a média da despolarização é perpendicular à linha da derivação, a deflexão é bifásica. A amplitude de cada onda dependerá da relação que cada evento tem com a linha da derivação: se paralela, a deflexão é máxima; se perpendicular, é isodifásica; e se é oblíqua, é de tamanho intermediário.

Após as atividades teóricas com os exercícios, os estudantes seguiam para a prática do estágio: atender pacientes que chegam à emergência ou evoluir os que estão internados para definição; os casos e respectivos ECG eram discutidos com o estafe presente. No fim de 30 dias, uma avaliação escrita era realizada com 15 ECG. Os laudos deveriam ser dados a partir de um acrônimo criado (ver adiante) para a interpretação correta do exame. Duas folhas em branco e com carbono eram distribuídas; uma ficava com o aluno, e a outra com o instrutor para em seguida ser corrigida coletivamente.

Na última semana do estágio, o grupo era dividido em três, bem equilibrados em relação à formação de cada um, para uma segunda avaliação. Cada grupo recebia uma pasta com 11 ECG, a maioria já discutida nos exercícios prévios. Decorrida uma hora da discussão em grupo, o instrutor corrigia a ficha avaliativa, expondo os ECG em power point e solicitando a conclusão do ECG que cada grupo discutiu na hora anterior.

O acrônimo criado para orientar uma sequência na interpretação do ECG foi designado REFASA, que significa: R: ritmo; E: eixo; F: frequência; A: amplitude/duração e polaridade das ondas P, QRS e T; S: segmento ST/intervalo QT e PR; A: área eletricamente inativa.

Durante quatro anos essa técnica de ensino foi desenvolvida e aprimorada com base na vivência com os alunos e em suas observações, sugestões e críticas. Considerando os registros dos internos de Medicina e residentes médicos após o término do estágio, a proposta é avaliar em estudo posterior a validação deste novo modelo de ensino que tem sido bem aceito, como se pode observar nos seguintes registros: “Obrigada por ensinar o ECG e mostrar que é possível entendê-lo”; “Os receios, os medos e a ignorância sobre o ECG são desmistificados neste rodízio”; “Em um mês, aprendi sobre ECG o que não aprendi em anos”; “Muito obrigado pelo conhecimento que não temos em livros”; “As aulas de ECG são excelentes, o que antes eram apenas traçados hoje são supras, bradis, bloqueios”.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Patuwo TP, Wagner GS, Ajijola OA. Comparison of Teaching Basic Electrocardiographic Concepts with and without ECGSIM, an Interactive Program for Electrocardiography. Computers in Cardiology 2007; 34:61−64.
  • 2
    Berger JS, Elsen L, Nozard V, et al. Competency in electrocardiogram interpretation among internal medicine and emergency medicine residents. Am J Med 2005; 118(8):873-80.
  • 3
    Jager J, Wallis L, Maritz D. ECG interpretation skills of South African Emergency Medicine residents. Int J Emerg Med 2010; 3:309–314.
  • 4
    Pines JM, Perina DG, Brady WJ. Electrocardiogram interpretation training and competency assessment in emergency medicine residency programs. Acad Emerg Med 2004; 11:982-4.
  • 5
    Paul B, Baranchuk A. Electrocardiography Teaching in Canadian Family Medicine Residency Programs: A National Survey. Fam Med 2011;43 (4):267-71.
  • 6
    Sur DK, Kaye L, Mikus M, Goad J, Morena A. Accuracy of electrocardiogram reading by family practice residents. Fam Med 2000; 32:315-9.
  • 7
    Carneiro EF. O Eletrocardiograma: 10 Anos Depois. 5ª ed.. Rio de Janeiro, RJ; 1987.
  • 8
    Wagner GS, Lim TH, Strauss DG, Simlund J. Marriott’s Practical electrocardiography. 13 th ed. Lippincott Williams and Wilkins Philadelphia, PA; 2014.
  • 9
    Koh GCH, Khoo HE, Wong ML, Koh D. The effects of problem-based learning during medical school on physician competency: a systematic review. Can Med Assoc J 2008; 178 (1):34-41.
  • 10
    Jones A, McArdles PJ, O’Neill PAO. Perceptions of how well graduates are prepared for the role of pre-registration house officer: a comparison of outcomes from a traditional and an integrated PBL curriculum. Med Educ 2002;36 (1):16-25.
  • 11
    Watmough S, Taylor DC, Garden A. Educational supervisors’ views on the competencies of pre-registration house officers. Br J Hosp Med 2006;67 (2):92-5.
  • 12
    Goldberger AL. The normal ECG. In Clinical Electrocardiography a simplified approach.7.ed. Philadelphia: Elsevier; 2006.
  • 13
    Mirvis DM, Goldberger AL. Electrocardiogram. In: Braunwalds heart disease: a textbook of cardiovascular medicine. Edited by Bonow RO, Mann DL, Zipes DP and Libby P. 9 th ed. 2012.

ANEXO 1 Material explicativo sobre ECG

ANEXO 2 Livretos sobre ECG

ANEXO 3 Figuras explicativas do sistema hexaxial

ANEXO 4 Sistema hexaxial fabricado em madeira

ANEXO 5 Relação entre a atividade elétrica do coração e o eletrodo explorador

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    02 Jun 2015
  • Aceito
    07 Jan 2016
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